The Project Gutenberg EBook of O culto da arte em Portugal, by 
José Duarte Ramalho Ortigão

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Title: O culto da arte em Portugal

Author: José Duarte Ramalho Ortigão

Release Date: November 12, 2009 [EBook #30456]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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Rita Farinha (Nov. 2009)






O CULTO DA ARTE

EM

PORTUGAL





RAMALHO ORTIGÃO




O CULTO DA ARTE


EM

PORTUGAL




Monumentos architectonicos―Restaurações―Desacatos
Pintura e esculptura―Artes industriaes
O genio e o trabalho do povo―Indifferença oficial―Decadencia
Anarchia esthetica
Desnacionalisação da arte―Dissolução dos sentimentos
Urgencia de uma reforma




LISBOA
Antonio Maria Pereira, Livreiro-Editor

50―Rua Augusta―52

1896






Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa





Á Commissão dos Monumentos Nacionaes


dedica respeitosamente
este humilde trabalho


O AUCTOR




[1] Durante a Renascença, e ainda atravez da Edade Média, tão insufficientemente conhecida no enigma da sua cultura artistica, os reis, os monges, os fidalgos, os burguezes enriquecidos ostentavam o fausto e a pompa hierarchica não sómente construindo palacios e castellos, que enobreciam os logares que elles habitavam, mas erigindo basilicas e cathedraes, em que se concentravam todos os esforços do talento de uma raça, e eram verdadeiramente os palacios do povo, doados magnanimamente pelos mais poderosos aos mais humildes, em nome de Deus, em nome do rei, em honra da patria. [2]

N'esses edificios incomparaveis se achavam colligidas como em escolas monumentaes, como em museus portentosos, todas as maravilhas da sciencia, da poesia e da arte. A esculptura architectural, a estatuaria dos mausoleus, a imaginaria dos altares, a illuminura dos missaes, a pintura das vidraçarias, a talha dos retabulos subordinavam-se a um pensamento commum, expresso n'um vasto symbolismo, comprehendendo as fecundidades da terra e do mar, o trabalho do homem nos seus desfallecimentos e nos seus triumphos, a perturbação dos sentidos pelo peccado, a fatalidade do sangue, o horror do universal aniquilamento, e o vôo da alma para Deus, levada por um immortal instincto de amor, de paz, de verdade e de justiça.

Dentro d'essas egrejas, ameaçadas hoje de proxima ruina ou inteiramente arruinadas, se celebravam todos os actos da vida religiosa, da vida civil e da vida domestica. Ahi se casavam os noivos, se baptisavam os filhos, se sepultavam os paes. Ahi se ungiam os reis, velavam as armas os cavalleiros, professavam os monges, benziam-se os [3] fructos da terra, as bandeiras das hostes, as ferramentas da lavoura e os pendões dos officios. Ahi se discutiam os interesses do povo, os direitos, as franquias, os foros da communa. Ahi se prégava o Evangelho, se resava a missa, e se representavam os autos populares da vida de Jesus e dos seus santos; e nas vigilias da Natividade, da Epiphania e da Paschoa, quando o orgão emudecia no coro e se calavam os cantos liturgicos, o povo bailava ao longo da nave, sob as abobadas gothicas ou sob as cupulas bysantinas, e as lôas e os villancicos, entoados pelos fieis, subiam para o ceu com a fragancia das flores e com o fumo dos thuribulos, ao repique das castanholas e ao rufar dos adufes.

Ao lado dos brazões e das divisas heraldicas pendiam dos muros os votos modestos dos mais obscuros mesteiraes, dos mais humildes braceiros.

Esse alcaçar dos pobres, que era a egreja medieval, alcaçar mais sumptuoso que o de nenhum rei, dava asylo incondicional, inviolavel e sagrado, aos maltrapilhos, aos villões, aos mendigos, aos lazaros e ás lazaras de todas as lepras do corpo [4] e da alma, aos tinhosos, aos nus, aos imbecis, aos ignorantes, aos criminosos, ás mulheres adulteras, ás mancebas, ás mundanarias, ás barregãs.

O egoismo dos tempos modernos torna-nos incompativeis com o commetimento de tão grandes obras. Creamos instituições de caridade, fazemos regulamentos de assistencia publica, e vangloriamo-nos de haver definido pela revolução liberal o dogma da fraternidade humana, mas somos fundamentalmente incapazes de consagrar á pratica das virtudes, de que julgamos ter na historia o monopolio, monumentos como aquelles que nossos avós lhe levantaram a proll do comum e aproveitança da terra, dando em resultado que o mais andrajoso mendigo da portaria do mosteiro de Alcobaça ou do mosteiro de Santa Cruz, com o seu alforge ao pescoço e a sua escudella debaixo do braço, participava, além da ração quotidiana que se lhe distribuia pelo caldeirão da communidade, de um agasalho de principe e de um luxo d'arte com que hoje não competem os maiores potentados, os quaes em suas casas e para seu recreio intimo se rodeiam de todas as joias artisticas de que [5] pela abolição dos vinculos e pela extinção das ordens religiosas se apoderou o moderno commercio do bric-à-brac.

Falta-nos a alta noção de solidariedade patriotica, falta-nos o desapego dos bens de fortuna, falta-nos o largo espirito de abnegação, falta-nos a illimitada liberalidade cavalleirosa, e falta-nos a fé dos nossos avós.

Na architectura trabalhamos unicamente para nós mesmos, sem cuidados de futuro, sem pensamento de continuidade de raça ou de familia, deslembrados de que teremos vindouros e de que teremos netos.

Entre as nossas antigas construcções hydraulicas ha o aqueducto de Elvas, que levou cem annos a fazer. Varias gerações successivas acarretaram para essa construcção os materiaes; e lentamente, pacientemente, foram collocando pedra sobre pedra, para que um dia a agua chegasse a Elvas, e bebessem d'ella os netos dos netos d'aquelles que de tão longe principiaram a recolhel-a e a canalisal-a. Uma tal empresa é a humilhação e a vergonha do nosso tempo, imcapaz de pagar com [6] egual carinho ao futuro aquillo que deve á previdencia, aos sacrificios e aos desvelos do passado.

O nosso ideal na arte de construir é que a obra se faça em pouco tempo e por pouco dinheiro. Vamos abandonando cada vez mais, de dia para dia, a pedra e a madeira, em que é nimiamente moroso para a morbida inquietação do nosso espirito o trabalho de desbaste, de esquadria e de lavor. Adoptamos, como material typico do nosso systema de edificar, o ferro, o tijolo e a pasta. A casa cessou de ser uma obra de architectura para se converter em uma empreitada de engenharia, e os delicados artistas da pedra, da madeira e do ferro forjado abdicam da sua antiga missão perante os subalternos obreiros encarregados de fundir, de amassar e de enformar a vapôr a habitação moderna e o moderno edificio publico―a gare, o quartel, o mercado ou a cadeia.

O seculo XIX, se com a impotencia de continuar a obra monumental dos seculos que o precederam, accumulasse a incapacidade de comprehender e de venerar essa obra, representaria um pavoroso retrocesso na historia. Não succede assim, [7] porque são inviolaveis as leis do progresso. Ao seculo XIX coube patentear o estudo mais dedicado e o conhecimento mais perfeito da arte antiga. A sciencia archeologica e a critica d'arte nunca em nenhum outro periodo da civilisação chegaram á eminencia attingida pelos investigadores contemporaneos. É tambem em sua maneira um colossal monumento, dos mais gloriosos para a intelligencia, o que erigiu a erudição do nosso tempo, constituindo scientificamente a archeologia, definindo o seu methodo, fixando os seus limites, especialisando o trabalho dos seus contribuintes, distinguindo da archeologia litteraria a archeologia da arte, ramificando para um lado a paleographia, a epigraphia, a ecdotica, a museographia e a propedeutica, para o outro as bellas artes, as artes industriaes, a numismatica, e ainda como desdobramento d'estes estudos a iconographia, a mithologia figurada e a symbologia, particularisando emfim estas investigações a cada povo e a cada epocha da humanidade, creando d'esse modo a prehistoria, a egyptologia, a syriologia, que tão amplo clarão teem derramado sobre [8] os problemas da origem do homem, da distribuição das raças, da formação das linguas. Fixaram-se pelas escavações de Troia, de Mycenes, de Chypre, de Santorin e de Rhodes as origens orientaes e pelasgicas da arte grega. Corrigiu-se na historia da ceramica a confusão existente entre os vasos pintados gregos e etruscos. Refez-se completamente sobre novos elementos e por um criterio novo a historia da olaria, a da toreutica, a da glyptica, a da esculptura em barro, a dos bronzes, a das joias, a da tapeçaria, a da illuminura. Desvendou-se o conhecimento da tachigraphia hieratica e dos alphabetos hieroglyphicos, ideographicos e phoneticos, que precederam o alphabeto grego e o latino. Creou-se a critica scientifica dos textos. Colligiram-se e classificaram-se as inscripções gregas e romanas dessiminadas pela Europa, e definiu-se o methodo de as datar. Leram-se os carcomidos graffitos de Pompeia, os papyrus carbonisados de Herculanum, as cartas lapidares da edade média e os palimpsestos de Plauto, de Cicero, de Marco Aurelio, de Tito Livio, de Euripedes e dos scribas carolingeanos. [9] Interpretaram-se os documentos de procedencia egypcia, copta ou phenicia sepultados nos jazigos das mumias. E os mysteriosos caracteres hieroglyphicos e cuneiformes das inscripções egypcias, caldéas, assyrias e persas foram simplesmente trasladados a vulgar. Determinou-se a edade dos manuscriptos pelo systema das abreviaturas e da pontuação e pela evolução da letra desde a oncial da Iliada no palimpsesto greco-syriaco do Museu Britannico até a minuscula italiana egual á dos primeiros caracteres da imprensa. Inspeccionaram-se e inquiriram-se as primitivas habitações do homem, as suas primeiras fortificações, os seus mais antigos sepulcros,―a caverna, a cidade lacustre, os castros e os dolmens. Na architectura principiou-se a estudar por novos meios de critica as causas dos seus progressos e da sua decadencia, prendendo assim pelos mais estreitos vinculos ao destino da arte o destino do homem. Por tal modo se transfigurou completamente desde o seu alicerce até o seu remate o vasto edificio da historia, segundo a resumida formula dada por Champolion Figeac: que todos os monumentos, ainda [10] os mais communs e os mais grosseiros, conteem factos cujo conjuncto é como a estatistica moral das sociedades extinctas.

D'esse novo criterio resultou a attenção especial com que todos os povos cultos principiaram a considerar a obra material do passado; e assim nasceu, com uma nova palavra, a nova maneira de restaurar os edificios publicos.

Em mais de um documento da edade média se encontram provas de que os antigos poderes não abandonavam, tão completamente como hoje se poderia suppor, ao accaso de qualquer iniciativa, sem beneplacito do estado, as edificações consagradas ao publico. No Codigo de las partidas, lei 6.ª, titulo X, dizia Affonso o Sabio, n'aquella saborosa lingua de que mais tarde se desdobrou o portuguez e o castelhano: «Por bienaventurado se debe tener todo home que pueda facer eglesia, do se ha de consagrar tan noble cosa et tan sancta como el cuerpo de Nuestro Señor Jesucristo, et como quiere que todo home ó mujer la puede facer a servicio de Dios, pero con mandamiento del obispo, como es dicho en la ley segunda deste [11] titulo, con todo eso debe catar dos cosas el que la ficiere, que la faga complida et apuesta; et esto tambien en la labor como en los libros et en las vestimientas...»

Affonso V escreve de Almada, em 1467, aos juizes, vereadores, procuradores e homens bons da cidade de Evora para que se permitta a Sueiro Mendes levar duas pedras que estavam nos açougues, e eram do antigo templo romano, para antipeitos das janellas de uma casa, que a esse tempo edificava. «E porque as ditas pedras aproveitam pouco honde estam e em as ditas casas faram muito, e ainda é nobresa as cidades haverem em ellas bôas casas taes como as do dito Sueiro Mendes, e seu fundamento he as faser para nós em ellas havermos de pousar, Nós vos rogamos e encomendamos que vos prasa lh'as quererdes dar, e Rodrigo Esteves mestre das nossas obras em essa cidade terá cuidado de as tirar donde estam, etc.» Estas linhas são um traço caracteristico da policia do tempo. D'ellas se deduz que era preciso no seculo XV requestar a intervenção regia para bulir em duas pedras de um velho monumento, [12] operação que hoje se realisa com menos formalidades, e até, como é sabido, sem formalidade alguma. Era porém entendido como doutrina corrente não desdizer da nobreza de uma cidade que cantarias de stylo romano se transpuzessem do edificio a que pertenciam para edificio de stylo completamente diverso. Aquillo que modernamente se entende pelo neologismo restaurar é operação desconhecida dos antigos. A obra architectonica seguia sempre e invariavelmente quer em novas edificações, quer em reparação de antigas, o systema e o stylo da epocha em que era feita. Sem falarmos do Egypto, da Grecia, de Roma, onde as reconstrucções se emprehendiam, sem o menor sentimento de respeito pela tradição, em vista de celebrar uma gloria coeva com os mesmos materiaes que haviam servido á glorificação de feitos anteriores, como no arco de Constantino feito com as pedras do arco de Trajano, vemos em toda a Europa, e mais particularmente em Hispanha e em Portugal, edificios em cujos stylos sobrepostos perfeitamente se espelha o independentismo das influencias diversas [12] atravez das successivas phases da construcção por differentes vezes interrompida. Uns nascem genuinamente bysantinos e desenvolvem-se romanicos; outros começam romanicos e concluem gothicos; outros, gothicos de nascença, acabam no clacissismo greco-romano do renascimento; e é frequente nas nossas egrejas entrarmos por um portal do seculo XVI para nos defrontarmos com uma capella mór no stylo barroco de D. João V, de D. José ou de D. Maria I. D'esses casos de polyarchitectonismo encontramos exemplos em Toledo, em Burgos, nos Jeronymos, na Batalha.

A cathedral de Colonia é n'este ponto de vista, um facto particularmente expressivo. A construcção, principiada no meado do seculo XIII, proseguida muito lentamente, suspende-se no fim do seculo XV por desanimo de a concluir segundo o plano primitivo. No seculo XVII e no seculo XVIII, a nave, abrigada por um tecto provisorio, é ornamentada em stylo rococo. Sómente em 1842 se encetaram os trabalhos de uma restauração authenticamente archeologica, segundo o plano original, cabendo o projecto da conclusão a um architecto [14] que ao mais profundo estudo do stylo ogival reunia o talento mais esclarecido e mais perspicaz.

Na historia da cathedral de Milão circumstancias analogas ás de Colonia veem ainda corroborar a affirmação de que unicamente ao seculo XIX cabe o privilegio de restaurar monumentos. A obra de Milão iniciada no seculo XIV, é interrompida por desavenças entre os architectos, uns allemães, outros italianos, outros francezes; é continuada no seculo XVI em stylo da renascença; e tão sómente em 1805 a restauração do monumento no seu stylo primitivo, segundo os programmas mais tarde definidos, se achou determinada por Napoleão I, o qual pela vastidão do seu genio, ainda que pouco propicio aos humildes, muitas vezes se adeantou do seu tempo, e em muitas campanhas da intelligencia indicou de antemão o ponto da victoria, assim como ao principiar a campanha de Italia assignalava na carta do Piemonte o logar de Marengo.

Foi Vitet, nomeado inspector geral dos monumentos historicos em 1830, quem primeiro indicou [15] em França o programma das restaurações architectonicas, presentemente seguido em toda a parte:―em Hispanha, onde depois da real ordem de 4 de maio de 1850, se não emprehende obra de especie alguma nos edificios monumentaes sem prévia consulta da commissão dos monumentos historicos e artisticos; em Inglaterra e na Allemanha, que haviam precedido a França na protecção da arte nacional; na Italia, emfim, na Belgica, na Dinamarca, na Suecia, na Noruega, na Grecia, na Turquia.

Violet-le-Duc, o erudito mestre a quem tanto deve o ensino da archeologia e das artes, completou o programma de Vitet, não sómente ampliando os seus preceitos, mas dando da applicação d'elles o mais notavel exemplo na restauração do castello le Pierrefonds.

Conhecidos os livros de Violet-le-Duc, estudados com tão paciente laboriosidade, escriptos com tão lucido e penetrante engenho, e conhecida a legislação européa baseada n'esses estudos tão completos e tão perfeitos, a questão puramente administrativa de dar aos monumentos nacionaes de [16] cada povo a protecção que se lhes deve, quando menos por simples solidariedade intellectual na civilisação do nosso tempo, é questão perfeitamente illucidada e rigorosamente definida.

Vejamos agora qual é em Portugal, perante as responsabilidades da administração, o reflexo das ideias, cuja historia procurei resumir, com o fim de pôr o assumpto na perspectiva que a sua magnitude pede.


Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos os attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a mais desastrosa indifferença dos poderes constituidos, os monumentos architectonicos da nação, os quaes assignalam e commemoram os mais grandes feitos da nossa raça, sendo assim por duplo titulo, já como documento historico, já como documento artistico, quanto ha, sobre a terra em que nascemos mais delicado e precioso para a honra, para a dignidade, para a gloria da nossa patria.

Dos desacatos de lesa magestade nacional, a que tenho a dôr e a vergonha de me referir, uns [17] teem caracter anonymo, outros affectam directamente a cumplicidade official. Os primeiros são uma consequencia de desdem; os segundos são um resultado de incapacidade.

A auctoridade, incerta, vagamente definida, a quem tem sido confiada a conservação e a guarda da nossa architectura monumental, procede com esse enfermo, de quem se incumbiu de ser o enfermeiro, por dois methodos differentes: umas vezes deixa-o morrer; outras vezes, para que elle mesmo não tome essa resolução lamentavel, assassina-o. Na primeira hypothese a calamidade correlativa chama-se abandonar. Na segunda hypothese a catastrophe correspondente chama-se restaurar,―gallicismo technico, recentemente introduzido no vocabulario nacional, mas ainda não definido vernaculamente na applicação pratica.

Para o argumento que tenho em vista produzir, tomarei unicamente d'entre os differentes desastres com que se deshonram e enxovalham os nossos monumentos, o desastre denominado restauração.

Serei laconico, sem deixar de ser sufficientemente [18] expressivo, porque os factos são de uma eloquencia que esmaga toda a especie de replica na materia de que se trata.

Aqui temos tres edificios restaurados ou em restauro a expensas da nação, sob os auspicios do estado: Os Jeronymos, a Madre de Deus e a Batalha.

Nos Jeronymos a construcção desmoronou-se, sem provocação alguma de agente extranho, por mero desequilibrio de si mesma. Inutil todo o commentario. A restauração, ainda antes de terminada, cahiu. Que prova mais lastimavelmente completa, evidente e cabal, de que foi insufficientemente estudado, logo nos seus primordiaes elementos, o programma de tal restauração?! As seguranças de execução falham precisamente na parte mais rudimentar do problema.

Attente-se em que não se trata ainda de uma questão de archeologia, nem de uma questão de arte; não se apresenta nenhuma d'essas subtis difficuldades inherentes ao estudo das fórmas constructivas ou ornamentaes, ao discernimento dos diversos stylos, ao pleno conhecimento das antigas [19] escolas no tempo e na região a que o edificio pertence. Resolve-se apenas realisar uma simples tarefa de construcção, e esquece, incumbindo esse trabalho de simples mestre de obras ao mais distincto dos scenographos, que a primeira condição de um architecto a quem se confia a restauração de um monumento é que elle seja, antes de tudo, acima de tudo, o mais habil, o mais experiente, o mais perito de todos os constructores.

Na Madre de Deus, onde aliás o primitivo portal da rainha D. Leonor foi discretamente reconstituido na moderna fachada do edificio, temos o infortunio de ir encontrar no consecutivo restauro de uma fabrica do tempo de D. João III novos capiteis de columnas, nos quaes em vez da ornamentação vegetal do nosso seculo XVI se vê reinar nos entablamentos a figuração, absolutamente imprevista e inopinada, de uma locomotiva de caminho de ferro, arrastando fumegante o respectivo comboyo, tudo lavrado mui laboriosamente em pedra, e demandando um tunel. Este assombroso phenomeno de pathologia archeologica estou convencido de que dispensa ainda mais [20] do que o caso dos Jeronymos a investigação da autopsia.

Nas restaurações da Batalha, umas já em realidade, outras ainda em projecto, falta, primeiro que tudo, o meditado programma de conjuncto no ponto de vista archeologico, no ponto de vista artistico e no ponto de vista technico, visando o assumpto por todos os lados de que elle pode ser encarado: qualidade do solo, influencias da atmosphera, escolha de materiaes, condições de resistencia e de equilibrio, systema geral de structura, determinação do stylo, desde as suas grandes linhas e dos seus motivos dominantes até os ultimos desenvolvimentos d'essas linhas, até o extremo desdobramento d'esses motivos, mão de obra, direcção e apprendisagem em todas as officinas de que depende o restauro, etc.

Seria por um programma d'essa natureza que a competencia do architecto restaurador deveria principiar a affirmar-se. Perante essa prova, comprehendendo o estudo do monumento, plantas, alçados, photographias, desenhos de projectos, systemas de stylisação, methodos de estudo e de trabalho, [21] regimentos de officinas, etc., poderiamos nós, que não somos architectos, mas simples criticos, fiscaes da arte em nome do publico, decidir se o restaurador da Batalha está ou não está ao nivel da sua missão. Sem prova d'essa ordem que cotejemos com os requisitos a que teem de satisfazer, nos paizes extrangeiros, os architectos a quem se entrega a restauração de um monumento, nós não podemos julgar senão de um modo muito imperfeito, tendo de entrar mais ou menos no exame da execução, para o qual nos fallece a competencia profissional.

Luiz da Silva Mousinho de Albuquerque é o unico architecto portuguez de quem conhecemos, com relação á historia do edificio e ao plano da restauração da Batalha, estudos especiaes, consubstanciados n'uma memoria publicada, depois da morte do auctor, em 1867. A monographia a que me refiro, além de mui interessantes revelações sobre os vandalismos perpetrados pelos ultimos frades que habitaram o mosteiro e chegaram a quebrar os preciosos vidramentos das janellas para presentearem os visitantes com cabeças das [22] figuras de que elles se compunham, contém alguns principios mui judiciosos e bem definidos, sobre o modo como esse perito restaurador, que a influencia do rei D. Fernando fizera nomear, comprehendia a sua delicada missão. E excellente o methodo por elle proposto para a conservação das Capellas imperfeitas. Notam-se alguns excessivos e infundados rigores de zelo, como na parte em que ao restaurador repugna adoptar, para o fim de pôr o monumento ao abrigo das intemperies, processos de resguardo mais perfeitos que os conhecidos ao tempo da construcção primitiva, taes como, por exemplo, o emprego de cimentos modernos na vedação de uma cobertura, etc. A memoria programma de Mousinho de Albuquerque é não obstante um trabalho de incontestavel merecimento, que muito augmenta de valor se levarmos em conta que esse illustre architecto escrevia em 1840, quatro annos depois d'aquelle em que o rei D. Fernando visitou o edificio, chamando para elle pela primeira vez a attenção dos poderes publicos.

Até Mousinho a architectura da Batalha foi na [23] litteratura portugueza um puro thema de rhetorica. O romantismo tinha-nos trazido a moda do gothico por via de Chateaubriand e de Victor Hugo. Os romances, as xacaras, as baladas e os solaus, com as suas castellãs, os seus paladinos, os seus pagens, os seus menestreis e os seus respectivos attributos―lanças, montantes, elmos, guantes de ferro, falcões, adagas, béstas e bandolins, pediam um scenario de fortificação feudal, fossos e pontes levadiças, revelins, caminhos de ronda, ameias, torres de menagem, amplas chaminés com trasfogueiros forjados, ogivas e abobadas. As egrejas, para os effeitos de grandiosidade no stylo, sempre que não eram ermidas eram cathedraes. Os romanticos chamavam cathedraes a todos os grandes templos, como o da Batalha, o do Carmo e o dos Jeronymos. O romance historico, tanto em voga durante a geração litteraria de Alexandre Herculano, tinha exigencias decorativas analogas ás da poesia cavalheiresca. Os estudos de critica e de archeologia artistica, tendo por objecto os nossos monumentos architectonicos, davam em resultado [24] geral uma especie de lenga-lenga de eruditos ciceroni.

A Batalha tem sido constantemente, desde a primeira apparição da Abobada no Panorama, até hoje, o grande livro de marmore, o immortal poema, a Divina Comedia portuguesa, a triumphante affirmação da nacionalidade independente, definitiva, fundada pela vontade do povo, pela espada do mestre de Aviz, pela lança de D. Nuno Alvares Pereira e pela penna de João das Regras.

Com effeito, nada mais bello, na historia nacional, do que o feito d'armas de Aljubarrota e o monumento de Nossa Senhora da Victoria, destinado a commemorar esse feito, por voto de D. João I. Mas d'ahi a poder-se dizer que o edificio da Batalha é, como a epopéa dos Luziadas, a imagem technica das idéas e dos sentimentos da patria, medeia―me parece―um largo abysmo.

Olhemos por um momento a historia d'esta construcção.

Frei Luiz de Sousa diz que «El-rei chamara de longes terras os mais celebres architectos que se sabiam; convocara de todas as partes, officiaes de [25] cantaria déstros e sabios; convidara a uns com honras, a outros com grossos partidos, e obrigara a muitos com tudo junto.» Este testemunho é precioso e está acima de toda a suspeita, porque nos vem de um frade de S. Domingos, que habitou por muitos annos o convento da Batalha, e que, como chronista da ordem, conheceu inteiramente pelo archivo do convento quanto se sabia da historia da sua fundação.

Frei Francisco de S. Luiz contesta, sem provas, que fossem architectos celebres chamados de longes terras, como diz Sousa, os iniciadores da grande obra, e cita como auctor do risco Affonso Domingues, porque d'elle se sabe que teve parte na direcção das obras nos primeiros annos da fundação, e não consta de documento authentico que qualquer outro architecto interviesse nos trabalhos durante os dezeseis annos que medeiam entre o seu começo e o anno da morte de Affonso Domingues, em 1402.

Todos os que se seguiram a Frei Francisco de S. Luiz, adoptaram esta opinião; de modo que se tornou uma cousa tão corrente como se estivesse [26] demonstrada que foi Affonso Domingues quem construiu a Batalha.

James Murphy, porém, no seu livro Travels in Portugal, affirma, por informações que lhe foram dadas em Lisboa por empregados da Torre do Tombo, que o encarregado da construcção foi o architecto inglez Stephan Stephenson, socio das free and accepted masons, que tinham a sua séde principal em York. Stephenson teria vindo a Portugal por intervenção da rainha D. Filippa, mulher de D. João I, ingleza de nação, filha do duque João de Lencastre e neta de Eduardo III.

O conde de Rakzynski diz a este respeito, que desde que examinou as gravuras do convento da Batalha, na obra in folio de Murphy, se convenceu de que a analogia existente entre a Batalha e a cathedral de York não permitte a minima duvida acerca da origem commum d'estes dois edificios. «Que o plano da igreja da Batalha―diz Rakzynski―seja obra de um portuguez ou de um inglez, a verdade é que as duas igrejas nasceram de inspirações artisticas analogas, homogeneas e contemporaneas, e o estylo de ambos me parece [27] identico. Esta impressão tornou-se para mim ainda mais forte, depois que visitei a Batalha.»

Temos, pois, sobre a origem estrangeira d'este monumento tres votos importantes: o de Fr. Luiz de Sousa, o de James Murphy e o do conde de Rakzynski, aos quaes recentemente se juntou o architecto Haupt.

Na Torre do Tombo não se encontra documento algum relativo á construcção da Batalha, nem á vinda de Stephenson a Portugal. Em 1845, Alexandre Herculano e o Visconde de Juromenha, auxiliados pelos officiaes da Torre, fizeram as mais demoradas e escrupulosas pesquizas para o fim de satisfazer a curiosidade de Rakzynski, e nada appareceu.

É claro que esta ausencia de vestigios no real archivo nada prova sobre o facto de ter estado ou não em Portugal o architecto de York. Não consta tão pouco, dos documentos existentes no archivo, que tivesse estado em Portugal durante nove annos o insigne esculptor italiano Andrea Contucci, emulo de Miguel Angelo; e no emtanto este facto acha-se fóra de toda a contestação. [28]

O cardeal patriarcha Frei Francisco de S. Luiz, queixando-se da negligencia e da superficialidade com que Frei Luiz de Sousa falla dos primeiros architectos da Batalha, e propondo-se demonstrar que o auctor da obra foi Affonso Domingues, diz que não vê razão para pôr em duvida a habilidade dos nossos compatriotas, suppondo que houvessemos de reclamar a assistencia de estrangeiros em uma epocha como a de D. João I, na qual, exceptuadas as italianas, nenhuma nação da Europa se achava mais adeantada que a nação portugueza, tanto na arte da architectura, como em todas as outras.

O patriotismo imprudentemente levado até ás affirmações da natureza das de Frei Francisco de S. Luiz, tem um inconveniente grave, que é o de fazer sorrir os estrangeiros, da ingenua applicação dos nossos sentimentos civicos á historia da arte européa.

Hoje, toda a gente sabe, porque esta ordem de conhecimentos tem-se vulgarisado muito, que o systema gothico ou systema ogival, a que primitivamente se chamou Opus francigenum, teve a [29] sua origem na ilha de França e na região circumstante. Foi n'esses logares que até o seculo XII se construiram os primeiros edificios gothicos. O novo stylo chega em França aos seus mais completos desenvolvimentos no seculo XIII, e d'essa epocha datam as cathedraes de Amiens, de Pariz, de Reims e de Chartres.

Os allemães e os inglezes teem contestado á França a prioridade do emprego do arco ogival e dos desenvolvimentos architectonicos que d'elle procedem. O que, porém, está acima de todo o litigio, é que o systema ogival, chamado stylo gothico, ou gothico puro da igreja da Batalha, não procede da invenção dos paizes meridionaes, de céu azul, mas sim das regiões nevoentas de longos e rudes invernos.

No norte da Europa, durante a edade média, tratou-se de edificar a grande cathedral que désse um abrigo espaçoso ás numerosas congregações de fieis e de cidadãos; como a pedra escasseava, como a neve cahia em abundancia e permanecia por longo tempo, procurou-se um modo de construcção, que, sem difficultar a circulação da gente [30] com grandes e repetidos corpos de cantaria no interior do edificio, permittisse empregar materiaes menos solidos e fazer tectos elevados e agudos, que, não pesando excessivamente sobre os membros destinados a sustental-os, deixassem facilmente resvalar e escorrer a neve pelas superficies exteriores, impedindo o mais completamente possivel a infiltração da humidade no interior do templo.

Foi d'estas causas, determinadas pela natureza do clima e do solo, pelas condições sociaes, e não de um mero capricho inventivo, que resultou para os architectos dos paizes septentrionaes o pensamento de readoptar a abobada de aresta, que os romanos, depois de a haverem empregado, puzeram de parte, para o fim de dar logar na construcção das basilicas christãs á enorme quantidade de columnas legadas pelo paganismo.

Assim foi que nasceu, bem longe de Portugal e inteiramente fóra das influencias cosmicas e das influencias sociaes geradoras do caracter e da indole da nossa raça, que nasceu o stylo architectonico da egreja da Batalha. [31]

A affirmativa de que nenhuma nação da Europa, com excepção da Italia, se achava mais adeantada do que Portugal do tempo de D. João I, nas artes da architectura, sómente prova, da parte do cardeal frei Francisco de S. Luiz, que este benemerito academico e illustre litterato, ou não viajou nunca em França e na Allemanha, ou não visitou n'estes paizes os monumentos anteriores ao fim do seculo XIV.

A egreja da Batalha, que data d'essa epocha, é chronologicamente um dos ultimos edificios em stylo gothico puro construidos na Europa, e, apesar de toda a sua belleza, está, como obra d'arte e como magnificencia monumental, bastante abaixo de alguns outros edificios construidos cem ou duzentos annos antes, como a cathedral de Strasburgo (1015 a 1275), Reims (1215), Amiens (1222), Colonia (1248) a Sainte-Chapelle em Pariz (1248), Notre-Dame (1275), etc.

Bastaria que o auctor da interessante memoria sobre a construcção do convento da Batalha, encorporada na collecção das memorias da Academia, tivesse olhado em Pariz para as estatuas de [32] Sainte-Chapelle e para os baixos-relevos da egreja de Notre-Dame; que tivesse observado um momento as esculpturas de Chartres, de Reims e de Amiens; para ter uma idéa do enorme abysmo que no tempo de D. João I nos distanciava ainda dos grandes mestres da architectura e da esculptura franceza, que se chamaram Pierre de Montreuil, Thomas e Regnaut de Carmont, Jean de Chelles, Hugues Libergier e outros artistas leigos, sem contar os muitos monges anonymos com que se illustrou na historia da arte, a ordem de Cluny, no seculo XII e no seculo XIII.

Na Allemanha, temos, precedendo a Batalha, a cathedral de Colonia; na Inglaterra Canterbury, Westminster, Salisbury, Lincoln e York; e em Hispanha, Burgos e Toledo.

Anterior á Batalha não ha em Portugal monumento algum que prenuncie, prepare e explique a apparição d'este.

Nos primeiros tempos da monarchia, em quasi todo o periodo affonsino, os artistas e os obreiros eram em geral arabes ou mouros. O portuguez era como os seus reis, soldado ou agricultor. Para [33] as especulações estheticas faltava-lhe a paz, a tranquillidade, a riqueza. Mal lhe chegava o tempo para desbravar o sólo e para bater os inimigos, que de todas as partes rodeavam a pequena sociedade nascente, aventurosa e aguerrida.

A Batalha, com a delicada pureza das suas linhas, já então consagradas na Europa, surge repentinamente, imprevistamente, esporadicamente, na corrente da architectura portugueza, como a flor desconhecida de uma planta exotica.

D'onde é que foi transplantado para terra portugueza este producto de uma civilisação superior, em que o desenvolvimento da vida municipal, iniciada pelas fortes corporações operarias e mercantis, impellira as communas a construirem as luxuosas cathedraes, que eram ao mesmo tempo, nas cidades novas, um asylo de religião e um fóco de vida civil?

Não sei responder peremptoriamente a esse quesito.

O problema assim estreitado é, no fim de contas, de pura curiosidade.

O architecto inglez Hope, na sua Historia da [34] Architectura, diz que o estylo ogival não tem propriamente nem uma patria nem uma nacionalidade. Só poderia ter nascido no seio de alguma ordem religiosa ou de uma corporação de pedreiros livres, porque o clero e os pedreiros livres eram as unicas corporações que na edade média possuiam os conhecimentos necessarios para o plano e para a execução dos edificios sagrados, quer para as communidades monasticas, quer para a egreja latina em geral.

Hope acrescenta: como os conventos e sobretudo as lojas dos pedreiros livres se compunham de cidadãos de todos os paizes, que reconheciam a supremacia da egreja romana, não seria possivel determinar positivamente os inventores do stylo ogival quando mesmo se houvesse descoberto o logar preciso do seu berço.

Em toda a parte onde apparecem as primeiras amostras d'esse stylo ellas não são a obra de individuos de um paiz determinado, mas sim de uma congregação encerrando no seu gremio homens de todas as nações.

Na Real Encyclopedia de Leipzig lê-se com referencia [35] ás associações maçonicas que ellas se compunham de homens de arte de todos os paizes formando uma só corporação dirigida por um ou por varios chefes. «Protegidos por privilegios ou cartas patentes emanadas das auctoridades ecclesiasticas e seculares, emprehendiam as maiores construcções em toda a Europa e são auctores d'esses magnificos edificios chamados gothicos e que antes se deveriam chamar Altdoutsch. Achamos o stylo de todas as construcções d'essa época fundamentalmente identico. As associações alludidas compunham-se de architectos e de obreiros italianos, allemães, flamengos, francezes, inglezes, escocezes e até gregos. Foi d'essa maneira que nasceram os monumentos seguintes: o mosteiro da Batalha em Portugal, a cathedral de Strasburgo, a de Colonia, a de Meissen, a de Milão, o convento do Monte Casino, e todos os edificios notaveis da Inglaterra.»

Esta hypothese―e chamo-lhe hypothese, porque não conheço os documentos positivos em que se baseia o escriptor allemão―condiz perfeitamente com a lição de Frei Luiz de Sousa, e é talvez [36] de todas a mais verosimil com relação aos constructores da Batalha.

Que fosse, porém, uma associação de artistas e de operarios; que fosse Stephan Stephenson, como indica Murphy, de quem devemos crer que não inventou esse nome e o recebeu, como diz, dos empregados do archivo da Torre do Tombo; que fosse, como pretende Hope, mestre Ouet, Huguet ou Huet, de nação inglez, que trabalhou nas obras e cujo nome Frei Francisco de S. Luiz encontrou como testemunha no contracto de aforamento, em que se fala de Affonso Domingues; como quer que seja, emfim, a hypothese que menos verosimilhança offerece é a de ter sido o monumento delineado e construido pelo mestre portuguez Affonso Domingues, como em Portugal se tem geralmente escripto.

O mais superficial exame aos edificios anteriores á Batalha manifesta do modo mais evidente que não tinhamos nem escola, nem tradições, nem tendencias de que procedesse um artista como o que delineou e construiu a egreja da Batalha.

Vilhena Barbosa, nos Monumentos de Portugal, [37] repete ainda a versão relativa a Affonso Domingues como constructor da Batalha, mas accrescenta: «É muito para admirar, não devo negal-o, que houvesse n'aquella época em Portugal um artista tão consumado como o que fez o risco do monumento, achando-se a architectura entre nós, antes da execução d'esta obra em um estado, que, se não era de grande atrazo, tambem não se lhe poderá chamar de adiantamento; em um estado pelo menos que nenhuma memoria ou documento nos auctorisa para o considerarmos como escola d'onde pudesse sahir um artista tão completo.»

A seguir, Vilhena Barbosa, procurando conciliar o arrojo do seu reparo com a tradição geralmente recebida, exclama um tanto contricto: «N'este caso lançarei mão de uma conjectura, não pela necessidade de sahir do embaraço, mas porque me parece acceitavel e muito plausivel. Vem a ser que talvez Affonso Domingues tivesse sahido da sua patria antes da acclamação do mestre d'Aviz, com o intento de se instruir e aperfeiçoar na sua arte. Bem sei que n'essa época não eram dados os artistas, pelo menos os nossos, a procurar taes meios [38] de estudo. Entretanto, tendo estado em Portugal, no reinado de D. Fernando e com alguma demora, dois principes inglezes, o duque de Cambridge, e um seu irmão natural, filhos de D. Duarte III, rei de Inglaterra, pode ser que Affonso Domingues, levado pelo amor da arte ou por outro qualquer respeito, se resolvesse a acompanhar algum d'elles na sua volta para Inglaterra, paiz classico da architectura gothica no genero da Batalha.»

Confessemos que é preciso ter vontade de attribuir por força a Affonso Domingues uma obra que este não podia fazer, para formular a conjectura de que talvez elle se tivesse resolvido a ir a Inglaterra com os filhos de Duarte III.

Ainda quando admittida a singular camaradagem do duque de Cambridge e de seu irmão com Affonso Domingues, camaradagem conjecturada por Barbosa, e de que não ha o minimo vestigio historico, não será talvez inutil reflectir que depois d'essa excursão a Inglaterra―paiz tão debilmente classico na architectura gothica, no tempo de Duarte III, que não tinha um architecto indigena, nem monumento gothico algum, que se possa [39] pôr em confronto com as obras magnificas do continente―Affonso Domingos voltaria de Inglaterra, no tocante ao conhecimento da arte de edificar, proximamente no mesmo estado em que para lá tivesse ido, o que facilmente se demonstra, como vamos vêr.

Sabe-se que desde o seculo X se organisaram na Italia, iniciadas pela Lombardia, essas associações de artistas seculares, architectos, esculptores, illuminadores, imaginarios, vidristas, entalhadores e canteiros, empregados pela egreja nas vastas obras da primeira renascença da Europa, subsequentes aos terrores do millenio, que por muitos annos paralysaram todas as faculdades artisticas da humanidade estupefacta perante a prophecia pavorosa do proximo aniquilamento universal.

Estas confrarias, creadas e protegidas pelo clero, tomaram o nome geral de franco-maçonaria ou de pedreiros livres, e compunham-se de associados, que, depois de haverem passado por todos os minuciosos tramites de uma longa aprendizagem, adquiriam geralmente o direito de exercer a profissão na qualidade de mestres. [40]

Com a rapida e maravilhosa prosperidade das novas cidades da Italia Septentrional nasceram egrejas sumptuosas e conventos magnificos, que em poucos annos cobriram uma grande superficie da Lombardia e dos Estados adjacentes.

Chegado o momento previsto em que as ordens religiosas de Italia cessaram emfim de ter obras em que empregar a associação, cada vez mais numerosa e mais habil, dos pedreiros livres, pensaram estes em dilatar a sua actividade fora do solo natal.

Este expatriamento não representava unicamente uma expansão artistica mas tambem uma forte propaganda e uma consideravel conquista internacional da egreja latina.

Essa grande companhia edificadora de monumentos religiosos, de cathedraes e de mosteiros, mobilisada n'uma companhia de arte atravez do Norte da Europa, constituia como que um solido reforço esthetico, temporal, naturalista e humano á sagrada legião espiritual vulgarisadora do credo latino pela ramificação das ordens religiosas sobre todas as latitudes da terra. [41]

Cada egreja e cada convento edificados em paizes estranhos e longinquos eram―diz Hope―um novo feudo adquirido ao papa.

A egreja comprehendeu inteiramente o alcance d'este grande facto, tão importante na historia da arte romanica, da arte lombarda, da arte gothica e de todas as artes liberaes na Europa, depois de cahida a influencia da antiga civilisação hellenico-romana.

Como incentivo e amparo da vasta odysséa, a que se aventuravam os denominados pedreiros livres receberam então da auctoridade pontificia, emminente a todos os conflictos e discordias de soberania para soberania e de nacionalidade para nacionalidade, privilegios incomparaveis, destinados a assegurar á confraria errante uma especie de inviolavel monopolio esthetico e artistico, como o que em nossos dias poderia resultar de um congresso universal, tendo em vista pôr acima de qualquer contingencia politica um interesse commum a toda a especie humana.

Diplomas e bulas papaes confirmaram para todos os paizes, que houvessem reconhecido a fé catholica [42] apostolica romana, todos os privilegios que a confraria dos pedreiros livres havia recebido dos Estados de que era oriunda.

Ella dependeria directamente e unicamente da auctoridade pontificia, isenta de todas as leis e estatutos locaes, dos editos dos reis ou dos regulamentos dos municipios e de toda e qualquer imposição obrigatoria para os naturaes do paiz em que se encontrasse.

Só á associação caberia o direito e o poder de taxar os salarios, e de prover em capitulo, sem appellação nem aggravo, a quanto dissesse respeito ao seu proprio governo. Era expressamente prohibido a todo o artista não iniciado nem admittido na associação estabelecer para com ella qualquer especie de concorrencia, assim como era defeso, sob pena de excomunhão, a todo o soberano manter os seus subditos n'esse acto de rebeldia ás prescripções da egreja.

Esta Internacional carolingiana, bem mais poderosa do que a Internacional napoleonica sahida dos primeiros movimentos socialistas do segundo imperio, desenvolveu-se rapida e portentosamente. [43] Muitos gregos vindos de Constantinopla se reuniram aos primeiros artistas confederados, vindo em seguida allemães, francezes, belgas e inglezes.

Desdobraram-se successivamente as diversas lojas ou series de agrupamentos, em que cada dez associados obedeciam a um chefe em communicação com os chefes das demais decurias e com a direcção central.

Os ecclesiasticos da mais alta categoria, os prelados, abbades mitrados e bispos, accrescentavam a força e o prestigio da associação, alistando-se como membros da irmandade.

Todos os soberanos da christandade se gloriavam em honrar com especiaes distincções e particulares privilegios as suas lojas nacionaes.

Para o fim de evitar que individuos estranhos á associação aproveitassem fraudulentamente os enormes beneficios de que ella tinha o privilegio, e bem assim para que, em qualquer região do mundo, cada irmão pudesse communicar com os seus consocios, fazendo conhecer a sua iniciação e o seu grau na confraria, estabeleceram-se as senhas secretas, os signaes maçonicos, por meio dos [44] quaes os consocios se reconheciam em qualquer parte, e revestiu-se o acto de iniciação e matricula de formalidades solemnes, de provas especiaes, de juramentos terriveis, por via dos quaes cada novo confrade se obrigava não sómente a não revelar a quem quer que fosse os signaes, com que mutuamente se entendiam os pedreiros, mas a esconder dos estranhos todos os processos technicos e todas as regras do officio, de que a associação tinha a posse. Esta collaboração phenomenal dos melhores obreiros, de todos os grandes artistas e de todos os sabios do mundo, associados da maneira mais engenhosamente completa e perfeita para exercer a arte de edificar, elevou a architectura religiosa n'este periodo á mais alta perfeição scientifica e technica, a que jámais chegou a obra da intelligencia e da mão do homem.

Quando a longa e laboriosa gestação de todos os demais ramos do saber humano se discriminava apenas em rudimentos embrionarios, de uma confusão tenebrosa, a architectura constituia o mais perfeito corpo de leis estheticas e de leis scientificas. Crearam-se as mais elevadas e as [45] mais caracteristicas fórmas de stylo, resolveram-se os mais complicados e os mais difficeis problemas de calculo, de geometria e de mechanica, acharam-se, emfim, innumeraveis processos chimicos e methodos technicos, que se perderam e nunca mais se substituiram, porque com a grande confraria dos maçons morreu a tradição de que elles tinham a guarda e o segredo.

No tempo de Eduardo III a maçonaria, que só um seculo depois acabou na Inglaterra sob o reinado de Henrique VI, mantinha-se em pleno vigor.

Ora, dado que só muito lentamente e por via de provas espaçadas e progressivas podia o obreiro no gremio da confraria subir á qualificação de mestre, e só como simples obreiro podia ser admittido e iniciado, dado por outro lado que era tal o segredo sobre os methodos de edificar que toda a planta, todo o risco, todo o calculo, todo o estudo graphico, era invariavelmente e escrupulosamente destruido immediatamente depois de utilisado em qualquer obra, parece-me não haver um excessivo arrojo em conjecturar que Affonso Domingues [46] n'uma viagem a Inglaterra, no tempo de Eduardo III, nada aprenderia de architectura, ficando estranho á maçonaria, e, tendo-se iniciado n'ella antes de vir construir a Batalha, seria então da maçonaria e não d'elle o monumento de que se trata.

Revertendo ao escrupuloso e esclarecido estudo de Mousinho, notemos que elle não encontrou nem quem o continuasse nem sequer quem se lhe submettesse entre os restauradores que se lhe seguiram. As capellas imperfeitas, incomparavel joia da architectura portugueza mais caracteristicamente regional, acham-se no mesmo abandono em que ficaram em 1843, depois que elle as desinfestou dos parasitas arbustivos e das herbaceas, cujas radiculas se tinham por tal modo multiplicado nos intersticios das cantarias que em muitos pontos houve que desmontar as lageas para extirpar as hervas e refazer os massames substituidos pelo intimo estojo vegetal, que inchando por todas as juntas da pedra, ameaçava desarticular e destruir tudo por uma derrocada geral.

Sem exposição de plano referido ás obras que [47] recentemente se tem feito, e cuja doutrina nos daria uma base de estudo e de discussão, quem, como eu, não tem voto na materia para a resolver por sentença, precisaria de entrar em uma longa serie de pacientes raciocinios e de humildes demonstrações para pôr em evidencia todos os erros que em taes obras se teem comettido. Para não tornar pelo emprego d'esse processo, excessivamente longo este modesto estudo, tomarei um ponto capital, sufficientemente expressivo para dar a medida do criterio empregado na restauração da Batalha.

Pela entrada principal da egreja, á semelhança do que succede em grande parte das egrejas gothicas, desciam-se na Batalha alguns degraus,―sete se me não engano―para chegar ao pavimento da nave central. Um dos restauradores que se succederam a Mousinho de Albuquerque, tendo-se por assistido de razões plausiveis para modificar o alludido systema, rebaixou o terreno exterior ao nivel do pavimento da egreja, e supprimiu os degraus, serrando as hombreiras e substituindo as cantarias que lhe serviam de base. A porta principal [48] do monumento da Batalha ficou por esse modo tendo de altura a dimensão de duas larguras em vez de largura e meia approximadamente, segundo a dimensão primitiva. O architecto havia previamente submettido o seu projecto ao exame das estações superiores, e o respectivo ministro sanccionara a obra com a sua alta approvação.

Será difficil encontrar em um tão breve episodio de construcção uma tão vasta affirmativa de desoladora ignorancia.

Poderá parecer excessiva e condemnavel ousadia que um simples curioso se arrogue o direito de qualificar de ignorante um architecto em exercicio da sua profissão. O erro é todavia no caso sujeito tão flagrante que não supporta defesa. Um barbarismo architectonico está tanto ao alcance de um escriptor como um barbarismo grammatical está ao alcance de um architecto.

Toda a gente sabe que ha em architectura uma inilludivel medida de proporção e de relacionação que se chama a escala. Sem escala não ha obra de architectura nem ha construcção alguma sensata, por mais subalterna, por mais infima que ella [49] seja. Na architectura grega a unidade abstracta d'essa medida é o modulo. Na architectura da edade média a unidade é o homem. N'este simples principio, tão magistralmente exposto por Violet-le-Duc, se baseia o caracter essencial da architectura medieval. D'essa referencia de toda a construcção á pequenez da estatura humana resulta o singular effeito de grandiosidade que distingue os monumentos gothicos dos monumentos neo-classicos, Nossa Senhora de Pariz de S. Pedro de Roma, ou a egreja da Batalha da egreja de Mafra. Para esse effeito contribue o aspecto das successivas fileiras da cantaria á altura das paredes e das pilastras, porque a escala gothica, determinada pela altura do homem, se subordina correlativamente ás dimensões do material. Assim pela serie das juntas, sempre em evidencia na sobreposição das cantarias, a vista calcula rapidamente, por instincto arithmetico, a grandeza de uma fabrica como a da Batalha, estabelecendo a proporção entre as dimensões da pedra e a estatura do homem, e entre a altura do homem e a elevação da nave. [50]

Do que fica exposto resulta que a simples substituição de uma pedra por uma pedra de dimensão differente na base de uma hombreira no portal da Batalha é, em si mesma e isoladamente, como troca de pedra por pedra, um grave erro, porque essa base de hombreira, devendo ter tido inicialmente a dimensão exacta e precisa, que á esquadria da cantaria impõe a dimensão do bloco, é um elemento fundamental da escala pela qual se rege todo o edificio; e não pode como tal nem supprimir-se nem alterar-se.

Mas temos de considerar ainda que com essa mudança de pedra se offendeu o preceito da unidade, alterando a fórma e a dimensão de um dos mais importantes membros da construcção. O conjuncto de um monumento―diz Quatremère de Quincy―é de tal modo combinado, que n'elle se não pode nem tirar nem pôr nem alterar o que quer que seja. E Violet-le-Dué desenvolve esse preceito da maneira seguinte: «É um erro grosseiro suppôr que um qualquer membro de architectura da edade média pode ser impunemente accrescentado ou diminuido. N'esta architectura não [51] ha membro algum, que não esteja na escala do monumento para que foi composto. Alterar esta escala é tornar esse membro disforme... Os erros de escala que escandalisam em um monumento novo e lhe tiram todo o valor, tornam-se monstruosos quando se trata de uma restauração.» As dimensões das portas―já dizia Vinhola―devem ser de uma proporção relativa á escala pela qual se construir o edificio, á grandeza das suas differentes peças e finalmente ás particularidades da obra e do local em que esta fôr feita. Com relação ás portas nas ordens jonica, dorica, corinthia e toscana as proporções entre a altura e a largura dos portaes, acham-se geometricamente determinadas pelos discipulos de Vitruvio. Na architectura gothica a porta representa porém um papel mais preponderante que em qualquer outro systema de construcção. «De hora avante―proclama Violet-le-Duc referindo-se ao periodo medieval―a porta deixará de augmentar em proporção com o edificio, porque, sendo feita para o homem, conservará sempre a escala propria do seu destino.»

A medida de extensão na edade média era a [52] toeza, correspondente á estatura do homem alto. A porta da egreja destinada a dar passagem ao portador de uma lança de guerra ou de torneio, de um baculo, de uma cruz ou de um pendão, tinha a altura fixa e invariavel de duas toezas a duas toezas e meia, segundo as regiões em que se construia. O portal gothico tem ainda, como titulo ao nosso respeito pela sua inviolabilidade, a condição de representar na fachada do templo como que um summario de toda a obra. É do principio da arcada, de que a porta é o motivo predominante, que se deduzem e desenvolvem systematicamente todas as demais fórmas constructivas e ornamentaes na architectura do edificio. Archivoltas, nervuras, pilastras, columnelos, janellas, nichos, misulas, baldaquinos, trifolios, que são na egreja da Batalha senão applicações e desdobramentos successivos, engenhosamente variados, das linhas constitutivas da porta principal do templo?

Quão tragicamente profunda tem que ser a indisciplina official em todos os serviços da arte para que possa dar-se um attentado da ordem [53] d'aquelle a que me refiro:―para que um architecto proponha, para que uma repartição publica auctorise, para que um ministro da corôa sanccione―sem protesto do districto, do municipio ou da parochia―que se desfigure o primeiro dos nossos monumentos da edade média, alterando as fórmas de uma porta, que é a porta principal d'essa gloriosa egreja de Santa Maria de Victoria, que os architectos do mestre de Aviz alçaram pela bitola dos estandartes, dos balsões e das bandeiras de Aljubarrota, e segundo a altura a que chegava nas hombreiras o bico do bacinete ou a cimeira do morrião dos da ala da madresilva ou da ala dos namorados!

Se fosse meu proposito enumerar os erros commettidos nas restaurações da Batalha teria de referir-me ás vís deturpações por que está passando a capella do fundador; ao detestavel altar mór, em cuja pedra tão miseramente se acha reproduzido por uma especie de grafito o desenho de um mosaico, e a odiosa coloração das vidraças, em que o doce tom de ambar, que os vidristas da edade média obtinham por uma emulsão de mel [54] na preparação da tinta, se vê substituido pelo de um reles amarello cru, de refalsado topasio. O inacreditavel tabernaculo com que houve o arrojo de empachar o ambito de uma das naves, sob pretexto de construir uma capella baptismal, teria ainda que deter por algum tempo o meu horrorisado espanto perante esse tão insolente e tão irrespeitoso abuso do pseudo-gothico, em proporção e em escala unicamente permittidas, por longanimidade de ridiculo, em jazigos de familia e em pratos montados, na latitudinaria architectura dos cemiterios ou das confeitarias.

O meu fim porém não é fazer a critica das restaurações da Batalha, mas sim demonstrar, como julgo ter feito, por meio de alguns factos caracteristicos e capitaes, que nas restaurações emprehendidas tanto n'esse como nos demais monumentos architectonicos recentemente reparados a expensas do estado, não houve antecedencia de programma, nem estudo previo, nem determinação de methodo, nem sancção critica, nem fiscalisação technica, nem policia artistica de especie alguma. [55]

Pelo numero e pelo quilate das mutilações, deturpações e superfetações, inteiramente arbitrarias e escandalosas, de que são objecto os monumentos restaurados com assentimento e com subsidio official, como a Batalha, os Jeronymos e a Madre de Deus, poderemos calcular o que se passa nos edificios em que camaras, parochias e simples particulares estão no logro de restaurar, de concertar ou de demolir a seu gosto.

Em Ponte de Lima havia uma ponte, que dava o nome á villa. Esta ponte, em parte romana, em parte gothica, era revestida de ameias e entestada por dois castellos ogivaes. A vereação, com o motivo de desafogar a vista sobre as duas margens do rio, manda demolir os castellos e serrar as ameias da alludida ponte.

Outra vereação, em Santarem, bota a baixo a bella torre gothica de Santa Maria de Marvilla, fundação dos primeiros tempos da monarchia, para o fim unico de deixar o terreno sem coisa alguma em cima, e ser por essa razão uma praça. A Real Associação dos architectos civis propõe-se a esse tempo comprar os sinos da torre demolida, [56] em bronze esculpido. A junta de parochia prefere derretel-os.

No castello de Leiria, que, tendo sido construido como casa e museu pelo rei mais artista, mais poeta e mais sabio do seu tempo, constitue um documento, unico talvez na Europa, da archeologia romana e da vida de côrte na edade média, certos festeiros em noite de gala, derribam a columnata do eirado principal para dar campo a um effeito de luminarias e de pyrotechnica.

Na alcaçova de Santarem as ameias de D. Affonso Henriques substituem-se por ignobeis grades de ferro fundido e pintado de verde.

A porta da Atamarma, pela qual ainda passou Garrett ao tempo das Viagens na minha terra, é arrasada, juntamente com a capellinha de Nossa Senhora da Victoria, que tinha por cima. No orçamento d'essa demolição, que o governo approvou no anno de 1865, a camara de Santarem, tripudia de jubilo, affirmando que a dita desmontagem, que por mais tempo se não podia protrahir, fôra vantajosamente arrematada pela quantia de trinta e nove mil réis, calculando-se em mais de [57] cem mil o valôr da pedra e do tijolo que ella produziu. Com esse cantico de alegria orçamental, desappareceu o glorioso portico, por onde o fundador da nacionalidade portugueza e os da sua hoste entraram em Santarem com as espadas e as lanças gottejantes de sangue mouro, firmando por esse acto o fim do dominio sarraceno em Portugal.

A porta do Bom Successo veio abaixo, como a de Atamarma, por disposição do respectivo municipio.

A destruição das portas de muralha, bellos arcos na maior parte ogivaes, com que tanto se enobreciam algumas das nossas velhas cidades, tem sido a grande preocupação vesanica das municipalidades modernas, absolutamente ignorantes, ao que parece, das gloriosas tradições locaes de que esses monumentos eram o testemunho authentico e sagrado.

Dentro d'essa cathegoria de delinquentes será difficil disputar o primeiro logar da serie pathologica á cidade do Porto.

O Arco da Vendoma, á rua Chan, que havia sido uma das portas da circumvalação sueva, sobre [58] a qual a rainha D. Tareja fizera collocar em ediculo a imagem da Senhora da Vendoma, trazida de França pelo bispo D. Nonego, é desapiedadamente demolida em nossos dias, depois de oito seculos de existencia.

Os bellos arcos do Postigo de Santo Antonio do Penedo e do Postigo do Sol veem egualmente abaixo, em 1875, sem razões algumas que expliquem mais esta demolição que a do Arco da Vendoma. Junto do Postigo do Sol ficava no entanto, e memorava-a o arco, a veneranda Viella das Tripas, onde assistiam as fressureiras, que deram aos do Porto o nome de tripeiros, vendendo-lhes os miudos das rezes, cuja carne elles haviam espontaneamente cedido á armada de D. João I para a expedição de Ceuta.

Á Porta do Olival, da qual como do Postigo do Sol só resta o nome, foi acclamado D. João I. A essa porta foi esperada pelos portuenses, e por ella entrou pela primeira vez na cidade, na occasião das suas bodas com o mestre de Aviz, a rainha Filippa de Lencastre.

O Arco da Senhora Sant'Anna, que deu o titulo [59] á linda narrativa portuense de Almeida Garrett, é sacrificado como os demais ao alvião municipal da cidade invicta.

O ultimo emfim dos arcos do Porto, ainda ha bem poucos annos destruido, foi o da Porta Nobre, por onde faziam a sua entrada solemne os bispos e os reis, que os moradores da Reboleira recebiam triumphalmente na sua rua, juncada de espadanas e de funcho, entre festões de flores pendentes das velhas janellas de resalto, á flamenga, sob punhados de trigo, reluzente no ar em chuva de ouro.

Em Santarem disseram-me ha dias, nos proprios logares em que se está mancumunando o delicto, que os vereadores projectam agora demolir a Torre das Cabaças.

Quando a rainha D. Maria I visitou Santarem em 1785, botaram-se as medidas do côche de sua magestade a todo o caminho que elle tinha de percorrer, e desfizeram-se diligentemente a picão, nas ruas da villa, todas as protuberancias architectonicas em que se anteviu algum risco de entalação para o trajecto da real berlinda. [60]

No Canto da Cruz cortaram-se, como quem corta queijo, os vertices dos angulos nos edificios de esquinas menos reverenciosas para com o regio transito. Entre a Torre do Alporão e a Torre das Cabaças o passo porém apresentou-se especialmente difficil. Applicou-se-lhe a bitola do regio côche, que o secretario de estado visconde de Villa Nova da Cerveira mandára previdentemente de Salvaterra de Magos ao juiz de fóra, presidente da camara municipal da villa, e consignou-se que, por obra infernal de palmo ou palmo e meio de saliencia, o magestatico vehiculo da soberana teria de ficar engasgalhado pelos cubos das rodas entre os dois monumentos. Então, depois de haverem marrado por um momento no problema, e uns nos outros, os vereadores scalabitanos removeram a difficuldade, redobando a fita da medição inutilmente esticada, mettendo os solicitos e suados covados debaixo dos braços, e mandando simplesmente arrasar a Torre do Alporão, monumento do dominio romano, do alto do qual, durante a occupação serracena, o arabe dictava ao povo a lei de Mahomet. [61]

A Torre das Cabaças é muito menos antiga e menos documental que a do Alporão. Com quanto Garrett a faça invocar anachronicamente no Alfageme de Santarem, em estimulo de defesa contra a invasão castelhana, como um dos traços mais expressivos da physionomia pittoresca da patria, essa torre data apenas do tempo de D. Manoel. Não tem caracter propriamente architectural, é uma simples peça de alvenaria quadrada. Mas o seu estranho remate, em grande elevação, formado pelo sino a descoberto, sustido na convergencia superior de quatro varões de ferro, estribados obliquamente nos quatro angulos da torre, e revestidos de pucaras de barro, da olaria local, destinadas a ampliar a sonoridade do bronze no tanger das horas e dos signaes de rebate, dá-lhe uma feição verdadeiramente especial, inconfundivel, indelevel. Não será talvez o mais monumental, o mais nobre, o mais rico, mas é de certo o mais suggestivo, o mais anedoctico, o mais interessante, o mais carinhoso, o mais familiar, o mais lindo campanario de toda essa tão formosa campina ribatejana, o mais aberto sorriso agrario da terra portugueza. [62] Tudo envolve de penetrante poesia local essa velha torre. O seu mesmo nome de relogio das cabaças ou de cabaceiro se allia harmonicamente no ouvido á lembrança das lezirias, das hortas, dos paues, das courellas e dos olivedos, que o circumdam, e fazem d'elle como que uma parte integrante da paizagem, um natural rebento da terra. O aspecto de improvisação e de interinidade d'essa summaria ventana de sino, que parece armada em quatro pampilhos, é uma verdadeira obra d'arte, que lembra mais commoventemente do que nenhuma outra inventada pelos architectos, a origem arabe, a vida nomada, a tradição pastoral da região em que surgiu.

Os conspicuos burguezes do senado de Santarem não podem ter opinião sobre esta questão de esthetica, porque elles carecem absolutamente do ponto de vista em que deve de ser considerada a sua Torre das Cabaças, a qual evidentemente se não construiu para que suas excellencias a alveitassem doutoralmente de dentro dos paços do concelho, ou cá fora na praça, de chapeus altos, sobrecasacas dominicaes e barbas feitas, abordoados [63] aos seus chapeus de sol, e muito mais garantidamente cucurbitaceos que o seu proprio cabaceiro. A Torre das Cabaças fez-se para ser olhada do vasto campo da Gollegã ou do campo de Almeirim, vindo do Valle, vindo de Coruche, de Benavente, ou da Barquinha, atravez dos olivaes, das terras de semeadura e das eiras do termo de Santarem, de jaqueta e sapatos de prateleira, montando uma egua de maioral, de cabeçada de esparto, almatrixa de pelles e estribos chapeados. O Cabaceiro de Santarem, com a sua cupula em trempe, as suas cabaças de barro e o seu sino grande de correr e de governar as horas, fez-se para o largo e ridente campo ribatejano, fez-se para os campinos, para os vaqueiros, para os almocreves, e talvez se fizesse tambem para mim, que não vejo em arte razão alguma plausivel para que, como motivo ornamental de uma torre, á folha do acantho ou ao chavelho em voluta da architectura grega se prefira a nossa linda pucarinha de barro vermelho de Reguengo, da Atalaia ou da Asseiceira.

Não! o senado santareno tem de deixar ficar [64] onde ella está a sua tão caracteristica torre, para que se não diga que dos tres potes, que de antiga tradição consta acharem-se soterrados na Alcaçova, um cheio de ouro, outro cheio de prata, outro cheio de peste, a camara da localidade não encontrou senão o ultimo para o despejar sobre os monumentos publicos sujeitos á sua jurisdição e confiados á sua guarda.

Que sob o antigo regimen os vereadores de Santarem deitassem a baixo a Torre do Alporão, para passar uma rainha, é uma desdita em extremo lastimavel, mas que sob o regimen vigente se deite egualmente a baixo a Torre das Cabaças, para que passem os proprios vereadores, é um desando grande da publica administração para muito peior do que estavamos no tempo da muito saudosa senhora D. Maria I.

A torre da Sé Velha, de Coimbra, desapparece no fim do seculo passado perante uma simplicidade de processo, que bem demonstra quanto os poderes publicos, desajudados de conselho artistico, teem sido, em todo o tempo, inhabeis e incompetentes para proteger os monumentos da nação. [65] Foi o meu amigo Theofilo Braga quem, ao colligir no Archivo Nacional os documentos ineditos das relações do marquez de Pombal com D. Francisco de Lemos para a reforma dos estudos na Universidade, descobriu a breve historia da demolição da torre da Sé Velha. Em carta de 3 de setembro de 1773, D. Francisco de Lemos dá conta ao marquez de que demoliu a torre: «...A dita torre era um montão de pedra e cal sem arte e figura, que servisse de ornato á cidade, e antes estava tirando a vista do Paço das Escolas, e de muitas casas. E principalmente é muito nociva á Imprensa, porque ficando ella no alto e esta embaixo, lhe tirava o sol, com que a fazia menos clara e humida. Pareceu-me conveniente á vista de todas estas razões que se demolisse, o que se tem executado, seguindo-se todas as utilidades ponderadas acima, e egualmente a de haver pedra para tudo o que foi preciso fazer.» Em sigla marginal a esta carta opina o marquez de Pombal: «Que está muito bem feita a providencia sobre a torre da Sé antiga.» E em carta de 5 de outubro do alludido anno de 1773, o marquez, em [66] stylo official, desenvolve a sua acquiescencia ao estupido vandalismo de D. Francisco de Lemos: «Tambem me pareceu bem ajustada a providencia e resolução que V. Ex.a tomou de mandar demolir a torre da Sé antiga que não servia mais que de ser um Padrasto sombrio e infimo, só proprio para desfigurar a formosura do Palacio a que estava quase contiguo e de escurecer as actuaes officinas, etc.»

Do mosteiro de Alcobaça desapparece todo um claustro do tempo de D. Affonso Henriques.

Em S. Francisco d'Evora ampliam-se as dimensões da rosacea no frontespicio da egreja, abalando as cantarias circumstantes e pondo em risco todo o equilibrio da empena. Além d'isso, para o fim de aproveitar a pedra para outras applicações, desampara-se a abobada, deitando abaixo a ala do convento que lhe servia de encontro.

No castello de Palmella e em S. Salvador de Paço de Sousa acham-se violados e deshonrados pelo mais completo despreso, além das campas dos cavalleiros de Santiago, o tumulo do principe D. Jorge, e o tumulo de Egas Moniz, que em Paço [67] de Sousa dividiram em dois, pondo cada metade para seu lado, em pontos oppostos da egreja. O cofre de pedra que continha a ossada do fiel aio de Affonso Henriques transforma-se em pia de um bebedouro publico.

A sumptuosa egreja do convento de S. Francisco em Santarem, fundação de D. Sancho II, com as suas tres naves, as suas columnas de preciosos capiteis e os floridos arcos da sua restauração manoelina, converte-se em uma das cavallariças do regimento aquartelado no convento. Violaram-se todos os tumulos que encerrava o claustro e occupavam a egreja, sem que esta, segundo nos consta, fosse nunca dessagrada liturgicamente. Parece que não houve tempo para satisfazer essa tão breve formalidade de respeito.

As sarças, os silvados, e os subtis rendilhamentos manoelinos do tumulo precioso do conde de Vianna D. Duarte de Menezes, pela circumstancia de ser a esculptura removida para S. João do Alporão pela benemerita commissão administrativa do Museu Districtal de Santarem, escaparam miraculosamente aos coices das bestas de guerra, [68] que o governo portuguez destinava ao sagrado monumento erigido pela doce piedade conjugal á memoria do leal e valoroso soldado de Affonso V, que na conquista de Alcacer-Ceguer se deixou morrer ás lançadas para salvar a vida do seu rei.

O tumulo de D. Fernando, que estava na mesma egreja, foi pela Associação dos architectos trazido para o museu do Carmo.

Um dente de D. Duarte, que a condessa de Vianna encerrara, como unica reliquia de seu marido, no monumento que lhe consagrara, conserva-se ainda dentro do estojo que primitivamente o continha. A ossada do rei D. Fernando, essa desappareceu, como desappareceu a de D. Francisco de Almeida, atirada para a cerca do quartel na occasião em que se lhe destruiu o tumulo, aproveitando-se a area de pedra em que jazia o corpo para bebedouro especial dos cavallos com mormo.

As demais campas, que constituiam o pavimento do claustro desde o principio do seculo XIV desappareceram todas, e nem sequer se sabe já de quem eram, por que, para não escorregarem os cavallos [69] do regimento, desempedrou-se o claustro e perderam-se as lapides que n'elle se continham.

A sepultura de Pedro Alvares Cabral está na egreja da Graça, um dos bellos templos da fundação da monarchia em Santarem. Esta egreja é cedida pelo governo á pobre irmandade dos Passos. A irmandade carecia de meios para custear o decoro do culto e a conservação do edificio. Occorria generosamente a essa despeza o proprietario do convento annexo á egreja. O dono do convento falleceu recentemente, legando a casa a um azylo que n'ella fundou. A egreja da Graça de Santarem está portanto, a bem dizer, desamparada. A quem é que se acha confiado o tumulo de Pedro Alvares Cabral? Não se sabe bem, e são grandes, como pessoalmente tive occasião de experimentar, as difficuldades que encontra quem deseje dar com o depositario das chaves para ver a egreja. Ás gloriosas cinzas d'aquelle que nos deu o Brazil, a gente nem sequer sabe dar um guarda.

O mausoleu do nosso S. Frei Gil corre aventuras parecidas com as do mausoleu do rei D. Fernando. [70] Os marquezes de Penalva, parentes do Santo, recolhem na capella do seu palacio em Lisboa as cinzas do bemaventurado. A tampa do tumulo com a estatua do Santo vem para o museu do Carmo. A arca sepulchral, que encerrava os seus restos, fica em Santarem, servindo de pia de amassar cal para as obras do municipio.

Em Guimarães mascaram indignamente de cal e de madeira as columnas e as arcarias da veneravel egreja de Nossa Senhora da Oliveira, fundada nos primeiros annos do seculo X pelo conde Hermenegildo Mendes e por sua mulher a condessa Mumadona. No claustro do seculo XIII, que envolve uma parte da egreja, revestem de caixilharia envidraçada a graciosa arcaria, e rebocam espessamente a cal os capiteis das columnas. A flammante janella gothica, que por cima da porta, na fachada do templo, fazia explodir em apotheose a polychromia do espelho, emoldurado na sua larga cercadura esculpida de silvados, historiada de estatuetas de santos em phantasiosos resaltos de misulas, sob rendilhados baldaquinos, é impiedosamente arrasada e substituida por uma [71] chapada de cantaria corrida, perfurada por quatro oculos.

Em Santarem, na egreja do Milagre, pelas trovoadas d'este verão, um raio fere o cone azulejado da torre, penetra na capella mór, despedaça a madeira do arco que a separa da nave, e põe a descoberto, por baixo d'esse revestimento de taboas pintadas, os mais lindos lavores esculpturaes de uma arcaria da Renascença, em que cherubins voejam, sustendo grinaldas e cornucopias floridas, por entre a laçaria afestoada, com rotulos pendentes. Todos os relevos mais salientes da esculptura haviam sido desbastados a picão para nivelar a superficie da pedra em que assentara a madeira.

Em Setubal, na egreja manoelina das freiras de Jesus, besuntam as columnas, os artezões e os fechos da abobada com a mais tosca e espessa camada de pintura. O material subjacente é o lindo marmore polychromico da Arrabida. A pintura a que me refiro tem a intenção esthetica de imitar a borrões d'ocre esse mesmo marmore cuja superficie tão sordidamente conspurca. [72]

Quando ha quatro annos o governo mandou pôr em hasta publica uma parte do convento de Cellas, incluindo o seu encantador claustro, metade do qual é do tempo de D. Diniz, uma voz anonyma protestou, eloquente e energicamente, contra semelhante desacato, por meio de uma pequena brochura impressa em Coimbra e largamente espalhada pelo paiz todo, a pedir soccorro á imprensa. Rarissimos periodicos acudiram ao rebate. Na parte que data do seculo XIV, o pequenino claustro de Cellas, em arcadas de meio ponto e columnas geminadas, de capiteis cubicos, historiados por todos os lados com deliciosas figurinhas representando os mais tocantes episodios da vida da Virgem Maria, de Jesus e dos seus santos, é a mais delicada, a mais commovida, a mais poetica obra da arte portugueza n'esse interessante periodo da transição do stylo romanico para o advento do gothico, na evolução capital da arte na Edade Media. A virginal candura, profundamente enternecida, do artista desligado da preceituação hieratica de uma esthetica que se extingue, para entrar com toda a frescura intacta do sentimento [73] na sinceridade de uma arte nova, é invasivamente tocante na concepção de varios episodios d'esta composição, como o da Annunciação, o do Sonho de Nossa Senhora, o da Adoração dos Reis Magos, o da Fuga para o Egypto, e o da Crucificação de Jesus, que, pela primeira vez nas representações d'este periodo, nos apparece flagellado pela corôa de espinhos e com os dois pés sobrepostos, fixados ao madeiro por um só cravo. Acompanhando e envolvendo a primorosa obra do esculptor, tudo no claustro de Cellas se compensa, se pondera e se equilibra admiravelmente para o fim de pôr em suggestão o pensamento que d'essa obra deriva.

É uma construcção ineffavelmente pura, toda de intimidade e de religião, no sentido de cada uma das suas partes e na harmonia total do seu conjuncto. Nem a mais leve macula mundana, de presumpção ou de orgulho. Nem um só nome profano, nem um unico emblema heraldico, brazão, corôa, paquife, divisa ou empresa. Nada que lembre da terra as ambições, a força, a gloria ou o brilho: nem quinas, nem lizes, nem pelicanos, [74] nem espheras. A mesma aconchegada dimensão do recinto, parecendo amoldado ao passo leve e recolhido das freiras, as quaes se ouviriam a meia voz de um extremo para o extremo opposto do pateo; o stylobato em bancada revestida de azulejos do tempo, enxadrezados em verde e branco; a pequena altura dos fustes, proporcionados a uma estatura de noviça, que poderia do chão acarinhar as imagens dos capiteis com uma flôr de açucena; a reclusa modestia da galeria superior, em que o beiral do telhado se apoia ao parapeito em curtos esteios de granito; a mesma vegetação arbustiva, que ainda sobrevive á antiga ornamentação floral do pateosinho ajardinado; as diminutas capellas e os nichos que rodeiam a claustra; tudo emfim concorda e condiz na mais rara e doce harmonia de uma expressão intradusivel. O claustro de Cellas é, pela extranhesa e pela preciosidade da sua poesia e da sua arte, uma especie de murmurosa fonte, ineffavel e perenne, em que a agua não vem de alterosos e magestaticos aqueductos cantar ao sol em taças brunidas de prophyro ou de alabastro, suspensas por [75] grupos de naiades, de sereias ou de golfinhos, mas rompe da rocha viva, como nas grandes altitudes alcantiladas das nossas serras, manando em fio tenue e crystalino, desnevada e purissima, escondida entre fragas, a que se entra de rastos para ir sedentamente beijal-a na sua humilde nascente engrinaldada de violetas em flôr.

Providenciando sobre o destino de um tão delicado monumento, posto em leilão pela quantia de um conto de réis, dispunha o governo que os capiteis das columnas se serrassem dos respectivos fustes e se recolhessem n'um museu!

Não sei em que phase administrativa se acha ao presente esse negocio. O que sei é que o primoroso claustro de Cellas, medonhamente desaprumado da perpendicularidade das suas columnas, não espera senão o primeiro dos mais leves pretextos para se desmoronar inteiramente.

Na linda egreja de S. João, em Thomar, abrem-se na fachada principal, de cada lado de um portal manoelino, duas janellas da mais corriqueira e mais villôa cantaria.

Ha bem poucos dias ainda um distincto critico [76] nos revelava, em uma folha periodica, os desacatos por que está passando o antigo mosteiro das Bernardas de Almoster, construido para commemorar o milagre de Santa Iria pela devota Berengaria com a collaboração de Santa Isabel.

Na Sé de Braga as estatuas jacentes dos tumulos do conde D. Henrique e de sua mulher foram cortadas pelo meio das pernas para caberem nos novos logares para onde as transferiram, e, com o fim de não transtornar inteiramente a anatomia dos personagens, pareceu util applicar os pés decepados aos joelhos das figuras.

Na mesma egreja existe o bello tumulo em bronze do joven infante D. Affonso, filho de D. João I, obra mandada fazer em Bruxellas pela infanta portugueza D. Isabel, mulher de Filippe o Bom. A estatua do infante, em tamanho natural, repousava deitada na tampa do mausoleo entre dois anjos em adoração. A caixa tumular, ornada de brazões, cingidos de arabescos e silvados em relevo, descança sobre leões. Em 1881 foram roubadas as cabeças dos leões, os pés e as mãos da estatua, e os dois anjos que ladeavam a cabeça do principe. O templo [77] está completamente desfigurado do seu aspecto primitivo. Empastaram-se os capiteis das columnas, transformou-se a arcaria das naves, abriram-se grandes janellas nas paredes da egreja, adornaram-se os intervallos das capellas com enormes estatuas dos apostolos feitas de pau, e pintou-se tudo de branco―madeiras e cantarias.

A pedra da campa de Garcia de Rezende, sepultado na encantadora ermida que elle mesmo delineou e mandou construir na cerca do convento de Nossa Senhora do Espinheiro, foi arrancada da sepultura do nosso chronista, e serve presentemente de banca de cosinha em casa de um cavalheiro de Evora.

Os tumulos da familia de Abrantes acham-se em tanto esquecimento e em tanto abandono na capella do seu castello, como em Alcobaça os de D. Pedro e D. Ignez de Castro; como em Paço de Sousa o de Egas Moniz; como em Palmella o de D. Jorge, em cujo testamento aliás se attribue uma verba ás reparações d'aquella casa; como, finalmente, ainda ha pouco em Alemquer, o de Damião de Goes, antes de haver sido reposto pelo sr. Possidonio [78] da Silva o busto do nosso chronista sobre o seu jazigo da egreja da Varzea.

Na Vidigueira a camara auctorisa o povo a utilisar em obras particulares as cantarias do castello de Vasco da Gama, como se o solar do descobridor da India não tivesse mais importancia historica que a que se liga a qualquer pedreira.

Em Evora, para dar mais um metro ou metro e meio de superficie a uma praça, a camara deita abaixo a historica varanda da casa dos paços do concelho, edificada em tempo de Affonso V, por João Mendes Cecioso, o pae dos pobres d'Evora. A varanda demolida, da qual pela primeira vez se aclamou a independencia de Portugal depois das famosas alterações, tão minuciosamente narradas por D. Francisco Manoel de Mello na sua Epanaphora politica, parece ter sido obra de D. João II.

Por muitas vezes se tem discutido na camara eborense, e parece até haver sobre tal assumpto uma resolução assente, o projecto inaudito de eliminar toda a bella alpendrada da praça, da rua Ancha e da rua da Porta Nova. [79]

Outra resolução da camara de Evora, resolução definitiva e aprasada para muito breve, é a de destruir a pequena e tão graciosa egreja do convento do Paraizo para o fim de estabelecer mais uma praça entre as duas ruas de Machede e de Mendo Estevens, ás quaes faz esquina aquelle templo.

A diminuta egreja do Paraizo, com os seus dois arcos manoelinos, com os seus preciosos azulejos do seculo XVI, em tapete mural, acompanhando nas barras o recorte dos arcos em zig-zag, e com o seu tumulo em ediculo de D. Alvaro da Costa, é um dos mais graciosos documentos architectonicos do seu tempo.

Pobre cidade de Evora, um dos nossos mais vastos e mais preciosos museus de archeologia e d'arte, preferindo como Santarem ser uma estupida collecção de praças largas e de ruas novas! Por toda a Europa, os velhos bairros historicos são hoje o thesouro das cidades que os possuem. Em muitos logares, onde esses bairros não existem, estão-os inventando, estão-os reconstituindo em homenagem erudita e piedosa á tradição historica, á poesia do passado. A camara de Evora, [80] vangloriosa no pelintrismo das suas innovações, bota abaixo os mais venerandos monumentos da cidade; por outro lado improvisa ruinas scenographicas no seu jardim publico, armando com trepadeiras e malvaiscos grupos sentimentaes de velhas columnas postas de pernas para o ar n'esse effeito de bordado a cortiça ou a miolo de figueira; pica os seus historicos brazões para fazer passeios lisos de ruas novas aos seus janotas; e bate, modernisante e festeira, sobre o epitaphio do mais palaciano e do mais artistico dos seus escriptores quinhentistas, a carne do bife consagrado talvez ao penso d'algum dos seus novos reporters.

Mas eu é que não posso deixar de dizer á cidade de Evora, que o que a ella nos attrae e n'ella nos retem não são as suas novas avenidas, nem as suas praças, nem o seu lindo theatro, nem o seu bello Passeio Publico. O que em Evora nos embelleza e nos encanta, são os seus velhos mosteiros, as suas antigas egrejas, os nomes das suas primitivas ruas, estreitas e sinuosas, tão curiosos e tão archaicos como o de Valdevinos, o de Alconchel, o das Amas do Cardeal, o do Alfaiate da [81] Condessa; são os quadros incomparaveis do seu paço archiepiscopal; são os variadissimos documentos da sua architectura ogival e da sua architectura da Renascença, tão especialmente amoiriscada n'esta parte do Alemtejo; são os restos das suas antigas industrias locaes, a olaria, a tapeçaria, a caldeiraria, a sellaria e a carpintaria de moveis; é talvez ainda a sua tradicional cosinha, a doçaria famosa dos seus conventos, a sua honrada assorda de cuentros, e o seu bolo pôdre, de farinha de milho, azeite e mel, como o que se comeria talvez, entre os hebreus da Biblia, á mesa de Abrahão.

Com as improvisações do seu modernismo Evora é como Vianna do Castello, Braga, Guimarães, Coimbra, Thomar, Santarem, ou Beja, que sómente interessam os viajantes pela sua antiga arte, e não valem realmente a pena de que alguem as visite pelo que dão de novo.

Em Lisboa repudia-se a soberba egreja de Santa Engracia, o mais bello dos nossos monumentos do seculo XVII. O interior do templo é de uma magnificencia magestosa. A riqueza dos marmores sómente se pode comparar á de Mafra. A mão [82] d'obra é de uma perfeição magistral a ponto de parecer indestructivel. Aproveitada para pantheon nacional esta egreja seria um dos mais imponentes edificios da Europa. Falta unicamente á sua conclusão a cupula do tecto e o lageamento do chão. Taparam-lhe o arco da entrada a pedra e cal, não tem cobertura, e está servindo de armazem de arrecadação do inutilisado material de guerra do Arsenal do Exercito.

A inoffensiva capellinha das Albertas, bem interessante pela ornamentação tão portugueza dos seus embrechados, ha poucos dias ainda acabou de desapparecer, como o convento da Esperança, sem se saber porque, nem para que.

A restauração, que recentemente padeceu a egreja de S. Vicente de Fóra, tão particularmente notavel pelos bellos mosaicos portuguezes que a exornam, caracterisa-se bem no mau gosto da pintura com que se maculou a nobreza d'aquelle templo.

Os attentados de restauro de que ainda nos tempos modernos tem sido objecto a Sé de Lisboa são tão lastimosos quanto innumeraveis. [83]

Finalmente, ao lado da Torre de Belem, o mais peregrino entre os mais bellos monumentos da nossa architectura, estabelece-se o gazometro da companhia de illuminação a gaz! A esbelta silhueta rendilhada do mais suggestivo padrão da nossa gloria militar e maritima, já não emerge da areia loura do Restello, em deslumbradora apotheose, na vasta luminosidade do ceu e da agua, destacando-se das collinas de Monsanto, como a alvura de uma hostia em elevação se destaca do fundo de um retabulo esmeraldado, em altar de ouro fulvo, sob uma abobada azul. Sacrosanta pela sua expressão moral, como a immaculada estalactite, formada á beira do mar pela concreção mysteriosa de todas as lagrimas, de saudade, de ternura, de consternação e de enthusiasmo, choradas por um povo de embarcadiços; sacrosanta na sua forma artistica, como aquelle dos monumentos de Portugal, em que o genio lusitano da Renascença, mais expressivamente se revela como dominador da India, a Torre de Belem emparceira-se com a chaminé do mais vil e sordido barracão, a qual sacrilegamente a cuspinha e enodôa com salivadas [74] de um fumo espesso, gorduroso e indelevel, como se a incomparavel joia d'esse marmore, que o sol portuguez carinhosamente sobredourara pelos afagos de tres seculos, houvesse sido tão subtilmente cinzelada pelos artistas manoelinos para escarrador de mariolas, por cima do qual todavia ainda algumas vezes, em dias de gala, se desfralda e tremula o pavilhão das quinas, mascarrado de carvão como um chéché de entrudo.

Ministerios de todos os diversos partidos politicos se revezam consecutivamente no poder, sem que nenhum d'elles pareça attentar em um tal desdouro, expressão viva do mais abandalhado rebaixamento a que, perante as suas tradições historicas e artisticas, podia chegar a degeneração de uma raça. Por seu lado o parlamento e a imprensa são insensiveis á responsabilidade de taes civicias, porque esses dois poderes do Estado, enrascados na baixa intriga partidaria, immobilisados n'ella, como um enxame de pardaes n'uma bola de visco, de ha muito que perderam o sentimento de nacionalidade e a noção de patria, relaxando completamente aos archeologos, aos poetas e aos artistas [85] a unica legitima representação, desinteressada e altiva, do espirito portuguez.

Consta no emtanto que brevemente será celebrado em Lisboa o centenario da India; e da comprehensão que temos d'esse feito culminante da nossa historia maritima daremos ao extrangeiro um testemunho definitivo, mostrando o monumento que commemora tal façanha, envolto, como nas dobras de um crepe, pela fumaçada de uma fabrica, que nós mesmos lhe puzemos ao pé, para o deshonrar.


Se do exame da architectura dos nossos monumentos, passamos ao exame das artes decorativas, da pintura e da esculptura amovivel, é mais lastimoso ainda o espectaculo da nossa incuria.

Ao clero portuguez cabe principalmente a gloria de haver conservado o que ainda resta do nosso patrimonio artistico.

Das galerias particulares de pintura que o conde de Raczynski ainda encontrou em Portugal, no anno de 1845, quasi tudo se sumiu. [86]

Demoliram-se, desappareceram, ou foram transformadas pela mudança de dono, pela mudança de destino, pela transformação mais radical da vida interior que as animava, quasi todas as casas que ainda em 1840 eram o typo das habitações nobres em Lisboa.

Citarei, ao acaso da memoria: o palacio da marqueza de Niza, a Xabregas, fundado no seculo XV pela rainha D. Leonor; o palacio chamado dos Patriarchas, o de Pessanha e o do conde de S. Miguel, á Junqueira; o do marquez de Pombal ás Janellas Verdes; o do conde de Carvalhal na Rocha do Conde d'Obidos, famoso outr'ora pela collecção das suas mobilias; á Cotovia o do conde de Ceia e o do conde de Povlide; no Calhariz os de Braancamp, do duque de Palmella e do marquez de Olhão; o do marquez de Castello Melhor e o do conde de Lumiares, no antigo Passeio Publico; na collina do Castello o do marquez de Ponte de Lima, o do marquez de Alegrete, o do marquez de Tancos; no Campo de Santa Clara o do visconde de Barbacena, o do conde de Resende, o do marquez de [87] Lavradio, e um pouco mais para leste o do conde da Taipa; o do visconde da Bandeira, a S. Domingos; e finalmente o do marquez de Borba, o do conde de Almada, e o do morgado de Assintis, cujo theatro era o mais sumptuoso entre todos os numerosos theatrinhos particulares que havia em Lisboa no principio do seculo, como o do barão de Quintella, o do visconde de Anadia, o do conde de Almada, e o do conde de Sampaio.

A maior parte d'essas casas eram ainda, pelo seu antigo recheio, apesar dos estragos do terremoto, apesar da rapina da invasão franceza, verdadeiros sanctuarios d'arte. Mobilavam-as as mais ricas peças das industrias do Oriente que existiam na Europa, escriptorios, papelleiras e bahus monumentaes de charão, bufetes e contadores feitos na India ou fabricados em Lisboa por marceneiros aqui educados, no tempo de D. Manoel, por artistas indianos.

Os serviços de mesa e os vasos decorativos eram das mais antigas e das mais preciosas porcellanas da China e do Japão. A collecção das colxas e dos panos de armar, com que no dia da [88] procissão de Corpus-Christi se revestiam inteiramente as fachadas de todos os predios da Baixa, eram de brocado, de damasco, de setim e de veludo, constellados a matiz e a ouro nos mais deslumbrantes desenhos persas.

Os bragaes, de linho da Hollanda, da Flandres e do Reino, arrecadavam-se nas sumptuosas caixas encouradas, que foram no seculo XVI uma das industrias famosas de Lisboa.

Nas gavetinhas dos contadores e nos escaninhos dos armarios e das arcas estavam as joias, as rendas, os aljofares, os entretalhos, os firmaes, as chaparias, os ouros de martello, e as obras mais diminutas e subtis das antigas bordadoras e colxoeiras de Lisboa,―restos de coifas, de face e gravis, redes, cadenetas, desfiados.

As baixellas brazonadas, de ouro e prata, levantadas em bestiões e em silvados, a martello, ou cinzeladas por emulos de Benvenuto Celini, trasbordantes de ornato, em encaiches de arabescos e de laçarias, eram um luxo commum a todas as familias nobres, e refulgiam pelas grandes festas do anno em todas as casas de jantar. [89]

O mogno francez do imperio, com as suas applicações de bronze, representando fachos, pyras ardentes, lyras e tropheus de guerra, invadira com as modas da revolução liberal muitas casas lisboetas, sem todavia desthronar inteiramente o precioso mobiliario da Renascença, em cedro, em pau rosa, em sandalo, em nogueira, em carvalho ou em ebano, ao gosto mudegar ou ao gosto florentino, embutido de marfim, de madreperola, de prata, de esmaltes limosinos ou aragonezes. Abundavam as cadeiras e os catles de couro lavrado ou de guadamecim, cravejado no carvalho ou no pau santo com pregos cinzelados de cobre ou de prata; e nas poltronas, nas commodas, nas meias-commodas, nos escaparates, nas cadeirinhas, nas molduras dos espelhos e das sobreportas predominavam as formas curvilineas da influencia de Luiz XIV e de Luiz XV na época de D. João V e de D. Maria I.

Na talha dos oratorios encontravam-se alguns d'esses baixos relevos em madeira, polychromicos, em escala mui clara, tão caracteristicos da nossa esculptura em madeira do seculo XVII, bem [90] accentuadamente revelada nas obras de Bouro, de Tibães, de S. Gonçalo de Aveiro, e da Sé Nova de Coimbra.

O presepio era um appendice por assim dizer obrigatorio; sempre que não occupava um compartimento especial da casa, o presepio concentrava-se na sua machineta em forma de urna, semelhante ás que se destinavam a conter uma cella de Santo Antonio ou uma arribanasinha de menino Jesus.

Todas as familias historicas tinham a sua mais ou menos consideravel galeria de pintura: paineis de devoção, retratos de antepassados, e um ou outro quadro de genero ou de paizagem, em tela ou em cobre, attribuidos a Breughel, a Rosa di Tivoli, a Tenniers ou a Rubens, obras em geral apocryphas e mediocres. Grassavam, com tenacidade talvez excessiva, as Josephas d'Obidos e os Morgados de Setubal, mas entre os retratos do seculo passado, encontravam-se alguns preciosos, como os de Pelegrini em casa dos viscondes de Anadia, como os pintados por Madame Guiard, por Gérard e por Therbouché, em casa do visconde de [91] Sobral. Entre os quadros de devoção destacavam-se frequentes obras primas nacionaes, do seculo XVI, referidas á vida da Virgem Maria, á lenda de Santa Ursula, aos agiologios de alguns santos portuguezes, como Verissimo, Maxima e Julia.

Nos sotãos d'essas antigas casas havia accumulações seculares de moveis inutilisados, de miudezas rejeitadas e esquecidas, com as quaes se sepultariam documentos inapreciaveis para a historia da nossa influencia na evolução europeia das artes sumptuarias: cadeiras aluidas e canapés desconjuntados, desusados manicordios, velhos cravos de charão, abandonadas espinetas, em cujo teclado amarellecido se teriam dedilhado as primeiras composições de Palestrina e de Cimarosa; antigos arreios de tiro e de sella, braseiras, perfumadores, lanternas e candieiros de cobre, velhos palmitos contrafeitos de conchas e de pennas, montões de manuscriptos, montões de gravuras, dentes de elephante, ferrugentas clavinas de pederneira; e, entre feixes de cacetes e de chibatas de marmelleiro, talvez, desarticulado e roto, algum [92] d'esses chapeus de sol, que nós fomos os primeiros que fabricámos e que introduzimos na Europa, ou algum d'esses primitivos leques, em quarto de circulo, que os companheiros de Fernão Mendes Pinto trouxeram da China, com os primeiros apparelhos de chá, com os primeiros vasos de porcellana, com as primeiras caixas de sinaes e pastilhas, doando a Roma e a Florença, a Paris e a Londres todos os principaes attributos e os themas fundamentaes de toda a arte da casa e de toda a elegancia feminina da civilisação moderna.

E tudo isso desappareceu, ou se está evolando, com o successivo desmanchar de todas as velhas casas, n'um saudoso e doce perfume de camphora, de mofo, de alfazema e de bejoim, errante no ar dos casarões despejados.

Estão nas bibliothecas extrangeiras, em França e na Inglaterra, as mais preciosas illuminuras dos nossos codices e das nossas arvores genealogicas.

Das encantadoras figurinhas dos presepios de Faustino José Rodrigues, de Antonio Ferreira, de Machado de Castro, já não ha intacta senão a collecção da Sé. Destroçaram-se as da Madre de [93] Deus, do Coração de Jesus e do marquez de Borba em Santa Martha.

O que ainda persiste da obra tão curiosa e tão caracteristica dos barristas de Alcobaça está ao desamparo no abandono d'aquelle incomparavel monumento.

Lanças, espadas, adagas, elmos de todas as fórmas―almafres, capellinas, bacinetes, barbudas e morriões―, couraças, escarcellas, grevas, manoplas, escudos e rodellas, todas as peças, emfim, da armadura dos nossos heroes da Africa e da India, desappareceram com as balças, as sinas, os estandartes e as bandeiras das suas hostes.

A espada de Vasco da Gama é hoje propriedade de um particular, que ha pouco tempo adquiriu por compra essa reliquia nacional.

Uma espada e um capacete de torneio, que se diz terem pertencido ao Mestre de Aviz, peças ferrugentas, sujas, sem estojo nem outro qualquer resguardo que as defenda da irreverencia do publico, estão na Batalha á mercê dos moços, dos pedreiros e dos visitantes, que de chacota se adornam com essas armas, em galhofa carnavalesca. [94]

Na cathedral de Toledo, na soberba capella dos Reis Novos, preciosamente edificada por Alonso de Covarrubias, em tempo de Carlos V e por disposição testamentaria de Henrique II de Trastamara, vê-se uma armadura portugueza. Guardada por castelhanos, essa armadura suspende-se, d'entre os ornatos platerescos da capella, por cima do órgão, em todo o respeito devido a um trophéo sagrado. E um dos guardas da cathedral, explica ao publico, apontando essa reliquia:―«Aquella é a armadura do alferes portuguez Duarte de Almeida, o qual, batendo-se na batalha de Toro contra nós outros, tendo tido decepadas as duas mãos, morreu ás lançadas, segurando nos dentes a bandeira do seu rei.» E em frente do arnez, que vestiu o corpo sanguento e exanime de um inimigo, Castella inclina-se reverente e commovida, fazendo-nos corar, perante a grandeza de tal exemplo, da lenda grosseira em que envolvemos a pá da padeira Brites―Quantos vivos rapuit omnes esbarrigavit,―a qual pá uma esperta e linda creada de Aljubarrota faz o favor de ir buscar, e de tirar de dentro de um saco, para a [95] mostrar n'um patamar de escada aos viajantes que para esse fim lhe vão bater á porta.

Não está feita nem estudada a historia dos nossos vidros, dos nossos esmaltes, da iconographia da nossa habitação, e do nosso trage.

Uma das obras primas da nossa joalheria, a propria custodia de Belem, lavrada por Gil Vicente, o famoso ourives, tio do poeta, acha-se desfigurada nas suas dimensões primitivas pela interpollação de um novo hostiario e de duas pilastras, que já não são do primeiro ouro das conquistas, mas de simples prata dourada.

Depois dos tão numerosos e tão grosseiros erros a que tem dado origem a investigação da identidade de Grão Vasco, a historia, a classificação e a attribuição da nossa incomparavel pintura do seculo XVI, encontra-se ainda por fazer.

A restauração dos antigos quadros está constituindo na historia da nossa arte uma catastrophe ainda mais destruidora que a da restauração da nossa architectura.

Alguns annos mais sobre o systema devastador que se está seguindo, e ninguem poderá reconhecer [96] nas taboas da nossa grande época uma só pincelada dos admiraveis discipulos e dos emulos que tiveram em Portugal os Van Eik, os Memling, os Gerard David, os Van der Weiden, os Quinten Massys ou os Dierik Bouts.

N'essa prodigiosa pintura nacional, em que tivemos por mestres os flamengos, acha-se todavia registrada a historia de toda a vida portugueza desde o meiado do seculo XV até o fim do seculo XVI, isto é, durante o periodo do nosso maior brilho e da nossa maior riqueza, no apogeu da nossa gloria. São raras as puras composições historicas e raros os retratos d'esta época. Os grandes feitos da navegação e da guerra celebravam-se de preferencia nas tapeçarias, que se perderam, e constituiam o principal adorno d'arte dos paços dos reis e dos palacios dos nobres. Na pintura religiosa, porém, e nos quadros votivos, conservados nas egrejas e nos conventos, as figuras do seculo misturam-se em brilhante anachronismo ás figuras sagradas, e muitas authenticas physionomias se accusam energicamente nos pomposos cortejos que envolvem as scenas biblicas. A [97] memoria do que fomos está ahi, por nós mesmos consagrada, com o maior esplendor a que chegou o nosso genio artistico, nas taboas dos paineis, no pergaminho das biblias e dos devocionarios portuguezes. Ahi estão os reis, as rainhas, os sacerdotes, os guerreiros e os letrados portuguezes do cyclo da renascença. São essas as caracteristicas figuras dos nossos avós: as faces cheias, a pelle tostada, a carne rija, os olhos rasgados, as boccas imperativas. A essas nobres e delicadas cabeças femininas serviram de modelo as mais lindas mulheres da Lusitania, de olhos de amendoa, malicioso olhar avelludado, obliquo e enygmatico, sobrancelhas longas alteando nas fontes, rostos ovaes, boccas quentes e vermelhas, queixo carnudo vincado na base, testa arredondada e lisa, cabello espesso e fino apartado ao meio em duas curvas de bambolim, e uma gesticulação leve, sinuosa e ondulante. Teriamos que interrogar longamente, laboriosamente, esses venerandos paineis para apprender tantas coisas que ignoramos da physionomia do nosso passado, o trage, as armas, as joias, a mobilia, os utensilios da casa e os estados do espirito. [98]

O estudo completo d'esses quadros constituiria a mais importante, a mais bella obra da nossa historiographia.

A patria portugueza segundo os documentos da pintura nacional nos seculos XV e XVI, poderia ser o titulo d'esse incomparavel livro, em que collaborariam todas as aptidões intellectuaes de que dispõe o paiz, por meio de successivas monographias, relativas a cada ramo do saber e comprehendendo todos os pontos de vista em que pode ser considerado o quadro:

1.º Os aspectos da paizagem, os caracteres da flora e da fauna portugueza, que nós tão opulentamente enriquecemos, pelo commercio das conquistas e dos descobrimentos; no tempo em que Lisboa era o primeiro jardim de acclimatação, o primeiro jardim zoologico e o primeiro mercado da Europa, pela introducção do chá, do café, do assucar, do algodão, da pimenta, do gengibre do Malabar, da canella de Ceylão, do cravo das Molucas, do sandalo de Timor, das teccas de Cochim, do bejoim do Achem, do pau de Solor, do anil de Cambaya, [99] da onça, do elephante, do rhinoceronte, do cavallo arabe.

2.º O mobiliario, cuja fabricação tão fecundamente desenvolvemos por meio de officinas estabelecidas em Lisboa por artifices indianos, e estabelecidas na India por artifices portuguezes, sob a administração de Affonso de Albuquerque.

3.º A indumentaria, comprehendendo, além da historia do traje, a dos tecidos, a dos bordados e a das rendas, industrias procedentes da China, da Persia, de Benguella, tão profundamente influenciadas pelo nosso contacto nas suas origens, tão especialmente desenvolvidas no Reino, pelo lavôr do paço, onde trabalhavam ao bastidor e á agulha as mais pacientes e subtis lavrandeiras mandadas á rainha pelos capitães da India.

4.º As armas, de guerra, de torneio e de côrte.

5.º A ourivesaria e a joalharia, abrangendo a analyse das alfaias religiosas, lampadas, tocheiros, relicarios, thuribulos, retabulos, a tão curiosa evolução em Portugal da fórma e do ornato dos calices, das custodias e das cruzes; e na ourivesaria profana as innumeraveis peças em ouro ou prata [100] da baixella e da joalharia portugueza da Renascença, como escudellas de faldra e de orelhas, salseiros, oveiros, vinagreiras, almofias, tumadeiras, almaraxas, escalfadores, confeiteiras, perfumadores, esquentadores, brazeiros, pomas-candis, alcaforeiros, taxos de perfumar luvas, copas, taças, gomis, bacias d'agua ás mãos, maças, chaparias de gualdrapa, andilhas, estribos, taboas de cavalgar, guarnições de cavallo, com rosas, sostinentes e copos; cofrinhos, arrecadas, firmaes, pontas de ouro, brochas de livro, cadeias, guarnições de coifa, trançadeiras, crochetes, cintas, tiras de cabeça, tiratestas, dormideiras de ouro para volantes, e as contas variadissimas de filigrana mourisca, de ambar das Maldivas, de almiscar da China, de rubis do Pegu, de diamantes de Narsinga, de perolas de Kalckar.

6.º As embarcações―galeões, naus, caravellas, bergantins, fustas, toda essa portentosa collecção dos nossos barcos de guerra e dos tão variados typos empregados na cabotagem e na pesca, testemunhos sobreviventes ainda hoje do nosso genio maritimo e das suggestões do mais remoto [101] trato do oceano, como se demonstra na forma dos saveiros, que trouxemos do Bosforo, e na da muleta do Seixal, que é o navio grego do tempo de Herodoto.

7.º A olaria e a cestaria popular, em que tão atticamente se affirma o hereditario engenho artistico da nossa raça, e cujos productos tanto se compraziam em reproduzir os nossos pintores.

8.º Emfim: A psychologia das figuras pela physionomia, pelo gesto, pelo sorriso, pelo olhar; os usos e os costumes; os temperamentos predominantes; a moda, o toucado; o corte do cabello, o talho da barba, etc.

Da pintura portugueza, que constitue a mais importante parte da riqueza artistica da nação, não ha porém catalogo, nem inventario, nem rol. Nos nossos depositos de antigos quadros, em Lisboa, em Coimbra, em Vizeu, em Thomar, em Lamego, em Evora, em Setubal, o povo portuguez passa indifferente, abstrahido, expatriado, sem guia que o condusa ás fontes da tradição e da nacionalidade, em que cada um de nós tem a mais restricta e a mais instante obrigação de ir retemperar e fortalecer [102] de portuguezismo o seu sangue, dessorado pela mais falsa educação a que se pode condemnar um paiz.

Não ha collecção publica, chronologicamente completa, dos nossos incomparaveis azulejos. Esta industria artistica é no emtanto d'aquellas de que mais legitimamente nos podemos gloriar. Até o seculo XVII o azulejador portuguez acompanhou a evolução peninsular, de influencia mudegar e de influencia italiana. Desde o seculo XVII adoptamos o gosto hollandez, e no seculo XVIII os nossos artistas desenvolvem no azulejo azul e branco, em vastas composições historicas e de genero, paizagens, merendas, caçadas, allegorias religiosas e lendas monasticas, enquadradas em bellas grinaldas polychromicas, o mais seguro e adestrado talento de composição historica e decorativa.

Raro será o anno em que de Portugal não tenha desapparecido um quadro inestimavel ou um codice precioso, sem qualquer apparencia de coherção, sem o minimo reparo, ao menos, do poder executivo, das côrtes ou da imprensa. Á hora a que escrevo estas linhas me dizem que está á [103] venda ou vendido em Londres um livro de horas com que o rei D. Manoel brindára um fidalgo da sua côrte, ordenando-lhe que vinculasse esse manuscripto, que era uma gloria da nação.

Não é, em rigor da verdade, muito mais risonho que o destino das obras d'arte que saem para o estrangeiro o destino das que ficam no paiz.

É bem conhecida a historia do primeiro dos nossos museus industriaes, fundado em Lisboa por Fradesso da Silveira. Esse museu extinguiu-se suavemente, a pouco e pouco, até chegar a não existir do deposito primitivo senão unica e exclusivamente as prateleiras em que elle havia sido collocado.

O rico museu das antiguidades do Algarve, recolhidas ha dezeseis annos por Estacio da Veiga, ainda hoje se não acha instalado.

Da inestimavel collecção das antigas peças de louça e de obras de barro, que haviam pertencido ao convento da Madre de Deus, e que o architecto Nepomuceno recolhera em uma das casas d'aquelle edificio, desappareceu tudo.

Tão vasta é a nossa riqueza artistica e tão profundo [104] o desleixo de a escripturar, que são quasi tão frequentes as surpresas no que se encontra como no que se perde.

Como exemplo direi que era assentado não haver em Portugal vestigio algum da influencia immediata de Van Eik na pintura portugueza, e não existir do infante D. Henrique, o Navegador, mais que um retrato, na miniatura annexa ao bello manuscripto de Azurara, presentemente propriedade da Bibliothèque Nationale, em Paris. É entretanto nosso, e existe em Portugal, um retrato egualmente contemporaneo e authentico, em tamanho natural, magistralmente pintado a oleo sobre madeira. Esse retrato precioso, inteiramente desconhecido do publico, eu mesmo o vi no dia 19 do mez de julho de 1895. Faz parte de um grupo de varios personagens, é da segunda metade do seculo xv, e pertence a um jogo de quatro paineis, de dimensões eguaes, relacionados entre si por analogia de data e de assumpto. Está bem conservado, e acha-se, com os tres da serie a que pertence, no corredor do claustro de cima no edificio de S. Vicente de Fóra, no vão de uma janella, junto dos [105] aposentos habitados n'essa occasião por s. ex.a revd.ma o sr. arcebispo de Mitylene.

O illustre escriptor inglez sr. Prestage mandou fazer d'esse retrato uma reproducção photographica, destinada a illustrar a nova edição ingleza da Chronica da Guiné.

Na linda egreja do convento de Santa Iria, que o fallecido architecto Nepomuceno comprou por 300$000 réis, e se achava encorporada no mosteiro fundado por D. Maria de Queiroz, viuva de Pedro Vaz de Almeida, veador da fazenda do infante D. Henrique, ha um retabulo em baixo relevo de bella pedra d'Ançan, que é simplesmente, pelo desenho, pelo stylo, pela mão d'obra e pelo estado de conservação em que se acha, uma das obras capitaes da esculptura da Renascença em Portugal. Compõe-se de dezesete figuras. Junto da cruz, de que pende a mais ideal figura do Redemptor, está prostrada Santa Maria Magdalena. Acompanham-a a Senhora da Soledade, as tres Marias, Nicodemus, José de Arimathea e S. João Evangelista. No primeiro plano, dois soldados a cavallo, em magnifico trage do seculo XVI. Enquadra [106] a composição um bello portico, de columnas e tabellas preciosas, chancellado pelo brazão dos Valles. Só outro Calvario, o do claustro do Silencio, em Coimbra, obra, por certo, do primeiro dos esculptores de Santa Cruz, hoje profundamente cariada e quasi delida, se poderia comparar, de par com o pulpito da mesma egreja, á esquecida esculptura da abandonada egreja de Thomar.

Em egual descaso e esquecimento, ignorado da grande maioria dos viajantes e dos estudiosos, o monumental e sumptuosissimo panthéon dos Silvas, da preclara familia de D. Ruy Gomes, em S. Marcos, cerca de Coimbra. O bello portal alpendrado d'esta egreja tem a data de 1510. Os cinco sarcophagos de que se compõe o jazigo verdadeiramente regio dos Silvas, assim como o retabulo em pedra no altar mór da egreja constituem uma preciosidade esculptural de valor incomparavel. Este admiravel repositorio da nossa esculptura quinhentista foi ha poucos annos vendido, com a cerca adjunta do extincto mosteiro, pela quantia de seis contos de réis.

Os preciosos quadros da pintura portugueza do [107] seculo XVI, completamente desarrolados, despercebidos dos compradores extrangeiros, e ainda hoje dispersos pelo paiz, são em numero talvez superior aos dos quadros de mesma época recolhidos pelo estado depois da abolição das ordens religiosas. O illustre critico sr. Joaquim de Vasconcellos tem, só á sua parte, noticia de não menos de cem obras desconhecidas do publico. Das que existem no Museu Nacional de Lisboa, na arrecadação da Academia das Bellas Artes e nos demais depositos do paiz, não ha uma só photographia registrada pelo Estado, á semelhança do que se faz em todos os museus do mundo.

Por occasião da ultima exposição, tão interessante, realisada nas salas devolutas, das Janellas Verdes, para celebrar o Centenario de Santo Antonio, a direcção das Bellas Artes não respondeu ao pedido da modesta quantia de 50$000 réis que a commissão executiva da mesma exposição lhe dirigiu para que se publicasse o respectivo catalogo, que ficou em manuscripto na mão do redactor.

Por essa mesma occasião os peritissimos e benemeritos [108] photographos portuenses Emilio Biel & Companhia, aos quaes tão valiosos e desinteressados serviços devem as artes portuguezas, dirigiram ao governo uma proposta para reproduzir pela photographia,―sem subsidio algum do thesouro―todos os objectos expostos no palacio das Janellas Verdes. Esta proposta ficou egualmente sem despacho.

Inutil me parece alludir ainda á dispersão das mais ricas peças do mobiliario portuguez do seculo XVI e d'essa segunda renascença artistica e industrial do nosso seculo XVIII.

Bufetes, arcas, armarios, contadores, tapeçarias da Persia, bordados e rendas do reino, couros lavrados e guadamecins, azulejos, porcellanas antigas da India, do Japão e da China, credencias, leitos torcidos ou empennachados, canapés e cadeiras curvilineas ao gosto da Pompadour de Odivellas, espelhos afestoados, de toucador e de sacristia, damascos da Real Fabrica das sedas, louças artisticas do Rato, da Bica do Sapato, do Porto, de Vianna, do Cavaquinho, da Panasqueira, de Darque, das Caldas, de Estremoz, de Coimbra, [109] tudo o bric-à-brac extrangreiro nos leva em cada anno, com uma cubiça e uma rapacidade que bem melancholicamente lembra a dos enviados de Verres no saque da Sicilia, do qual dizia Cicero que só ficou da arte o que a ganancia não quiz. Ainda ha Verres, como no tempo do velho mestre romano, mas já não ha verrinas.

D'esta desorganisação geral de toda a policia da arte resulta mais ou menos lentamente, a quebra da tradição esthetica nacional, que é a seiva de toda a producção artistica.

Á infecundação do individuo pelo espirito da raça corresponde o desfallecimento do poder creativo, a inercia da intelligencia, a esterilidade do estudo, a degeneração da phantasia, o abandalhamento do gosto, a atrophia do proprio caracter, e, em ultimo resultado da decadencia geral, a desnacionalisação pelintra de todo um povo.

Com o rebaixamento da arte rebaixa-se tudo, porque no mundo é producto da arte tudo o que não é unicamente obra da natureza.

O homem degenera, porque, sempre e em toda a parte, o homem toma fatalmente a configuração [110] das coisas que o rodeiam e, para assim dizer, lhe enformam a personalidade.

Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou pela inepcia de abastardadas classes dirigentes, os fieis debandam por não haver egreja que os reuna, e é já evidente esta enorme catastrophe: que na arte de Portugal faltam corações portuguezes.

Fere-nos já esse phenomeno consternador em todos os aspectos da vida intellectual.

Em resultado de não termos uma historia geral da arte portugueza, devidamente systematisada e integralmente documentada em cada um dos seus capitulos, vemos grassar, não só entre o vulgo mas entre pessoas de saber, incumbidas de guiar e de reger a opinião, o erro criminoso, profundamente desmoralisante, de que somos um povo inesthetico, incapaz de concepções artisticas originaes.

A juventude litteraria, dotada de uma consideravel força de applicação e de talento, traz-nos uma poetica exotica, de climas nevoentos, anti-meridional, e vem falando uma lingua secreta, cabalistica, interessantemente engenhosa, incomprehensivel [111] para o povo e para todos os que não estiverem iniciados na morphologia espiritica das novas seitas.

Em toda a historiographia contemporanea se nota uma glacial frieza de critica, uma anemica pallidez de expressão, um geral entono de apagada tristeza, em que bem se demonstra que não circula o sangue vermelho da raça, nem se retrata do vivo o genio do nosso povo, meigo, docil, de apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente sociavel, amando a grande alegria estridente das feiras, das tardes de touros, das romarias dos seus santos populares, conservando nas infimas camadas sociaes um residuo trovadoresco, de paladino e de menestrel, susceptivel ainda das paixões mais profundas, todo de improvisação e de repentismo, capaz das coisas mais imprevistamente grandes, poetico, aventuroso e destemido.

Na poesia, assim como na pintura e na musica, não ha uma escola portugueza, porque, na falta de laço social que congregue os nossos artistas, sem elementos coordenados de estudo, sem modelos patentes, sem lição commum, não ha entre [112] elles mutuamente, nem entre elles e o povo de que derivam, communhão alguma de ideal ou de sentimento.

Por egual razão não teem caracter nacional, sendo portanto destituidas de originalidade, e como taes inaptas para a luta da concorrencia mercantil, todas as nossas industrias.

A decapitação official da nossa educação artistica manifesta-se ainda de mais perto, acotovelando-nos e contundindo-nos por toda a parte, no aspecto do povo, na apparencia das casas, na esthetica das cidades, na apparencia dos predios, na decoração das praças, das avenidas, dos cemiterios, dos jardins publicos, das lojas, das repartições do estado e das habitações particulares.

Em Lisboa, por exemplo, onde não ha uma sala de concertos populares, nem vem tocar para a rua a musica dos regimentos, onde no theatro de Dona Maria se não representa Gil Vicente nem Garrett, onde no theatro de S. Carlos se não canta Marcos Portugal, onde não ha um museu de arte decorativa, nem um simples mostruario da nossa producção industrial, nem um museu de pintura, [113] coordenado, catalogado e etiquetado de maneira que communique ao publico, assim como em todas as outras capitaes da Europa, a lição que um museu contém, ha pelo contrario escaparates de apparatosos armazens, que são para quem anda pelas ruas o contagioso exemplo da mais corrompida perversão, do mais provocante e pomposo relismo a que pode chegar o desvairamento do gosto. Mobilias em tal maneira degeneradas que n'ellas desappareceu de todo o material de construcção. A almofada que em toda a antiguidade e em toda a edade média era um accessorio movel, e só no seculo XVI se principiou a fixar com pregos ao banco ou á cadeira, invade boçalmente todo o movel, armado em ripes de pinho, como uma eça de defunto, embrulhado em pelucia, que nos esburaca os olhos pela insolente má creação da côr. E horripilantes lindices de toucador, de escriptorio ou de sala, em que tudo parece apostado em ser fingido, desde a etrusca ondulação do contorno até o material empregado, porque todas as linhas são aleijadas, a prata é zinco, o marfim é gesso, o charão é de papel e o [114] marmore esculpido é de sabão. E tudo isso se compra e se leva para casa, para infectar a familia, para corromper o lar e para escrofulisar moralmente os meninos, desconjuntando-os de dignidade domestica, inoculando-os de pelintrice e de canalhismo de casta para a vida toda.

Ha uma avenida monumental em que, ao longo dos passeios destinados ao transito do publico, em vez da ornamentação da flora regional, em vez dos longos massiços de castanheiros, de laranjeiras, de palmeiras e de bananeiras, como em Barcelona e em Sevilha, esverdinham e apodrecem dois miseros e infectos arroios artificiaes no fundo de flexuosas ravinas, gretando sinuosamente o solo, como canos dissimuladamente abertos em fosquinhas para trambulhões do viandante.

Nos predios a prodigalidade vesanica das janellas percorre a superficie das fachadas, havendo frontarias que parecem construidas unicamente com hombreiras contiguas e sobrepostas; e, ao passo que em cidades amoraveis e artisticas se criam premios e se abrem concursos de janellas [115] floridas, em Lisboa é prohibido ornamentar de flores o frontespicio das casas.

Os lindos empedrados e embrechados de tradição portugueza caem em desuso, substituidos por cimentos incompativeis com a acção do nosso clima.

O tão commodo, tão modico e tão gracioso typo da nossa antiga casa de campo é substituido nas construcções modernas pelas fórmas de um exotismo composito, as mais delambidas, mais pretenciosas e mais chinfrins, hybrida confusão allucinada do châlet suisso, do cottage inglez, da fortaleza normanda, do minarete tartaro e da mesquita moira,―nodoa e vexame da paizagem portugueza nas redondezas de Lisboa. Em presença de um tão inverosimil scenario de magica, de operetta ou de revista do anno, ninguem, desajudado de outras indicações, anedocticas e chorographicas, será capaz de adivinhar em que parte do mundo e entre que casta de gente se está passando a peça. Tal é a delirante epidemia de que estão combalidos os constructores contemporaneos, que, para ter um indicio nacional da nossa tradição, entre as casas de campo ou de praia construidas em torno [116] de Lisboa nos ultimos vinte annos, temos de ir a Cascaes vêr o typo, unico, da habitação dos condes de Arnozo, tão saudosamente semelhante á casa de nossos avós, com o seu pequeno eirado sobre uma arcaria de meio ponto, a sua porta de alpendre n'um patamar de escada exterior, ao lado do retabulo em azulejo do santo padroeiro da familia, as janellas de peitos guarnecidas de rotulas entre cachorros de pedra, destinados ás varas do estendal, e servindo de misula aos vasos de craveiros e de mangericos, em frente do poço de roldana, no mais doce e tranquillo sorriso d'outr'ora.

Nos mesmos letreiros das esquinas de ruas encontram-se denominações que esbofeteiam o pundonor patriotico, a cultura historica e a dignidade esthetica dos habitantes.

No Bairro Alto, onde a nomenclatura das ruas tão sympathicamente suggeria a lembrança bucolica da antiga fazenda suburbana, em que os jesuitas de S. Roque delinearam a nova cidade, como a rua da Vinha, a do Moinho de Vento, a do Poço, a do Carvalho, a da Rosa, a da Atalaia, ou os nomes dos officios que ahi primitivamente se arruaram, [117] como os Calafates e as Gaveas, apaga-se, como n'uma rasura de conta falsificada, esse lindo e piedoso vestigio da tradição lisboeta, para dar ás ruas nomes novos e incaracteristicos, de sujeitos que n'ellas moram ou se diz que por lá passaram. E com egual afouteza se dissolvem, n'um borrão de brocha, sagrados disticos, ainda mais estreitamente vinculados á historia do povo e á historia da cidade, como o da Rainha Santa Isabel, como o dos Martyres de Marrocos.

Os trages populares, alguns tão pittorescos, tão suggestivos e tão bellos, como os das mulheres da Murtosa, da Maia, de Santa Martha e de Portuzello, como o dos boieiros do Ribatejo, dos pescadores de Ilhavo e da Povoa, e dos montanhezes do Alemtejo e do Algarve, degeneram e abastardam-se ridiculamente, porque não ha entre a gente culta quem preze esse trage, quem o honre e quem o entenda.

Egualmente se desdenham e repudiam, por espirito de inconcebivel extrangeirismo, os productos primorosos de algumas das nossas industrias populares. [118]

Nenhum outro povo matiza com mais harmonia de côr e mais graça de risco esses tecidos dos teares ou dos bastidores caseiros, combinados com estopa, com linho, com lã ou com algodão, de que se fazem os panos liteiros, as sirguilhas, as saias e os aventaes das mulheres de Vianna, e bem assim as colxas de linho bordadas a frouxo na Beira, e os tapetes chamados de Arrayolos. Nenhum outro povo sabe tornear na roda do oleiro com mais esbelteza e mais puro atticismo o pote ou a bilha de barro, a pucara, o gomil e o pichel, de Coimbra, do Prado, de Mafra, de Redondo, de Loulé.

Se ninguem mais artisticamente do que o portuguez sabe vestir a mulher, arrear o cavallo, engatar a mula, e moldar a vasilha, ninguem, tão pouco, melhor do que elle emalha a rede e enastra o cesto.

Dizem inglezes que metade da sua arte contemporanea se deve á iniciativa e á propaganda do grande critico nacional John Ruskin, que Tolstoï considera um dos maiores homens do seculo, e a quem Carlyle chamava o ethereal Ruskin. Este [119] glorioso campeão da esthetica e da arte em todas as suas mais complexas e mais variadas manifestações não pode deixar de ser lembrado por todos os que se interessam em taes assumptos. Os seus numerosos livros sobre historia da arte, sobre a architectura, sobre a pintura, sobre as artes decorativas e as artes industriaes, os seus profundos estudos de Turner e os antigos e dos Pintores modernos, a sua triumphante campanha em favor dos monumentos historicos, das industrias ruraes, dos preraphaelitas, das paizagens inglezas, são um verdadeiro monumento litterario, e a bibliographia que se lhe refere constitue toda uma litteratura, famosa na Inglaterra sob o nome consagrado de ruskineana. Grande homem de acção, gloria dos da sua raça, tomando por divisa To day, Ruskin não se emparedou, como a maioria dos criticos, na torre eburnea dos extases poeticos e das contemplações expeculativas. Tendo consumido rapidamente mil contos de réis da legitima paterna em subvenções das mais generosas empresas sociaes, em dadivas aos museus, em soccorro dos pobres, em fundações de escolas e de [120] officinas, reconstituindo pela venda dos seus livros, (a trinta contos a edição) um rendimento de riquissimo proprietario, elle fez-se gratuitamente professor de desenho, industrial e operario. Organisou a casa editora das suas proprias obras, a Ruskin House, fundou a Saint-George's Guild, em Londres, a Sociedade Protectora dos Monumentos Architectonicos, e as sociedades de leitura de Manchester, de Glascow e de Liverpool; ensinou a Inglaterra a comprehender a obra de Turner; fundou o culto dos primitivos, introduzindo na National Gallery os preciosos quadros de Benozzo Gozzoli, de Perugino, de Botticelli, de todos os grandes predecessores de Raphael; e deu á arte todo um novo ideal e uma religião nova, creando uma pleiade brilhantissima de proselytos, de collaboradores e de discipulos, entre os quaes figuram Madox Brown, Rosseti, Collingwood, Millais, Morris, Thomaz Dean, Woodward, Munro, Hunt, Burne Jones, Hook e Brett, e Giacomo Boni, o actual conservador dos monumentos nacionaes da Italia. Foi elle emfim que deu a mais alta expressão á auctoridade esthetica em nossos tempos, impedindo, [121] em nome da arte, que um traçado de caminho de ferro deturpasse a belleza de uma collina na paizagem ingleza, e levando uma commissão da Camara dos Lords a consultar uma commissão de artistas sobre se a passagem de uma linha ferrea não affectaria ruinosamente a parte de riqueza publica representada pela tranquilla e doce poesia de certo valle.

É porém com um intuito especial,―a proposito das nossas tão resistentes industrias tradicionaes e domesticas,―que eu invoco o nome glorioso de Ruskin.

O trabalho rural da fiação á mão e da tecelagem no estreito e primitivo tear caseiro achava-se totalmente extincto na tradição ingleza. Ruskin, considerando os poderosos elementos de economia, de moralidade, de satisfação, de educação esthetica e de intima poesia, destruidos pela suppressão d'essa antiga actividade artistica da familia no campo inglez, dedicou-se com um esforço portentoso a fazer reviver em Langdale e em Keswick a extincta industria caseira dos panos de linho e dos panos de lã em pequenas manufacturas [122] domesticas, tendo por unico auxiliar da força individual uma vela de moinho nos cabeços das collinas ou a corrente da agua á beira dos riachos. Elle mesmo dá o exemplo da nova organisação do trabalho na familia, construindo o seu famoso moinho de Laxey. Recompõe-se uma antiga roda de fiar com as peças desarticuladas e esquecidas de um d'esses abandonados apparelhos encontrados em casa de uma velha tecedeira. É reconstruido um primitivo tear sobre o modelo florentino e medieval de um quadro de Giotto. Ruskin envolve esse novo movimento retrogrado do trabalho na propaganda mais activa e mais eloquente. A sua palavra calorosamente apaixonada, colorida e mordente, encontra em todo o Reino Unido um ecco extraordinario. As teias do novo linho caseiro, um tanto rugoso, um tanto irregular, cegado no campo, espadelado, assedado, fiado, córado e tecido pela mesma mão de mulher, á porta ou á janella de uma cabana, ao ar dos campos, ao ramalhar das faias, ao canto das cotovias, denotando nos accidentes da factura, como n'uma obra d'arte, a caracteristica individualidade [123] do artifice, substituida á banal perfeição estupida e antipathica do apparelho mechanico, desbanca rapidamente a obra da fiação a vapor, cae em moda entre as pessoas de gosto aperfeiçoado, recebe a alta protecção da princeza de Galles, torna-se de rigor em todos os enxovaes elegantes, e faz-se pagar mui remuneradoramente por preços consideravelmente superiores ao dos productos da grande industria mechanica.

Exito egual ao dos panos de linho na industria caseira dos lanificios na ilha de Man. É conhecida não só em toda a Inglaterra mas em toda a Europa a fama d'esses resistentes tecidos ruraes fabricados á mão, de desenhos combinados na urdidura e na trama com as côres naturaes da lã, sem preparo algum chimico ou mechanico, de tintura ou de acabamento; e a mais cara de todas as fazendas de luxo para traje de trabalho, de caça, de viagem, de equitação, é o famoso homespun ou Laxey homespun, do nome da localidade em que se estabeleceu o primeiro moinho de Ruskin. É a esta evolução das pequenas industrias ruraes, hombreando em valor remunerativo com as grandes [124] industrias, e não a destructiva absorpção do trabalho da familia pelo trabalho das grandes empresas fabris que eu chamo transformação de industrias caseiras em industrias de concorrencia,―formula que geralmente se toma em sentido diverso d'aquelle que eu lhe ligo.

Em Portugal é certo que definham de dia para dia, e que successivamente se vão extinguindo as nossas velhas industrias ruraes. Esmorece calamitosamente, por culpa da administração economica dos nossos governos, a industria delicadissima das obras de filigrana de ouro e de prata, ainda em nossos dias servida por numerosas familias ruraes dos districtos do Porto e de Braga. Morreu em Bragança a industria da sericultura e a da fabricação do veludo. Acabou em Guimarães, entre outras industrias interessantissimas, a da manufactura caseira das sedas e dos brocados. No Algarve talvez que já hoje se não faça um unico trabalho de pita. Tem diminuido consideravelmente o numero dos teares caseiros na Covilhã, na serra de Monchique, na serra da Estrella. Nas margens do Lima, porém, entre Vianna [125] do Castello e Ponte de Lima, ha ainda algumas das mulheres mais lindas e das mais bem educadas de todas as portuguezas, que fiam e tecem em suas casas o linho, a lã, o algodão, e se vestem completamente, da maneira mais elegante, com os tecidos mais consistentes e mais bellos, de sua fabricação exclusiva em todas as phases por que passa a materia prima, desde que é cegada no campo ou tosquiada no carneiro até se converter em vestido. Á feira semanal de Vianna as raparigas d'essa região trazem em lindas canastras, além dos ovos e dos frangos que criam, além da manteiga que fabricam, as teias de pano de linho, os cortes de saias de lã e de algodão, as peças de sirguilha, que tecem, e as rendas que fabricam a bilros ou á agulha. As de Villa Nova de Ourem fazem ainda fitas excellentes; e no mercado de Thomar vende-se em graciosos novellos da fórma de casulos a melhor linha, branca ou preta, que se pode comprar em Portugal. Conserva-se ainda a antiga tradição das mantas do Alemtejo, citadas já por Gil Vicente na Farça dos almocreves, a dos liteiros e mantas de retalhos, a dos [126] lindos alforges da Extremadura, do Alemtejo e do Algarve, de Minde, d'Alte e de Redondo, e a d'esses famosos tecidos de lã, que são o homespun portuguez, e que em sua variedade se denominam bureis, estamenhas, briches, saragoças, jardos, sorrubecos.

Meditemos na maravilhosa obra operada por Ruskin n'um sentido esthetico, que á primeira vista se figura retrogrado, mas que encerra talvez em germen o destino futuro, preciosamente moralisante de todas as industrias, desde que os aperfeiçoamentos da electricidade desloquem o eixo do trabalho fabril, levando a casa de cada artifice por meio de um tenue fio de arame o quinhão de força que tem para distribuir por cada operario do seculo que vem o immenso e incalculavel esforço propulsôr do sopro dos ventos, do fluxo e refluxo das marés, da corrente dos rios, dos cyclones das Pampas ou das cataractas do Niagara. E em presença da revolução das industrias caseiras da Inglaterra, onde todo o vestigio de tradição desapparecera, ponderemos o que se pode fazer em Portugal, onde a tradição sobrevive [127] com uma energia prodigiosa a todos os desdens e a todas as oppressões que a esmagam!

É notoria desde o seculo XVI a aptidão artistica, que distingue o nosso marinheiro em todas as pequenas industrias de bordo, nos mais delicados, pacientes e engenhosos trabalhos tendo por base o cabo ou o fio de linho torcido ou entrançado. Ninguem como elle manusêa os ferros e as amarrações, o poleame e o talhame, o cabo, a adriça ou o pano. Ninguem como elle confecciona o coxim, a gaxeta, o mixelo, o unhão, a boça, a linga, o estropo, o repuxo, o massete ou a agulha. E não o ha mais dextro em lançar a volta, em enastrar a pinha e em dar o nó de escota, de fateixa ou de botija, o nó direito e o nó torto, o de cogula, o de borla de pescador, ou o de espia. Em toda a nossa costa, desde o Minho até o Guadiana, a enorme variedade de fórmas nas embarcações da pesca maritima, da pesca fluvial e da pesca lacustre, basta para evidenciar a persistencia da tradição no grande genio maritimo de tão pequeno povo.

Os que ainda vão á pesca do bacalhau, á Terra [128] Nova, equipam de uma maneira especial a escuna ou o patacho, preferindo porém o typo latino do hiate e do lugre. Os que vão á cavalla, á pescada e ao sarrajão, no mar de Larache, embarcam nos cahiques de Olhão, semelhantes aos de toda a costa algarvia e aos de Lisboa e Setubal, de prôa redonda, apparelhando com dois bastardos. Á pesca do alto vae a lancha de Caminha, construida no portinho de Gontinhães; a lancha póveira, de bocca aberta, apparelhando com um só mastro e a verga munida de uma grande vela latina; o barco da pescada, de Buarcos, de borda alta e duas pequenas toldas, apparelhando com dois mastros; o catraio da Nazareth; o barco da sacada, de Peninhe, de convez corrido com quatro escotilhas e dois mastros, com as vergas preparando em cruz; a rasca da Ericeira, a da Figueira da Foz e a da Vieira; as canôas de Belem, de Cezimbra, de Setubal e do Algarve, chamadas em Lisboa enviadas ou canôas da picada, e no Algarve andainas. Na pesca maritima costeira empregam-se embarcações numerosas e variadissimas. Na arte de galeão agrupam-se: o galeão, coberto, de prôa direita [129] e arrufada, apparelhando com o latino triangular, que amura ao bico de prôa e caça á pôpa, em mastro inclinado para vante; o galeonete; o buque, curvo na roda de prôa e sem coberta; a canôa do galeão, e o acostado, que se emprega no transporte do peixe. Na armação fixa do atum e da sardinha, nas almadrabilhas, ou almadravas, como antigamente lhes chamavamos, do nome arabe que os hispanhoes conservam, labuta o calão, grande lancha, de bocca aberta, armando com estropo oito ou dez remos por banda, tendo na prôa arredondada, rematada no alto por duas femeas, uma saliencia vertical de puas em serra, semelhando um lombo de peixe, e, pintado de cada lado, um olho arregalado para o horizonte; a barca da testa; a barca das portas; a barca da gacha, e o laúde.

Na costa do Algarve, as almadravas occupam hoje approximadamente os mesmos logares que tinham no seculo XVI; e o calão é, como alguns barcos do Douro, de prôa comprida e alta, propria para atracar a margens escarpadas ou para varar com facilidade na praia, o typo mais analogo [130] ao das embarcações portuguezas de ha trezentos ou quatrocentos annos.

Nas artes de arrastar para terra figuram as xavegas do Algarve, os saveiros e as meias-luas, de Espinho, Furadouro, S. Jacintho, Costa Nova, Mira, Tocha, Buarcos, Lagos, e outros logares, desde o sul do Douro até a Vieira, reapparecendo, mais abaixo, na costa de Caparica e da Galé, e na praia de Sines. Nas redes de alar a reboque trabalham as muletas e os bateis do Seixal.

O sr. Arthur Baldaque da Silva, no seu precioso livro Estado actual das pescas em Portugal, enumera ainda, entre os diversos typos de embarcações empregadas em varios systemas de pesca, o batel de Espozende, o barco de Vianna do Castello, a barquinha do rio Lima, a bateira da Figueira da Foz, a lancha de Buarcos, a lanchinha do Tejo, o ilhavo da Tarrafa, o batel de Peniche, o cahique e a lancha de Peniche, os poveiros de Lavos, de Buarcos, da Nazareth, de Cascaes, de Cezimbra, de Setubal; o catraio, a mais genuina embarcação portugueza da nossa costa meridional, a caçadeira e a focinheira de porco da Ericeira, a maceira da [131] costa do Norte, o cahique de Sines, o barco minhoto, construido em Lanhellas e em Forcadella, o batel do Cavado, o barco do Douro, o esgueirão da ria de Aveiro, a lancha de Villa Franca, a bateira do Mondego, a lanchinha e a chata do Tejo, e outros do continente, sem contar os barcos de cabotagem, os typos da Africa, dos Açores, da ilha da Madeira, não descriptos, infelizmente. São ainda de notar, entre as jangadas mais caracteristicas, as de Marinhas, para a pesca do polvo; as de Fão e da Apulia, para a apanha do sargaço; as de Neiva e as de Sedovem.

Com essa phantastica riqueza de documentos maritimos, assombro de todos os outros povos, é verdadeiramente inacreditavel que em Portugal não haja um museu naval, em que estes documentos se confrontem e se estudem. Não ha tal museu.

Em terra é tão variada a collecção popular das vasilhas, dos fogareiros e dos cestos caseiros, como é variada na agua a fórma das embarcações. A simples nomenclatura do vasilhame portuguez dá, só de per si, uma idéa, ainda que bem incompleta, [132] da multiplicidade das suas fórmas, porque ha typos que variam de região para região, de dez em dez leguas de perimetro. Esses typos principaes são a talha, o pote, o cantaro, o caneco, o tenor, a tarefa, a pucara, o gomil, a escudella, a tijela, a infusa, a meia, a quarta, a quartinha, a pinta, a sumicha, a sangradeira, a alquara, a vieira, o almude, a tamboladeira, o alguidar e o alguidarinho, o alcadafe, o moringue, o boião, o tarro, o cantil, a almofia, o alcatruz, o porrão, o côcho, o picho, o pichel, a almotolia, a ancoreta, a taleiga, a galheta, o caldeirão, a caldeira e a caldeirinha, o tacho, a caçoila, a copa, a bateia, o jarro, a batega, a pichorra, a botija, a cabaça, a malga, etc. Alguns d'estes nomes jogam com o antigo systema de medidas abolidas no seculo XVI, quando se estabeleceu o systema novo, tendo por base o quartilho. A vasilha correspondente á velha medida, condemnada no reinado de D. Sebastião, sobreviveu porém na tradição e no costume. A sumicha, por exemplo, com quatro decilitros de capacidade, tão maneira, tão graciosa, tão bem proporcionada a uma sêde d'agua, é ainda hoje na olaria [133] de Coimbra o pucaro consagrado, que no pote da região, de uma elegancia tão fina e tão attica, se encasa no alguidarinho que lhe serve de tampa.

As fórmas populares d'essa vasilharia, umas trazidas do Peru e do Mexico, como a do moringue e seus derivados, outras, provenientes de typos gregos e etruscos, da cratera, da amphora, da ambula, do askos, do bombylio, etc., são por toda a parte, em nossos districtos ceramicos, as mais bellas, as mais engraçadas ou as mais nobres, as mais irreprehensivelmente puras, parecendo que á roda mechanica do operario as foi delineando, contornando, envolvendo sempre, a peça por peça, o sorriso acariciante de um artista.

De uma humilde panellinha portugueza de barro preto, de Prado ou de Molellos, deduziram em França o assucareiro, a leiteira, a cafeteira e o bule de um serviço de almoço, que ficou tradicional na fabricação de Sèvres.

A industria popular da cestaria acompanha na evolução das fórmas a industria do oleiro. Todos os que percorreram as feiras e os mercados do nosso paiz notariam que cada região tem a sua [134] canastra, o seu cabaz e o seu gigo, differentes na fórma ou no ornato. Ha-os de todas as configurações, fundos e chatos, quadrados, octogonos, arredondados, oblongos, cubicos, cylindricos, espheroidaes, lembrando algumas vezes a fórma e a construcção americana dos samburás, dos tipitis e dos côfos tupis, feitos de taquara e de cipó, que introduzimos talvez no Brazil ou, mais provavelmente, lá aprendemos a fabricar, deixando o typo do balaio, com cujo nome se designa ainda na Bahia o farnel que de ordinario se transporta no cesto portuguez d'essa configuração, semelhante á de um alguidar. Mui frequentemente varia tambem o balaio, o canistel, a cesta, a condeça, o ceirão e a ceira, a alcofa e a alcofinha. A materia prima do cesto é o vime, o junco, a fasquia de castanheiro, a fasquia de faia e a canna; a da ceira e da alcofa é o esparto, a engeita, a palha de trigo e de centeio, a tabúa, a juta e a pita. Em algumas regiões, como nas Caldas e Vizeu, os cestos são obras primas incomparaveis de acabamento e de graciosidade. A canastrinha burriqueira das Caldas, reduzida ao miniaturismo de dois centimetros, é um [135] simples prodigio de fabricação minudente e delicada. No Algarve a alcofa, de filiação arabe, é por vezes ornada de apparatosas flores bordadas a seda ou a lã.

Sem embargo, continuando a affirmar-se que não temos sentimento artistico, desistimos por indisciplina, por ignorancia, por desanimo, de transformar em industrias de concorrencia as nossas industrias domesticas, e não negociamos com o extrangeiro nem tecidos de phantasia, tão originaes como os que possuimos, nem papeis pintados derivados d'esses tecidos, nem a louça, nem a cestaria, nem a filigrana, immobilisada em typos decrepitos, e da qual tão lindos effeitos se tirariam, applicando-a em ouro a serviços de toucador, a frascos de cristal, a molduras de retratos, a encadernações de devocionarios, etc, etc.

Tanto menosprezamos os productos quanto desconhecemos as fontes da nossa civilisação artistica.

A arte que menos estudamos é a arte hispanhola, á qual todavia indissoluvelmente nos prendem os mais estreitos vinculos de temperamento, [136] de tradição e de ideal. Juntamente com os hispanhoes recebemos dos arabes as primeiras influencias que em toda a producção artistica da Peninsula imprimiram a feição differencial mais caracteristica e mais indelevel. Aos califados, que cobriram de mesquitas Cordova, Sevilha, Granada, Santarem, Lisboa e Coimbra, devemos o toque de orientalismo peculiar das formas architectonicas do nosso stylo romanico, ogival e da renascença. E da mesma procedencia, mosarabe ou mudejar, são algumas das nossas mais interessantes industrias, como a da filigrana, a dos azulejos, a das sedas, a do papel, a da encadernação, a dos couros lavrados, (a que chamavamos cordovões por nos virem de Cordova) a das esteiras, a dos tapetes, a das obras de esparto, de palma, de pita. Até o fim do seculo XVI artistas portuguezes, leonezes, castelhanos, valencianos, aragonezes, catalães, asturianos, tivemos um ideal commum nas letras, na architectura, na esculptura, na pintura, nas artes sumptuarias e nas artes industriaes, celebrando identicos feitos de guerra, de religião e de amor, servindo reis do mesmo sangue, heroes [137] das mesmas aventuras, santos e santas da mesma invocação popular.

Das nossas relações com Flandres só conheciamos―até ha bem poucos annos―a influencia flamenga em Portugal, ignorando completamente a reciproca acção dos portuguezes em Gand, em Bruges, em Antuerpia. Foi o sr. Joaquim de Vasconcellos quem, investigando os annaes das confrarias e o archivo das feitorias de Portugal, consignou que, em resultado da protecção dada aos artistas nacionaes por D. João II e por D. Manoel, de uma só vez chegaram a reunir-se em Paris cincoenta pensionistas portuguezes. Aos trabalhos do mesmo investigador se deve acharem-se hoje apurados varios nomes de pintores de Portugal trabalhando em Flandres, entre os quaes Edwart Portugalois, discipulo de Quintino Metsys, proclamado em 1504 mestre pintor da confraria de S. Lucas de Antuerpia.

Os trabalhos do sr. Joaquim de Vasconcellos estão sendo diligentemente continuados pelo sr. Sousa Viterbo, na Torre do Tombo, e pelo sr. Joaquim Mauricio Lopes, nosso consul, em Antuerpia. [138]

Em uma recente publicação do sr. Mauricio Lopes, Les portugais à Envers au XVIème siècle, demonstra-se por meio dos mais expressivos documentos que a colonia portugueza, estabelecida em Flandres desde que em 1386 o duque de Borgonha Filippe-o-Ousado concedeu licença para ahi viverem mercadores de Portugal e dos Algarves com as suas familias e os seus creados, foi para a civilisação que os acolheu de uma importancia incomparavelmente superior á que jámais exerceu a colonia flamenga em Portugal.

Os negocios dos portuguezes em Antuerpia, ao tempo da fundação da primeira feitoria de Portugal por D. Manoel, negocios tendo por base, além das exportações do reino, o commercio das especiarias trazidas da India por Lisboa, montavam annualmente a cerca de cinco mil contos da nossa moeda actual. O numero das casas portuguezas em Antuerpia era de cento e doze. Os mercadores portuguezes representantes d'essas casas viviam com um fausto verdadeiramente principesco. Em 1594, por occasião da entrada triumphal de Filippe II, herdeiro de Carlos V, a [139] cavalgada portugueza ficou memoravel. Compunha-se de vinte senhores e de quarenta creados, montando todos cavallos peninsulares, ricamente ajaezados. Os senhores trajavam de brocado e seda côr de purpura, bordada de ouro e de rubis, com botões, passamanes e collares de ouro. Todos os gorros eram orlados de brilhantes. Os creados, equipados, de couraça e espada, vestiam librés de seda verde e branca, com as bainhas das espadas de seda branca.―O que era, segundo o chronista Cornelius Grapheus, chose moult riche et triomphante à voir.

Nas festas da entrada em Antuerpia de Ernesto d'Austria, governador dos Paizes Baixos, os portuguezes erigiram um arco triumphal, em que se viam as figuras da Mauritanea, do Brasil, da Etiopia, da India, da Persia, do Ganges, do Rio da Prata, com as estatuas de Filippe I, do principe Filippe de Hispanha, de D. João II e de D. Manoel. Em outro arco de triumpho, delineado por Ludovicus Nonnius e consagrado a Fernando d'Austria, em 1635, expuzeram os portuguezes diversos quadros representando, entre outras, as allegorias [140] da Victoria, da Clemencia, da Felicidade, da Religião, e os retratos de D. Affonso Henriques, D. João I, D. Manoel e D. Filippe II.

Um d'esses portuguezes, o feitor Antonio Cirne, natural do Porto, nos saraus do Palacio chamado de Portugal, pretextando que a turba ou a lenha cheiravam mal, mandava cosinhar as eguarias com fogo de canela, e queimar canela em todas as fogueiras das chaminés.

Outro portuguez, Simão Rodrigues d'Evora, era barão de Rhodes, cavalleiro, senhor de Tewerden, de Broeckstraate; pela sua enorme fortuna lhe chamavam o rei pequeno; possuia muitos predios na principal arteria da cidade, e habitava um d'elles, em que successivamente se hospedaram a infanta D. Izabel, a rainha Maria de Medicis e o principe cardeal Fernando d'Austria; fundou, com o fim caritativo de recolher doze senhoras da nobreza ou da burguezia reduzidas á indigencia, o hospicio de Sant'Anna, onde um triptyco de Otto Venius representava o retrato do fundador com seus filhos e sua mulher D. Anna Lopes Ximenes de Aragão. [141]

O luxo da colonia portugueza em Antuerpia assumia muitas vezes o mais nobre e mais alto caracter artistico. A enthusiastica hospitalidade conferida pelos portuguezes a Alberto Dürer ficou assignalada pelas grandes festas a que deu origem. Dürer retribuiu esses favores com presentes de quadros e de gravuras aos feitores e aos negociantes de Portugal.

Diogo Duarte, filho de Gaspar Duarte, possuia uma das primeiras galerias de pintura em Flandres. Foi recentemente publicado na Hollanda um catalogo dos seus quadros, entre os quaes havia obras de Dürer, de Breughel, de Metsys, de Maubeuge, de Ticiano, de Tintoreto, de Andrea del Sarto, e um Raphael, que constava haver sido adquirido do principe D. Manoel de Portugal em troco de diamantes no valor de 2:200 florins.

Muitos dos nossos compatriotas estabelecidos em Flandres cultivavam as sciencias e as letras, contando-se entre elles professores, medicos, escriptores celebres, como Amato Lusitano, Rodrigo de Castro, Garcia Lopes, Damião de Goes, etc.

Outro curioso symptoma da nossa desaffeição [142] dos estudos da arte nacional é a estagnação das velhas idéas preconcebidas na apreciação dos nossos monumentos architectonicos. Já me referi ao ôco basbaquismo privilegiado de que é objecto absorvente o monumento da Batalha. Devo aclarar um pouco mais, ainda que rapidamente, esse phenomeno.

Por notavel superstição epidemica, por inercia de espirito, por servilismo intellectual, por pedantismo classico, por costume, por commodidade, por convenção admirativa, ou por qualquer outro motivo, os criticos portuguezes, que mais teem governado a opinião, estabeleceram axiomaticamente, como coisa definitivamente demonstrada e assente, que o unico puro e genuino exemplar de stylo gothico existente em Portugal é o da Batalha. Toda a modificação nas linhas constructivas ou nos motivos ornamentaes d'esse typo passou, por effeito de tal dogma, a qualificar-se de decadencia. Capellas imperfeitas, decadencia! Claustro dos Jeronymos, decadencia! Egreja de Christo e de S. João em Thomar, decadencia! Santa Cruz e S. Marcos, em Coimbra, decadencia! [143] Decadencia emfim toda a obra architectonica da época manoelina.

A termos acceitado tal principio na sua applicação pratica, teriamos tido na nossa architectura ogival do seculo XVI um neo-gothico, fixo e invariavel, como o neo-greco-romano da renascença, que é o triumpho consagrado do dogmatismo na arte, a immobilidade canonica nos systemas de construir, a cristalisação da rotina, a sujeição de toda a imaginação, de todo o poder inventivo a uma formula invariavel. Teriamos tido de submetter-nos ao despotismo da Batalha, como tão cegamente, tão estupidamente, tão inconcebivelmente, nos temos submettido por tantas centenas de annos ao despotismo de Vitruvio e das suas cinco ordens, com os seus correspondentes aphorismos de proporção e de symetria, seu pedestal, sua columna e seu entablamento, repetindo sempiternamente, sobre os mesmos dados estaticos, o mesmo denticulo, o mesmo modilhão, a mesma canelura, o mesmo triglypho, a mesma gôta, a mesma carranca! Ora precisamente o stylo manoelino da nossa architectura, com toda a sua [144] effusão esculptural, com todo o avassalante symbolismo dos seus motivos ornamentaes, com toda a arbitrariedade dos seus processos, com todas as suas desproporções e todas as suas assymetrias, não é precisamente senão a contraposição da liberdade creativa dos nossos architectos-esculptores á enfatuação idolatrica, á pedantesca preceituação rhetorica, ao esmagador e exhaustivo despotismo das cinco ordens, com que o neo-classicismo da renascença razoirou todo o talento humano. O stylo gothico prestava-se como nenhum outro, pela extrema flexibilidade dos seus principios fundamentaes, aos desenvolvimentos de pura arte, com que o esculptor, completando a obra do engenheiro, e fazendo-se assim architecto, pode aviventar a pedra de um edificio, convertendo-a n'um elemento de sympathia e de solidariedade social, fazendo vibrar na palpitação do seu lavor evocações de idéas e de sentimentos proprios dos homens da sua raça e da sua terra. Os artistas manoelinos não teriam feito talvez monumentos correctos, na accessão indigente em que as academias empregam esta palavra, mas fizeram monumentos [145] expressivos,―o que é melhor. Porque não são as academias que pautam as proporções e os limites da creação artistica. Tudo o que se pode formular em preceito cessa de ter valor em arte. A obra de arte não é um producto de escola: é a livre expressão individual de uma alma, convertida em realidade objectiva, e communicando aos homens uma vibração nova do sentimento.

A superioridade ou a inferioridade de um artista, a sua categoria, deduz-se da maior ou menor quantidade das idéas que a sua obra suggere e dos sentimentos cuja percussão ella determina. Nos monumentos architectonicos é pela sobreposição do ornato esculptural ás linhas geometricas da construcção que a arte se exerce. É principalmente na esculptura que reside a expressão poetica do monumento.

Em Portugal teem sido acusados os architectos manoelinos de invadirem pelo vegetabilismo ornamental todos os perfis da construcção, submettendo assim as fórmas constructivas á ornamentação esculptural. Os grandes criticos da Inglaterra, que tão consideravel impulso teem dado [146] ás idéas estheticas e á moderna evolução artistica, entendem porém, ao contrario dos nossos, que a sciencia de edificar e de dispor linhas é na construcção de um monumento um ramo secundario da arte de esculpir. Esta affirmativa envolve a consagração da escola manoelina pela critica que n'este seculo mais minuciosamente e mais profundamente tem estudado a arte gothica e a arte da renascença.

Nada todavia mais afflictivo, de peor indicio para os destinos nacionaes da arte, que o descaso do publico, pervertido em seu instincto pela carunchosa doutrina academica, perante esses monumentos em que sob, o reinado de D. Manoel, os artistas portuguezes tão vigorosamente accentuaram a palpitação victoriosa do genio, da originalidade, da poesia, da gloria do povo lusitano.

O que se convencionou chamar decadencia na ultima evolução do stylo gothico em Portugal é a modificação portugueza d'esse stylo, é a sua nacionalisação, é a originalidade local, imposta pelos architectos portuguezes do seculo XVI, a um systema geral de construcção, commum a toda a Europa. [147] Dirão que não é isso precisamente um novo stylo. Certamente que não, se unicamente chamarmos stylo novo em architectura á constituição complexa e integral de todo um systema de edificar. Mas, se tomarmos a palavra stylo em tal accepção, nenhum stylo é novo em toda a architectura da edade média e da renascença. Todo o processo constructivo nos veiu inicialmente da Grecia, de Roma, de Bysancio, da Syria, do Egypto. Os mesmos gregos não inventaram a columna, nem os romanos descobriram a abobada. O que constitue a originalidade na architectura de qualquer povo é, como em Portugal, na época manoelina, a subordinação de um systema qualquer de geometria architectural ás condições do clima e da paizagem, á natureza dos materiaes empregados, á flora, á fauna, á concepção religiosa, á historia, á poesia, ao temperamento e á psychologia dos artistas, em cada região. Quanto mais intensa for a intervenção d'esses factores mais original será a obra. Assim, na evolução do gothico na architectura portugueza, quanto menos modificado, isto é, quanto mais puro fôr o stylo, mais insignificante [148] será o monumento como documentação artistica, como expressão social.

É á decadencia do gothico da Batalha que nós devemos o incomparavel claustro dos Jeronymos, segundo Haupt o mais bello claustro de todo o mundo, bem como a fachada da egreja de Christo, em Thomar, onde a flammejante janella da sala do capitulo é a obra mais eloquente, mais convicta, mais poetica, mais enthusiasticamente patriotica, mais estremecidamente portugueza, que jámais realisou em nossa raça o talento de esculpir e de fazer cantar a pedra.

Na ornamentação d'essa janella, em que, juntamente com o sentimento mais entranhado das energias da natureza, rebenta, palpita e brada, em torno da idéa christã, todo o sagrado pantheismo das velhas religiões da India, conjugam-se, n'uma gloriosa harmonia de antiphona a toda a voz, acompanhada ao orgão, no deslumbramento dos cirios, no aroma das açucenas, no fumo dos thuribulos doirado pelo sol, os elementos decorativos do symbolismo mais poderoso, da suggestão mais profunda. O artista, em plena posse da sua idéa, em [149] completa independencia do seu espirito, em inteira liberdade dos seus meios de execução, desdiz todos os votos, abjura todos os principios, renega todos os canones, infringe todas as regras, e prescinde de todo o applauso dos mestres, sufocando nas entranhas da sua propria vaidade a opinião de si mesmo, unicamente porque tem fé na verdade que enuncia, porque concentrou toda a força da sua alma, toda a energia do seu cerebro, toda a paixão do seu sangue, no amor da obra em que elle representa o pensamento que o domina. E em torno d'elle e d'esse objecto amado, como em torno de todos os que verdadeiramente amam, tudo mais na terra acabou e desappareceu.

As columnas na janella da sala do capitulo são polipeiros de coral, dos mais profundos recifes do Oceano, e troncos d'essa palmeira, cuja sombra cobriu o berço da civilisação no littoral mediterraneo, providencia dos peregrinos nos oasis do deserto, á qual os arabes da Peninsula dedicavam uma festa de primavera, tendo por fundamento a disseminação do polen,―a arvore santa, a arvore [150] da Biblia, a arvore de Jesus, cujo ramo symbolico é um attributo da paixão e da paschoa, da gloria e do martyrio. Os demais elementos decorativos são as ondas do mar, taes como ellas se representam na heraldica; são os troncos seculares e as raizes profundas dos sobreiros dos nossos montes, extrema expressão de força na fecundidade da seiva, que prende o roble, assim como a tradição e a familia prendem a debil e errante creatura humana, ao coração da terra em que nasceu. Guizeiras, como as das mulas de tiro engatadas á carreta alemtejana, emmolham contorcidas varas de sobro e de azinho, como nos feixes de lictor da magistratura romana. Solidas correntes e possantes cabos de bordo, de que pendem em discos as boias de cortiça, enlaçam a decoração, amarrando-a vigorosamente á empena por fortes argolões, como se amarraria uma nau ao caes de um porto. Toda a composição, partindo das espaduas de um homem, que parece sustentar-lhe todo o peso, ascende n'uma trepidação de algas e de folhagens para a cruz de Christo entre as espheras que tomara por empresa [151] o rei venturoso de Portugal triumphante na vastidão dos mares, em todo o circuito do globo. E o poema esculptural remata por cima da janella na rosacea magestosa do templo, formada em circulo pelas pregas e pelo bolso arfante da vela rizada de um galeão da India.

O nosso povo porém desaprendeu de ver a obra artistica do seu passado, e nem sequer levanta os olhos para os seus mais communicativos monumentos, que ninguem lhe explica, que ninguem o ensina a comprehender e a amar.


Resumamos agora a historia do que officialmente se tem feito no intuito malogrado de proteger os monumentos publicos e de conservar e defender os productos d'arte.

Em julho de 1890 o então ministro da Instrucção Publica consultou sobre a questão de que se trata uma commissão de artistas, de archeologos e de escriptores. Da resposta, até hoje inedita, d'essa commissão, de que me coube a honra de ser relator, transcreverei alguns periodos.

O arrolamento da nossa riqueza artistica, que [152] se propõe effectuar o ministerio da instrucção publica e das bellas artes é―ponderava o relatorio―a pedra fundamental de toda a construcção destinada a dar á arte portugueza o logar que lhe compete na historia geral da nacionalidade, na orientação do sentimento collectivo do povo, no conjuncto dos elementos de impulsão e de progresso para o desenvolvimento das industrias, no respeito do paiz, emfim, e no da Europa.

O inventario de que se trata, comprehendendo não só os edificios monumentaes mas os documentos archeologicos e os productos artisticos de toda a especie, seria, primeiro que tudo, a documentação preciosa para a historia da arte em Portugal,―determinação das suas origens ethnicas e sociaes, fixação dos seus caracteres distinctivos e sua relação com a psychologia do povo, com os sentimentos, com as aspirações, com as ideias, com os costumes e com as instituições sociaes. Esse repositorio tornar-se-ia o espelho em que se achariam reflectidas, com todas as suas modalidades, segundo as influencias especiaes de cada época, de cada phase de cultura, de cada estadio social, [153] todas as forças emotivas, todas as aptidões estheticas da nossa raça. A historia dos seus monumentos é para cada povo a historia da sua individualidade, porque não ha monumento artistico que não traduza, mais ou menos directamente, a acção intellectual e politica da sociedade que o concebeu.

A ideia do inventario projectado não é―para honra nossa―inteiramente nova. No reinado de D. João V existia na Bibliotheca Real uma obra em cinco volumes, datada de 1686 e intitulada «Theatro do reino de Portugal e dos Algarves por suas cidades, villas, fortes e fortalezas como que por scenas repartido.» Mais tarde mandou o referido soberano ao Padre Frei Luiz de S. José, monge do Cister e artista peritissimo, que fizesse os debuxos de todas as povoações do Minho, o que elle cumpriu no anno de 1726. Por indicação da Academia Real da Historia, e para o fim de inventariar e conservar os monumentos nacionaes, publicou-se o decreto de 20 de agosto de 1721, e fundou-se o primeiro dos nossos museus archeologicos. Infelizmente os livros a que nos referimos [154] não chegaram a ser dados á estampa, e os originaes foram destruidos pelo terremoto de 1755, juntamente com a Bibliotheca Real, e com o museu estabelecido nas casas dos duques de Bragança, ao Thesouro Velho.

As disposições do alvará de 20 de agosto de 1721 constam do seguinte trecho do mesmo alvará: «Hei por bem que d'aqui em deante nenhuma pessôa de qualquer estado, qualidade e condição que seja, desfaça ou destrua em todo nem em parte, qualquer edificio, que mostre ser d'aquelles tempos (assim designados: Phenices, Gregos, Persos, Romanos, Godos e Arabios) ainda que em parte esteja arruinado; e da mesma sorte as estatuas, marmores e cippos em que estiverem esculpidas algumas figuras, ou tiverem letreiros phenices, gregos, etc.; ou laminas, ou chapas de qualquer metal, que contiverem os ditos letreiros, ou caracteres; como outrosi medalhas ou moedas, que mostrarem ser d'aquelles tempos, nem dos inferiores até o reinado do Senhor Rey D. Sebastião; nem encubrão ou ocultem alguma das sobreditas cousas: e encarrego ás camaras das cidades [155] e villas d'este reyno tenham muito particular cuidado em conservar e guardar todas as antiguidades sobreditas, e de semelhante qualidade que houver ao presente, ou ao deante se descobrirem nos limites do seu districto; e logo que se achar ou descobrir alguma de novo, darão conta ao secretario da dita Academia Real para elle a communicar ao director e censores, e mais academicos; e o dito director e censores, com a noticia que se lhes participar, poderão dar a providencia que lhes parecer necessaria para que melhor se conserve o monumento assim descoberto. Etc.»

Em 4 de fevereiro de 1802, novo alvará sobre a mesma materia, assim designado: «Alvará com força de lei pelo qual Vossa Alteza Real he servido suscitar o alvará de lei de 20 de agosto de 1721, ordenado em beneficio da Academia Real da Historia Portugueza para a conservação e integridade das estatuas, marmores, cippos, e outras peças de Antiguidade: mandando que as funcções do mesmo Alvará, que até agora pertenciam ao secretario da dita Real Academia, fiquem da data do presente em deante pertencendo ao Bibliothecario [156] Maior da Bibliotheca Publica; tudo na forma acima declarada.»

Em janeiro de 1844 o Bibliothecario Mór da Bibliotheca Nacional de Lisboa José Feliciano de Castilho, informava o respectivo ministro nos seguintes termos: «Para o bibliothecario mór passaram attribuições que competiam á Academia Real da Historia, mas infelizmente essa lei vigente tem sido até hoje letra morta, a tal ponto que até ignoram as suas disposições os proprios encarregados do seu cumprimento, com grave detrimento, não só d'este magnifico repositorio, que ha muitos annos se acha estacionario em aquisições archeologicas, mas tambem de todo o reino, onde o bibliothecario mór deveria sempre ter, por obrigação do seu cargo, promovido a conservação e segurança dos monumentos que não podem ou não devem transportar-se.»

Em seguido propõe o bibliothecario que se torne effectiva a responsabilidade dos governadores civis no cumprimento da lei de 20 de agosto de 1721; que esses funccionarios se correspondam regularmente com o bibliothecario, etc. [157]

Ficou porém tão morta a letra d'essa consulta como a da lei a que ella se refere.

Por decreto de 10 de novembro de 1875 é nomeada uma commissão para propôr ao governo, com a reforma do ensino das Bellas Artes e com o plano de um museu, «as providencias que julgar mais adquadas á conservação, guarda e reparação dos monumentos historicos e dos objectos archeologicos, de importancia nacional, existentes no reino.» A commissão alludida responde ao governo por meio da memoria redigida pelo marquez de Sousa Holstein, e assim se desempenha do encargo que lhe fôra confiado.

A louvavel diligencia empregada a convite do governo pela Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes, para o fim de lançar em 1880 as bases de uma inventariação systematica dos monumentos nacionaes, não foi, assim como o zeloso trabalho da commissão de 1875, seguida de resultados praticos.

Independentemente da preceituação official, teem sido modernamente do mais importante auxilio para o conhecimento dos nossos valores artisticos [158] a Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental, celebrada em Lisboa em 1882, a exposição de Coimbra, a exposição de Aveiro, a exposição de Guimarães, a recente exposição do centenario antonino, e as exposições de ourivesaria e de ceramica promovidas e effectuadas no Palacio de Cristal do Porto pela muito benemerita Sociedade de Instrucção.

De algumas das exposições alludidas ficaram documentos de alto valor. Imprimiram-se relatorios de muita importancia, e numerosos productos expostos foram reproduzidos pelo desenho e pela photographia. Da valiosa collecção photographica, para a qual principalmente contribuiram Carlos Relvas, Pardal, Rochini, Biel & Companhia, bem como dos catalogos dos museus e das exposições celebradas, se poderia extrahir desde já um esboço de inventario, que não seria difficil aperfeiçoar e prehencher, emprehendendo novas exposições e systematisando completamente as investigações e os estudos correlativos.

A commissão de 1890, a que acima me referi, propunha que, sem prejuizo das pesquisas que, [159] convém continuar, para recolher ou arrolar os valores artisticos que ainda se conservam ignorados em poder de corporações ou de particulares, a commissão incumbida do inventario geral e definitivo desse quanto antes principio aos seus trabalhos, tomando por materia as peças de que ha conhecimento, já pelo exame de que foram objecto nos museus onde existem, ou nas exposições até hoje feitas, já pelos catalogos e relatorios que d'essas exposições existem, já pela consideravel collecção de photographias que reproduzem os objectos expostos.

Emquanto á catalogação e á conservação dos objectos pertencentes a particulares ou a corporações de caracter civil ou religioso, não conviria desde já estabelecer principios absolutos. O modo de proceder dos delegados do governo em tal serviço seria indicado pelas circumstancias particulares de cada occorrencia, sendo porém altamente para desejar que os prelados do reino, conscientes dos estreitos vinculos que ligam o esplendor das artes á gloria do catholicismo, conseguissem fazer penetrar na convicção das auctoridades eclesiasticas [160] das suas circumscripções quanto é inseparavel da historia da egreja a historia da arte christã, e quanto o museu, em paizes tradicionalmente catholicos, é ainda uma fórma do culto ou um desdobramento d'elle na ordem civil, além de ser o permanente attestado da alliança da crença religiosa com a immortal aspiração da poesia no coração e no espirito da nossa raça.

Para regra definitiva do processo a que se refere o alvitre que acabo de expor é indispensavel que seja devidamente estudada e promulgada uma lei, semelhante á que existe hoje na Italia, em França, nos Paizes Escandinavos, na Russia, na Hispanha, na Grecia, na Turquia, tendo por fim definir claramente e assegurar, de combinação com a legislação canonica, com os principios da concordata e com a legislação geral da propriedade, os direitos especiaes do Estado com relação á guarda dos monumentos e á parte que elle tem na posse dos objectos d'arte, determinando assim o caracter especial da propriedade artistica.

Uma vez decretada essa lei fundamental, e assignalada a responsabilidade em que incorrem os [161] que a transgridam, deveriam formar-se as commissões regionaes, dependentes da commissão central, e incumbidas, em suas localidades, da guarda e da conservação dos monumentos e dos objectos d'arte. Estas commissões, á semelhança do que foi disposto na lei italiana de 1878, da qual se inspirou em França, para a organisação de eguaes serviços, a Direcção das Bellas Artes, seriam compostas de oito vogaes, sendo quatro da nomeação dos municipios e quatro da nomeação do governo, com um architecto inspector adjuncto, sob a presidencia do governador civil ou do administrador do concelho.

Em toda a parte, ainda nos mais abandonados recantos da provincia, ha sempre, onde existe um monumento, um homem pelo menos que o ama, que o estuda, que o comprehende. É a collaboração preciosa d'esses pobres poetas obscuros, d'esses modestos archeologos, ignorados da critica e do publico, que aos organisadores das commissões locaes compete acolher e utilisar.

O processo de inventariação de cada peça artistica constaria de duas partes. [162]

A primeira seria a reproducção photographica, ou em gesso, ou pela galvanoplastica, do objecto inventariado, com registro do respectivo cliché ou molde.

A segunda, a confecção de um simples verbete, impresso, correspondendo á photographia por meio de um numero de ordem, e satisfazendo os seguintes quesitos: 1.º Descripção summaria do objecto; 2.º Logar onde elle se encontra; 3.º Nome do individuo ou da corporação em cuja posse se acha; 4.º Antecedentes; 5.º Attribuição; 6.º Avaliação; 7.º Escala em que houver sido feita a reproducção.

Este systema, semelhante ao dos museus de Londres, de Berlim e de Vienna, é o mais simples, o mais economico, o mais pratico, o mais expedito. Com applicação ao inventario da arte hispanhola elle foi proposto, pelo delegado de Portugal, ao grande jury da ultima exposição historico-europeia em Madrid. Uma real ordem o mandou pôr em execução, tendo-o sanccionado a approvação unanime de uma commissão presidida pelo sr. Canovas del Castillo e composta de criticos [163] de uma competencia indiscutivel e de uma notoriedade europeia.

Com a collecção completa das photographias e dos verbetes a que alludo, o estado, em Portugal, sem ter da riqueza artistica da nação um inventario tão desenvolvido e tão perfeito como o que outros paizes possuem, teria no emtanto um arrolamento explicito, e achar-se-hia habilitado a ministrar-nos o mais efficaz meio de estudo.

Da collecção integral, subdividida em tantas series diversas quantos os differentes criterios de classificação que se lhe applicassem, se extrairiam collecções especiaes, em edições mais ou menos modestas, relativas a cada ramo do ensino, geral ou especial, e destinadas ás escolas de bellas artes, ás escolas industriaes, aos museus das escolas primarias e secundarias, ás officinas, aos operarios, facultando assim, ou gratuitamente ou por infimo preço, a todas as classes sociaes um pronto meio de conhecimento da historia geral da arte, da historia da arte em cada uma das suas mais especiaes applicações, da evolução das fórmas e do desenvolvimento dos stylos, na architectura, na [164] pintura, na esculptura, na marcenaria, na serralheria, na ourivesaria, na ceramica, em todos os ramos emfim do trabalho artistico e industrial.

Eliminando os numeros que relacionam os verbetes com as photographias, os alumnos das escolas d'arte, procurando para cada photographia o verbete correlativo, e satisfazendo por esse processo aos mais variados quesitos de classificação, habituar-se-hiam, por meio dos exercicios mais simplesmente pedagogicos, a discernir as épocas e os stylos, retendo todas as diversidades da fórma pela memoria da vista.

Além do que, com o material reunido para o inventario dos monumentos architectonicos e das riquezas artisticas da nação, o estado fundaria simultaneamente o mais interessante museu de reproducções.

A Commissão dos Monumentos Nacionaes não é inteiramente, pelos seus meios de acção e pelos seus fins, a commissão a que se refere a consulta de 1890. Parece-me indispensavel, antes de tudo, que esta commissão se reconstitua em bases mais amplas, e que d'ella se desdobre a commissão [165] do inventario geral da d'arte, ao qual é urgentissimo que se proceda.

Na parte em que a commissão tem de responder pela conservação dos monumentos nacionaes, é preciso, a meu ver, que ella se complete, tanto no programma dos seus trabalhos como no pessoal que tem de pôr em execução esse programma, não de um modo como até hoje officioso e facultativo, mas rigorosamente obrigatorio, sendo-lhe indispensavel para esse effeito a aggregação e a collaboração effectiva de dois architectos, a presidencia do sr. ministro, e a publicação periodica de um boletim em que regularmente se communiquem ao publico os resultados do trabalho feito.

Conseguidas as condições de consistencia technica, de auctoridade e de expediente, que no estado presente lhe fallecem e a innutilisam, cabe á commissão arrolar definitivamente, pela photographia e pela escripta, os monumentos confiados á sua guarda bem como as obras d'arte que o paiz possue; nomear as commissões locaes; definir claramente o que é conservar, o que é restaurar, [166] e o que é continuar ou concluir um monumento; redigir desenvolvidamente e em suas mais particulares minudencias (porque n'este ponto tudo está por definir e por estabelecer) os programmas especiaes a que tem de satisfazer rigorosamente todo o projecto de conservação, de restauro ou de acabamento na obra de cada edificio.

Os cuidados de conservação devem ser obrigatorios e extensivos a todos os monumentos. Para esse effeito o programma é simples, e a despesa insignificante, ainda perante os mais modestos recursos. As occasiões em que cabe restaurar são relativamente raras. E nenhum edificio, qualquer que seja a sua importancia historica ou artistica, convem concluir, a não ser nos casos em que vantajosamente elle se possa adaptar a algum dos serviços vigentes da civilisação contemporanea. Este mesmo criterio economico se deveria applicar á opportunidade das restaurações. Da inobservancia d'estes preceitos fundamentaes resultou o contrasenso de restaurar o edificio dos Jeronymos sem previamente se accordar no destino que tem de ter esse edificio, como se podesse ser indifferente, [167] no modo de reconstruir uma casa, que ella tenha de ser uma escola, um museu, um archivo, um recolhimento, um quartel, um banco ou uma habitação particular![1]


Ao governo de sua magestade, para esse fim solicitado pelos homens que com tão patriotico [168] desinteresse constituem a Commissão dos Monumentos Nacionaes, compete prefazel-a e fortifical-a com a regulamentação e auctoridade de que ella carece, ou dissolvel-a.


Se o Estado não intervem cumpre aos governados levar a effeito, por um decisivo esforço de [169] iniciativa, a obra a que se recusem os que governam.

Está-nos dado o exemplo na actividade e na abnegação de alguns cidadãos benemeritos.

O sr. bispo-conde de Coimbra funda na sua diocese o mais completo e mais interessante museu de ourivesaria sagrada que existe em Portugal, [170] e emprehende e realisa, sob a intelligente collaboração do sr. Antonio Augusto Gonçalves, a restauração da Sé Velha e a de Santa Cruz, com uma segurança de criterio, de que não ha exemplo em obra alguma do mesmo genero modernamente consumada pelas officinas officiaes.

O sr. bispo de Beja applica um egual fervor ás obras do convento da Conceição; e na mesma cidade de Beja por iniciativa da municipalidade, por concurso patriotico de alguns cidadãos, funda-se o mais copioso e o mais bem catalogado dos nossos museus archeologicos.

Em Evora o sr. Francisco Barahona custeia por si só a dispendiosa reparação do sumptuoso templo de S. Francisco, sem a qual teria já desabado ou desabaria em breve a mais bella egreja portugueza do tempo D. João II.

Na ultima visita que fiz, em setembro passado, á Sé de Braga, ahi me foi affirmado que o respectivo prelado estava elaborando o projecto da reconstituição artistica d'aquelle importante monumento.

Em Cette e em Paço de Sousa, camaras, juntas [171] de parochia, simples influencias individuaes invidam os mais louvaveis e mais instantes esforços para a conservação dos monumentos gloriosos a que n'esses logares se alliam os nomes de Egas Moniz, de Gonçalo Veques e de Estevam da Gama.

A obra tão desvelada da extincta Sociedade de Instrucção do Porto e a da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, são verdadeiros monumentos de erudição, de estudo, de trabalho pratico, de piedade patriotica.

Para a constituição integral da historia da arte e da tradição artistica portugueza, quantas contribuições dedicadas, quantos esforços individuaes, desassociados e dispersos, na obra, tão incomprehendida e tão despremiada, dos srs. Joaquim de Vasconcellos, Martins Sarmento, Antonio Augusto Gonçalves, Gabriel Pereira, Sousa Viterbo, Luciano Cordeiro, Ferreira Caldas, Ribeiro Guimarães, Alberto Sampaio, Julio de Castilho, Theophilo Braga, Leite de Vasconcellos, Pinho Leal, Albano Bellino, Teixeira de Aragão, Vilhena Barbosa, Conceição Gomes, Filippe Simões, Manoel [172] de Macedo, José Pessanha, Fonseca Benevides, Valentim, Vieira Natividade, Figueiredo da Guerra, visconde de Condeixa, Borges de Figueiredo, Marques Gomes, Rodrigo Vicente de Almeida, Zephyrino Brandão, Possydonio da Silva, Freitas Costa, Avelino Guimarães, Freire d'Oliveira; e quantos outros, tanto mais sympathicos quanto mais obscuros!

O unico inutil da phalange sou talvez eu, que em vez de uma accurada monographia, estou aqui fazendo um indice de assumptos, que só devidamente trataria se de cada uma d'estas paginas tirasse um livro. Possam ellas ao menos communicar a outros corações a sympathia, que filialmente prende o meu á terra em que nasci, e á raça de que procedo!

É pelo culto da arte, invocado n'estas paginas, que a religião da nacionalidade se exteriorisa e se exerce.

Desde que nas consciencias se extinguiu a fé, é por meio da arte que as tradicções se transmittem, que os sentimentos se coordenam, que os affectos se depuram, que as paixões se enobrecem. [173] É pela arte, que a exprime, que a poesia do christianismo sobreviverá aos seus dogmas no enternecimento, no amor, na saudade dos homens. É tambem pela arte que em nossa memoria a poesia da historia sobreleva das instituições, dos systemas, das theorias e dos homens, sobre que ella versa.

A politica, depois da desastrosa fallencia de todas as modernas theorias liberaes, cessou por toda a parte de ser um foco de attracção para as idéas ou para os sentimentos humanos. As leis continuam a fazer-se com o destino unico de serem consecutivamente e invariavelmente decretadas, infringidas e revogadas, para se substituirem por leis novas, que por seu turno se decretam, se infringem e se revogam, como succedeu ás anteriores, como succederá ás que se seguirem.

No momento presente são unicamente os poetas, os philosofos e os artistas que governam espiritualmente o mundo. D'ahi, nos paizes de cultura mental, dominando todos os phenomenos da decadencia moderna, uma effusão de sympathia, de tolerancia, de benevolencia, de perdão, que [174] caracterisa bem o nosso tempo, e de que não ha na historia outro exemplo.

Quando recebemos da Inglaterra a ultima affronta de chancellaria, a que deu motivo o tratado de Lourenço Marques, quem na minha susceptibilidade portugueza mais suavisou esse golpe foi o critico d'arte John Ruskin, proclamando solemnemente e categoricamente aos estudantes de Glascow que os estadistas inglezes (tratava-se então do sr. Disraëli e do sr. Gladstone) lhe não mereciam nem mais respeito nem mais consideração que duas velhas gaitas de folle.

Ruskin separava assim e distinguia radicalmente a Inglaterra do Foreign Office e de lord Salisbury, da Inglaterra de South Kensington, de British Museum, da National Gallery, de Ruskin Museum, de Darwin, de Spencer, de Carlos Dickens, de Turner, de Burne Jones, para a qual tenderá sempre e irrevogavelmente a terna gratidão do nosso espirito.

É unicamente pela arte, inherente á natureza humana, progressiva e eterna, que hoje em dia os homens se associam no destino e na solidariedade da especie. [175]

É pela arte que o genio de cada raça se patenteia, que a autonomia nacional de cada povo se revela na sua autonomia mental, e se affirma, não só pela sua especial comprehensão da natureza, da vida e do universo, mas pelo trabalho collectivo da communidade, na litteratura, na architectura, na musica, na pintura, na industria e no commercio.

É pelo culto da arte, e pela educação artistica que esse culto comprehende, que a producção industrial se especialisa, se valorisa pela originalidade caracteristica do producto, e transforma pela prosperidade, unicamente determinada pelo ensino, toda a economia de uma nação, como se evidenciou nos ultimos tempos em Inglaterra, na Austria, na Allemanha, por via da simples reconstituição dos museus e da multiplicação das escolas.

Finalmente,―se para cada povo a arte é a segurança da tradição, o refugio das consciencias, o mais puro reflexo da imagem benigna da patria, a fonte mais caudal de todos os progressos moraes, economicos e até politicos,―para cada [176] homem, na tortura de tantas incertesas moraes na magoa e na ruina de tantas crenças extinctas, de tantos ideaes desfeitos no melancholico decurso da nossa edade, a arte é ainda―como diz Schopenhauer―a unica flôr da vida.



Notas:

[1] O conspicuo parecer, que, a respeito das obras dos Jeronymos, foi pelo sr. Luciano Cordeiro apresentado á Commissão dos Monumentos Nacionaes, em sessão de 7 de novembro de 1895, termina, depois d'outras, pelas conclusões seguintes:

«5.ª O Templo deve ficar destinado, sómente, ás grandes celebrações religiosas do Estado, e a Galilea a jazida dos restos dos Descobridores e Navegadores portuguezes.

«6.ª Todo o resto do monumental edificio deve ser destinado a alojamento e installação do Archivo Nacional, convindo que essa installação se ache concluida até o mez de maio de 1897.»

Não concordo inteiramente com o sr. Luciano Cordeiro em que se transporte para o edificio annexo á egreja dos Jeronymos o archivo da Torre do Tombo, e tão pouco em que se remova da egreja o exercicio parochial do culto.

Por complexas razões, que não vem para aqui desenvolver, eu votaria por que, em vez do archivo da Torre do Tombo se estabelecesse o museu naval no edificio dos Jeronymos. E emquanto a egreja, além de que, em minha humilde opinião, o clero a saberia sempre guardar muito melhor do que o estado, accresce ainda que a parochia de Santa Maria de Belem é uma instituição historicamente sagrada, indissoluvelmente unida em nosso respeito á tradição do monumento. Foi o infante D. Henrique quem transformou o inhospito areal do Restello na linda freguezia de Belem, arroteando o solo, para refresco, abrigo e amparo espiritual dos navegantes, plantando arvores, dispondo hortas e pomares, abrindo fontes e construindo a primitiva ermida exactamente no mesmo logar em que se edificou a actual egreja. O pontifice Pio II confirmou por meio de uma bula a doação do infante á ordem de Christo, e instituiu em parochia a primeira egreja de Santa Maria de Belem, sem outro encargo para a ordem, para os navegantes e para o publico senão o de se rezar a cada missa, aos sabbados, um Pater e uma Ave Maria pela salvação da alma do infante D. Henrique e por a d'aquelles de quem era teudo. O rei D. Manoel, tendo edificado a sumptuosa egreja e o mosteiro dos Jeronymos, na volta da armada de Vasco da Gama, depois do descobrimento da India, colloca a estatua do infante á porta da egreja, mantem a parochia, e determina, em cumprimento dos piedosos desejos de D. Henrique, que a cada missa, ao lavar das mãos, o sacerdote se volva para a gente, e diga em alta voz. «Rogae a Deus pela alma do infante D. Henrique, primeiro fundador d'esta casa, e por a de el rei D. Manoel, que a doou á ordem de Christo.»

A data d'esta carta de doação é de 26 de dezembro de 1498.

Seria, a meu ver, uma infidelidade, uma ingratidão, e um torpe desacato remover a parochia de Santa Maria de Belem do logar em que seus gloriosos fundadores a estabeleceram, cabendo-nos pelo contrario o dever de reclamar dos poderes civis e dos poderes ecclesiasticos que o modesto voto dos fundadores se cumpra, como é de razão juridica e de probidade nacional, e que em cada missa conventual celebrada pelo parocho na egreja dos Jeronymos, o sacerdote se volte para o povo, ao lavabo, e peça um Pater e uma Ave Maria pela alma do infante D. Henrique e pela de el-rei D. Manoel.

Que se adopte porém ou se não adopte a proposta do sr. Luciano Cordeiro, o que technicamente não é de certo admissivel é que as obras dos Jeronymos se prosigam e se concluam sem resolução tomada ácerca do destino que ha de ter o edificio em que taes obras se fazem.



Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 71 ta boas ... taboas
#pág. 74 onem ... nem
#pág. 74 dimensã ... dimensão
#pág. 105 ascebispo ... arcebispo
#pág. 142 privilegido ... privilegiado

Variantes dos nomes próprios foram mantidas de acordo com o original.






End of the Project Gutenberg EBook of O culto da arte em Portugal, by 
José Duarte Ramalho Ortigão

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