Nota de editor:
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foram tomadas várias decisões quanto à
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Rita
Farinha (Nov. 2009)
OPUSCULOS
OPUSCULOS
POR
A. HERCULANO
SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE
DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID
DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS
INSCRIPÇÕES)
DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM
DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.
TOMO III
CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS
TOMO I
LISBOA
VIUVA BERTRAND & C.a―SUCCESSORES,
CARVALHO &
C.a
Chiado, 78
M DCCC LXXVI
Lisboa―Imprensa Nacional
Contem este volume diversos escriptos sobre
duas questões historicas. A primeira, que se refere
ás tradições fabulosas
ácerca da batalha de
Ourique, quasi que não tem valor algum á luz da
sciencia. Expôr semelhantes tradições
era, por
assim dizer, refutá-las, e perante a historia tal
refutação seria de sobra. A segunda, relativa
á
situação das classes servas na Hespanha desde o
VIII até o XII seculo, versa sobre a legitimidade
da solução que adoptei n'um dos mais difficeis
problemas que se me offereceram ao escrever o
terceiro volume da Historia de Portugal na epocha
decorrida desde a fundação da monarchia
até o fim do reinado de Affonso III. As phases
da lenta transformação do escravo das sociedades
[VI]
antigas no obreiro, cidadão livre das sociedades
modernas, obscuras ainda em parte na
historia da civilisação e do progresso humano
entre as nações d'além dos Pireneus,
muito mais
o são áquem delles. As divergencias, e
divergencias
profundas, entre os que se dedicam a estudar
o assumpto nascem dessa obscuridade, e é
dos debates que elle pode suscitar que ha de surgir
a final a luz.
Como tantas vezes succede, não foi a questão
grave e difficil que alevantou arruido: foi a insignificante
que despertou as attenções e que produziu
viva agitação na imprensa e fóra da
imprensa,
dividindo em dous campos o publico que lê.
É que na primeira interessava apenas a sciencia,
e a segunda contrariava os intuitos de uma parcialidade
e as preoccupações dos espiritos vulgares,
que constituem o grande numero. Se a religião
era extranha ao assumpto, ou antes ganhava
na suppressão de uma pia fraude, perdia com
isso a maioria do sacerdocio, atarefada, hoje mais
que nunca, em tecer a rede de suppostos milagres
[VII]
em que parece querer amortalhar o catholicismo.
Escrevendo um livro serio, eu affastara
brandamente para o limbo das fabulas aquellas
ficções ridiculas, porque era forçoso
fazê-lo.
Nem tivera a intenção do escandalo, nem a cousa
o valia. A maioria, porêm, do clero não o entendeu
assim.
Na carta ao patriarcha de Lisboa, com a qual
este volume começa, está a resumida noticia das
aggressões de que fui alvo e que por algum tempo
supportei com resignação ou
indifferença, resignação
ou indifferença em que provavelmente,
hoje, que sei melhor o que taes aggressões valem,
continuaria a permanecer. Estava, porêm,
então naquella epocha da vida em que a paciencia
christan não é a virtude mais vulgar do
homem. O leitor ajuizará se os prelados portugueses
foram ou não imprudentes em tolerarem
ou talvez favorecerem aquellas ineptas e brutaes
manifestações da ignorancia e do interesse
ferido.
Pelo que toca ao opusculo sobre o estado das
classes servas da Peninsula no decurso dos seculos
[VIII]
VIII a XII, destinado a combater as opiniões
do erudito Muñoz y Romero, é bem de crer que
ao meu illustre adversario não faltassem argumentos
para contrapôr ás objecções
que lhe fiz;
mas affastaram-no do debate outros estudos, até
que veio salteá-lo a morte, quando a Hespanha
tinha a esperar os melhores fructos da alta intelligencia
daquelle incansavel cultor da historia.
Buscando ambos a verdade, a discussão encetada
conduzir-nos-hia, provavelmente, a modificarmos,
tanto um como outro, as nossas ideas, talvez
absolutas em demasia, e a estabelecermos
uma doutrina solida sobre tão espinhoso assumpto.
Entretanto, ainda hoje me persuado de que,
para nos aproximar-mos, seria elle que teria de
andar mais caminho. Julgá-lo-hão os que, depois
de lerem attentamente o meu modesto trabalho,
examinarem com igual attenção o escripto de
Muñoz y Romero e a apreciação desse
escripto
por Mr. de Rozière.
Janeiro de 1876
A BATALHA DE OURIQUE
I
EU E O CLERO
AO PATRIARCHA DE LISBOA
(Junho, 1850)
É debaixo da impressão de vivo desgosto, e
cedendo emfim ao impulso de justa indignação,
que dirijo a vossa eminencia esta carta. A desculpa
que merece um animo turbado por offensas
immerecidas, e o favor que sempre encontrei
em vossa eminencia me fazem esperar que esse
favor não padecerá quebra, se alguma phrase
mais forte do que eu desejara me fugir da penna
ao escrever este papel; papel que, solemnemente
o declaro desde já, não tem por objecto,
como alguem poderia suppôr, pedir desaggravo
das offensas a que alludo. De natureza são ellas,
que nem preciso nem quero que outrem as puna.
Sei e posso eu fazê-lo, se cumprir, de um modo
que sirva de escarmento á ignorancia perversa e
[4]
á hypocrisia insensata. O meu intuito é apenas
rogar directamente a vossa eminencia, e indirectamente
aos demais prelados de Portugal a
cujas mãos chegar esta carta por
intervenção da
imprensa, que, obstando a novas provocações da
parte do clero, me poupem a dar uma dura licção
a individuos, que, desconhecendo os deveres do
sacerdocio e incapazes de sentimentos de
moderação,
tentam excitar as paixões odientas de um
fanatismo que já nem, talvez, o povo comprehende
contra um homem que nunca lhes fez mal, e
que nem sequer se lembra delles, porque tem
cousas um pouco mais sérias em que cogitar.
Ha quatro annos que publiquei o primeiro volume
de uma Historia de Portugal, que tem feito
certa impressão no paiz, e ainda fóra delle. Na
benevolencia com que esse livro foi recebido por
naturaes e extranhos nada ha provavelmente que
deva lisonjear o amor-proprio litterario do auctor,
mas ha uma prova de que o publico reconheceu
nelle certa independencia de espirito e uma estricta
imparcialidade, para a qual o longo e severo
exame dos factos o habilitava. Como eu o previra
na advertencia posta á frente daquelle primeiro
volume, a sinceridade da narrativa, estribada
em monumentos indisputaveis, destruindo
[5]
muitas dessas tradições, mais ou menos
improvaveis,
que deturpam a historia de todos os povos,
suscitou contradictores. Era cousa natural.
As manifestações de colera, as injurias vertidas
contra mim na imprensa, não podiam causar-me
nem estranheza nem abalo. Estava resolvido a
guardar silencio perante ellas e a proseguir na
senda que abrira, sem me distrahir com luctas
estereis. A verdade fica, e as preoccupações
passam.
Ao mesmo tempo a minha resolução inabalavel
era, e é, desprezar todos os respeitos humanos
que se contraponham á voz da propria consciencia.
Todavia o não nos affastarmos dos seus
dictames é empenho que não sae de
graça neste
mundo de paixões pequenas e más; e bem louca
esperança seria a minha, se a tivesse de evitar
os effeitos de uma lei universal. Era por isso que
estava resolvido a esgotar resignadamente o meu
calix.
Pouco depois da publicação do primeiro volume
da Historia de Portugal, n'um periodico litterario
da universidade de Dublin um critico inglês
punha em duvida se eu, que expurgara de
lendas fradescas a historia do berço da monarchia,
teria esforço bastante para avaliar como cumpria
as longas e violentas dissensões dos reis da primeira
[6]
dynastia com os bispos e com a curia romana.
Quando li isto, sorri-me. Nessa mesma conjunctura
publicava-se em Lisboa o meu segundo
volume, onde se continha a narrativa de boa parte
daquellas discordias. Ahi me parece ter dado
documento de que os receios manifestados na
imprensa inglesa não eram dos mais bem fundados.
Mas esse volume, accendendo novas coleras,
despertou em alguem a idéa de me refutar de
modo inaudito. Do pulpito de uma das igrejas de
Braga, da antiga metropole, onde ainda devem
estar bem vivas as memorias do veneravel Caetano
Brandão, do illustre prelado que pretendia
reformar o breviario e missal bracharenses por
causa
das suas intoleraveis patranhas e
falsidades
(phrase do grande arcebispo), o meu nome
foi lançado ás multidões ladeado dos
epithetos
de hereje, de impio e de outros semelhantes.
Um egresso fanatico e ignorante (como o são centenares
de sacerdotes no meio do nosso clero,
que não recebe ha muitos annos nem
educação
moral nem educação litteraria) cubriu-me de
injurias
diante de um concurso numeroso, segundo
me informaram, porque no meu livro usara do
direito de historiador, qualificando devidamente
[7]
essas intelligencias vastas e energicas, mas corruptas,
violentas e cubiçosas que cingiram a thiara
papal, e que se chamaram Gregorio, Innocencio
ou Honorio. A principio acreditei que isto não
passara de um impulso de fanatismo individual;
mas em breve me desenganei de que o facto pertencia
a um systema organisado de aggressão. A
imprensa politica noticiou procedimentos analogos
para comigo em outros lugares do arcebispado.
Se o objecto das invectivas era o mesmo,
se igual a violencia das expressões, ignoro-o: mas
o que me pareceu evidente foi que havia, como
disse, em tão insolito proceder um systema uniforme
e combinado.
Calei-me. A minha equanimidade foi bastante
para tolerar este ataque brutal á liberdade do
pensamento; foi tamanha como a do respectivo
prelado, que guardou silencio, e que devera ter
advertido o seu clero de que, não havendo eu
offendido doutrina alguma da igreja, e tendo-me
limitado a julgar os homens e os factos da epocha
sobre que escrevia, por mais erradas que fossem
as minhas opiniões, ellas não podiam ser
qualificadas
publicamente de hereticas, concitando-se
assim contra mim a credulidade popular. Um sermão
não é o meio de refutar erros litterarios, e
[8]
muito menos o é qualificar taes erros como offensas
da fé para os transformar em crimes religiosos.
Em semelhante terreno a lucta sería impossivel,
porque delle brota o risco pessoal, ou
pelo menos a perda da reputação moral para um
dos contendores, ou melhor direi para a victima
indefensa, amarrada ao poste desse novo genero
de patibulo. Os ignorantes olhariam com horror
para o Luthero ou Calvino que surge na terra
da patria, e esse odio publico é uma verdadeira
coacção á liberdade legitima do
escriptor: legitima,
digo, porque, apesar de tantas declamações
e queixas, é evidente que no meu livro não ha
uma unica palavra que offenda a orthodoxia da
igreja. Se eu tivesse proferido alguma heresia,
os prelados portugueses, e em particular vossa
eminencia como meu pastor, não seriam capazes
de faltar aos seus mais estrictos deveres, deixando
de me advertir do erro com caridade evangelica,
e de me condemnar se eu insistisse n'elle.
Era então que aos bispos, e não a qualquer desses
cirzidores de farrapos de sermões velhos, desses
inimigos figadaes da lingua, da grammatica e do
senso commum, denominados, por antiphrase,
prégadores ou oradores, que era licito, que cumpria
lançar sobre mim o anathema.
[9]
A guerra desleal que uma parte do clero (digo
uma parte, porque no seu gremio ha muitos homens
leaes e verdadeiramente illustrados) me
declarara no norte do reino não tardou a apparecer
no meio-dia, no recincto da propria capital.
O primeiro commettimento foi tentado n'uma solemnidade
notavel, e n'um dos templos mais frequentados
de Lisboa. Nesse acto o absurdo da
aggressão nasceu antes da impropriedade do logar,
do que das formulas empregadas pelo aggressor,
que se absteve de injurias grosseiras.
Lisboa não é Braga, e o negocio precisava aqui
de maior circumspecção. Entretanto a tentativa
desagradou geralmente, e eu pensei que emfim
me deixariam em paz.
Não succedeu assim. Ultimamente na minha
propria parochia, e dous dias depois n'outra igreja
da capital, fui de novo arrastado perante as
turbas na torrente da eloquencia clerical. Se no
primeiro caso houve a intenção de se me
administrar
face a face uma correcção fraterna, o calculo
falhou. Creio que vossa eminencia me faz a
justiça de acreditar que não me deleito
excessivamente
em ir ouvir máus sermões de ha sessenta
annos, ou traducções detestaveis de fragmentos
de sermonarios franceses, declamadas, ou antes
[10]
carpidas, em tom ainda mais detestavel. O annuncio
de um sermão é para mim por via de regra a
espada percuciente do anjo do paraiso flamejando
á porta do templo. Salvo em rarissimos casos,
não haveria forças que podessem arrastar-me a
assistir aos partos da oratoria, que, por irrisão
sacrilega, se denomina sagrada. A resistencia dos
meus nervos em tal conjunctura seria mais forte
do que a propria vontade.
Em Braga, e creio que nos outros logares daquella
diocese, a censura tinha sido fulminada
contra a liberdade com que falei dos chefes da
igreja nos seculos médios, da curia romana, e
talvez dos bispos portugueses de então. Ao menos
lá a invectiva tinha certa originalidade. No
patriarchado, porém, as accusações,
postoque
menos brutaes, tiveram o defeito de ser um verdadeiro
plagio.
Narrando no primeiro volume da Historia de
Portugal o recontro de julho de 1139 em Ourique,
reduzido ás dimensões que suppús e
supponho
exactas, ommitti a fabula do apparecimento
de Christo, como cousa indigna da gravidade da
historia, e, sob certo aspecto, demasiado irreverente
para com o sublime Fundador do Christianismo.
Apenas n'uma nota alludi a essa tradição
[11]
absurda, affirmando que se estribava n'um documento
falso, o celebre juramento attribuido a Affonso
I, juramento que ainda existe no supposto
original. Eis o grande escandalo para os prégadores
de Lisboa. Confesso que ahi tractei esse
embuste com o desprezo que elle merece, porque,
na verdade, conhecendo eu muitos diplomas
forjados com maior ou menor destreza, este é,
sem contradicção, o mais inhabilmente executado.
As poucas palavras que dediquei a semelhante
ninharia suscitaram o zelo de alguns individuos,
persuadidos de que eu tinha despedaçado, com
as tres ou quatro linhas que a tal proposito escrevi,
o palladio da independencia nacional, que
bem fraca independencia sería se estivesse como
adscripta á crença ou á
descrença n'um conto de
velhas. Houve até um pobre homem, o qual, no
meio das discordias civis que assolaram o reino
pouco depois da publicação do meu livro, dirigiu
aos povos do Alemtéjo uma proclamação,
em que
affirmava que, ligado por um pacto infernal com
os membros do governo então derribado, eu ia
demolindo as glorias portuguesas para vendermos
de commum accordo a independencia da patria.
Não me recordo agora do preço, nem de
[12]
quem foi o comprador, mas a venda parece que
era indubitavel.
Entretanto publicavam-se artigos de jornaes e
folhetos avulsos contra mim. Nada mais legitimo;
nada mais liberal. Se os corsarios da palavra de
Deus, que esbombardeam o meu pobre livro de
um logar aonde eu não posso subir, do alto do
pulpito, convertido em chapiteu de proa de junco
malaio, houvessem seguido este rumo, seria eu
tão ridiculo como o instrumento da
apparição, se
disso me queixasse a vossa eminencia ou aos outros
prelados do reino. A imprensa é uma estacada
onde nos julgadores do combate, e sobretudo
de um combate litterario ou scientifico, ha já um
grau de illustração, que até certo
ponto affiança
uma decisão justa. Reptado ahi, eu podia erguer
a luva, ou deixar, quando assim o entendesse, que
o livro delatado servisse por si mesmo de resposta
aos accusadores. Em um e outro caso procederia
livremente, e não ficaria, como no campo em
que sou aggredido, collocado debaixo de uma
coacção moral. Ahi os reverendos
prégadores,
que tem tido a condescendencia de tractar da minha
humilde pessoa, até poderiam appellidar-me,
se quizessem, hereje, impio, atheu, demonio incarnado:
eu respondia-lhes que elles estavam bem
[13]
livres de ser nenhuma dessas cousas, e ficavamos
perfeitamente pagos.
Dous dos folhetos avulsos dirigidos contra a
Historia de Portugal, que me chegaram ás mãos,
tractavam justamente desse gravissimo negocio
da apparição, que em parte me tem feito victima,
por me servir de uma phrase do padre Isla, da
dialectica eloquencia dos selvagens da
Europa.
Ambos comedidos e corteses, ao mesmo tempo
que produziam no meu animo um sentimento de
tristeza, inhibiam-me de responder-lhes, ainda
quando não estivesse, como ha pouco disse a vossa
eminencia, no firme proposito de evitar luctas
estereis. A tristeza que senti á leitura daquelles
folhetos nascia de achar nelles a prova da decadencia
a que tinham chegado neste paiz os estudos
historicos. N'um livro que, com bons ou
maus fundamentos, mudava completamente o aspecto
até aqui attribuido ao complexo dos successos
do nosso paiz, na infancia da sociedade
portuguesa, havia por certo mais de uma
inexacção,
mais de um defeito importante, como obra
que era de homem―de homem desajudado n'uma
empreza de tal ordem, e entregue unicamente aos
proprios recursos e forças. Ácerca,
porém, das
materias positivas, historicas, susceptiveis de serio
[14]
exame, apenas appareceu, que me conste, um
artigo no periodico litterario a
Revista
Universal,
e outro no
Observador de Coimbra. As
duas publicações
avulsas que me vieram ás mãos, ambas,
como disse, curavam exclusivamente de me demonstrar
o milagre da apparição, milagre do qual
(atrevo-me quasi a affirmá-lo) ainda que os meus
adversarios o tivessem sustentado com boas razões
historicas, me parece que eu, vossa
eminencia,
toda a gente, que não seja algum leigo capucho,
haviamos de continuar a rir, cada qual segundo
o papel que acceitou nesta grande comedia
humana―uns em publico, outros em particular.
Agora pelo que respeita aos motivos que, além
da razão geral já dada, me inhibiam de responder
aos dous escriptores, permitta-me vossa eminencia
que eu dilate um pouco o discurso a este
proposito. Não é a digressão alheia ao
assumpto.
O meu silencio ante contendores francos e leaes,
que me buscavam com armas corteses no campo
da imprensa, interpretou-o a ignorancia como um
signal de fraqueza. Não contribuiria isto para despertar
a audacia dos meus anathematisadores?
Não seria eu proprio o culpado da minha affronta?
Desculpe vossa eminencia uma comparação,
[15]
acaso ambiciosa em demasia. Tem o merito de
se referir a uma fabula, e nós achamo-nos n'uma
questão de fabulas. Quando o leão jazia
moribundo,
foram as feras valentes e generosas que
arrostaram o perigo. O onagro só veio ferir-lhe a
fronte pendida, depois que, averiguada a situação
do rei das florestas, se persuadiu de que podia
injuriá-lo a seu salvo.
Se fui, pois, o causador do mal, devo justificar
o silencio que o gerou. É a esse alvo que se dirige
a digressão de que falo.
Um dos folhetos era escripto por um ancião respeitavel,
não só pelas suas cans, mas tambem pelos
seus padecimentos physicos, consideração
fortissima
para mim, que entendo ser sempre digna de
respeito a desgraça; era producção de
um homem
chegado áquelle quartel da vida, em que o espirito
parece eivado da ruina do corpo, que vem
annunciando a proximidade do tumulo. Com a
mão na consciencia eu protesto a vossa eminencia
que ainda hoje sentiria remorsos, se, na força
da vida e do pouco talento que Deus repartiu
comigo, não tivera sabido domar os impulsos de
um ridiculo amor-proprio; se houvera ido derramar
a afflicção sobre o leito de dor do afflicto,
para saborear o triste e vergonhoso prazer de ouvir
[16]
os apupos do publico a um pobre velho, que
queria, que tinha direito de morrer em paz abraçado
com as tradições da sua infancia; que precisava
de protestar contra um homem, o qual, embora
involuntariamente, ia prostituir-lhe no coração
idéas e affectos, amigos constantes da sua larga
existencia. Se Deus podesse fazer milagres absurdos
e inuteis, como o da apparição, eu preferiria
ver-me convertido em cirzidor e carpidor de farrapos
pareneticos a ter de accusar-me de uma
acção, que não sei qual seria mais, se
covarde,
se despiedada.
Quanto ao outro folheto, composto por um homem
de talento, instruido, e no vigor da idade,
não militavam as mesmas razões de conveniencia
moral; militavam, porém, outras assaz fortes, e
de natureza analoga. Affastadas as considerações
poeticas, alheias a materias historicas, os argumentos
colligidos naquella publicação a favor do
milagre de Ourique dividiam-se em duas categorias,
ou antes eram apenas dous argumentos. Um
consistia no consenso de certo numero de escriptores,
todos de epochas mais recentes que o
meado do seculo XV. A futilidade desta
argumentação
é evidente. Os
classicos
são respeitaveis
como mestres de lingua; mas como testemunhas
[17]
de um facto, que se diz acontecido pelo menos
trezentos annos antes que elles escrevessem, de
nada servem. A qualidade de classicos não exclue
a de credulos, e nem sequer a de inventores de patranhas.
A chronica de Clarimundo, a da Tavola-redonda,
a de Palmeirim d'Inglaterra são escriptas
por tres classicos como Barros, Jorge Ferreira, e
Francisco de Moraes, e eu supponho, não sei se me
engano, que esses livros não encerram senão
mentiras.
Se o auctor queria provar-me a perpetuidade
da tradição de Ourique, não devia
esquecer o
criterium
estabelecido por Vicente de Lerins, e com
elle pelo senso commum, para distinguirmos das
falsas as tradições verdadeiras:
Quod semper,
quod ubique, quod ab omnibus creditum est. Era-lhe
necessario mostrar-me essa tradição
através
de todos os seculos, e sobretudo dos seculos
onde ella desapparece, os tres immediatos ao
supposto facto. Confesso a vossa eminencia um
peccado, e alliviarei delle a consciencia, porque
o confesso perante o meu pastor: a minha intelligencia
foi demasiado orgulhosa para descer a refutar
semelhantes objecções. Que me importava,
de feito, que a fabula tivesse este ou aquelle motivo,
nascesse no seculo XVI ou no XV? Tomara eu
tempo e monumentos para averiguar os successos
[18]
verdadeiros e as suas causas, circumstancias e
effeitos. Genealogico d'embustes é mistér para o
qual me falta inteiramente a vocação.
A segunda categoria de argumentos, ou antes,
o segundo argumento em favor do milagre era
a citação de dous textos precisos, de duas
auctoridades
contemporaneas, que relatavam o successo.
Uma era nada menos que a de S. Bernardo;
outra a de uma copia coeva do juramento, copia
conservada em Roma, e transcripta no volume 51
da
Symmitica Lusitana, manuscripto
da Bibliotheca
Real, de cuja existencia é abonador o illustre
Cenaculo. Este argumento estava longe da
obvia fraqueza de est'outro. A tradição
ía assim
prender-se do seculo XV ao XII, embora obscurecida
no periodo intermedio. Alguem imaginará,
portanto, que para não responder a
objecções
deste valor apparente só me conteve o proposito
de evitar disputas escusadas. Não foi assim. Contiveram-me
considerações de maior monta. Se o
eram ou não, vossa eminencia o julgará.
Antes de tudo, observará vossa eminencia que
eu digo
disputas escusadas. Digo-o,
porque esses
testemunhos contemporaneos não bastam, como
vossa eminencia sabe, para acreditarmos nos milagres
da idade média. Á excessiva devassidão
e
[19]
bruteza aquelles tempos de trevas uniam uma
crença fervorosa, confundida com
superstição extrema.
A idéa religiosa formulava-se em tudo,
na guerra, na vida civil, nos affectos do
coração,
nas artes, na litteratura, na sciencia; e quando uma
idéa domina assim a sociedade, converte-se em
prisma através do qual as cousas se illuminam
com as côres que elle lhes transmitte. O maravilhoso
introduzia-se em todos os factos em que
as imaginações, possuidas de uma especie de febre
moral, achavam pretextos mais ou menos
plausiveis para lh'o attribuir. Accrescia a tendencia
innata dos homens para indagar as causas dos
diversos phenomenos. Comprimida n'um ambiente
de ignorancia e rudeza (ambiente em que vive
boa parte do nosso clero), essa tendencia dilatava-se,
respirava pelo unico resfolgadouro possivel,
pela facil theoria do maravilhoso, do sobreintelligivel.
Nas chronicas d'então quasi que o miraculoso
é o regular, e o natural a excepção.
Dos
chronistas dos seculos barbaros o mais despreoccupado
é o benedictino inglês Matheus Paris. Todavia
centenares, que não dezenas, de milagres
absurdos são gravemente narrados na
Historia
Major. Permitte-me vossa eminencia que lhe recorde
um exemplo do modo de vêr daquellas eras?
[20]
Sem sairmos do reino, nem do seculo XII, e até
limitando-nos á vida do personagem a quem se
attribue o singular favor de Ourique, temos á mão
um exercito de milagres, postoque em sentido
inverso ao da apparição. Alludo aos desgostos de
S. Rosendo com o nosso primeiro rei. A vida do
sancto,
escripta no seculo XII, foi,
como vossa
eminencia sabe, publicada por Florez, e uma copia,
talvez coeva, ou quando muito do seculo XIII,
existe ainda entre os manuscriptos de Alcobaça
(codice 133). Ahi lemos que o rei português fora
obrigado a levantar o sitio do castello Sandino,
nas margens do Arnoia, por uma tempestade de
raios que o sancto desfechou contra elle. Se acreditarmos
o pio agiographo, o seu implacavel heroe
nunca perdoou a Affonso I, apparecendo por
tres vezes a diversas pessoas para protestar vingança
contra o principe, que nas suas correrias na
Galliza não respeitara as terras do mosteiro de Cellanova.
Nesta lucta atroz entre o grande da terra
e o grande do ceu, S. Rosendo não poupava maravilhas.
Debalde; porque, como observa o monge
historiador, o coração do rei, que elle compara
caritativamente a Simão Mago, estava obdurado,
qual o de Pharaó,
para maior cumulo da sua
condemnação. A malevolencia
milagreira do sancto
[21]
não abandonou Affonso Henriques senão no
tumulo. Os contratempos dos ultimos annos do
reinado do fundador da monarchia, incluindo o
desbarato de Badajoz, a fractura da perna, o aleijão
com que ficou até a morte, tudo foi obra de
S. Rosendo, e havia mesmo quem affirmasse ter
visto o sancto revestido do corpo humano e muito
atarefado, na occasião em que o rei de Portugal
caíu prisioneiro do genro. São pelo menos
vinte milagres attestados por um escriptor desses
tempos. Penso que não me accusarão de avaro ou
de desagradecido os que querem enriquecer á
força o thesouro das minhas crenças com a
apparição
de Ourique. Vinte por um. Indisputavelmente
eu sou muito mais rico do que elles em
provisão de milagres.
De todas essas maravilhas, porém, apesar de
subministrarem á credulidade melhores fundamentos
que a de Ourique, faço eu tanto caso como
desta ultima, pelas considerações que indiquei,
aliàs bem escusadas para a comprehensão e
litteratura
de vossa eminencia. Mas nem foi unicamente
o preceito que a mim proprio impusera de
não malbaratar o tempo em questões desta ordem,
nem essas considerações, que obstaram
a que eu respondesse a um escripto, em
que o
[22]
erro, e talvez o despeito, vinham envoltos em
fórmas tão corteses, que tocavam a raia de
lisonjeiras,
e em que a argumentação tomava emfim
o aspecto de uma cousa séria. Não, eminentissimo
senhor! A refutação sería na verdade
facil, decisiva, fulminante; mas ella lançaria uma
torpe mancha sobre nomes illustres e caros á igreja
portuguesa. Repugnava-me sobretudo esta
idéa. Por maiores precauções de que eu
me rodeasse,
a logica implacavel do publico tiraria as
legitimas illações das minhas palavras, e
convertê-las-hia
em desdouro commum de uma classe
que nenhum mal me havia feito. Se hoje a necessidade
de repellir a insolencia covarde, como a
insolencia o é sempre, me obriga a expôr actos
vergonhosos e inqualificaveis, a culpa não m'a
lancem. Dous annos de paciencia provam que o
faço constrangido por aggressões demasiado
graves,
não por si, nem por seus auctores, cousas
profundamente insignificantes, mas pelo logar
onde se commettem, por serem feitas com a
intenção
de excitar contra mim animadversões immerecidas,
por se tentar, emfim, converter atraiçoadamente
uma questão, que nem chega a ser
historica, em questão religiosa. A gloria do escandalo
deixo-a inteira aos que o provocaram.
[23]
Se vou bater sobre campas, que cobrem cinzas
envoltas em vestes sacerdotaes; se perturbo a
paz dos mortos para lhes
bradar―«
Falsarios!»―esta
mão que se estende para indicar os criminosos,
esta voz que se ergue para os condemnar,
são minhas, mas protesto a vossa eminencia, que
quem as suscitou não foi o meu
coração, nem a
minha vontade. Ha no soffrimento um ponto que
sem deshonra não é licito ultrapassar. Consta-me
que o mais recente dos meus reverendos accusadores
clamara no excesso do seu
sincero
zelo
pela historieta da apparição, que
melhor fora que
eu não houvera falado em tal. Melhor ainda
do
que isso me parece teria sido que elle não houvesse
feito trasbordar o calix, já demasiado
cheio, de uma justa indignação.
A affirmativa de que no volume 51 da
Symmitica
Lusitana se encontra trasladada uma còpia
do instrumento da apparição, coeva de Affonso I,
É MENTIRA.
O texto de S. Bernardo, relativo á mesma
apparição,
que se encontra inserido no Breviario,
no officio das Chagas, É FALSO.
Se algum dos reverendos cirzidores sabe latim
(é licito duvidar disso com a igreja, que manifestou
a sua hesitação a este respeito mandando
[24]
accentuar as palavras dos livros rituaes com temor
das syllabadas) que venha á Bibliotheca Real, e
ahi, no volume 51 da Symmitica a paginas 128, lerá
ou soletrará as seguintes palavras, escriptas
na lingua latina, por baixo do traslado do instrumento
da apparição, nota escripta pela mesma
letra do copista==
Brandão, Monarchia
Lusitana,
Parte 3.ª pagina 127. Extrahido de um codice
que o auctor viu em Lisboa.==Eis em que consiste
o traslado da copia
coeva. Cenaculo,
citando
o documento pelo indice, quando podia citá-lo
pelo logar competente da collecção, o que lhe
era igualmente facil, commetteu uma daquellas
levezas que não raro occorrem nos seus escriptos,
ou practicou uma
pia fraude? O bello
e
nobre caracter do bispo de Béja me faria adoptar
sem hesitação o primeiro supposto, se o empenho
em que elle entrara de provar a farça de
Ourique, cuja vaidade o seu elevado espirito necessariamente
havia de sentir, não podesse perturbá-lo
a ponto de practicar um acto indigno
de quem, como elle, era um homem de letras,
um prelado virtuoso, e a todos os respeitos um
varão singular.
A historia da passagem falsamente attribuida
a S. Bernardo, é, porém, materia mais grave,
porque
[25]
nessa vergonhosa historia se acha compromettida
a honra e a dignidade moral e litteraria
do alto clero português no meiado do seculo passado.
Não direi da curia romana, porque nesse
ponto não ha já para ella compromettimento
possivel:
vossa eminencia conhece tão bem e melhor
do que eu os seus annaes. A narrativa desse escandalo
é em resumo a seguinte:
O patriarcha D. Thomás d'Almeida requereu a
Bento XIV que concedesse ao clero de Portugal
o officio proprio e missa das cinco Chagas, que,
por decreto de 4 de julho de 1733, fora concedido
a certas freiras de Florença. Accrescentava-se
na supplica dirigida ao pontifice que na sexta
lição
se houvessem de addicionar as seguintes
palavras==
Quas lusitanum imperium
etc.==que
constituem o texto allegado contra mim. Consistindo,
porém, a sexta lição daquelle officio
n'uma passagem de S. Bernardo, uma vez que
não houvesse a devida distincção entre
essa passagem
e o novo additamento, este se converteria
n'um testemunho importante a favor da lenda da
apparição, de que provavelmente os homens
instruidos
começavam a rir-se depois do impulso
que aos estudos historicos dera o governo no reinado
de D. João V.
[26]
Accedeu Bento XIV á supplica do prelado português.
O decreto de concessão, o officio e a missa
expediram-se para Portugal impressos na typographia
da camara apostolica. Segundo parece,
a impressão foi feita no estio, e o compositor
romano, no acto de compor a fatal sexta licção,
estava perturbado pela febre da
malaria. O additamento
ficou enxertado nas phrases solemnes
do grande abbade de Claraval com tão subtil sutura,
que faria honra a um operador de rhinoplastica.
Atacado tambem pelos miasmas putridos
das lagoas pontinas o revedor da camara
apostolica
esqueceu-se de emendar o
erro. Aquelle
innocente engano partiu, emfim, para
Portugal.
Aqui, n'uma epocha em que ainda os estudos
do clero não tinham chegado á decadencia em
que hoje os vemos e de certo vossa eminencia
lamenta como eu, e em que as cadeiras episcopaes
do reino estavam occupadas por muitos
homens notaveis por sciencia e virtudes, o antecessor
de vossa eminencia que então presidia á
metropole de Lisboa
esqueceu-se de
que essa
passagem perfilhada a S. Bernardo tinha um auctor
bem moderno, e entre os bispos, entre os
theologos do clero secular não houve um só que
advertisse no falso testemunho que
na sexta licção
[27]
do novo officio se alevantava ao fundador
dos cistercienses. Os seus filhos, os seus proprios
monges, calaram-se. Os prelos têm gemido
durante um seculo com as reimpressões do breviario,
e neste longo periodo nem uma voz, que
eu saiba, se ergueu para dizer que em nenhuma
edição, em nenhuma codice manuscripto das
obras de S. Bernardo se encontra a supposta
passagem.
«E que admiração?―respondeu-me um
malicioso,
a quem manifestava em certa occasião o
meu espanto á vista deste phenomeno singular.―O
clero não lê os padres da igreja: deixou essa
tarefa aos seculares. E para que os havia de
ler, se lhes é de sobra o Larraga?»
Dou a minha palavra a vossa eminencia de que
repelli com todas as minhas forças este rude epigramma.
Eu sei que ha, conheço, até, sacerdotes
cuja instrucção é tão
solida como vasta. O tracto
de vossa eminencia, durante a epocha em que
fomos collegas no parlamento, me fez conhecer
um dos mais distinctos entre elles. Infelizmente,
esse epigramma, injusto na sua fórma absoluta,
não deixa de ser merecido em muitos, talvez no
maior numero de casos.
Sabe vossa eminencia quem protestou contra
[28]
essa falsificação audaz, contra essa fingida
ignorancia,
contra esse torpor inexplicavel ou explicavel
de mais? Foi aquella ordem ácerca da qual
então se repetiam, e hoje se repetem diariamente
graves accusações de immoralidade. Foram os
jesuitas, que n'uma edição do novo officio, feita
para o proprio uso, separaram com um asterisco
o texto de S. Bernardo da invenção moderna.
Acaso este procedimento deu origem a um livro,
os Novos Testemunhos, do celebre e
implacavel
inimigo dos jesuitas, o padre Pereira, livro que
se o não tomarmos como uma longa ironia, deshonra
a memoria de uma das mais fortes intelligencias
que Portugal tem gerado.
Agora fica vossa eminencia habilitado para avaliar
se eu procedi com circumspecção guardando
silencio ante as refutações que se me dirigiam
pela
imprensa; se não houve no meu proceder uma
dessas abnegações que não
são vulgares, em
desprezar um triumpho tão facil como decisivo,
preferindo ficar como vencido e humilhado aos
olhos dos menos instruidos a salvar o meu nome
de uma nodoa litteraria e até certo ponto moral.
Se, emfim, é justo, se é decente, que membros
do clero aggridam de um modo illicito, e profanando
a sanctidade dos templos e a sanctidade
[29]
do seu ministerio, um homem que sacrificou o
proprio orgulho para não rasgar o véu de uma
fraude dessas, que os hypocritas qualificam de
pias, e que eu qualificarei de immoraes.
Como Sem e Japhet queria encubrir a falta
de pudor de Noé: o sacerdocio obrigou-me emfim
a ser como Cham. Fizeram-me voltar a face:
contrangeram-me a descerrar os olhos. Practicaram
uma boa obra: devem della gloriar-se.
E quem é o homem que os prégadores de Portugal
offerecem á execração publica, porque
não
quiz vender a sua alma ao demonio da mentira;
porque não quiz deshonrar-se e deshonrar com
embustes o seu livro? Que vossa eminencia me
consinta fazer aqui esta dolorosa pergunta á minha
consciencia; interrogar severamente o meu
passado. Tem o clero a combater em mim um inveterado
e perigoso inimigo? É o seu tão insolito
proceder um impeto de vingança, que o excita
a repellir um perseguidor implacavel? Ha quinze
annos que trabalho na imprensa, e senão por merito
proprio, ao menos por circumstancias, que
não importa aqui recordar, muitas das paginas
avulsas que tenho deixado após mim na carreira
da vida se derramaram por todos os angulos
do paiz, penetraram aonde livros e jornaes de
[30]
mais alto pensar nunca haviam chegado, e talvez
nunca depois chegaram. Haverá nessas pobres
paginas alguma cousa que possa incitar a colera
sacerdotal? Como procedi eu sempre ácerca da
igreja e do clero? As idéas do seculo, recalcadas
por uma compressão violenta, a que, força
é confessá-lo,
a maioria do sacerdocio se havia associado,
tinham reagido violentamente, e assentavam-se
triumphantes sobre as ruinas do passado quando
eu entrei no campo da imprensa, no campo
das batalhas do espirito. De roda de mim jaziam
os fragmentos da sociedade que fora, e no meio
delles o clero, disperso, empobrecido, cuberto
de affrontas, experimentava as consequencias do
predominio de um partido adverso e irritado. A
situação da igreja portuguesa nessa epocha, e
sobretudo a situação dos regulares, sabemos todos
qual era. Foram feridas de que, porventura,
ainda mais de uma goteja sangue. Os homens
das velhas opiniões politicas, no meio do terror,
vergados pelo desalento de uma quéda tremenda,
duplicadamente dolorosa pela desesperança,
calavam. Nem uma voz amiga se alevantava nesta
terra de Portugal a favor da igreja batida pela
tempestade. Ainda então esse grupo de mancebos
cheios de talento, de inspirações grandiosas e
[31]
de crença fervente na liberdade humana, e pela
liberdade na eterna justiça; essa phalange, no
meio da qual todos os dias apparecem novos soldados,
e que não se envergonha de Deus nem do
seu Christo, não tinha ainda começado a surgir
para ser generosa, amplamente generosa, com
os adversarios das suas idéas, quando a desventura
os sanctifica. Na imprensa liberal, revolucionaria,
impia, como quizerem chamar-lhe, eu,
só eu, tive por muito tempo palavras de
affeição
e consolo para a desgraça; só eu tive animo para
accusar os homens do meu partido d'espoliadores
e d'insensatos; para tentar revocá-los á poesia
do christianismo, do eterno alliado da liberdade.
A voz que do campo do progresso saudava
o templo enlutado e deserto era debil, mas sincera:
a mão que se estendia para amparar o sacerdote
curvado sob o peso da agonia era bem
pouco robusta, mas era leal! Como Yorick guardava
a caixa do pobre franciscano entre os symbolos
da sua religião de affectos, eu guardo para
mim, e só para mim, mais de um papel escripto
por mãos trémulas de velho monge, e talvez regado
por lagrymas, em que se reconhecia a possibilidade
de haver um homem das novas idéas
que não fosse absolutamente um malvado. É sobre
[32]
estas reliquias que eu quero encostar a cabeça
para dormir tranquillo o ultimo e longo
somno em que todos devemos repousar. Não
receiem pois os que me chamam hoje impio e
herege, que eu os envergonhe com o testemunho
dos que valiam mais do que elles, dos verdadeiros
martyres do passado. São cousas queridas
e sanctas para mim. Estejam certos de que não
as prostituirei jámais.
Depois, pouco a pouco, foi-se estabelecendo
nos animos uma reacção salutar:
começou-se a
sentir que o templo e o sacerdote eram importantes
elementos de paz, e que podiam ser instrumentos
de liberdade. Vieram outros pelejadores,
todos mais fortes e déstros, combater na
arena onde por tanto tempo eu me tinha achado
só. Não foi de certo a minha influencia
litteraria
que trouxe este resultado. Trouxe-o o progresso
da razão humana, a força irresistivel da verdade.
Entretanto, parece que, retirando-me do posto
que defendera com os limitados recursos que
Deus repartira comigo, merecia do clero, por si
e pela igreja, um
vale de paz.
Em logar disso tenho a guerra, acerba, covarde,
atraiçoada. Porque? Porque trouxe para o campo
da historia o mesmo amor da verdade singela,
[33]
que tinha mostrado n'uma das mais graves questões
sociaes.
Não me arrependo do que fiz. Cumpri um dever
que me impunham Deos e a minha consciencia.
Não espero arrepender-me do que faço. Cumpro
uma obrigação litteraria, e estou certo de que
bem mereço da terra em que nasci escrevendo a
verdade.
Sabe vossa eminencia sobre que eu hesito? É
sobre a legitimidade absoluta das minhas queixas;
é sobre se, no que supponho um dever d'honra,
não haverá um pouco da
obcecação da vaidade.
Quando Roma, que parece ter jurado nas aras
de Jupiter Stator o exterminio do catholicismo,
crucifica no seu
Index nomes como os
de Chateaubriand
e Lamartine; nomes como os de Gioberti
e Ventura, terei eu, verme que passo á sombra
do meu nada, direito de offender-me porque
de pulpitos obscuros, n'um canto obscuro da Europa,
alguns clerigos maus ou ignorantes lançam
sobre mim o vilipendio das suas palavras?
Quando a igreja, envolvendo a fronte no véu
da sua immensa tristeza, e sentindo humedecer-lhe
os pés o sangue humano vertido pelo ferro
sacerdotal, contempla atterrada o futuro, ha dor
de individuos a que seja licito um brado?
[34]
Cerrarei aqui o discurso, porque temo ir mais
longe do que eu quizera. Permitta-me vossa
eminencia que conclua fazendo um voto, ao qual
sei que vossa eminencia se associa, bem como
os outros prelados de Portugal:―Oxalá venha em
breve o dia em que o clero d'este paiz possa receber
uma educação digna do seu elevado destino,
e conhecer, por estudos severos e bem dirigidos,
que o ser christão não é ser nem
hypocrita
nem fanatico.
II
CONSIDERAÇÕES PACIFICAS
SOBRE O OPÚSCULO EU E O CLERO
AO REDACTOR DA NAÇÃO
(Julho, 1850)
A necessidade de reprimir o abuso do ministerio
do pulpito que contra mim se estava practicando
obrigou-me a dirigir a sua eminencia o
Patriarcha de Lisboa uma carta, na qual, sem
faltar á consideração devida ao
prelado da diocese,
nem aos outros bispos do reino, entendi
que cumpria usar de uma linguagem severa, mas
justa, para com a maioria do clero. Habituado a
patentear livre e singelamente as minha opiniões
ácerca dos homens e das cousas, não soube nem
quiz buscar rodeios, ou adoçar as phrases para
me exprimir de modo menos aspero n'uma questão
que me respeitava pessoalmente, e em que
até certo ponto estava compromettido, não
só o
[36]
meu caracter litterario, mas tambem, o que mais
importa, o meu caracter moral. Toda a imprensa
periodica, politica e não politica, sem
distincção
de partidos, foi unanime em condemnar actos
que me obrigavam a dar um passo a que bem
desejaria me houvessem poupado. Como os outros
jornaes, a
Nação reprovou
as
aggressões
inauditas perpetradas por uma parte do clero, e
toleradas por outra. O procedimento de v.. para
comigo foi nessa conjunctura tanto mais nobre,
quanto é certo que a indole do seu jornal
deveria talvez levá-lo a rebater a opinião de
diversas
publicações periodicas, se o sentimento
da justiça não fosse mais forte no animo de v..
do que outras quaesquer considerações.
É assim
que o sacerdocio da imprensa cumpre a sua grave
missão, e remedeia do modo possivel a decadencia
do sacerdocio religioso. Continuando, porém,
a tractar de uma questão, que, embora
interessasse um simples e quasi obscuro individuo,
era demasiado importante pelo alcance e
significação dos factos que a haviam suscitado,
v.. teve a bondade de dirigir-me algumas
observações,
que me pareceu exigirem de mim
explicações como christão e como homem
de letras.
Não as dei logo, porque não tardou a annunciar-se
[37]
publicamente uma refutação da minha carta,
em desaggravo do clero. Falava-se n'um milagre
de sciencia e de raciocinio, diante do qual eu
teria de fugir desalentado como os sarracenos de
Ourique diante do da apparição. Citavam-se,
até,
nomes: falava-se em summidades da igreja e da
eschola. Como entendo que não é bom fugir sem
ver de que, esperei que rebentasse o temporal. Se
fosse por elle submergido, de que aproveitariam
as explicações dadas a v..? Se, porém,
podesse
salvar o meu fragil baixel, pediria misericordia
aos vencedores, e daria ao mesmo tempo a v..
razão de mim. Fiquei, portanto, como o sentenciado
no oratorio, com o ouvido attento ao som
que devia annunciar a hora do supplicio. Esta hora,
todavia, segundo creio, passou. A dizer a verdade,
eu alimentava esperanças de salvação
com
um argumento que fazia a mim mesmo. Não é
provavel, dizia comigo, que um membro do clero
illustrado e honesto queira vir combater-me
no terreno desigual e escorregadio em que a imprudencia
collocou o sacerdocio, e o vulgo clerical
tem impedimento dirimente para entrar neste
empenho. Para escrever é preciso saber ler e ter
lido; saber reflectir, e ter reflectido muito. Por
este lado podia eu estar tranquillo.
[38]
É certo que o annuncio feito nos jornaes não
foi materialmente vão. Appareceu um folheto, que
parece ter por objecto refutar-me. Dizem-me que
é de um mancebo principiante. Revela, sem dúvida,
algum talento no auctor. Com o tempo, e estudando,
este póde vir a ser um escriptor soffrivel,
e habilitar-se emfim, para tractar d'estas ou
d'outras questões com honra sua e proveito do
paiz.
Non ragioniam di lui, ma
guarda, e passa.
É pois tempo de me explicar com v.. e fa-lo-hei
do modo mais breve que me for possivel.
Se alguma phrase menos comedida me fugir da
penna, declaro desde já que a retiro. Dirigindo-me
a um escriptor como v.., tão urbano nas
proprias censuras que me faz, embora sobre tão
melindrosa materia como o são as cousas da fé,
espero que v.. não veja por caso algum nas
minhas palavras a menor intenção offensiva.
Tres censuras irroga v.. ao conteúdo da minha
carta; a primeira contra a antithese contida
no titulo do opusculo
Eu e o clero:
a segunda
contra as expressões de
intelligencias
vastas e
energicas, mas corruptas, violentas e
cubiçosas,
de que me servi para qualificar alguns papas: a
terceira contra a phrase,
Roma que parece
ter
[39]
jurado nas aras de Jupiter Stator o exterminio
do catholicismo, e contra os terrores que attribuo
á igreja ácerca do futuro. Considerarei em
especial
cada uma dessas tres censuras.
Diz v.. que me era licito collocar-me em
antagonismo com um ou outro clerigo, porém
não com o clero em geral, por honra e credito
meu, que nada podia ganhar em lucta tão desigual,
e que, a existir, seria a minha condemnação.
Antes de tudo é necessario observar duas
cousas: 1.ª, que o antagonismo não o creei eu:
resultou de factos practicados pelo clero, que
tolerei com paciencia durante annos, e que toleraria
talvez sempre em silencio, se não receiasse
que no progresso da aggressão chegassem
a levantar-me um pulpito diante da porta,
para d'ahi me fazerem um sermão sobre a sanctidade
dos papas da idade média, ou sobre os
milagres referidos por S. Bernardo: 2.ª, que é
pelo opusculo e não pelo seu titulo, que se há
de avaliar até onde esse antagonismo vai, e se
elle é legitimo. Não apparece uma unica passagem
da minha carta em que eu me refira com
phrases hostis a
todo o clero
português. Os homens
que ha no meio delle illustrados e virtuosos,
respeito-os; respeito-os duplicadamente pela
[40]
sua illustração e pelas suas virtudes; pelo seu
caracter litterario, e pelo seu caracter sacerdotal.
Esses não sobem aos pulpitos a dizer despropositos;
não me querem mal, nem a mim nem aos
meus pobres escriptos. Ao que eu me contrapús
foi ás turbas tonsuradas; foi á maioria material
e numerica; minoria nos dominios da intellectualidade,
das idéas, e dos puros e nobres affectos.
Faria uma offensa gratuita; practicaria
uma brutalidade indesculpavel, estaria em
contradicção
comigo mesmo, com as minhas opiniões,
se assim, sem motivo, sem provocação,
tivesse o proposito de maltractar aquell'outra
parte do clero.
É esta a idéa que ha de resultar da leitura da
minha carta para todos os animos desprevenidos;
para v.. mesmo, se tiver bastante paciencia
para a reler. Quanto a esses de quem me queixo,
não sou eu homem que esconda as proprias
convicções.
Na minha vida litteraria tenho dado mais
de um documento de que costumo ser sincero.
Estou persuadido de que a maioria do nosso clero
é tal como eu a qualifiquei, e se não fosse a
natural repugnancia a despedaçar um cadaver,
daria aqui as razões da minha persuasão. Em
todo o caso, acceito inteira a responsabilidade
[41]
della: não tergiverso, não me arrependo. Tenho
dicto e escripto muitas verdades, senão mais deploraveis,
por certo mais perigosas para mim,
sem que o meu somno deixasse de ser profundo,
como o é habitualmente.
Postas as cousas nestes termos, que são os
exactos, não me é possivel comprehender a
affirmativa
de v.. de que o meu credito e honra
padeceriam pelo antagonismo com a maioria do
clero,
nessa lucta desigual, que envolveria a minha
condemnação. Se v.. viu
naquella fatal antithese
um peccado de orgulho, talvez o seja; mas
eu vi nella apenas um acto de humildade. Pois,
em consciencia, eu não valerei mais, litteraria e
moralmente, do que um clerigo mau ou insipiente?
Mas cem, mas mil, mas dez mil clerigos máus
ou insipientes, ainda que os fundam e os acrisolem,
chegarão, acaso, a produzir o equivalente
de um homem de alguma intelligencia e de alguma
honestidade? Não. O resultado de todas
essas operações será sempre, a meu
ver, um
substratum de parvoice ou de
corrupção. Peccado
de soberba não creio, portanto, tê-lo commettido.
Por este lado mal posso ser condemnado.
Referir-se-hia, porém, v.. ao perigo litterario?
Tambem não póde ser. É v.. assaz
[42]
instruido para sentir que por esse lado a lucta
me dá tanto cuidado como daria a v.. se estivesse
no meu logar. É o perigo religioso? A
idéa da condemnação antes de
contestada a lide,
e envolvida na proposição da causa, torna
talvez plausivel esta interpretação. Nessa
hypothese,
v.. não teria advertido n'um facto indubitavel.
A maioria do clero português não é
a maioria do clero catholico: a maioria do clero
catholico não constitue por si a igreja de Deus.
Bem infeliz seria eu se me visse em opposição
com esta; mas confio em que a Providencia me
livrará de cair nesse abysmo, não só
agora, mas
sempre.
Todavia a minha linguagem severa, embora
justa e legitima, será condemnavel, senão pela
substancia, ao menos pelos accidentes? Será condemnavel
porque vai ferir duramente um grande
numero de sacerdotes, de homens, infelizmente,
ungidos do Senhor? Que v.. me consinta invocar
em meu auxilio um exemplo acima de toda
a excepção. É de um padre da igreja, a
cujas obras
o nosso clero foi tão affeiçoado, que
até lh'as quiz
augmentar, com grande gloria do sancto e proveito
destes reinos. Alludo a S. Bernardo. As
phrases da minha carta são de suprema doçura
[43]
comparadas com as que o celebre cluniacence
empregava para qualificar a corrupção,
não do
clero de um paiz, não da maioria desse clero, mas
em geral do sacerdocio do seu tempo. «
Manou
a
iniquidade―dizia S. Bernardo―
dos
anciãos,
dos juizes, dos teus vigarios, oh Deus; daquelles
que parecem governar o teu povo! Já não
é licito
dizer―
tal o povo, tal o sacerdocio;
porque
este é peior. Oh meu Deus, meu Deus! Os teus
maiores perseguidores são os que mais ambicionam
a primazia, e exercem na igreja o mando
supremo[1]».
E, como se estas acres
expressões
não bastassem, o terrivel benedictino desfecha,
n'uma carta dirigida, não a algum prelado metropolitano,
mas ao proprio Innocencio II, na
seguinte diatribe:
A insolencia do
clero, a qual
nasce da indulgencia dos bispos,
turba o mundo
e afflige a igreja. Entregam os bispos as cousas
sanctas a cães,
e as
pedras preciosas a porcos,
e elles em paga mettem-nas debaixo dos pés.
Assim
o quizeram, assim o tenham[2]».
Se eu me
servisse de semelhante linguagem, imagine v..
que matinada se alevantaria contra mim!
[44]
Dir-me-ha v.. que S. Bernardo foi um sancto
padre da igreja, e eu não passo de um peccador
e obscuro christão? Assim é. Por isso o segui de
longe,
non passibus æquis.
Comtudo, v.. não
deixará de advertir em que, quando elle escrevia
essas phrases violentas, era um pobre monge,
humilde, simples, sem pretensões orgulhosas,
sem presciencia de que tinha de ser um sancto e
um luminar da igreja. E que lhe importava? O
espectaculo do procedimento do clero arrancou
da sua bôca esses brados d'indignação,
como
loucas provocações arrancaram da minha penna
palavras muito menos violentas.
Já agora consinta-me v.. que cite ainda um
veneravel prelado português quasi do nosso tempo,
a quem tambem tive occasião de alludir na
minha carta; que recorde as palavras geraes de
D. Fr. Caetano Brandão ácerca do clero
português
no principio deste seculo. O metropolita explicava
n'uma carta a certo ministro d'estado
quem era que fazia recair a desconsideração sobre
o poder pontificio: «
São
aquelles―dizia o
arcebispo de Braga―
que á força
de supplicas
importunas, de respeitos humanos, e outros motivos
ainda mais vergonhosos,
costumam extorquir
da curia romana provisões beneficiaes, que
[45]
mais parecem titulos de contractos de predios
rusticos, do que de beneficios ecclesiasticos;
provisões a favor das quaes tem infestado
as parochias
e córos (collegiadas e cabidos) de todo o
reino
uma tropa confusa de sujeitos
indignos,
etc.
[3]».
Que se leia inteira a passagem impressa
daquella carta, e ver-se-ha se foi o arcebispo, se
eu, quem usou de mais desabrida linguagem.
Apesar disso, suas reverencias hão de tolerar-me
a crença de que não estão no inferno
nem a
alma de D. Fr. Caetano Brandão, nem a de S. Bernardo.
Ainda algumas palavras sobre o antagonismo,
em que de nenhum modo v.. me quer ver collocado,
em relação á maioria do clero. Foram
apenas alguns que me provocaram do pulpito, e
eu chamo á autoria o grande numero. É verdade.
Não sei com certeza senão de alguns factos
de aggressão, mas a noticia de parte d'esses factos
obtive-a casualmente: alguns constaram-me apenas,
porque um jornal a elles alludiu de passagem,
dizendo que se practicavam por diversos
logares de Entre-Douro e Minho. É acaso provavel
que se não repetissem por outras dioceses?
[46]
Em Lisboa, onde eu resido, onde os sacerdotes
podem ter mais illustração, onde, até,
o fanatismo
deve ser mais raro, porque a propria fé é mais
tibia, onde, emfim, os prégadores mais devem
receiar que o seu auditorio se ria delles, houve
dous exemplos. Não me será licito inferir que,
não tendo eu uma policia ás minhas ordens, ignoro
muitos successos analogos? Depois, houve, á
vista desses factos repetidos, não digo
punição
de semelhante abuso do ministerio sagrado, o
que não peço, o que até me
contristaria, porque
me lembro das palavras de Christo
«
Perdoa-lhes
Pae, que não sabem o que fazem, mas a
minima
providencia para impedir a renovação de taes
escandalos?
Para que servem os vigarios da vara,
os arcediagos, os representantes ou delegados do
poder episcopal? Como informam os respectivos
prelados do que se passa entre o clero diocesano?
Não tenho eu direito de suppôr que elles tambem
entendem que a sanctidade dos papas da idade
média ou o apparecimento de Ourique são partes
integrantes da crença catholica, e que se trepassem
ao pulpito, e lhes viesse a talho, me chamariam
do mesmo modo impio ou herege? Se não
estão de accordo com os prégadores, como se
esquecem
de que os padres de Trento prohibiram
[47]
aos bispos que consentissem aos oradores sagrados
divulgar ou tractar factos incertos, ou que
tenham caracteres de falsidades[4],
e de que os do
concilio 1.º de Colonia ordenam aos mesmos oradores
que
não falem imprudentemente de milagres,
limitando-se aos que refere a Biblia, ou
aos que forem narrados por escriptores de peso,
estribados em solidos fundamentos historicos[5]?
Como quer pois v.. que eu não increpe o maior
numero e que não o supponha alistado contra
mim nesta vergonhosa cruzada d'ignorancia?
Passando ao segundo capitulo de accusação,
sinto verdadeira magoa em ser constrangido a
dizer que v.. leu menos attentamente o que
escrevi ácerca dos papas na minha carta ao eminentissimo
senhor Cardeal Patriarcha. Qualifiquei
ahi de intelligencias vastas, energicas, mas corruptas,
violentas e cubiçosas, alguns delles que se
chamaram Gregorio, Innocencio ou Honorio, e
v.. reprehende-me por classificar como taes
Gregorio VII e Innocencio III!? Onde me refiro
eu a estes dous papas no meu opusculo? Na epocha
abrangida pelo que se acha publicado da Historia
[48]
Portugal houve diversos pontifices desses
nomes. A cada um delles fiz, creio eu, justiça, e
Gregorio VII foi aquelle em que menos falei, porque
viveu antes de nascer a monarchia. É singular
como v.. pôde perceber que, entre tantos,
alludi a esses dous em particular! Não teria eu
direito de dizer, que uma voz da propria consciencia
trahiu e tornou van a benevolencia para
com elles manifestada nas palavras de v..? O
que me parece indubitavel é que alguma
convicção
historica preoccupava o espirito de v..
quando nas minhas expressões vagas e geraes
viu um ataque directo e especial á memoria daquelles
homens extraordinarios, cujos meritos
não neguei, nem tenho empenho em negar.
Entretanto não pense v.. que com isto pretendo
lançar fóra de mim a responsabilidade de
julgar severamente Hildebrando ou Innocencio
III. Não tenho a minima dúvida em lhes applicar
as designações de intelligencias violentas e
cubiçosas,
como não a tenho em chamar corruptos a
outros papas, como, por exemplo, a Innocencio
IV. É verdade que v.. cobre Hildebrando com
a egide da canonisação, e Innocencio III com a
da sua sciencia e litteratura. Mas nem vejo que a
sciencia e litteratura sejam synonimos de virtude,
[49]
nem creio que uma canonisação constitua dogma
de fé, e obste á liberdade do historiador para
avaliar como entender os caracteres historicos.
V.. sabe perfeitamente que, fundando-se as
canonisações
em provas humanas, e não em factos
revelados, as decisões pontificias a tal respeito
são sempre falliveis, o que bem se manifesta
da oração que ainda no seculo XIV os papas
faziam na solemnidade das canonisações, pedindo
a Deus permittisse que não se houvessem enganado.
Esta doutrina é corrente, e v.. não a
ignora, nem poderia ignorá-la
[6].
Recorda-me v.. que os escriptores protestantes
fazem a estes dous pontifices a justiça
que merecem. Tambem eu a fiz, ao menos como
a entendi, a elles e aos seus successores, e sobretudo
ao papado, em mais de um logar do meu
livro. Ninguem admira mais do que eu os progressos
que a civilisação lhes deve. Dos historiadores
protestantes modernos não conheço nenhum
mais celebre, dos que exaltam Gregorio
VII, do que o professor Leo. Mas, para isso, elle
proprio sentiu a necessidade de se valer exclusivamente
da idéa em que se resume a historia
[50]
do progresso humano. Esta idéa é a
lucta do
espirito com a sua manifestação, com a
fórma,
com a materia; o desenvolvimento do raciocinio
predominando no meio da força do acaso[7]».
Elle vê-a representada,
incarnada,
digamos assim,
em Gregorio VII e nos seus immediatos
successores, na indole e tendencias desses individuos;
eu vejo-a no papado, na indole da instituição.
É inquestionavel que nenhuns pontifices
levaram mais longe a manifestação da
idéa, e em
philosophia historica os defeitos desses papas
desapparecem, quando se considera a maneira
vasta e energica por que elles
desempenharam
a missão providencial do papado n'aquella epocha.
Todavia, na apreciação
moral dos seus
actos como individuos, é por outros principios
que devemos regular-nos. Tanto o professor Leo
conhecia que Gregorio VII ficava mal collocado
a essa luz, que a excluiu da historia «
No
mundo
dos phenomenos―diz elle―
a luz da
verdade
não se derrama sobre uma face unica, mas reparte-se
por todas. Não são os phenomenos individualmente
que constituem a verdade, mas sim
o complexo delles.» Para avaliar o
pontifice como
[51]
representante e typo da instituição, a regra
é
exacta; para o avaliar como homem, não; porque
a
intenção, a
causa moral dos actos, é necessaria
para a apreciação abstracta de um caracter.
A suberba, a ambição e até a
cubiça de
Gregorio VII estão pintadas nos factos a que accidentalmente
me referi n'um logar do meu livro
[8].
Destruam, se é possivel, documentos irrefragaveis.
Queremos, porém, saber, por testemunho insuspeito,
qual era essa intenção moral, qual o
caracter de Hildebrando? Ouçamos um seu contemporaneo,
um sancto padre. Tenho gosto especial
em citar nestas cousas os sanctos padres.
São respeitaveis auctoridades!
«
De resto―diz
um delles―
rogo humildemente ao meu S. Satanaz
que não se enfureça tanto comigo, e que a
sua veneranda suberba não me fustigue com tão
longa
flagellação[9]».
De quem se escrevia isto? Do cardeal Hildebrando.
Quem o escrevia? Um pobre velho: S.
Pedro Damião n'uma carta dirigida a Alexandre
[52]
II e ao proprio cardeal. Verdade é que não
sabía quão grande sancto havia de vir a ser o
seu
S. Satanaz. Nessas palavras
amargas do veneravel
monge está explicada a actividade irresistivel
com que Gregorio VII proseguiu na
lucta gigante entre o espirito e a materia. Superior
intellectualmente aos outros homens, a
ambição de os dominar a todos fê-lo
até negar
a realeza, não só como facto, mas tambem como
principio. Houve, ha hoje um democrata mais
virulento do que Hildebrando? Não o creio. V..
conhece por certo uma passagem singular das
suas cartas. «Que!―diz elle―uma dignidade
inventada pelos homens do seculo (a dos principes)
não estará sujeita á que Deus
estabeleceu
para gloria propria? Quem não sabe que os reis,
que os chefes procedem dos principes pagãos,
os quaes por instigações do diabo,
que é o verdadeiro
principe do mundo, movidos por cega
paixão e levados por intoleravel
presumpção,
usurparam o poder supremo sobre os seus
iguaes,
pondo por obra, com esse intuito, a rapina, a
perfidia, o homicidio, em summa quasi todos os
crimes?
[10]»
Não lhe parece a v.. que se hoje
[53]
Hildebrando resuscitasse, o tinhamos presidente
da republica democratica e social? Veja v..
o caso que o sancto varão fazia do famoso texto
biblico:
Per me reges regnant.
Dir-se-hia que
tinha lido:
Per diabolum reges
regnant. Podemos
nós os monarchistas (embora o sejamos
por differente feitio) acceitar as idéas do celebre
S. Satanaz? Não ha nessas idéas um orgulho,
uma intolerancia para com os poderes da terra,
que não comprehenderiamos, talvez, hoje, se
não tivesse vivido no nosso seculo uma intelligencia
igualmente
vasta e energica, chamada
Napoleão Bonaparte?
Vamos ás ultimas censuras de v.. em que
me parece não ter mais razão do que nas
primeiras.
Diz v.. que Roma,
significando o poder
pontificio, não póde jurar o
exterminio do
catholicismo. Que!?―Pela palavra Roma não se
póde entender senão o poder pontificio,
não se
póde significar senão o papa? V.. ha de
permittir-me
que eu recorra ainda uma vez a S. Bernardo
para me salvar da condemnação eminente.
Nesta contenda, não sei porque, o meu espirito
recorda-se a cada momento daquelle illustre padre
da igreja. Falando das horriveis desordens
que produziam as appellações para o papa, e
[54]
alludindo a dous bispos allemães carregados de
crimes, que, tendo appellado para Roma e levando
comsigo bastante dinheiro, haviam sido repellidos
nas suas pretensões e offertas, S. Bernardo
exclama: «
Grande novidade! Quando
até o dia
de hoje rejeitou Roma dinheiro?[11]»
Note-se que o
sancto vivia no seculo immediato ao governo de
Hildebrando e que S. Bernardo dirigia o discurso
ao papa Eugenio III, que frequentemente louva,
e a quem, por certo, não pretendia affrontar. Que
significa pois a palavra
Roma na
bôca do grande
abbade de Claraval? A curia romana; essa curia,
onde, segundo a opinião do severo cluniacense,
«
era mais facil entrar honesto, do que
tornar-se
lá homem de bem[12]»;
essa curia
que me obrigaria
a encher paginas e paginas de citações se
quizesse
colligir as passagens relativas ao seu desprezo por
todas as leis divinas e humanas, quando se tractava
de receber ouro, passagens que se encontram
ás dezenas nos escriptores mais respeitaveis, e
onde se memoram, até, versos das cantigas populares
contra a cubiça da curia, o que prova ter-se
tornado proverbial a corrupção de Roma
[13].
[55]
Mas concedamos que, ultrapassando além da
curia romana, eu tivesse em mente o pontifice.
Como homem, como principe temporal, os seus
actos publicos são do dominio da imprensa; se
esses actos pelos seus effeitos moraes e politicos
poderem trazer graves turbações, dias de amargura
á igreja, não é licito a todo e
qualquer christão
deplorar essas consequencias, reprehender
esses actos? Quando eu digo que Roma
parece
ter jurado o exterminio do catholicismo, accuso
o papa, a curia, alguem de ter a intenção directa
de o destruir? Ou eu não sei português, ou
empreguei
uma phrase trivial, cujo alcance todos
comprehendem. Que se diz do valetudinario que
despreza os conselhos dos medicos?
Parece que
se quer matar! E quando dizemos isto passa-nos
acaso pelo espirito a idéa de attribuir a esse individuo
a intenção directa do suicidio? Ou
será
que as expressões simples, as phrases innocentes
dos outros homens se convertem em peste e veneno,
quando saem da bôca do feroz herege que
ousou duvidar do testemunho posthumo, e bem
[56]
posthumo, de S. Bernardo ácerca do milagre de
Ourique?
Em que tempos estamos nós? Para onde caminha
a reacção religiosa? Que!? Eu não
poderia
apreciar como entendesse o procedimento politico
de um papa, em relação aos futuros destinos
da igreja, e S. Thomás de Cantuaria poderia sem
ser um reprobo lançar em rosto a Alexandre III
as gravissimas accusações de o trahir, e de
querer
conduzi-lo á morte
[14]?
Poderia S. Thomás de
Aquino, o mais profundo philosopho do seculo
XIII, ao observar-lhe Innocencio IV que tinha passado
o tempo em que S. Pedro dizia
«
não possuo
nem ouro nem prata»―responder-lhe
«
que tambem
era passado o tempo em que S. Pedro dizia
ao paralitico―levanta-te e anda[15]»
epigramma
pungente atirado ás faces de um papa, cuja cubiça
não conheceu limites; poderia, digo, S. Thomás
ser um doutor da igreja, depois deste attentado?
Podia sequer ser papa o successor do mesmo
Innocencio, Alexandre IV, que lhe chamava o
vendilhão de igrejas[16]?
Riscae do catalogo dos
[57]
bemaventurados S. Antonino de Florença, que não
duvidou de pintar com as mais negras côres os
vicios hediondos de Clemente V
[17].
Não chameis
o ultimo padre da igreja a Bossuet, porque taxou
de velhaco o papa Eugenio IV
[18].
Rejeitae
do gremio catholico o erudito e pio Fleury, porque
escreveu o 4.º discurso sobre a historia Ecclesiastica.
Para serdes logicos despovoae a igreja
de sanctos, de doutores, de homens illustres, se
credes que, dentro della, eu, que não sou nenhuma
dessas cousas, não tenho direito de aferir pelos
principios eternos da moral, da justiça e da caridade
evangelica as acções dos papas sem renegar
da igreja.
Não disputarei com v.. sobre os successos
de Roma nos ultimos tempos. Cada qual póde
vê-los á luz que julgar verdadeira. Ao que,
porém,
eu tenho jus é a averiguar se é exacta a
proposição absoluta de v.., de que o futuro da
igreja é muito sabido, claro e indisputavel
para
os catholicos. Por este modo v.. parece excluir-me
do gremio do catholicismo, porque hesito sobre
o seu futuro. Advertiu acaso v.. em que a
[58]
proposição assim absolutamente enunciada,
conduziria
ao impossivel? O que é certo, sabido e claro
para a igreja, e para cada um dos seus membros,
é que ella será perpetua, indestructivel. Mas
por quaes phases tem de passar; se a esperam
dias serenos, se dias de tribulação; se acres
resentimentos,
imprudentemente preparados, virão
ou não como a procella despir a folhagem, lascar
os troncos da arvore eterna do christianismo, eis
o que nem a igreja, nem eu, nem v.. sabemos.
Está acaso v.., que eu creio profundamente catholico,
habilitado para me dizer de um modo
certo
e claro, se a idea revolucionaria da Italia apodreceu
para sempre encharcada no sangue que as balas
e bayonetas francesas e austriacas derramaram
á voz da curia romana? Se a politica das masmorras,
dos desterros, da compressão inexoravel,
preferida á politica evangelica da tolerancia, do
perdão das injurias, da caridade sem limites,
poderá
varrer para sempre dos animos italianos o
odio do dominio estrangeiro (quer directo quer
indirecto) e o amor da liberdade politica? Esse
odio e esse amor póde v.. julgá-los legitimos
ou illegitimos: não disputarei sobre isso. Mas que
elles não existam; que elles não possam triumphar
algum dia, eis o que v.., por certo, não
[59]
affirmará com a mão na consciencia. E nessa
hypothese,
quem saberá dizer até onde chegarão
os excessos da colera e da vingança, azedadas
pelo padecer, e até certo ponto legitimadas por
elle, se legitimidade se póde dar em taes sentimentos?
Parece-me que ao homem catholico é
licito imaginar, sem que por isso vacille a sua fé
ácerca da perpetuidade do catholicismo, que a
igreja se entristece, ou deve entristecer, aterrada
pelo porvir; é licito suppôr que as lagrymas dos
seus futuros martyres vem já de antemão cair-lhe
ardentes sobre o seio materno. Se attribuir ao gremio
dos fiéis, composto de homens, os affectos
de dor e amargura desdiz de alguma cousa, não
é, de certo, das tradições
evangelicas, nem das
tradições dos antigos padres. Já no
seculo IV S. Hilario
de Poitiers observava quão frequente era pintar-nos
o evangelho como triste e afflicto o Filho
de Deus
[19];
e S. Gregorio Magno não duvidava de
dizer: «
A sancta igreja, emquanto vive esta
vida
de corrupção, não cessa de chorar os
damnos
das vicissitudes por que passa»: e n'outra
parte:
«
A dor esmaga a igreja quando vê
os perversos
[60]
prosperarem na propria maldade»
[20].
É dessas
vicissitudes a que allude o sancto pontifice que eu
falo; é a essas vicissitudes, demasiado provaveis,
que os erros dos homens, as paixões anti-christans
do sacerdocio triumphante ajunctam, nas minhas
previsões, um caracter de terribilidade.
Tenho dado razão de mim. Diz v.. que poderia
accrescentar mais. Sinto que o limitado espaço
de uma folha periodica, ou outro qualquer
motivo, o inhibisse de assim o practicar. Gósto
de ser advertido dos erros em que caio, quando
é a sciencia e o talento quem se incumbe deste
mister, e certifico a v.. de que facilmente me
retractaria, se nas suas ulteriores observações
v.. me convencesse de que eu errava. Á ignorancia
presumida, ou á insolencia estupida, é
que não costumo fazer a honra de responder.
Quanto a esta questão, que não suscitei, e que
até deploro, ella terminou para mim. Que os
hypocritas façam visagens beatas contra a minha
impiedade; que me proclamem herege ou o que
elles quizerem, cousas são essas com que nenhum
homem de juizo se afflige, porque as assaduras
inquisitoriaes, mercê de Deus, acabaram
[61]
para sempre. A raça dos escribas e phariseus, o
peior flagello que Christo encontrou na terra, e
que elle mais cordealmente amaldiçoou, é immortal
e immutavel; mas deixá-la viver. Quem
diz ao sapo:―«não sejas
asqueroso?»―Quem
diz á vibora:―«não sejas
peçonhenta?»―Babem
e mordam; é o seu destino, coitados!
O que não tolerarei é que me chamem de
novo, a mim ou aos meus escriptos, a figurarmos
no meio das parvoices sacrilegas com que se
deshonram os pulpitos. Que os prelados façam
ou não o seu dever a este respeito, pouco me
importa. Estejam certos de que não será a suas
excellencias que pedirei desaggravo.
III
SOLEMNIA VERBA
AO SR. A. L. MAGESSI TAVARES
(Outubro, 1850)
Porque virá tempo em que
muitos
homens não soffrerão a san doutrina;
mas..... accumularão para si mestres
conforme aos seus desejos:
E assim apartarão os ouvidos da
verdade e os applicarão ás fabulas.
S. Paulo,
Epistola II a
Thimoteo
c. 4. v. 3, 4.
Permitta-me v.. que, sem existirem entre nós
outras relações que não sejam aquellas
que fortuitamente
nascem entre os homens de letras quando
se encontram no campo da imprensa, eu dirija,
por essa mesma imprensa, uma carta a v..
Esta carta será um pouco extensa. Será talvez
seguida de outras. Não o sei ainda. N'uma questão
litteraria, a meu ver de bem pouco valor, que
o procedimento de alguns individuos da ordem
sacerdotal converteu n'uma contenda que não sei
[63]
até onde chegará, v.. fez-me a honra de ser
meu adversario, escrevendo dous opusculos em
que combate as minhas opiniões n'um, ou para
melhor dizer, em alguns pontos d'historia patria.
Naquelles dous opusculos, escriptos em diversas
epochas, v.. se houve sempre para comigo
com a nobreza de um cavalheiro, e com a cortesia
de um espirito cultivado. Póde haver ahi uma
ou outra expressão mais viva, que feriria certas
vaidades demasiado mimosas; se, porém, as ha,
não me feriram a mim, endurecido já nestes
recontros,
e que tambem não sou dos menos sujeitos
a ceder ás vezes aos impulsos da vivacidade.
No meio dos que me tem combatido, v.. representa
a meus olhos a parte san, os homens
sinceros do gremio, da eschola, do partido (como
quizerem chamar-lhe, porque os nomes importam
pouco) a que v.. pertence. Representa, digo,
essa parte, postoque, e ainda bem que assim é,
não a resuma. Igual testemunho devo deixar aqui,
se os meus escriptos tem de viver mais algum dia
que eu, ácerca dos Redactores do jornal
A
Nação.
Meus adversarios tambem, não recebi delles na
impugnação das minhas doutrinas, senão
provas
de consideração e de urbanidade.
Consinta, pois, v.. que, alargando a orbita
[64]
em que quiz encerrar-se no seu ultimo e recente
opusculo, eu fale, dirigindo-me a v.., com esses
homens probos e leaes que estimo e respeito,
embora julgue erroneas, deploraveis até, as suas
opiniões n'uma contenda, que, não por minha
culpa, vai tomando na imprensa portuguesa uma
direcção fatal. Deus queira que os imprudentes
que lhe deram origem não tenham de chorar a
sua loucura com lagrymas amargas!
Sería bem triste que essa porção de
compatricios
meus em cujos corações o amor do passado
é um sentimento puro, postoque, a meu ver, ás
vezes se manifeste de modo pouco reflectido, me
cressem traidor á sancta causa da patria. Se os
erros de nossos paes e os erros de todos nós os
que vivemos, erros que nos trouxeram a uma
situação que não posso, que
não quero definir
aqui, fizerem algum dia com que o velho Portugal,
ameaçado na sua independencia e nacionalidade,
brade por todos os seus filhos para um
esforço supremo, para o salvarem ou para morrerem,
espero em Deus, e depois de Deus na
minha consciencia, que, sem crer no milagre de
Ourique, não serei o ultimo a acceitar esse terrivel
convite. O passado! Quem mais o amou do
que eu nesta terra? Quem volveu nunca os olhos
[65]
com mais saudade para as suas tradições? Mas as
tradições de que tenho saudade; mas o passado
que eu amo, não o são essas lendas absurdas
(desculpe
v.. o epitheto, que espero justificar) inventadas
por interesses mundanos, dos quaes,
por mais graves que sejam, nem a philosophia nem
o christianismo consentem se faça o céu
instrumento.
Nos tempos que foram o que me sorri, não
só como saudade, mas (porque não direi agora o
que hei-de dizer mais largamente um dia?) tambem
como esperança, são as
tradições dessa
liberdade primitiva, postoque incompleta, filha
primogenita do evangelho, que elle gerara para
mãe, para abrigo das sociedades da Peninsula;
dessa liberdade, rude e turbulenta como uma
creança educada á lei da natureza, mas como ella
robusta e viçosa; dessa liberdade que se estribava
nos habitos, que resultava de instituições
positivas e exequiveis, e não de
instituições copiadas
quasi ao acaso da primeira theoria que
tivesse transposto os Pyreneus; dessa liberdade
que tornava a monarchia uma cousa sancta, necessaria,
indestructivel, e que a monarchia, por
desgraça sua e nossa, foi lentamente esmagando
debaixo do seu throno, formado dos infolio, politicamente
fataes, do Digesto, do Codigo e das Glossas
[66]
e Commentarios das escholas d'Italia; dessa
liberdade, que, desenvolvida e organisada logicamente
com a sua origem, nos teria poupado talvez
á gloria immensa, mas para nós mais que esteril,
de nos convertermos em victimas da civilisação
da Europa, de revelar o Oriente á sua cubiça,
para logo virmos assentar-nos extenuados n'um
occaso de tres seculos; dessa liberdade que nos
teria salvado por certo de um longo estrebuxar
em esforços impotentes de emancipação,
que tomámos
como licções d'extranhos, e que era mais
velha para nós do que o era para elles. Eis-aqui a
maravilha, melhor que milagres imaginarios, na
qual não só creio, mas tambem espero.
Peço a v.. e aos animos honestos que pensam
como v.. se persuadam de que o homem que
não admitte certas narrativas infundadas, nem
por isso deixa de ser bom português, e que, se
não está excessivamente inclinado a adorar o
Deus de Ourique, nem por isso deixa de crer em
Deus.
Com elles, com v.. a discussão grave, pausada,
modesta, é possivel; é mais, é uma
necessidade
do espirito, em que este se sente viver da
vida, a elle tão congenita, do raciocinio. Mas como
replicar seriamente a homens, não só ignorantes
[67]
e ineptos, do que elles não tem culpa, mas
que falsificam, truncam, omittem as palavras do
adversario, que lhe alteram as ideas, que, mettidos
no charco mais fetido dos becos da Alfama ou
do Bairro Alto, atíram ás faces do
impio que passa
quanto lodo lhes cabe nas mãos, contrahidas
e convulsas pela colera? A taes desgraçados que
se póde fazer, senão dar-lhes a triste
celebridade
dos Cotins ou dos freis Gerundios, e enviá-los á
geração futura, envolvidos no sudario do
escarneo,
para lhe distrahir os tedios?
Se as expressões, talvez severas e acres em
demasia, que me escaparam n'um impeto de
indignação
contra a maioria do nosso clero, e não
contra os homens honestos e instruidos que pertencem
a essa classe, como sem pudor se inculca,
não estivessem justificadas pelos actos que as suscitaram,
as consequencias do meu escripto tê-las-hiam
remido. Dos que me impugnaram, foi aos
seculares que coube a moderação, a lealdade, e
a elevação dos pensamentos; foi a sacerdotes que
couberam as manifestações de odio incrivel
[21], a
[68]
transfiguração das minhas ideas, e a linguagem
sem nome das prostitutas. Isto é significativo. É
que esses seculares nunca tinham trajado a roupeta,
usada a cubrir mais hypocritas e devassos
ignorantes do que varões religiosos e sabios: tinham,
sim, vestido a farda de soldado, costumada
a despertar tantas vezes nobres e grandes instinctos.
E que me importam a mim esse odio impotente,
essa linguagem vergonhosa? O que o futuro
ha-de deduzir delles sei eu; sabe-o v.. As
ameaças, que ahi se murmuram pelos cantos, essas
causam-me dó. Se ao poder publico faltasse
a força para manter illesa a segurança dos
cidadãos,
devolvia-se a estes o direito da propria defesa.
Mas os Jacques-Clementes não apparecem
senão onde a sinceridade das
convicções degenerou
em delirio, e não onde as crenças são
especulação.
Para ser Jacques-Clemente requer-se
mais alguma cousa do que saber assassinar; é
necessario saber morrer.
Entrarei na materia.
Na questão suscitada pelo modo como tractei
[69]
na Historia de Portugal a lenda de Ourique, e
ainda outras lendas analogas, é necessario confessar
que se tem partido sempre de um ponto
nebuloso e fluctuante. Para se chegar a um resultado
preciso era necessario ter convindo em
certo numero de principios, acceitar certas formulas
de raciocinio. Não se fez isso. E todavia, a
crítica historica tem regras para a credibilidade,
regras a que todo aquelle que tracta de taes materias
deve sujeitar-se, porque se estribam, não
só na acceitação dos homens de
sciencia, mas
tambem na razão commum. Estes preceitos são
no nosso seculo, em que os estudos historicos
têm feito na Europa tantos ou mais progressos
que as outras sciencias, assaz severos; mas essa
severidade começou a desenvolver-se desde os
fins do seculo XVII, em que a congregação de S.
Mauro, aquelle brilhante seminario de homens
illustres, creou a diplomatica. O estudo dos archivos,
estudo alumiado pela philosophia crítica,
mostrou quanto havia a desprezar nessas vastas
compilações de trabalhos historicos dos seculos
anteriores. É de S. Germão dos Prados, de S.
Brás da Selva Negra, e dos outros mosteiros benedictinos
da França e da Allemanha, que partiu
o movimento intellectual da Europa nesta parte
[70]
do saber humano. O que o seculo presente, amestrado
por maior experiencia, tem feito é apertar
mais as condições da credibilidade, evitando ao
mesmo tempo todo o genero de preoccupação
que possa proceder dos interesses de partido politico
ou da incredulidade em materias de religião;
é tambem o ter dirigido as indagações
historicas
mais para o estudo da indole das sociedades,
do que para os actos dos individuos. Não
nega as tradições da antiga sciencia;
completa-as,
aperfeiçoa-as. No exame dos monumentos, na sua
confrontação, tem dado exemplos de imparcialidade
e de paciencia, que mereceriam os applausos
dos grandes reformadores benedictinos, se podessem
contemplar os resultados da eschola que
elles crearam, embora a sciencia moderna, como
era natural, os tenha deixado bem longe de si.
Os doutos que têm comparado os
Monumenta
Germaniæ Historica de Pertz, os
Monumenta
Historiæ Patriæ, publicados em
Turin, a Collecção
dos Archivos d'Inglaterra, a continuação dos
Scriptores Rerum Francicarum, e
emfim as demais
publicações desta ordem com o que os maurienses
nos deixaram nesse genero, sabem que
passos gigantes tem dado a crítica das fontes historicas.
O uso dessas fontes, a applicação dos
[71]
preceitos a ellas, tem produzido historiadores
como Ranke, Guizot, Eichhorn, Savigny, Amári,
Maccaulay e tantos outros que a Europa inteira
conhece e admira. É a estes typos que hoje
forçosamente
ha-de tentar aproximar-se quem escrever
historia, se não quizer deshonrar-se e deshonrar
a litteratura do seu paiz. Foi essa aproximação
que eu tentei, persuadido de que bem
merecia por isso da terra em que nasci. Se é assim
ou não, pertence decidi-lo áquelles que vierem
após nós. No meio de uma
revolução litteraria
não ha desafogo de animo bastante para se fazer
inteira justiça, nem aos meus esforços, nem
á candura das minhas intenções.
Conheço a difficuldade
de se abandonarem antigas preoccupações,
e seria louco se me irritasse com isso.
Mas para refutar as impugnações que
até aqui
têm apparecido não me parece necessario invocar
a sciencia no seu estado actual, e nem sequer a
sciencia anterior na sua applicação á
historia profana.
Bastam-me as regras acceitas pelos historiadores
ecclesiasticos mais respeitaveis, inculcadas
por theologos, estabelecidas por membros illustres
do clero, a quem nem uma unica voz ousará
accusar de menos crentes, ou sequer de menos
piedosos. É, creio eu, e v.. o julgará, acceitar
[72]
a situação mais desvantajosa possivel:
é
tambem o que eu já tinha feito invocando a regra
de Vicente de Lerins. Se a religião (cuja base
é a crença em cousas que excedem a
comprehensão
humana, e que nos impõe a synthese, o
dogma, sem que nos seja licito recorrer previamente
á analyse) exige dos factos tradicionaes,
antes de os acceitarmos, as condições de terem
sido acreditados
sempre, em toda a parte, e por
todos, quem pede para crer ou deixar de crer factos
puramente humanos (sujeitos pela sua natureza
a toda a discussão possivel) apenas as garantias
de liberdade intellectual que a igreja, tão
parca em concedê-las, concede aos fiéis para
acceitarem
uma parte das suas crenças, não abdica
evidentemente de uma liberdade, de uma vantagem
que é sua, que ninguem lhe disputaria? Mais
de uma vez terei talvez de appellar para a probidade
litteraria e para a intelligencia de v.. e
dos homens sinceros e honestos que pensam como
v..; mas aqui, parece-me tão evidente a materia,
que a deixo á discrição do espirito
mais vulgar,
da consciencia mais prevenida. Se Galileu,
quando descobriu que era a terra e não o sol que
andava, tivesse presentes as condições do
Comonitorio,
não o teria affirmado, e evitaria as
perseguições
[73]
da inquisição, postoque deixaria para
outro a gloria de ter descuberto um facto importante.
Aquelle canon, applicado á sciencia, é mais
perigoso para a verdade nova do que para o erro
antigo.
Eu disse que as auctoridades que estabeleceram
as regras historicas acceitas por mim serão
ineluctaveis para aquelles mesmos que mais ferrenhos
se mostram em conservar quanto os tempos
passados nos transmittiram. Essas regras,
pois, ao menos as principaes, permitta-me v..
que as transcreva aqui. Pasme Portugal de ver
uma parte do clero insultar-me nos pulpitos e na
imprensa, calumniar-me nas praças e corrilhos,
porque segui como historiador as doutrinas estabelecidas
para se estudar e escrever a historia da
igreja por homens que são a gloria e honra
da
classe sacerdotal. Se diante dos olhos de todos,
na consciencia de todos não estivesse quanto escrevi
ácerca da decadencia intellectual da maioria
do nosso clero, parece-me que o que vou transcrever
sería medida sobeja para por ella se aferir
essa verdade. Já que falei dos religiosos da
congregação de S. Mauro, começarei
pelo mais
celebre membro d'aquella ordem, o grande Mabillon.
Eis o que elle nos ensina:
[74]
1.º «Aquillo em que sobretudo devemos acautelar-nos
no estudo da historia é em evitar todos
esses vicios em que é facil cair; quero dizer,
evitar admittir por verdadeiro o que é falso, ou
deixar-nos dominar pelas affeições particulares
dos historiadores. É necessario, primeiro que
tudo, pesar attentamente os dotes do auctor; se
é idoneo e sincero; o que o moveu a escrever;
se pertence a algum bando ou seita...»
2.º «Devemos averiguar
se o auctor que
lemos
é synchrono (contemporaneo); se escreveu
elle
proprio, ou se copiou outro; se é prudente nas
suas affirmativas, ou se apenas se estriba em conjecturas;
porquanto, dada a paridade no demais,
deve preferir-se a opinião do auctor coevo á do
mais moderno. Digo―dada a paridade no demais―porque
póde acontecer, e acontece ás vezes,
escrever a historia com inteira madureza o
auctor não synchrono, estribado
em
monumentos
serios e boas razões, e o contemporaneo
muito
ao contrario, ou seja por negligencia, ou seja por
ignorancia dos factos, ou seja por alguma
prevenção,
ou finalmente porque o
subjuga a força
do proprio interesse.»
3.º «Segue-se d'aqui
não se
dever confiar demasiado
naquelles factos sobre que os escriptores
[75]
rigorosamente contemporaneos, ou quasi contemporaneos,
guardaram silencio; postoque possa
acontecer que um auctor mais moderno consultasse
alguns monumentos importantes, guardados
em logar occulto quando os factos aconteceram,
ou visse escriptores synchronos, ou quasi
synchronos, cujas obras depois se perdessem.
«
Se, porém, esses escriptores, ou
os que lhes succederam,
no intervallo de um até dous seculos,
nada dizem a tal respeito, e não obstante isso,
um historiador mais moderno, sem se estribar
em testemunho ou auctoridade alguma, se atreve
a asseverar temerariamente esses factos, bem pequena
conta se deve fazer delle, aliás
abririamos
ampla estrada para errarmos, e para enganarmos
os outros.»
4.º «Com todo o cuidado nos devemos premunir
para não sermos illaqueados por alguns auctores
suppositicios, inventados nestes nossos tempos...»
5.º «Não se deve proscrever qualquer
auctor
por um ou outro defeito de paixão ou
allucinação,
pela rudeza do estylo, ou por outra imperfeição
propria da natureza humana, comtanto que seja
sincero e pontual no resto...»
6.º «Não se devem desprezar os
antiquarios,
[76]
auctores de resumos historicos, e compiladores...»
7.º «Quando as narrativas variam, não nos
devemos
deixar attrahir pela consideração do numero,
mas sim pelo merito e gravidade
[22]
dos auctores;
visto que muitas vezes acontece que a auctoridade
de um auctor grave e sincero merece
preferir-se ao testemunho de cem de menos fé,
porque estes se foram repetindo uns aos outros
sem madura discussão e diligente exame das
cousas...»
8.º «Por este mesmo motivo não deve
fazer-se
grande fundamento na quasi innumeravel
multidão de casos que muitos modernos costumam
amontoar nas vidas de certos sanctos... Dizendo
isto, sinto apertar-se-me o coração, e com
magua devo accrescentar, que são muitissimo
mais exactos os auctores profanos escrevendo vidas
de ethnicos, do que muitos christãos relatando
vidas de sanctos, o que já não receou affirmar
[77]
Melchior Cano, referindo-se a Diogenes Laercio
e a Suetonio.»
Ouçamos ainda n'outra parte o fundador da
diplomatica francesa:
«É necessaria a crítica para
distinguirmos as
historias verdadeiras das falsas; para não darmos
temerariamente credito a narrações
supersticiosas,
a vans opiniões, a delirios aereos, a
milagres
fingidos ou duvidosos, a
escriptos
suppostos dos
sanctos padres. O veneravel Guigo, quinto geral
dos Brunos, estabeleceu utilmente uma norma
de crítica: ...
Buscae a prova de tudo; o
bom
respeitae-o. Quem crê de prompto é leve de
coração.»
Agora Fleury, o pio mas illustrado historiador
da igreja catholica. Depois de varias
considerações
sobre os documentos falsos com que o
clero innundou a Europa nos seculos de trevas,
e da falta de instrucção que entre elle reinava,
o
historiador observa:
[78]
«Outro resultado da ignorancia é tornarem-se
os homens credulos e supersticiosos, por falta de
principios seguros de crença e de exacto conhecimento
dos deveres religiosos. Deus é poderosissimo,
e os sanctos têm alto valimento para com
elle: verdades são estas que nenhum catholico
rejeita: logo devo acreditar todos os milagres
attribuidos á intercessão dos sanctos.
Má conclusão.
Cumpre examinar as provas delles, e com
tanta mais exacção, quanto esses factos mais
incriveis
e importantes forem. Porque, dar por
certo um milagre falso nada menos é, segundo
S. Paulo, que dar testemunho falso contra Deus,
como mui judiciosamente observa S. Pedro Damião.
Assim, longe de ser acto de piedade crê-los
de leve, é a propria piedade que nos obriga
a averiguarmos com rigor as provas em que se
fundam.
O mesmo se deve dizer das
revelações,
das apparições de espiritos, das
operações do demonio...
Em summa, toda a pessoa dotada de
bom juizo e religiosidade deve ser cautelosissima
em acreditar factos sobrenaturaes.»
Mas observemos as precauções de que Fleury
se rodeava, as balisas que para si proprio punha,
ao começar o immenso lavor da sua
Historia
Ecclesiastica,
ainda hoje não substituida, apesar de
[79]
tantas monographias excellentes com que depois
tem sido illuminada, por um ou por outro aspecto,
n'uma ou n'outra epocha, a historia da igreja. Eis
os limites que elle estabeleceu á credibilidade
n'um genero de escriptos onde esta poderia ser
mais ampla, limites que á
fortiori não
será nunca
licito ultrapassar em matéria de
tradições humanas.
Mas antes permitta-me v.. que cite algumas
passagens, as quaes me parecem grandemente applicaveis
a essa parte do clero, que, em vomitando,
no pulpito ou na imprensa, contra quem diz a
verdade, quantos adjectivos injuriosos contém o
diccionario da lingua, pensam que salvaram a honra
dessas fabulas e crendices que estão costumados
a propalar entre o povo, provavelmente pela mesma
razão por que prégam mal, isto é
porque os
festeiros gostam d'isso, embora os concilios lh'o
prohibam, os apostolos os condemnem, os membros
mais doutos e pios da igreja catholica lhes
mostrem o abysmo em que se precipitam! Para
onde has tu fugido, oh religião de Christo?!
«Vejo bem―diz Fleury―que a minha historia
não ha-de agradar aos espiritos acanhados,
atidos ás suas preoccupações, e sempre
promptos
em condemnar os que pretendem desenganá-los;
aos que tapam os ouvidos quando a verdade soa,
[80]
para se abraçarem com as fabulas, buscando doutores
que vão com elles. Não lhes faltarão
livros
acommodados ao paladar. Escrevo em vulgar
para ser util aos homens de juizo...»
«Dous excessos vejo eu que ha a evitar: um
de credulidade, outro de critica. Nem só a simpleza
faz credulos. Pessoas ha que o são por politica
e por deploravel sobranceria.
Julgam que
o povo é incapaz ou indigno de saber a verdade;
e tem por necessario alimentar-lhe todas as opiniões
que lhe foram inculcadas como religião,
receiosos
de abalar o que é solido, atacando o que
é frivolo. Na essencia, estes suberbos politicos
são ignorantissimos. Desconhecendo a religião,
não a tomam a serio, e nada os liga a ella senão
as preoccupações da infancia e os interesses
temporaes.
Nunca examinaram as seguras provas do
evangelho, nem sentiram a excellencia da sua moral
e a esperança dos bens eternos.
É por isso que
não ousam profundar as cousas antigas e temem
conhecê-las: sabem que lhes não
são favoraveis.
Querem crer que sempre se viveu como hoje,
porque não querem mudar de vida, como se nos
fosse proveitoso enganar-nos a nós mesmos, ou
se a verdade podesse trocar-se em mentira á força
de averiguações. Graças a Deus, a
fé christan
[81]
passou pelo chrysol; o que ella
teme[23]
é que
não
a conheçam.
«A outra especie de pessoas credulas em demasia
são christãos sinceros, mas fracos e
escrupulisadores,
que á propria sombra da religião
respeitam, e sempre receiam crer de menos.
Falta a uns a instrucção; cerram os outros os
olhos, e não querem fazer uso do entendimento.
É para os taes objecto de devoção crer
quanto
escreveram os auctores catholicos e quanto crê
o ignorante vulgo. A meu vêr, a
legitima
devoção
consiste em prezar a verdade e a pureza da religião,
e em observar, primeiro que tudo, os preceitos
expressamente estabelecidos na sagrada
escriptura. Ora, vemos que S. Paulo recommenda
repetidas vezes a Tito e a Timotheo que evitem
as fabulas, predizendo tambem que uma das
desordens do fim do mundo será o affastarem-se
os homens da verdade para se aterem a crendices;
vemos que as fabulas eruditas não merecem
menos desprezo a S. Pedro que os contos de velhas
[82]
de S. Paulo; e do mesmo modo que elle condemna
as fabulas judaicas, teria condemnado as
christans, se já então as houvesse. Que
dirão a
isto aquelles que a timidez torna tão credulos?
Não terão escrupulo em menosprezar semelhante
auctoridade? Dirão que nunca houve fabulas
entre os christãos? Seria desmentir a antiguidade
em peso...»
«A critica é portanto, necessaria. Sem deixar
de respeitar as tradições, deve averiguar-se
quaes
são dignas de credito; devemos fazê-lo,
até, se
não queremos desacatar as verdadeiras, confundindo-as
com as falsas. Sem que duvidemos da
omnipotencia de Deus, podemos e devemos examinar
se os milagres estão bem provados, para
lhe não levantarmos falso testemunho, attribuindo-lhe
os que elle não fez.»
Eis como pensava o grande historiador ecclesiastico
ácerca dos milagres, estribado nos livros
que Deus inspirou. Quem será, pois, o impio, o
incredulo? O que seguiu os conselhos dos apostolos
e as doutrinas dos homens mais piedosos e
sabios do gremio catholico, ou aquelles que esquecidos
dos deveres, não digo do sacerdocio
(porque neste caracter, o seu procedimento não
tem nome), mas do simples christão, ousam perguntar
[83]
ao historiador sincero: «
Se é
necessario,
se é util que o historiador se constitua campeão
acerrimo contra essas tradições que deturpam a
historia? e que
respondem:―
É um arrojo mui
imprudente e reprehensivel no historiador semelhante
intento. Que precisão, que vantagem ha
em destruir as crenças theocraticas[24], que uma
tradição de seculos fora radicando no
coração
do povo? Nenhuma ha:» e depois accrescentam
esta maxima impia de Laharpe―«
a politica
sabia
e devia tirar partido do poderoso movel da
geral crença, cujos effeitos são geralmente bons
em todo o governo, mesmo quando a crença é
erronea!» Não peço a
v.. tão cavalheiro e tão
indulgente para comigo; peço ao homem que mais
me odiar, mas que conserve um resto de pudor,
que seja juiz entre mim e os desgraçados que não
se envergonham, christãos e sacerdotes, de invocar
contra a Historia de Portugal taes principios
e taes maximas, e que insultam, não a mim,
nem o meu livro, mas os apostolos, mas a biblia,
[84]
mas os escriptores mais sabios, mais respeitados
do catholicismo.
Mancebos, cujos corações generosos a
indignação
póde desvairar! No meio destas saturnaes hediondas
que vedes passar; no meio dos gritos descompostos
da hypocrisia, que, embriagada de colera,
deixa tombar dos hombros seu velho e já tão
roto manto, e nua e vinolenta pragueja a verdade,
atira com a fé aos pés da politica, rasga as
sacras
paginas, maldiz as cinzas dos sanctos, dos martyres,
e dos sabios, não volteis, cheios de horror e
de tedio, as costas ao Calvario. Não! A philosophia,
a honesta liberdade do pensamento, bem
vedes que estão sanctificadas no livro dos livros,
O Christo foi o Deus da verdade. Se ao entrardes
no templo ouvirdes dizer que a mentira é sancta,
que o povo só póde ser virtuoso se crer em falsos
milagres, saí, porque o templo está polluido
pela blasphemia e pela calumnia; mas não renegueis
da cruz. A cruz está pura; a cruz será eterna.
Se esta gangrena que corroe o sacerdocio chegasse,
o que não creio, a corrompê-lo inteiramente;
se não achassemos uma ara, juncto da qual
orassemos
em espirito e verdade, a
cruz lá está
hasteada nos cemiterios, sobre os ossos de nossos
paes, para nos irmos abraçar com ella: os
[85]
mortos não tem ouro, os mortos não são
festeiros,
que paguem para se lhes falar a sabor: ahi
não se tem blasphemado.
Mas, reprimindo a amargura que deve causar
a todo o christão sincero o ver sacerdotes sacrificarem
assim a conveniencias mundanas o verbo
de Deus, e semelhantes ao apostolo desleal contarem
e recontarem o preço por que o venderam,
acolhamo-nos ás placidas discussões da sciencia,
e vejamos, como já disse, as mais importantes
dessas regras que o pio e douto Fleury punha a
si proprio para evitar os erros da nimia credulidade.
«Não tenho em conta de provas, senão o
testemunho
dos auctores originaes, isto é, daquelles
que escreveram
contemporaneamente, ou pouco
depois. Porque a memoria dos successos não
póde subsistir por muito tempo sem ser escripta.
Bastante será se durar um
seculo. O filho póde
lembrar-se passados cincoenta annos do que o
pae ou avô lhe referiram cincoenta annos depois
de o haverem presenciado. Os successos que tem
passado por varias gerações não obtem
a mesma
certeza: cada qual lhes vai accrescentando alguma
cousa de sua lavra, talvez sem o pensar.
É
por
isso que as tradições vagas de factos muito
antigos,
[86]
que tarde ou nunca se escreveram, nenhum
credito merecem, principalmente repugnando a
factos provados.
Nem se diga que as historias
pódem
ter-se perdido; porque, dizendo-se isso sem
provas, posso tambem eu affirmar que ellas nunca
existiram. O mesmo direi dos escriptores que
escreveram successos anteriores a elles muitos seculos;
se não citam os auctores d'onde os tiraram,
temos o direito de desconfiar de que acreditaram
de leve os rumores vulgares.....»
«Os proprios auctores contemporaneos não devem
adoptar-se sem exame... deve averiguar-se
bem se o escriptor é digno de fé, quasi como
quem inquire testemunhas n'um processo...
O
que se encontra em cartas, ou em outros diplomas
da epocha, deve ser preferido ás narrativas
dos historiadores.»
Até aqui Fleury. Para estas largas
citações preferi
dous homens de indubitavel sciencia e de catholicismo
insuspeito. V.. sabe que eu poderia
tambem citar escriptores da primeira ordem, pagãos
ou protestantes, mas cuja auctoridade nem
por isso seria menor n'uma questão que evidentemente
não interessa os dogmas da nossa fé. Poderia
invocar a bella sentença de Cicero:
«Quem
ignora que a primeira lei da historia é não ousar
[87]
dizer a menor falsidade, e a segunda não nos
faltar jámais valor para dizermos a
verdade?»
É certo que uma parte do clero português do seculo
XIX se ergueria para lhe
responder:―«
Ignoramo-lo
nós.»―Eu poderia tambem repetir
as
palavras do luminar da critica no seculo XVII, as
palavras de João Leclerc:―«Quando se escreve
a historia,
sobretudo de tempos
antigos, não é licito
dissimular a minima cousa; porque a verdade,
sem ser nociva aos mortos, aproveita muito
aos vivos; e pelo contrario a dissimulação,
inutil
para aquelles, é profundamente damnosa a
estes.»―Não
me quiz aproveitar dessas auctoridades
summas, porque um não era christão, outro
não era catholico. Parece-me que é levar longe o
escrupulo. E todavia, o protestante Leclerc estribava-se
na opinião de S. Isidoro Pelusiota―«Aquelles―diz
o sancto―que com artificiosas
palavras encobrem a verdade, muito mais desgraçados
me parecem de que os que não a comprehenderam.
Porquanto, os que por curteza de
engenho não a alcançaram, estes não
são talvez
indignos de desculpa; mas os que, sendo dotados
de agudeza, investigaram a verdade e criminosamente
a occultam, commettem mais grave e
imperdoavel peccado.»
[88]
Mas, apesar de catholicos e pios, Mabillon e
Fleury eram sobretudo eruditos. Haveria nelles
menos luzes theologicas? Serão os theologos de
profissão mais indulgentes para com as lendas e
tradições não provadas?
Exigirão, ao menos em
referencia á historia da igreja, maior credulidade
nos que a estudam ou escrevem? Ouçamos o celebre
Melchior Cano, o qual ninguem accusará
de excessivo amor pelos fóros e liberdades do
raciocinio: eis algumas das suas observações
ácerca
do credito que deve dar-se ás
tradições infundadas.
«A principal regra (para distinguir as narrativas
falsas das verdadeiras) deduz-se da probidade
e inteireza humanas; regra perfeitamente applicavel
quando os historiadores
testificam terem
presenciado os successos que narram, ou terem-nos
sabido daquelles que os presenciaram...»
«É cousa averiguada que esses que escrevem
fingida e enganosamente a historia ecclesiastica
não podem ser gente boa e sincera, e que toda a
sua narrativa é tecida
para d'ahi tirarem
lucro,
ou para persuadirem o erro;
torpes no primeiro
caso, perniciosos no segundo. Justissimas
são as
queixas de Luiz Vives ácerca das historias inventadas
no seio da igreja;
prudentes e graves as
[89]
arguições que dirige áquelles que
julgam obra
pia fazerem de mentiras religião, cousa
altamente
perigosa e profundamente inutil. Do mentiroso
nem a propria verdade ousamos acreditar.
Por isso
os que pretendem concitar os animos ao
culto dos bemaventurados com falsos e mentirosos
escriptos, nenhum outro resultado tirarão,
talvez, se não negar-se fé ás cousas
verdadeiras
por causa das falsas, e tornar-se duvidoso aquillo
mesmo que referem com severa consciencia auctores
de inteira veracidade.»
Preciso de implorar toda a indulgencia de
v.. para transcrever em seguimento a esta passagem,
admiravel de cordura e de legitima piedade,
outro bem diverso extracto. Juro que não
o faço com o intento de humilhar os homens sinceros
e honestos, a quem, a meu vêr, cega um
erro deploravel. É para vingar a religião
injuriada;
é para dar ao paiz um desses espectaculos
repugnantes, mas salutares, a que os lacedemonios
recorriam para evitar um vicio hediondo,
mandando assistir um escravo em completa embriaguez
ao jantar commum da mocidade d'Esparta.
Só advirto que a passagem é
concepção
de um sacerdote, que celebra por certo tranquillamente
o tremendo sacrificio do altar, sem que
[90]
em todas as paginas do missal
[25]
leia, escriptas em
letras de fogo, estas palavras que Jesus, o inimigo
da mentira, dizia aos escribas e phariseus de
outro tempo:
«Hypocritas! Bem prophetisou ácerca de
vós
Isaias, quando disse:
«Esta gente honra-me com os labios; mas o
seu coração está affastado de
mim.»
Eis a inqualificavel passagem, que, ainda uma
vez, peço venia de lançar, depois das doutrinas
de Melchior Cano, n'um papel que é dirigido a um
homem tão delicado como v..
«Os historiadores têm advertido que os factos
maravilhosos, os prodigios singulares, que registavam
em seus escriptos
não eram fundados
senão
em rumores populares; outras muitas vezes tem-nos
tambem referido sem esta precaução, já
porque
elles mesmos fossem povo a tal
respeito... já
porque elles não julgassem dever abalar a crença
vulgar; bem convencidos que á sombra de um
[91]
prejuizo repousava ás vezes uma verdade util, a
que talvez tivessem vergonha de prejudicar.»
«Eis aqui os
dictames
prudenciaes, adoptados
pelos mais distinctos historiadores, ácerca dos
successos de caracter maravilhoso, que devem
dirigir todo o escriptor sensato.
O contrario
é
querer campar por uma anomalia extravagante
e ridicula...»
«Se, porém, gravemente offende o melindre
patriotico de uma nação aquelle que simplesmente
contradiz os pontos
theocraticos das
suas tradições
historicas constantemente recebidos e venerados;
quanto não se torna mais altamente
réu
d'este attentado aquelle escriptor, que
não só os
nega, mas tem a
asquerosa villania
de á cara
descuberta os vir insultar? Se alguem ha no orbe
litterario que mais demonstrativamente tenha
commettido
tão reprehensivel e extranho
excesso,
é por certo o auctor da carta aviltante, a respeito
da Apparição de Christo a D. Affonso Henriques.
É uma das ulceras mais pustulentas que
conspurcam
e aviltam esse escripto sandeu, que rancorosamente
a impropéra...»
«Como é crivel que uma fabula... fosse sustentada
como facto verdadeiro por seculos...?
Quando, porventura, o tivesse sido, teria,
não
[92]
receio dizê-lo, por effeito dessa universal
crença
dos sabios,
perdido a sua natureza e deixado de
o ser!!!...»
Basta! Refujamos deste hediondo espectaculo,
para continuarmos a averiguar tranquillamente
se os theologos de profissão concordam com os
eruditos de reconhecida piedade nas bases da
critica historica. Ainda algumas palavras de Melchior
Cano.
«Achareis outros, não tão ineptos, mas
quasi
tão imprudentes, que não buscam a verdade das
cousas onde a deviam buscar, mas naquelle logar
onde é raro encontrá-la,
em
aereos e vagos rumores.
Acontece isto frequentemente aos inconstantes
e leves de cabeça;
porque os homens graves
e
severos não costumam andar á caça dos
dictos
vãos do vulgo.»
Desçamos já aos fins do seculo XVIII, quando
a incredulidade corria como lava ardente pela face
da Europa, e devorava as crenças mais sanctas
e legitimas em milhares de corações. Vacillou,
acaso, por isso a critica dos homens probos e
pios nos seus principios de severidade? No meio
de tantas ruinas, quizeram elles salvar com os
restos do edificio a sua falsa miragem? V.. o
julgará pelas doutrinas de muitos varões
religiosos
[93]
dos ultimos tempos, inteiramente accordes
com as dos que os haviam precedido. Por exemplo,
o theologo piemontês Denina, diz-nos:
«Acontecem algumas cousas fóra da ordem
natural, que, de per si só, são incriveis... a
esta
categoria pertencem, na igreja de Deus, os
milagres, os quaes,
nem é licito rejeitar
na
sua totalidade, nem se devem acceitar todos sem
selecção...»
«Pertence á prudencia do historiador
nada
escrever, que não saiba por si proprio, ou não
se estribe na auctoridade de pessoas fidedignas,
cumprindo-lhe, não menos, ser pouco credulo.
Mas
ninguem póde ter conhecimento do que
narra,
se não viveu no tempo em que os factos aconteceram;
nem sabê-los de pessoas fidedignas, se
estas não os presenciaram; nem escapa de
credulo,
se não explicar e expender as razões, causas
e circumstancias do que relata. Auctores que
assim o fazem
nenhum credito
merecem...»
«Nem tudo quanto o historiador relata do seu
tempo se ha-de acreditar; salvo constando que
fôra curioso em indagar e explorar...»
«Se o historiador referir cousas, não do seu
tempo, mas succedidas muitissimo antes, dar-se-lhe-ha
credito,
se individuar os auctores d'onde
[94]
as tirou, sendo
aliàs
daquelles que as podiam
saber...»
«Não duvido de chamar
máu historiador a
todo aquelle que devendo ter por norma o não
ousar dizer a menor falsidade,
nem faltar-lhe
animo para dizer qualquer verdade, encubrir
esta aos leitores,
seja por que motivo
for...»
Assim pensavam os theologos d'Italia nos fins
do seculo passado: assim pensavam tambem os
theologos catholicos da Allemanha, ou antes do
paiz mais religioso d'ella, a Austria. Citarei dous,
um dos quaes, ou ambos, a nossa universidade
honrou, escolhendo as suas instituições de
historia
ecclesiastica para compendios nas faculdades
de theologia e de direito canonico. Falo de
Gmeiner e Dannenmayr. As secções desses
compendios
relativas ao
criterium da verdade
historica
nada mais são do que o desenvolvimento
das doutrinas de Cicero, de Mabillon, de Fleury,
de Melchior Cano, de Riegger, de Leclerc, de
Muratori, de Baumeister; em summa de todos
os criticos, historiadores, e philosophos, que falaram
ex-professo ou accidentalmente da crítica
historica. Andam esses livros nas mãos de todos,
menos nas do clero ignorante e corrupto, porque
este, coitado, não sabe ler. Não serei, por isso,
[95]
demasiado extenso em citá-los, escolhendo apenas
as passagens mais frisantes, e que fazem sobretudo
ao intento.
«Como os narradores―diz Gmeiner―por
falta de
habilidade sufficiente, ou
de sciencia, nos
possam enganar, ou por falta de
sinceridade, ou
por vontade nos
queiram illudir,
só podêmos
acquiescer ao seu testemunho, se não houver
razões sufficientes para duvidar da sua habilidade
ou sinceridade.»
«A auctoridade das testemunhas não é
uma e
a mesma, e portanto deve attender-se a esta diversidade.
Observa-se ella 1.º em relação aos
sentidos,
2.º em relação ao entendimento,
3.º em
relação á vontade. Em
relação aos sentidos, essas
testemunhas ou são de vista ou de ouvida.
As de
ouvida ou são coevas, ou não coevas mas que
ouviram
aos coevos o que narram...»
«D'aqui se segue,
que pouca fé
deve dar-se
áquillo que os escriptores ou absolutamente contemporaneos,
ou quasi contemporaneos deixaram
de mencionar...»
«A verdade dos conhecimentos historicos não
depende de modo nenhum da abundancia dos
historiadores, visto que
não
provém maior certeza
a um facto historico de ser relatado em livros
[96]
de muitos auctores mais modernos, cada
um dos quaes foi copiando o que outro tinha dicto.
Todos elles junctos não valem mais do que
o primeiro que o referiu...»
«A consideração do paiz em que o
escriptor
viveu, e do tempo em que escreveu importa
muito em relação ao seu intuito de falar verdade.
N'alguns paizes a liberdade de escrever é
franca; n'outros opprimida; n'outros, emfim,
ha premios para a lisonja, odio e castigo para
a verdade... Ensina-nos a historia que os escriptores
lisonjeiros da curia romana receberam
ás vezes em premio
de suas
fadigas o barrete
cardinalicio ou a dignidade do episcopado.
Naquellas provincias onde vigorou o terrivel tribunal
da inquisição, a fogueira estava prompta
para a verdade.»
«Não faltaram impostores e falsarios, que
trabalharam
em alterar varias passagens nos antigos
monumentos, e que tiraram a uns e accrescentaram
a outros.»
Consinta-me v.. que ainda transcreva poucas
linhas do theologo Dannenmayr:
«Para tirarmos proveito... da historia ecclesiastica―diz
elle―devemos principalmente ter
em mira,
que nem se nos inculquem fabulas
sobcolor
[97]
de verdades, nem consideremos como duvidosos
factos absolutamente certos e largamente
provados.»
Tenho talvez sido prolixo. Mas era necessario
estabelecer uma doutrina, uma norma, por onde
os animos imparciaes, e ainda os prevenidos,
mas sinceros nas suas prevenções, houvessem
de julgar-me, não tanto no foro da sciencia, que
era o meu foro, que era aquelle para onde eu
tinha direito de trazer o litigio, mas nó da mais
restricta piedade. Em these, a contenda dos que
blasphemam contra a verdade, que fazem a apologia
(e que apologia, meu Deus!) das tradições
fabulosas, não é comigo; é com os
apostolos,
com os sanctos, com os historiadores do catholicismo,
com os theologos, com todos aquelles e
com tudo aquillo a que mais importava á hypocrisia
mentir acatamento nesta comedia beata.
A tonta e imprudente não se lembrou de que lhe
caía a mascara, e de que alguem poderia
levantá-la
para a entregar ao povo, que nos seus grandes
instinctos de justiça lhe fustigaria as faces
com ella. Na hypothese, no que me diz respeito,
o meu dever é provar aos homens sinceramente
pios que, rejeitando falsas lendas, não ultrapassei
os limites de uma crítica irreprehensivel. Será
[98]
esse o objecto da carta immediata, que em breve
espero dirigir a v.. Nas seguintes darei razão
das minhas opiniões ácerca da maioria do nosso
clero, e ácerca da curia romana. Compelliram-me
a isso; fá-lo-hei gemendo. Quizeram que o
paiz os conhecesse: hão-de ser satisfeitos.
Emquanto os ecclesiasticos virtuosos e instruidos
choram em silencio a vergonha da sua classe,
e emquanto os prelados dormem tranquillos nas
suas cadeiras episcopaes, Deus salve a igreja portuguesa
dos tristes dias de tempestade!
IV
SOLEMNIA VERBA
SEGUNDA CARTA
AO SR. A.L. MAGESSI TAVARES
(Novembro, 1850)
Na minha antecedente carta deixei eu, ou para
me exprimir com mais exacção, deixaram muitos
e mui piedosos escriptores catholicos apontadas
as principaes regras da critica, em relação
ás fontes historicas. Dessas regras resulta o que
a boa razão está por si indicando; que
é necessario
premunir-nos contra a credulidade, não só por
honra da sciencia e pela consideração do proprio
credito litterario, mas tambem, o que é mais grave,
para não deslizarmos da doutrina dos apostolos,
inculcada nos livros sanctos. O mais necessario
canon, em que de certo modo todos os outros se
consubstanciam, é o atermo-nos unicamente aos
testemunhos synchronos ou quasi synchronos,
[100]
aos testemunhos daquelles que presenciaram os
factos, ou, pelo menos, que os ouviram narrar aos
contemporaneos, quer esses factos sejam naturaes
e criveis, quer sobrenaturaes e incriveis para
a razão humana; quer elles nos sejam transmittidos
por narrativas coevas ou quasi coevas, quer
por documentos do tempo, embora descubertos
por escriptores modernos. Quando, porém, se tractar
de milagres, a critica deve ser tanto mais
severa, quanto é certo que a isso nos constrange
o dever religioso, que nos impõe as palavras de
S. Paulo, o dever de não levantarmos falsos testemunhos
a Deus.
Que podia eu fazer em relação ao supposto
milagre de Ourique, escrevendo a historia do
reinado de Affonso I? Faltavam-me absolutamente
chronicas, historias, documentos coevos ou
quasi coevos, que o narrassem. O exame attento
de quanto modernamente se escrevera para supprir
a falta de provas daquella celebre tradição,
só tinha servido de convencer-me das
aberrações
em que se podem transviar ainda os espiritos
mais elevados, quando, em vez de buscarem simplesmente
a verdade, buscam accommodar os
caracteres desta a um preconceito. Não me era
possivel omittir a batalha de Ourique. Que podia
[101]
eu fazer, repito, ácerca do milagre da
apparição?
Ou mentir á minha consciencia, alevantar um testemunho
a Deus, pospôr as doutrinas dos homens
mais pios e eruditos do orbe catholico, que
falaram de critica historica, calcar aos pés a maxima
do mais illustre escriptor romano, ou então
manifestar sem hesitação as proprias
convicções,
que julgava e julgo legitimas, isto é, proceder
de um modo que v.. mesmo crê nobre e honroso
[26];
affirmativa, que, seja dicto em boa paz, não
sei se está em perfeita harmonia com a idéa geral
que predomina nas considerações que v..
tem tido a bondade de dirigir-me sobre os inconvenientes
que resultam, no entender de v..
para a nossa patria commum, da manifestação
das minhas doutrinas.
Disse, pois, o que suppús e supponho verdade:
disse-o sem sobre isso me dilatar, sem
exaggeração,
sem pretensões a ter feito um importante
descobrimento historico; porque realmente
o não era: disse-o singelamente, simplesmente:
indiquei apenas de passagem as incongruencias
historicas, que desmentiam a importancia que se
costuma attribuir ao successo. E n'esta parte,
[102]
seja-me licito dizê-lo, nem v.. nem ninguem se
encarregou de me refutar; porque, na verdade,
seria um pouco difficil de admittir que houvesse
centenas de milhares de sarracenos para virem
combater em Ourique, quando os almoravides
concentravam todas as forças em Africa, para salvarem
o imperio da ultima ruina, exhaurindo a
Hespanha de soldados, a ponto de abandonarem
a heroica guarnição de uma praça como
Aurelia
ao seu triste destino. A narrativa anterior, o quadro
da situação dos lamtunitas e das
perturbações
quo agitavam as provincias mussulmanas do
Gharb habilitavam o leitor para por si fazer conceito
das dimensões da batalha de Ourique. Se
em alguma cousa cedi da inflexibilidade da historia
foi em procurar, talvez em demasia, achar resultados
moraes dessa batalha, para de algum modo
desculpar a significação exaggerada que depois
se lhe attribuiu. Sobre a apparição disse apenas
o restrictamente necessario para o leitor vulgar
conhecer que eu não a admittia. Se tivesse o proposito
deliberado de combater quando podesse
ferir o chamado sentimento religioso do povo,
crê v.. que eu não teria recursos para aproveitar
o lado contradictorio e até ridiculo, (que cousa
ha neste mundo onde elle se não possa encontrar?)
[103]
do celebre milagre, sem todavia abandonar
o estylo grave da historia? Crê v.. que se eu intentasse
buscar as causas provaveis da invenção
dessa maravilha, e avaliá-las severa ou, se quizerem,
malevolamente, me faltariam meios para
assim o practicar? Permitta-se-me dizer que foi
necessaria demasiada prevenção contra mim, ou
a favor da inviolabilidade da apparição, para se
não ver que procurei, quanto me era possivel sem
offender a verdade, não converter os factos que
se prendem a esse falso milagre n'um escandalo
historico. As extensas notas com que finalisa cada
volume do meu livro são destinadas para os homens
da sciencia, para debater os fundamentos
das minhas opiniões. Estas notas são, portanto,
para poucos. A generalidade dos leitores não se
cansa com essas discussões tediosas. Foi, porém,
ahi que eu alludi ao ridiculo instrumento do cartorio
d'Alcobaça, o que fiz apenas pelo desejo de
dar uma satisfação aos homens professionaes. Se
eu fosse o impio, o atheu, e não sei que mais,
que por ahi me chamam os padres ignorantes e
mal procedidos, não tiraria vantagem dessa
falsificação
insigne, para mostrar como a hypocrisia
costuma fazer joguete das cousas do céu para
fins terrenos? Não practicaria ao menos aquillo
[104]
que a justissima indignação de qualquer homem
religioso o levaria talvez a practicar? Se tal se houvesse
de crer, não deveriam qualificar-me de impio,
mas sim de insigne mentecapto.
Em ambos os opusculos que v.. me fez a honra
de escrever contra as minhas opiniões, v.. insiste
em que, citando naquella nota a Memoria de
Fr. Joaquim de Sancto Agostinho contra a genuinidade
do diploma de juramento conservado em
Alcobaça, eu fiz uma citação
contraproducente
[27].
Contraproducente?! Pois o erudito augustiniano
não nega ahi redondamente a authenticidade do
diploma? O que dizia eu ao citar a Memoria sobre
os codices d'Alcobaça?―«
Quem
desejar conhecer
a impostura desse documento famoso consulte
a Memoria, etc.»―Se o auctor concorda
comigo
em que elle é falso, onde está a improcedencia
da citação? Se v.. me permitte que seja
interprete do seu pensamento, o que v.. queria
talvez dizer era, que Fr. Joaquim de Sancto Agostinho
affirma que acreditava na apparição, posto
negasse a genuinidade do pergaminho de Alcobaça,
e que eu não creio nem no documento, nem
no facto. Exprimindo-se assim, v.. teria sido exactissimo.
[105]
Não era, porém, para a opinião
manifestada
pelo academico em relação ao successo,
mas sim para as suas razões contra o diploma
que eu remettia o leitor. E realmente, o que elle
diz em favor do facto não é mais do que repetir o
que outros disseram antes delle, e citar uma copia
de 1597 existente em S. Vicente de Fóra vista por
elle, e a qual, duas paginas adiante, dá como provavelmente
tirada
de outro original falso. O
que
se vê de tudo aquillo é que o pobre frade,
conhecendo
o risco de mostrar o que era e o que valia
O ridiculo thesouro dos monges d'Alcobaça, quiz
ao menos salvar-se, protestando pela pureza da sua
crença no milagre de Ourique. Talvez, se eu vivesse
então, fizesse o mesmo, em attenção
á circumstancia
que nos recorda Gmeiner: «
onde vigorou
o terrivel tribunal da inquisição, a fogueira
estava prompta para a verdade».
Soffra-me v.. dizer eu aqui que me envergonho
pelo meu paiz desta necessidade de disputar
ácerca de um diploma falso, que se acha depositado
nos archivos do estado, onde qualquer pessoa
póde examiná-lo. Qualquer pessoa, sim; porque
não é preciso ter a menor idéa de
paleographia
para o reconhecer por falso. Basta pôr-lhe ao
lado dous ou tres diplomas genuinos do meiado
[106]
do seculo XII, e comparar. Esses multiplicados
recursos que possue a diplomatica para desmascarar
falsarios são aqui perfeitamente inuteis.
Estou certo de que v.. nunca o viu; porque tambem
estou certo de que, se o houvera visto, eu
acharia v.. a meu lado para dizer aos homens
sem pudor que ainda ousam inculcar como legitima
essa
invenção
torpe:
«
Sois uns
miseraveis!»
Sinto sinceramente que v.. se dignasse de
tomar para si, a favor da apparição, um argumento
que devia pertencer precipuo aos apologistas
dos clerigos ignorantes e devassos. Consiste
elle em que, negando eu que a tradição de
Ourique remonte aos tempos a que se refere,
devo dizer quando, como, e para que a forjaram.
Onde existe semelhante canon de critica historica?
O que sei é que ella começou a apparecer
no ultimo quartel do seculo XV, mais de trezentos
annos depois da epocha em que se diz succedido
o milagre; o que sei é que em nenhum
escriptor, nem em nenhum documento legitimo,
coevo ou quasi coevo, ha o menor vestigio de semelhante
tradição; o que sei é que os
escriptores
modernos que a publicaram não se referem a
testemunho contemporaneo ou proximo; o que
sei, portanto, é que as regras de critica adoptadas
[107]
por homens não menos pios que sabios me
obrigam a rejeitá-la. Diga-me v..: se um devedor
seu pretendesse pagar-lhe certa quantia
em moeda falsa, v.., depois de a examinar e convencer-se
da sua falsidade, o que fazia? Pelos principios
por que pretende julgar-me, devia reconhecê-la
por boa e acceitá-la, emquanto não podesse
mostrar quando, como, por quem e para que fora
forjada. Não vê v.. que uma tal regra de critica
nos obrigaria a adoptar como verdadeiras até as
lendas indicas de Vishnú e de Brahma?
Outro argumento me faz v.. que eu tambem
desejara tivesse deixado aos ex-frades ignorantes
e hypocritas: é o da impossibilidade de nossos
avós terem adoptado uma tradição que
não fosse
verdadeira. Quer v.. que lhes concedamos a
mesma critica, a mesma intelligencia, a mesma
honra, o mesmo amor da propria fama e dignidade
que nós temos. Concedo por um momento.
Mas o patriotismo de v.. não será tão
inimigo
da logica, nem tão cego, que recuse os mesmos
dotes aos avós dos actuaes castelhanos, franceses,
italianos e allemães. Por aquella doutrina, v..
deve acreditar todas as lendas desses paizes, ainda
quando a critica historica as tenha feito abandonar
aos castelhanos, franceses, italianos e allemães
[108]
de hoje. Mais: v.. deve, por exemplo,
acreditar
à fortiori a
historia da papisa Joanna,
embora já os proprios protestantes se riam dessa
calumnia ridicula, porque a Europa inteira a acreditou
por seculos. Mais ainda: v.. é assaz instruido
para não ignorar qual foi a
civilisação dos
arabes nos seculos IX, X, XI, sobretudo dos arabes
hespanhoes, qual a sua sciencia e litteratura,
qual a nobreza do seu caracter. Apesar disso, elles
nunca deixaram de crer na tradição dos milagres
de Mafoma. Não é de esperar da justiça
de v.. que
recuse a esse povo tão culto os dotes intellectuaes
e moraes que attribue a nossos avós. Adoptará
v.. as lendas mussulmanas ácerca do propheta
de Mekka? Principios que provam tanto, ou antes
que provam tudo, permitta-me v.. desconfiar
de que não provam nada. Deus nos livre de
pensar que uma fabula que se generalisa, se converte
por isso em verdade. Semelhantes doutrinas,
deixe-as v.., christão, cavalheiro, e homem
de letras, para essa parte da cleresia, que quer
lucrar com as illusões populares. A nós,
christãos,
incumbe recordar-nos daquellas tremendas
palavras do divino Mestre:
«Guardae-vos do fermento dos phariseus, que
é a hypocrisia:»
[109]
«
Porque nenhuma cousa ha occulta que
não
venha a descubrir-se; e nenhuma ha escondida
que não venha a saber-se....»
«E todo o que proferir uma palavra contra o
filho do Homem ser-lhe-ha dado perdão; mas
áquelle que blasphemar contra o Espirito
Sancto,
não lhe será
perdoado.»
V.. sabe, tão bem como eu, que, segundo
Sancto Agostinho, uma das blasphemias contra o
Espirito Sancto
é o negar a verdade
conhecida por
tal.
E é isto o que responde a todas as
considerações
que v.. me faz sobre a conveniencia de não
desilludir o povo ácerca das suas
tradições mentirosas:
são estas palavras do Salvador, que fulminam
os phariseus modernos, como fulminaram
os antigos, que me obrigam a falar verdade escrevendo
a historia. Ainda que essas considerações
fossem exactas, a patria verdadeira do christão
é o céu, cujas portas ficarão
cerradas, conforme
a doutrina de Christo, aos que tiverem
desmentido a verdade na terra. A patria deste
mundo é nosso dever amá-la, sacrificar-lhe tudo,
menos a honra, menos as esperanças de além do
tumulo, menos a fé. É esta a mais sancta das
tradições
que herdámos de nossos paes. O crucifixo
[110]
sobre o qual deposeram o derradeiro suspiro os
que nos geraram, não o insultemos na vida, para
podermos tambem despedir o ultimo alento, abraçados
com elle, sem terror, sem remorsos, e para
o legarmos immaculado a nossos filhos; para que
elles, no momento de o transmittirem moribundos
a nossos netos, não se lembrem horrorisados
de que essa imagem do Redemptor já foi bafejada
pelo extremo respirar de um blasphemo.
Amemos e respeitemos a tradição divina, e
tenhamos
esforço bastante para repellir mentiras,
sobretudo quando, segundo as palavras do apostolo,
ellas envolvem um falso testemunho contra
Deus.
Isto é para os christãos. Para os falsos
politicos,
que cuidam ser a religião apenas um instrumento
que serve para conter os humildes e pobres,
a que Christo chama os grandes do seu reino,
e a que elles chamam massas brutas; para
esses, que não crendo acaso em Deus, accusam
os que escrevem sinceramente a historia, de demolidores
de nossa gloria; para esses liberaes e
até democratas, que desprezam o povo ainda mais
do que o desprezavam os poderosos de outros
tempos; para os taes não applico eu só o dicto
de Fleury, de que são ignorantissimos em materias
[111]
de religião; digo tambem que o são em materias
de politica. Para o povo ser livre, é necessario
que seja religioso e honesto; não que seja
credulo. Para que elle seja religioso e honesto é
necessario que conheça as doutrinas do evangelho,
que não são mais do que a
confirmação divina
da moral universal. Em vez de inculcar crendices
ao povo, cumpre inculcar-lhe os principios do
christinanismo, e as consequencias daquelles principios:
cumpre illustrá-lo, em vez de o conservar
na ignorancia; fazer-lhe sentir que a força de
practicar grandes e nobres sacrificios, tão recommendados
por Jesus, é o caracter que distingue
o espirito immortal do homem do instincto que
anima as alimarias. É preciso convencê-lo de que
o patriotismo, de que esse puro e sancto affecto
que nos faz abandonar os commodos domesticos,
as affeições do coração, e
arrostar com a fome,
com a sede, com a nudez, com a intemperie das
estações, para irmos morrer n'um campo de
batalha,
salvando a terra em que dormem nossos
maiores, defendendo a cruz do nosso adro, a vida
de nossos paes, a honra de nossas irmãs e mulheres,
é a manifestação mais solemne da
energia
do espirito humano, e da abnegação christan. E
estas verdades eternas; estas verdades, que,
[112]
gravadas nos corações do povo, tantas vezes
têm
salvado as pequenas nações dos intentos
ambiciosos
das grandes, d'onde se deduzem? É das
invenções dos milagreiros e falsarios, ou das
divinas
paginas da biblia?
V.. deve conhecer, como homem de letras
que é, a historia dos povos mussulmanos. Houve
nunca no mundo crença que se estribasse tanto
como o islamismo em falsos milagres, quasi
sempre conducentes a inspirar o amor da guerra
e o enthusiasmo das multidões credulas? E todavia,
quaes foram os effeitos desse enthusiasmo,
que não correspondia a doutrinas accordes com
os instinctos naturaes da nossa alma, que não se
fundava em convicções reflectidas, na certeza
moral
do dever, mas que se inspirava de promessas
fingidas do céu? Os mussulmanos devastaram e
submetteram a melhor porção da Asia e da Africa,
e ainda uma pequena parte da Europa: formaram
quinze ou vinte nações de falsos crentes,
e estas nações cresceram e civilisaram-se
combatendo
sempre. E depois? Depois, quando foi preciso
conservar o edificio; quando se tractou de
defender a patria, em vez de a tirar aos outros;
quando foi preciso repellir em vez de aggredir,
mostrar essa perseverança, que nem se exalta
[113]
com o triumpho, nem desanima com o revés;
que padece, calada e soffrida; essa perseverança
que é a mais poderosa arma dos povos ameaçados
na sua existencia, tudo faltou. As nações
mussulmanas desmembraram-se, fundiram-se,
annullaram-se umas, desappareceram outras, e
conservando todas as suas crenças, todos os seus
milagres, ei-las ahi estão as que restam, ludibrio
da humanidade, corruptas, decadentes, vivendo
ao crepusculo da passada gloria, lançando nos
dias da afflicção e do perigo os olhos para o
occidente,
a vêr se os filhos da cruz estendem o braço
para proteger o crescente. As tradições das
victorias, as maravilhas celestes dos tempos heroicos
de Islam lá estão gravadas na memoria
de todos. Porque não salvam, não regeneram ellas
essas sociedades atrophiadas e moribundas?
Ainda hoje ha homens das novas idéas, os
quaes se dizem cheios de illustração e de
philosophia,
que, abandonando os milagres suppostos,
não porque os tenham por infundados
ou absurdos em si, mas porque suppõe que o
fanatismo póde lucrar com elles, não querem
que se toque nas tradições humanas que se ligam
á gloria nacional. É verdade que não
sabem
bem que deva consistir a gloria de uma nação,
[114]
porque nunca pensaram nisso. Para elles,
que vivem no seculo XIX, onde quer que pereceram
milhares de homens, combatendo por interesses
que não comprehendiam, ou por torpe
cubiça; onde quer que o ferro e o fogo arrasaram
as cidades, despovoaram os campos, embora
dessas cidades e campos nenhum mal tivesse
vindo aos seus destruidores, ha uma gloria sem
mancha, immensa, immarcessivel. Herdeiros pequeninos
e pacificos dos gigantes da assolação,
dos Tamerlans, dos Attilas e dos Gengiskans,
avaliam pela estimativa daquelles illustres selvagens
as façanhas dos proprios avós. Se a historia
pergunta:―«Acaso esses combates, em
que, sem duvida, se practicaram grandes feitos,
foram uteis ao progresso moral e material do
povo em cujo nome se peleijaram, ou trouxeram
a sua decadencia? Está ou não essa gloria
militar,
aliàs indisputavel, assombrada por grandes
crimes? Foi a intenção, a qual só
determina o
valor moral das acções, nobre, grandiosa, pura,
ou teve motivos menos elevados? Foi um arrojo,
um impeto nacional, ou um impulso dado
pela ambição, ou pelo capricho de algum
principe?»―A
historia que faz estas perguntas ou
outras analogas, porque esse é o seu dever, commette
[115]
aos olhos dos taes um crime de leso-patriotismo.
O castelhano, por exemplo, que disser:―«As
barbaridades e crimes commettidos
por Cortez, Pizarro, ou Almagro, na conquista
da America, deshonram as emprezas arriscadas
e longinquas dos filhos da Peninsula, embora o
descubrimento do Novo Mundo demonstre a sua
pericia, o seu ardimento de navegadores e de
soldados. Os effeitos dessa conquista foram o
corromperem-se os costumes, morrerem as industrias
nascentes, despovoarem-se os campos
da Hespanha, seccarem-se, em summa, todas as
fontes da sua prosperidade solida e legitima: foram
amontoarem-se nas mãos do fisco e dos poderosos
o ouro e a prata, que, obtidos sem custo
pelos crimes, se desbarataram sem pudor pelos
vicios; foram o perderem-se as velhas liberdades,
e com ellas o sentimento da dignidade humana,
cujo ultimo brado soou nas rebelliões contra
a tyrannia de Carlos V:»―o hespanhol que
disser isto é um mau cidadão aos olhos dos mansos
guerreadores destes nossos tempos. E porque?
Porque, affirmam elles, o povo ha de moralisar-se,
elevar-se pelas tradições da sua grandeza e
gloria. O povo! Pois o povo que tantas vezes tracta
de perto a fome e a nudez; cuja vida, desde
[116]
o berço de farrapos até a enxerga rota em que
fenece, vai travada de receios, de sobresaltos,
de desalentos, e de agonias, pensa lá nas cutiladas
que se deram, nas bombardadas que se despediram,
ha tres ou quatro seculos, por mãos
d'uns homens, cujos nomes e cujas façanhas se
memoram n'uns livros que elle nunca leu, porque
não sabe ler, nem tem dinheiro para pão,
quanto mais para livros? Que são essas palavras
retumbantes de regeneração pelas
tradições, senão
sons ôcos, que não correspondem a nenhuma
idéa? Supponhamos, porém, que todas essas
recordações
chegavam ao povo. Podem ellas servir-lhe
de exemplo, de licção para as suas necessidades
actuaes? N'um paiz onde a riqueza
passageira destruiu os habitos do trabalho e da
economia, entorpeceu pela miseria, resultado infallivel
da prosperidade ficticia, a energia do coração,
que faz luctar o homem com a adversidade
e vencê-la, de que serve estar de contínuo a
prégar ao povo:―«Teus avós levaram o
terror
do seu nome aos confins do mundo, saquearam
e queimaram emporios opulentos em plagas remotas,
metteram a pique poderosas armadas,
derribaram os templos alheios, violaram as mulheres
extranhas, passaram á espada os que eram
[117]
menos valorosos que elles, abriram caminho ao
engrandecimento dos outros povos da Europa, e
affeitos a gosos faceis, deposeram aos pés do absolutismo
as suas velhas franquias, beijaram os
grilhões que lhes deitavam aos pulsos por que
eram dourados, e tornaram-se ludibrio do mundo.»―Estas
licções é que hão-de
ensinar a actividade
no trabalho, a severidade nos costumes,
o amor da liberdade moderada, mas verdadeira,
o desejo de cultivar as artes da paz, no meio de
um paiz decadente, cuja unica esperança de
salvação
está em se desenvolverem nelle essas e outras
tendencias analogas? Não! O povo, que tem
mais logica do que os prégadores de vãos
apophtegmas,
ha-de concluir outra cousa d'ahi: ha-de
concluir que é assaz fidalgo para não contrahir
habitos villãos e ruins. De historias
d'aggressões
e de conquistas brilhantes não se deduz a
necessidade de morrer obscuramente em defesa
da terra da patria; não se deduz a
moderação revestida
de firmeza, que faz respeitar pelas grandes
as nações pequenas; não se deduzem nem
o
amor do trabalho, nem o amor da virtude. Em
vez de contarem ao povo as façanhas da Africa e
do Oriente, contem-lhe qual era o commercio
de Lisboa, e o movimento agricola do paiz no
[118]
no seculo XIV. Estejam certos de que a noticia
desses e de outros factos analogos lhe é mais
proveitosa, material e moralmente, de que recordar-lhe
a gloria de batalhas e de conquistas.
Falsas lendas religiosas, falsas ou verdadeiras
lendas humanas nunca salvaram um paiz,
quando a podridão penetrou no amago da arvore
social. Onde e quando o homem renega
da sua origem divina, vende a liberdade a troco
de delicias, esquece que o elevar-se acima de
viciosas paixões traz um goso interior que vale
bem todos os que dão os sentidos, não
é lisonjeando-lhe
vaidades, que, nem sequer respeitam
a magestade de Deus, que o havemos de revocar
ao sentimento da dignidade e do dever. V..
sabe, talvez melhor do que eu, a historia do imperio
romano, e nomeadamente a historia do baixo-imperio.
Não leio essas paginas melancholicas,
sem que involuntariamente volva os olhos
para o estado actual de algumas nações modernas:
as analogias que encontramos entre estas
e aquella são symptomas dolorosos; mas não
vem para aqui. Eu peço a v.. que reflicta sobre
essa historia em relação á efficacia
das tradições.
Ella completa o quadro que nos offerecem as
[119]
nações mussulmanas. Não foi no tempo
da republica,
foi sob o ferreo dominio dos cesares,
que os poetas cantaram os mythos da gente romana,
que os historiadores celebraram as suas
glorias, e deram a importancia da verdade a centenares
de lendas tradicionaes e fabulosas, que
a sciencia moderna, as investigações do grande
Niebuhr, reduziram já ao seu justo valor. De que
serviram, porém, essas glorias, esses milagres
do polytheismo, contados gravemente a um povo
servo e gasto, que apodrecia aos pés dos tyrannos?
Nos ultimos tempos do imperio os rhetoricos
espraiavam-se em exaggerações sobre as
grandezas passadas, emquanto os cidadãos recusavam
combater por uma patria que se tornara
em nome vão, e preferiam o jugo dos barbaros
a uma nacionalidade mentida. Os hymnos,
as gloriosas recordações romanas serviram
só
para acompanhar ao cemiterio da historia o ataúde
de Roma.
Consinta v.. que a estas rapidas considerações
eu ajuncte ainda um exemplo domestico,
sobre o qual peço a v.. que medite. Na lucta
violenta e tenaz que Portugal sustentou nos fins
do seculo XIV para repellir o dominio estrangeiro,
ninguem se lembrou de fortalecer os animos
[120]
invocando o milagre de Ourique; ao menos não
espero que v.. me aponte o menor vestigio historico
que me desminta. A razão para desaproveitar
tal auxilio foi demasiado forte; foi a razão
do cordeiro da fabula―
o milagre ainda não
era
nascido. E todavia o triumpho coroou os heroicos
esforços de um povo pequeno, que quiz verdadeiramente
ser livre.
Dous seculos depois o milagre de Ourique dominava,
absoluto e não contradicto, no commum
dos espiritos. V.. se encarregou de o provar de
modo innegavel. E todavia, quasi sem combate,
as espadas castelhanas acabaram com a independencia
de Portugal n'um dia.
Entre os dous factos está, além do milagre, a
grande gloria das conquistas, gloria que não era
uma tradição remota, quasi oblitterada na memoria
do vulgo, mas um facto vivo, recente, e a
bem dizer actual. Alguns dos que mais tinham
contribuido para ella ainda viviam.
Estes dous phenomenos, que determinam duas
epochas principaes da nossa historia, assim aproximados,
são a negação mais solemne da
utilidade
dos embustes religiosos, ou para melhor dizer,
anti-religiosos, e do orgulho selvagem de ter
annaes escriptos com o sangue humano vertido
[121]
em guerras não provocadas, em guerras de
aggressão,
e sobretudo de cubiça.
Mas concedamos que, n'um ou n'outro caso
singular, um general ou um homem d'estado tirasse
vantagem dessa deploravel força moral que
se estriba nas superstições, ou nas
idéas de uma
gloria feroz. A questão é, se hoje o povo
português
tem alguma vantagem que tirar dessas tradições,
na situação em que a Providencia o collocou.
Sejamos sinceros. Póde elle sonhar em ser
conquistador, ou sequer em constituir uma potencia
maritima ou continental que pése com demasiada
força na balança dos acontecimentos politicos?
Parece-me que nenhum sisudo o dirá.
Somos pequenos; mas nem isso é vergonha, nem
impedirá que as grandes nações nos
respeitem,
se formos respeitaveis. Para obtermos
consideração
basta que os nossos progressos intellectuaes
e moraes mostrem á Europa que sabemos, queremos,
e podemos regenerar-nos pela sciencia,
pelo trabalho e pela morigeração.
Morigeração, trabalho, sciencia, eis as armas
com que a philosophia politica deste seculo ensina
as nações civilisadas a combaterem n'uma lucta
generosa. Os espiritos mais altos, seja qual
fôr a sua crença religiosa e politica, proclamam
[122]
a paz e a fraternidade entre os homens. E não só
as proclamam, mas até empregam a poderosa
alavanca da associação para promoverem, digamos
assim, uma cruzada sancta contra as tendencias
guerreiras. Os esforços collectivos desses
homens summos serão baldados? Não o cremos.
Elles tem um alliado irresistivel. Quando os
exercitos permanentes e as grandes marinhas militares
tiverem devorado todo o peculio de cada
povo, e exhaurido a melhor e mais pura seiva
da sua vida economica, é então que a philosophia
politica hade alcançar um triumpho decisivo.
Mas esse triumpho que outra cousa será
senão o ultimo termo de uma sorites immensa,
composta dos factos de dezenove seculos, de uma
demonstração practica e invencivel, de que a lei
moralmente necessaria das sociedades modernas
é o christianismo, é o verbo de amor e da paz
revelado
no Evangelho?
Nesses dias, que porventura tardam menos do
que muitos pensam, que destino darão os sacerdotes
da bombarda, da lança e da espada aos
seus deuses fulminados? As palavras «façanhas,
gloria guerreira, conquistas,» como serão
definidas
nos diccionarios das linguas vivas, dentro de
um ou dous seculos? Como julgará a historia os
[123]
milagres inventados para sanctificar o derramamento
de sangue humano?
Desculpe v.. esta digressão, que não creio
nem inutil nem extranha ao assumpto. De novo
entrarei directamente nelle, para proseguir nas
explicações que devo aos meus adversarios
sinceros,
honestos e instruidos, e não á ignorancia
malevola e presumida de hypocritas insignificantes.
Começarei por dar a v.. a razão moral, a
razão
suprema, porque rejeito não só o milagre de
Ourique, mas tambem os outros milagres, como
o de Alcacer, a que ou a má fé, ou a piedade
pouco illustrada quizeram attribuir a sorte das
batalhas, sorte dependente dos occultos designios
da Providencia e de mil accidentes, previstos ou
fortuitos, explicaveis ou inexplicaveis para a historia.
Não creio que essas guerras contra os infiéis
fossem cousa excessivamente christan, e
por isso o meu espirito recusa-se a acceitar como
factos verdadeiros os testemunhos de approvação
divina a um procedimento anti-evangelico.
Na idade média passava como cousa corrente,
que o guerrear os infiéis e fazer-lhes acceitar á
força
o jugo, aliàs tão suave e tão livre,
do christianismo,
era obra meritoria. Os principes aproveitavam-se
[124]
desta doutrina, ou, para sermos justos,
acreditavam-na, em geral, sinceramente: acreditavam-na,
até, a maior parte dos homens intelligentes
e pios. Entre estes se distingue o proprio
S. Bernardo, que o excessivo zelo da gloria do
christianismo incitou a promover a segunda cruzada,
cujo infeliz resultado lhe acarretou tantas
accusações amargas, tantos desgostos pungentes.
A favor das guerras contra os mussulmanos durante
a idade média, principalmente a favor da
que se fazia na Peninsula, podem militar boas
razões de politica, e até de direito, porque essa
guerra não era mais do que a reacção
contra
uma conquista. Razão religiosa é que eu
não vejo
nenhuma que a favoreça. Repugna-me á consciencia
que o Christo, o Deus de paz e misericordia,
viesse pessoalmente ou enviasse os seus
anjos a incitar christãos a derramarem o sangue
humano, a levarem a assolação e a morte ao meio
daquelles que não o adoravam. Será este um modo
errado de vêr? A S. Thomás de Aquino, que
ainda alcançou os tempos das cruzadas, não
fizeram
força alguma as opiniões que haviam dado
origem áquellas expedições longinquas,
para deixar
de estabelecer que a diversidade de crença
não é motivo bastante para um povo atacar outro.
[125]
Reprovando a guerra de religião, não era
possivel cresse que Deus approvava essas luctas
crueis com manifestações sensiveis.
Vê-se, portanto,
que os
milagres militares, que
então se contavam
a tal respeito, pouco credito mereciam a
um dos homens mais pios do seculo XIII, e sem
contradicção ao mais profundo philosopho do seu
tempo. Ouçamos, porém, o grande historiador
da igreja, falando dessas guerras contra os mussulmanos.
«Os christãos―diz Fleury―devem applicar-se,
não a destruir mas sim a converter os
infiéis... Quando Jesus disse que tinha vindo trazer
ao mundo a guerra, da sequencia do seu
discurso, e do procedimento dos seus discipulos
se manifesta claramente que só se referia ás
turbações que havia de excitar a sua doutrina
celestial, turbações em que a violencia havia de
vir toda dos inimigos, a quem os christãos opporiam
a resistencia que as ovelhas oppõem aos
lobos. A verdadeira religião deve conservar-se
e dilatar-se pelos mesmos meios por que se estabeleceu,
pela prédica discreta, pelas obras virtuosas,
e mais que tudo por illimitada paciencia.
Se a isso Deus quizer ajunctar o dom dos milagres,
mais prompto será o effeito. Quando Machiavello
[126]
dizia que os prophetas desarmados nunca
saíram com seus intentos, mostrava-se a um
tempo ignorante e impio; porque Jesu-Christo,
o mais desarmado de todos, foi o que fez conquistas
mais rapidas e firmes; conquistas como
elle as queria, ganhando as almas, mudando de
todo os homens, e tornando-os de maus em bons,
o que nenhum conquistador jámais fez....»
«Repito pois, que não se deve tractar de diminuir
as falsas religiões, ou dilatar a verdadeira
pelas armas e pela violencia: não são os
infiéis que se devem destruir, mas sim a infidelidade,
conservando os homens, e illustrando-os
ácerca dos seus erros. Em summa, para isso não
ha senão um meio, persuadir e converter....»
Imagine v.. se Fleury acreditaria nos milagres
d'Alcacer e de Ourique, milagres em que se faz
intervir o céu para o derramamento do sangue
humano; milagres, que nem tem o merito de
originalidade, porque não havia por essa épocha
paiz da Europa, onde tambem a credulidade de
muitos, e a má fé de alguns não
tivessem associado
largamente o céu ás luctas sanguinolentas
daquelles tempos tumultuarios e rudes; milagres,
emfim, que, por sua natureza, são, religiosa
e moralmente, absurdos.
[127]
De passagem lembrarei a v.. que não é bem
fundada a accusação que me dirige, de que
não
appliquei ao milagre de Alcacer a regra de Vicente
de Lerins, quando foi exactamente o contrario
que fiz. Dos tres testemunhos presenciaes
que temos ácerca daquelle celebre recontro, só
em dous se allude aos signaes miraculosos que
se viram no céu. O auctor da Historia Damiatana,
que assistiu ao successo, ommitte a circumstancia
milagrosa. Não acha v.. significativo este
silencio? Em todo o caso falta o
ab
omnibus de
Vicente de Lerins, e v.. ha de ter presente a
doutrina de Mabillon, citada por mim na carta
antecedente, de que é
temerario, não
só o acreditarmos
em milagres falsos, mas até nos simplesmente
duvidosos. Quando o sentimento
religioso,
o respeito das doutrinas evangelicas
não obstasse á crença nesse favor do
céu, obstar-lhe-hia
a severa doutrina do grande benedictino.
Se não fosse o desejo de dar
satisfação plena
aos homens escrupulosos, mas capazes de se convencerem
da verdade, como v.. talvez concluisse
aqui esta carta, porque as grosserias parvoas
da ignorancia e os rugidos do interesse ferido,
que vê fugir atraz da apparição de
Ourique todos
[128]
os milagres rendosos, só se punem com a immortalidade
do ridiculo.
Não concluirei, porém, sem dizer alguma cousa
em especial sobre a tradição do apparecimento
de Christo a Affonso I, considerada na sua origem,
e no modo como foi propagada e defendida.
Os principios mais solidos da critica, o silencio
absoluto, não só dos contemporaneos, mas tambem
de dez gerações successivas, bastaria para
condemnar a tradição aos olhos dos
desapaixonados,
quando ella não fosse absurda em si,
porque é absurdo pôr Deus em
contradicção com
a indole do christianismo. Ha, porém, na historia
da invenção, propagação, e
aperfeiçoamento dessa
lenda tanta hesitação, tantas
contradições, tanta
imprudencia, tanta falsificação, tantos desejos
de se illudir ou de illudir os outros, em homens
que parece deveriam ser superiores a taes fraquezas,
que o colligir as provas disso é offerecer
uma licção salutar do perigo que ha em abusar
do sentimento religioso do povo para fins mundanos,
e da miseria a que podem chegar ainda
os altos engenhos, quando se esquecem das doutrinas
evangelicas, e de que as duas cousas que o
Salvador mais solemnemente amaldicçoou neste
mundo foram a mentira e a hypocrisia.
[129]
O silencio de mais de tres seculos sobre um
facto estrondoso, que deveria andar na memoria
de todos, como o milagre de Ourique, não é
só
negativo, por assim nos exprimirmos; é tambem
positivo. Conjuncturas houve, antes dos fins do
seculo XV, em que elle se teria publicamente invocado,
se não fosse uma fabula ainda não inventada.
Citarei duas. Seria inexplicavel, se admittissemos
a existencia da tradição cem annos antes
de 1485, que nem um só dos prégadores, letrados,
e capitães de D. João I, os quaes mais de
uma vez, nas suas allocuções ao povo e aos
soldados,
reccorreram ás cousas religiosas para accender
os animos contra os castelhanos, e para
crear a confiança de victoria final na lucta brilhante
da independencia; que nem um só desses
prégadores,
letrados e capitães, os quaes não cessavam
de accusar os inimigos de scismaticos,
pretendendo ligar á sua causa a causa de Deus,
se lembrasse jámais de citar as promessas feitas
por Christo a Affonso I, o que era decisivo. Antes
disso, tambem, nos principios do seculo XIV,
tractando-se com grande empenho da separação
da ordem de Sanctiago em Portugal do grão-mestrado
de Castella, o mestre e os freires portugueses
dirigiram ao papa um longo arrazoado em
[130]
que argumentavam, que, sendo os bens que a ordem
possuia em Portugal, reino separado e independente
de Castella, dados pelos reis deste
paiz, não era justo que o grão-mestre castelhano
os continuasse a desbaratar a seu bel-prazer. Para
firmar na origem do reino a independencia daquella
parte dos cavalleiros que nelle residiam, o
mestre Pedro Escacho e os seus commendadores
allegavam ao papa um facto novo, mas do qual
era quasi impossivel que separassem a historia
da apparição, se della houvesse vestigios. O
facto
novo era a acclamação de Affonso I em Ourique.
«Outr'ora―diziam em Roma os procuradores
dos spatharios―o rei de Portugal, D. Affonso I
de clara memoria, o qual, esmagando com mão
poderosa a barbara fereza dos sarracenos no campo
de Ourique, foi elevado a rei pelos seus nobres
e
pelos outros concelhos, combateu
os dictos
sarracenos inimigos da religião orthodoxa com
todas as forças, para exaltação da
fé catholica e
defensão do proprio reino. O mesmo rei, debellando
e expugnando os infiéis, acommetteu-os e
tirou-lhes castellos, fortalezas e muitas terras.
Acceso em zelo da fé, e attendendo ao esforço do
mestre e freires de Sanctiago que então viviam,
concedeu-lhes, etc.»
[131]
Não fazendo caso da ignorancia dos procuradores
de Pedro Escacho
[28]
ácerca do estado da
sociedade portuguesa no meiado do seculo XII,
quando mencionam os villãos dos concelhos como
intervindo n'uma eleição de rei, não
faz peso
a v.. que não se lembrem do milagre da
apparição?
Se existisse a tradição, poderiam elles
ignorá-la,
e não a ignorando ommitti-la, quando tanto
convinha invocá-la? Não era evidente que o titulo
e a independencia do rei obtinham incomparavelmente
mais importancia e firmeza dos mandados
positivos de Christo, do que das acclamações
da soldadesca? Deixo á imparcialidade de v.. o
resolver estas questões.
Eis-aqui por que eu digo que o silencio de todas
as memorias e documentos anteriores a 1485
ácerca da apparição não
é só negativo; que é tambem
positivo. Mas existe realmente este silencio?―perguntar-me-ha
v.. Conforme a sua opinião,
estribada na de Cenaculo e Pereira, elle não
[132]
existe. No folheto recentemente publicado, que
v.. intitulou
Nova Insistencia, com
lealdade de
cavalheiro e de homem de letras v.. abandonou
o texto forjado de S. Bernardo, e entendo que
tambem o antigo documento da
Symmicta ao destino
que elles mereciam; mas insiste nos outros
documentos que se citam. Examinarei se v.. tem
razão na insistencia. Mas antes disso cabe-me consolar
aqui v.. das injurias que a bruta ignorancia
de um pobre tonto vomitou indirectamente contra
v.. por não distinguir o texto attribuido no breviario
a S. Bernardo; cabe-me, digo, consolá-lo
com o meu exemplo, e com o de um sacerdote
instruido, que, enganado com v.. por aquella
insigne falsificação, expondo-lhe eu as minhas
opiniões ácerca do milagre de Ourique, me
contrapunha
o testemunho do grande abbade de Claraval,
inserto no breviario. Como, porém, para
escrever a historia do nosso paiz é necessario
caminhar como quem passa pelo pinhal d'Azambuja,
lá com todas as prevenções contra os
salteadores,
[133]
cá attentos sempre a que não nos illuda
a cada momento um fabricante de mentiras ou
um falsificador de documentos e textos, amestrado
pela experiencia repliquei que duvidava da
passagem do breviario, e que duvidava sobretudo
pelo adjectivo
lusitanum, que nella
se lê, e que
eu tinha a certeza de não se encontrar em monumento
nenhum do seculo XII para significar
português,
cousa portuguesa. Na duvida, passámos
a examinar o texto do sancto, e a falsificação
appareceu-nos
logo mais clara que o dia. Assim v..
teve companheiros na illusão; nem creia que tem
tido só dous: ha-de ter tido milhares delles. Ria-se
destes eruditos que adivinham tudo quanto
se lhes diz: ria-se dos Mabillons de agua chilra,
que logo distinguem
pelo estylo
quatro ou cinco
linhas interpoladas nas obras de qualquer escriptor.
Mas, voltando ás cousas sérias, v.., repito,
insiste
nas outras provas, desprezadas as evidentemente
falsas. E quaes são as que ficam? Creio que
v.. tem presentes a regra de Gmeiner, de Mabillon,
e de toda a gente que não esteja em guerra declarada
com o senso-commum,
de que não
provém
maior certeza a um facto historico de ser relatado
em livros de muitos auctores mais modernos,
[134]
cada um dos quaes foi copiando o que o outro
tinha dicto. Todos elles junctos não valem mais
do que o primeiro que o referiu. Assim, tendo
nos escriptores dos fins do seculo XV que relatam
o milagre, todas as auctoridades que v.. cita do
seculo XVI annullam-se completamente. Ha, porém,
outras anteriores, dirá talvez v.. É verdade
que Cenaculo as propõe. Mas quaes são ellas?
Examinemos.
1.º Um indice, escripto em Roma, de documentos
relativos a Portugal em que se memora o
facto da apparição.
Como Cenaculo nos não diz a data do indice,
estamos desobrigados de discutir o documento
a que se refere: provavelmente havia de ser pelo
gosto do da Symmicta.
2.º A doação ao mosteiro de Claraval,
feita
por Affonso Henriques.
Tem o pequeno inconveniente de ser falsa.
João Pedro Ribeiro reduziu-a a lastimoso estado
na segunda das suas Dissertações Chronologicas.
Estou certo de que o bispo de Béja, se resuscitasse,
não havia de ter vontade de tornar a falar
nella.
3.º Nos
Commentarios de Affonso
sabio, traduzidos
em português no tempo de Affonso IV,
[135]
termina o capitulo 416 por uma passagem, em
que Cenaculo quiz ver a memoria do milagre,
embora nella não haja uma palavra a semelhante
respeito.
Este testemunho, ainda suppondo que a passagem
diga o que não diz, tem tambem outro
pequeno inconveniente. É que Affonso sabio não
escreveu Commentarios nenhuns. Veja v.. se
os encontra mencionados no extenso e minucioso
artigo ácerca de Affonso X, na
Bibliotheca
Hespanhola de Rodrigues de Castro, ou se acha
em parte alguma vestigios de taes Commentarios.
4.º Uma passagem de uma chronica inedita
dos reis de Portugal, que,
pela fórma da
letra e
pela linguagem, se conhece ser do tempo de
Affonso IV. Esta passagem diz-se transcripta
de um codice da camara d'Evora.
Pedirei pela primeira vez um favor a v.. É
que não acredite demasiado na pericia paleographica
de Cenaculo. A diplomatica ainda não
acho meios sufficientes para distinguir com
certeza pela fórma dos caracteres, nos codices
portugueses, os que são do seculo XIV ou do
XV. Tanto em letra assentada como em cursivo,
não ha nelles senão a alleman pura, ou a francesa
[136]
com maior ou menor resabio de monachal
ou alleman. Isto é commum a ambos os seculos.
A mesma romana pura ou restaurada, que começa
a apparecer nos fins do XV, tem ainda resabio
da monachal. Pelo que respeita á outra
adivinhação de Cenaculo relativamente
á linguagem,
v.. como homem de letras, está por certo
habilitado para avaliar a
força deste meio de
apreciação. Se o bispo de Béja
vivesse, eu compromettia-me
a apresentar-lhe passagens extensas,
escriptas em vulgar no meio do seculo XIV
e outras escriptas já na segunda metade do XV,
e se elle fosse capaz de dizer quaes eram as antigas
e quaes as modernas, dava-lhe a minha palavra
de honra de ficar crendo no milagre de
Ourique. Esta experiencia que eu offereceria ao
erudito bispo, estou prompto a offerecê-la a
quem quer que pretender tentá-la.
Agora accrescentarei mais alguma cousa. No
archivo da camara d'Evora, que examinei por
meus proprios olhos, posso certificar a v.. que
nada ha anterior a D. João I; nem diplomas,
nem codices. Que é feito da tal chronica que
o bispo de Béja diz existir no archivo da camara
d'Evora? O que havia de estimação naquelle
archivo foi distrahido pelo antiquario
[137]
Lopes de Mira, que viveu um pouco antes de
Cenaculo. Isto é sabido pelas pessoas eruditas
d'aquella cidade. V.. deduzirá d'aqui as
conclusões
legitimas.
A erudição immensa de Cenaculo tem um defeito
que nelle provinha do excesso de uma util
faculdade unida a uma indole inquieta e impetuosa.
Era essa faculdade a da memoria comprehensiva
e tenaz. Lia muito e fiava-se na força
da propria reminiscencia. Seria facil provar pelos
seus escriptos que grande numero das citações
que fazia e das auctoridades em que se
estribava não as verificava, e que a memoria o
trahia ás vezes, quando menos em particularidades
e accidentes que modificavam a significação
dos textos, servindo mal os
intuitos
do
bom do prelado e tornando suspeita a sua candura.
Os
Commentarios, por exemplo, de
Affonso
sabio, traduzidos em português, podiam ser, não
uma invenção, mas sim uma reminiscencia, ou
uma nota tomada á pressa por Cenaculo, e talvez
a chronica inedita dos reis de Portugal, que
pela fórma da letra e pela
linguagem se conhecia
ser do tempo de Affonso IV, fosse cousa
analoga aos taes
Commentarios, isto
é, apenas
[138]
uma confusão de idéas, ou, quando muito, uma
inexacção de apontamentos.
Existe uma compilação historica em vulgar,
ou colligida ou accrescentada nos meiados do
seculo XV, visto que na parte relativa a Portugal
abrange a regencia e morte do infante D. Pedro
(cap. 438) e nada contém posterior a este facto,
continuando nos capitulos seguintes a historia
dos outros estados da Peninsula. Conhecem-se
tres exemplares desta compilação, que constitue,
ao menos intencionalmente, uma historia
geral das Hespanhas desde os tempos mais
remotos até os seculos XIV e XV. Em París e em
Madrid conservam-se os dous exemplares mais
antigos. O de París trasladou-o o dr. Nunes de
Carvalho com o intuito de imprimir aquelle curioso
inedito. Dadiva do meu tão erudito como
modesto amigo José Gomes Monteiro, possuo
eu o terceiro exemplar, que parece ter pertencido
a Manuel Severim de Faria. O codice de
Madrid é talvez o mesmo que menciona pouco
explicitamente Ferreira Gordo nas Memorias de
Litteratura da Academia, Tom. 3, pag. 49. A
Cronica General attribuida a Affonso
sabio subministrou
ao compilador a historia fabulosa e a
historia antiga da Peninsula atè a epocha leonosa.
[139]
A corographia d'Hespanha, bem como a narração
da entrada e conquista desta pelos mussulmanos
e dos primeiros tempos do seu predominio
são extrahidas da historia arabe de Arrazi,
conhecido vulgarmente pelo nome de Mouro
Rasis. Attribue-se ao reinado de D. Dinis e á
iniciativa daquelle principe uma traducção do
livro
do historiador musulmano, e effectivamente
esta parte da compilação é uma
daquellas que parecem
mais antigas pela rudeza da linguagem. A
chronica do Cid, publicada modernamente pelo
P. Risco, e cuja authencidade foi disputada por
Masdeu, era conhecida já do compilador, que largamente
a aproveitou na composição do seu livro.
No exemplar de París, conforme o que se vê
da copia de Nunes de Carvalho, faltam os capitulos
411 a 441. Ignoro se o mesmo succede no
exemplar de Madrid. Encontram-se, porém, no
que pertenceu a Severim de Faria; e é justamente
nestes capitulos, desde o 412 até o 438
que está inserida a chronica dos reis de Portugal,
começando na vinda do conde D. Henrique
e finalisando nos primeiros annos do governo
de Affonso V. É uma narrativa assás resumida,
distinguindo-se apenas a parte relativa aos reinados
de Affonso I e de D. Dinis, cujos successos
[140]
verdadeiros ou fabulosos são mais particularisados.
Conserva-se na Bibliotheca Publica do Porto,
com o n.º 79, um antigo codice transferido para
alli em 1834 do archivo de Sancta Cruz de Coimbra.
Contém varias memorias historicas e outros
papeis avulsos escriptos por diversas mãos, tudo
colligido, segundo parece, nos fins do seculo XV.
Acaba o codice por dous chronicons em vulgar
[29].
Um tem por titulo «
Como e donde descenderom
os reis de Portugal»: o outro
«
Aqui
se compeça a istoria dos reys de
Portugal»: Ambos
se referem em breves palavras ao conde Henrique,
dilatando-se com os successos e lendas da
vida de Affonso Henriques, successos e lendas
aproveitados pelo chronista Galvão. Ao passo,
porém, que o primeiro chronicon não ultrapassa
a epocha de Affonso I, o segundo abrange, postoque
em breve resumo, as vidas dos seus successores
até D. Dinis. Em relação aos tempos de
Affonso Henriques são em parte identicos, não
só
no contexto, mas até nas phrases. Ha todavia entre
elles uma differença digna de reparo: é a de
[141]
que no primeiro se repetem mais de uma vez as
palavras
conta a historia, que
não apparecem no
segundo, ao passo que n'aquelle se referem
tradições
relativas a Affonso I ommittidas neste, donde
se conclue que o primeiro foi tirado de um trabalho
historico mais antigo, de que talvez o segundo
seja apenas um extracto, embora accrescentado
com leves traços dos subsequentes reinados.
No exemplar da compilação que pertenceu
a Severim de Faria a narrativa dos successos de
Portugal durante a vida de Affonso I póde dizer-se
que é um complexo dos dous chronicons de
Sancta Cruz, ás vezes perfeitamente semelhante,
outras variando nos vocabulos e phrases. Aproveitaram-se
os chronicons na compilação ou tiraram-se
della? Por outra: qual dos tres monumentos
é mais antigo? É o que não importa nem
eu me
atrevo a resolver.
O que importa é o que se lê nestes monumentos,
os mais remotos que nos restam escriptos
em vulgar, ácerca da batalha de Ourique.
Vejamos se lá se encontram vestigios do celebre
milagre.
O primeiro chronicon de Sancta Cruz diz-nos
que Affonso Henriques, acclamado rei pelo exercito
antes do combate, depois deste,
por
memoria
[142]
daquelle boo aquecimento que lhe deus dera
pôs no seu pendam cinquo escudos por aquelles
cinquo reis e pose-os em cruz por renembrança
da cruz de nosso senhor ieshu christo, e pôs em
cada huum XXX dinheiros por memoria daquelles
XXX dinheiros por que iudas vendeo Ieshu
christo.
No segundo chronicon, entre a narrativa particularisada
da lucta de Affonso Henriques com
sua mãe e com o conde de Trava (a que faz seguir
immediatamente o recontro de Valdevez) e
a lenda do cardeal legado e do bispo negro medeia
a noticia da batalha de Ourique por estas
simples palavras:
E depois ouve batalha em nos
quanpos dourique e venceo a. Indicio notavel de
que ainda no seculo XV havia quem desse áquelle
acontecimento uma importancia secundaria.
Na compilação a passagem relativa á
jornada
de Ourique é a seguinte: «Ajuntou suas gentes
e foyse sobre os mouros e correolhes a terra dês
coimbra ataa santarem, e deshy passou o tejo e
correo toda a terra ataa o campo de Ourique,
onde achou elRey ismar, que a essa sazon era
Rey da estremadura, com sinco Reys que o vinham
buscar sabendo o grande dapno que lhes
fazia em sua terra, e entrou com elles em batalha
[143]
no lugar que se chama crasto verde, e vencêos
e prendêos e matou a mayor parte de todas
suas gentes; mas antes que entrasse em na batalha
os seus o alçaram por Rey, e dês enton se
chamou Rey de portugal: e depois que os Reis
forom vencidos, elRey dom Affom de portogal,
por memoria daquelle boo acontecimento que lhe
deus dera trouve por armas sinco escudos por
aquelles sinco Reis e pozeos em cruz por nembrança
da cruz de nosso senhor jesu cristo, e
poz em cada huum escudo trinta dinheiros por
os trinta dinheiros por que judas o vendêo, e
dêsi tornouse para sua terra muy honradamente».
Onde estará o milagre em qualquer destas tres
passagens não posteriores aos meados do seculo
XV e que por ventura são mais antigas?
É muito possivel que Cenaculo, homem d'immensa
e variadissima leitura, tivesse visto alguma
copia dos chronicons de Sancta Cruz, e igualmente
a compilação no exemplar de Severim de Faria,
que viveu no Alemtejo, onde tambem Cenaculo
residiu longamente, e onde o manuscripto
podia conservar-se ainda no tempo do bispo de
Beja. Uma circumstancia digna de notar-se torna
mais plausivel esta suspeita. Cenaculo cita o fim
do capitulo 416 dos suppostos
Commentarios, e
[144]
na compilação os ultimos periodos do capitulo
415 são os que se referem á batalha de Ourique
e aos seus resultados. O logar do capitulo citado
é o mesmo: a differença está na
numeração deste,
e essa differença é apenas de uma unidade.
Preoccupado pela idea do milagre, do qual se faz
derivar o imaginario escudo de Affonso Henriques,
nada mais facil do que Cenaculo, citando
de memoria, dar á compilação, tirada
em grande
parte da
Cronica general, o titulo
de Commentarios
d'Affonso sabio, e aos chronicons de Sancta
Cruz o de chronica inedita, confundindo ao mesmo
tempo a lenda do escudo d'armas com a lenda
da apparição, acerca da qual não ha
ahi uma
palavra. Tudo isto não passa de conjecturas, mas
de conjecturas que põem em salvo a probidade
litteraria de um dos nossos mais illustres prelados
de uma epocha ainda pouco remota, em
que os bispos portugueses eram bispos, e não
vigarios do papa
[30].
Em Cenaculo a defensão do milagre de Ourique
[145]
era empenho cego. Não sei, nem me importam
os motivos. Importa-me o facto, que annullaria
melhores testemunhos do que esses que cita,
quando elle fosse o seu unico abonador. Quer
v.. uma prova decisiva da cegueira do douto
prelado? Eu lh'a dou, e irrefragavel: é o seguinte
periodo:
«O advertido padre Pereira faz ver que desde o
seculo XV se acham escriptores mui auctorisados,
que referem o acontecimento como de cousa
então
vulgar entre as pessoas que haviam tractado
os immediatos contemporaneos do successo, em
maneira que a tradição é
coetanea.»
Traduzido em linguagem chan, quer isto dizer
que em 1485 (epocha do primeiro testemunho
preciso sobre a apparição, o de Vasco Fernandes
de Lucena), havia gente que tinha conhecido
individuos do tempo da batalha de Ourique,
ou por outra, que no seculo XV havia pessoas
com
trezentos annos de idade.
Quem diz isto póde dizer livremente o que lhe
aprouver. Quando um espirito não-vulgar chega
a este estado, que nos resta senão confessarmos
o nosso nada diante da summa intelligencia de
Deus?
Aqui tem v.. por que eu me limitei, quanto
[146]
me foi possivel, a falar de leve na apparição;
eis
porque tenho até hoje reluctado em descer á
discussão
especial dessa mentira ridicula, com que
os prégadores vão ludibriar o povo na cadeira do
evangelho. Estas miserias e vergonhas, e as que
successivamente apontarei, sobre quem recaem?
Sobre homens que aliàs têm direito á
reputação
que adquiriram na historia litteraria do paiz e nos
annaes da igreja portuguesa, mas que um impulso
talvez de amor proprio
[31],
talvez uma piedade
ou um patriotismo irreflectido, fizeram com que,
em vez de buscarem a verdade, buscassem a prova
de que tal ou tal cousa era verdade, caminho
deploravel em cujo termo é certo o precipicio.
Fóra dos testemunhos cujo nenhum fundamento
acabo de mostrar, Cenaculo reduziu-se a adoptar
as pretendidas provas do padre Pereira, sem
exceptuar o juramento de Alcobaça. E note v..
que elle o conhecia tão pouco ou era tão fraco
diplomatico, que não hesitou em escrever estas
palavras memoraveis:―«
Duvidar da
apparição
[147]
emquanto o desconhecimento dos testemunhos a
faz presumir de piedade popular e crença apaixonada,
pode ser critica; mas a
interpretação livre
e esquerda da palavra real e fundada (o juramento
de Alcobaça) merece ser sempre vista com
desapprovação e desagrado».―Isto quer
dizer
que, se não houvesse o instrumento da
apparição,
podiamos com boa critica deixar de crer no
milagre. Assim, se o bispo de Béja vivesse hoje,
á vista da declaração official da
falsidade do documento,
que o meu amigo Rebello da Silva arrancou
ao juiz mais competente na materia, o
lente de diplomatica e guarda-mór interino do
Archivo Nacional, elle teria de passar com armas
e bagagens para o campo dos
impios,
se quizesse
(havia de querer) intitular-se bom critico.
Mas, deixando de parte o conjecturar qual seria
hoje a opinião de Cenaculo, vamos aos
Novos
Testemunhos do padre Pereira. Disse eu que este
escripto traria deshonra ao auctor da
Tentativa
Theologica, e da
Vida de Gregorio
VII, se não
[148]
fosse uma ironia. Confesso a v.., que antes quero
salvar, por esta hypothese, a reputação de um
nome illustre na nossa litteratura, do que acceitar
a anecdota, a que alguns attribuem a concepção
dos
Novos Testemunhos, anecdota que
mais
de uma vez tenho ouvido referir. Conta-se, que,
sendo o padre Pereira pouco aferrado ao dinheiro
(é defeito de classe: não creia v.. que usurario
nenhum fosse nunca homem de letras) veio a
achar-se um dia com a bolsa completamente vazia.
Advertido da apertura da situação pelo creado,
pegou n'algumas folhas de papel, escreveu os
Novos Testemunhos, mandou-os ao seu
editor, e
recebeu dez moedas, com que ficou rico, ao menos
por dous ou tres dias. Eu prefiro a ironia á
anecdota, que não sei se é verdadeira. Mas ou a
musa do opusculo fosse a precisão de dinheiro,
ou fosse a vontade de gracejar, o que tenho por
certo é que, a não ser assim, a obra fora indigna
de um homem, que pulverisou as pretensões
illegitimas e insolentes da curia romana, e que
fez tremer boa meia duzia de hypocritas e pedantes
do seu tempo. As provas de que os
Novos
Testemunhos precisam da minha
explicação,
ou d'outra qualquer, vou dá-las a v.., começando
por transcrever uma passagem da introducção
[149]
do opusculo. Depois de apresentar como
demonstração de não ser forjado
o juramento
d'Alcobaça o haver, antes de Brito o
publicar,
testemunhos
da
tradição de Ourique (argumento
na verdade singular!) o padre Pereira prosegue:
«Mas quanto a verificar o caso da
apparição,
tem a dita demonstração
o
defeito de que nenhum
dos testemunhos em que ella se funda remonta a
maior antiguidade que o reinado d'elrei D. Manuel.
E assim
poderão os emulos
das nossas glorias
repôr que uns
testemunhos do principio do
XVI não são sufficientes para
extorquir delles o
assenso a um facto, que se suppõe
acontecido no
meio do seculo XII.»
Depois d'isto, que digam todas as pessoas que
lerem esta carta, não sendo algum clerigo mau e
ignorante; diga v.. mesmo, pondo de parte
quaesquer prevenções, o que se deve esperar no
opusculo? O auctor confessa que a favor da
apparição
não bastam os testemunhos posteriores ao
anno de 1495, insufficientes para provas de um
facto succedido em 1139, logo elle vai offerecer-nos
documentos, trezentos, ou, pelo menos, duzentos
annos anteriores. Eu digo o que nos offerece
Pereira em logar dos
testemunhos
insufficientes.
[150]
1.º A narrativa de Olivier de la Marche na
introducção
ás suas Memorias.
Esta introducção foi começada a
escrever em
1492, conforme o proprio auctor das Memorias
declara
[32]:
isto é, as passagens relativas ás
armas
reaes de Portugal foram escriptas dous ou tres
annos antes de começar a epocha em que os testemunhos
ácerca de um milagre succedido 357
annos antes nada provam, segundo confessa o
padre Pereira, advertindo que, por esses não prestarem,
nos ía expor quatro novos,
todos de tanto
peso e authoridade, que não ha para que se desejem
outros mais graves. Destas premissas segue-se,
que o testemunho dado a favor de um
facto 357 annos depois do tempo em que se diz
succedido é
defeituoso e
insufficiente, mas dado
354 annos depois do successo é igual ao de qualquer
pessoa, ou de muitas pessoas que houvessem
presenciado este, visto que
nada ha mais
grave, do que um testemunho posterior de 354
[151]
annos, emquanto o posterior de 357 não presta
para nada.
Pereira estava doudo, ou gracejava com o publico?
Deixo a escolha a v.. postoque estou certo
de que das duas explicações ha-de preferir a
ultima.
Mas o caso não pára aqui. Tenha v.. paciencia,
porque não fui eu que quiz discutir o milagre de
Ourique; foram os padres, que me têm insultado
porque o tractei como elle merecia, que me
compelliram a isso. Hão-de esgotar o calix da
ignominia até as fézes. Elles dizem do pulpito
abaixo que era melhor que eu não tivesse falado
em tal; e eu digo-lhes da imprensa, do meu pulpito,
que era melhor continuarem a aleijar o
latim do breviario e do missal, e deixarem-me
em paz escrever a historia verdadeira do meu
paiz.
Digo que o caso não pára aqui, porque o modo
como é narrada a historia da apparição
por
Olivier de la Marche, descrevendo as armas portuguesas,
é curiosissimo. Segundo elle, o conde
Henrique tinha escudo branco: depois este escudo
adornou-se por quatro vezes: 1.ª quando Affonso
I, passando o Tejo, desbaratou em campo
d'Ourique (
Cambdorick) os cinco reis
mouros, e,
[152]
em allusão a cinco bandeiras que lhes tomou, pôs
no escudo branco cinco escudetes azues. 2.ª Houve
nova mudança quando
o mesmo rei foi a
Roma
emprazado pelo papa. Reprehendido em pleno
consistorio por varias culpas, o bom do rei respondeu
pondo-se inteiramente nú, e desafiando
o papa e os cardeaes para que lhe mostrassem todos
junctos tantas chagas no corpo como as cicatrizes
das que elle tinha recebido pela fé de Christo.
Era maravilhoso, de feito, o numero d'ellas: cinco
com visiveis indicios de deverem ter sido
mortaes, a não se haver dado milagre no caso. O
argumento fora peremptorio. O papa e os cardeaes
disseram-lhe que vestisse a camisa; e para
lhe darem uma satisfação da injusta pronuncia,
mandaram-lhe que em cada um dos escudetes
posesse cinco besantes ou arruellas, em memoria
daquellas famosissimas lançadas de que os
mouros o haviam servido. 3.ª Tendo o infante D.
Fernando, rei de Portugal, casado em França com
a condessa Maria de Bolonha, teve um filho, chamado
Henrique, o qual accrescentou a orla do
escudo em que estão os castellos. E sobre este
ponto discute o auctor o erro que havia nos dictos
castellos, estribando-se na opinião de portuguêses
notaveis. Entre estes devo advertir, para o que
[153]
v.. logo verá, que elle havia já mencionado
especialmente
e com elogios extraordinarios o
celebre
Vasco Fernandes de Lucena, que tinha a dignidade
de escanção de Madama Margarida, viuva
de Carlos o Temerario
[33].
A 4.º alteração, que
vinha a ser a quinta fórma das armas reaes portuguesas,
foi o pôr-lhes uma cruz firmada no escudo
um rei de Portugal (já se vê que muito posterior
a Affonso I), facto cuja origem
alguns attribuiam
(aucuns veulent dire) a ter-lhe apparecido
uma cruz no céu durante uma batalha com os
sarracenos,
o que vendo o principe dissera, orando
a Deus, que
mostrasse antes a
cruz aos infieis, e
assim se fez, com o que os mouros
ficaram desbaratados.
Accrescenta Olivier de La Marche que
talvez o milagre seja verdadeiro; mas que
para
elle a verdade é que o bom rei
João (D. João I)
foi quem ajunctou ás armas portuguesas os quatro
braços floreteados firmados no escudo.
Aqui tem v.. o testemunho de Olivier de la
Marche em toda a sua força e pureza, postoque
resumido. Não lhe faço commentarios. Deixo a
[154]
v.. e a todos homens instruidos que os façam.
Eu por mim estou satisfeito.
Inverterei aqui a serie dos quatro
irrecusaveis
testemunhos do padre Pereira, porque tenho uma
razão de ordem que me obriga a reservar o segundo
para o ultimo logar. Falarei, portanto, do
terceiro.
Gomes Eannes de Azurara, na continuação da
chronica de D. João I por Fernão Lopes,
transcreve
um discurso feito áquelle principe pelos
seus confessores, frei Vasco Pereira e frei João
Xira, a quem elrei pedira lhe dissessem se era
serviço de Deus intentar a conquista de Ceuta. A
resposta dos frades foi affirmativa, estribando-se
no exemplo de muitos outros principes e cavalleiros
famosos, que haviam acommettido os infiéis
na persuasão de que practicavam uma obra
meritoria, offerecendo-se á morte. Os que a tinham
alcançado, entendiam os dous frades que
ficavam equiparados no céu aos martyres, e que
os que não a haviam obtido, nem por isso deixavam
de ser sanctos, estando resolvidos a morrer
alegremente pela fé. Os theologos terminaram a
serie dos exemplos (nos quaes figuram entre
aquella especie singular de bemaventurados o
Cid Ruy Dias e o conde de Castella Fernão
Gonçalves,
[155]
que nunca desconfiaram de que eram sanctos)
pela seguinte passagem, conforme se lê na
edição de 1644:
«...temos ante nossos olhos a memoria do
mui notavel, fiel e catholico christão elrei D. Affonso
Henriques, cujas reliquias tractamos entre
nossas mãos. Vêde, senhor, os signaes que trazeis
em vossas bandeiras, e perguntai e sabei
como e por que guisa foram ganhados; os quaes
certamente de todas as partes mostram a paixão
de Nosso Senhor Jesu-Christo,
por cuja reverencia
e amor o bemaventurado rei offereceu o seu
corpo em o campo de Ourique, vencendo aquelles
cinco reis, como vossa mercê sabe. Considerae
isso mesmo (do mesmo modo) Senhor,
se elle
duvidara se o seguinte trabalho era serviço de
Deus, não tivereis vós hoje em dia esta mui
nobre cidade (Lisboa) nem a villa de Santarem,
com outros logares, etc.»
Este ultimo periodo supprimiu-o Pereira, porque
illustrava o sentido das phrases relativas á
batalha de Ourique. O que frei João Xira queria
dizer era evidentemente, que Affonso I se offerecera
a morrer por Christo em Ourique, entendendo
que fazia serviço a Deus, como depois, na
tomada de Lisboa, Santarem, etc. Onde se fala
[156]
aqui no milagre? Se houvesse outras testemunhas
daquella epocha (1415), que positivamente
referissem a apparição, ainda se poderia, embora
com violencia, suppôr nas phrases do frade
uma allusão ao successo; mas faltando-nos
absolutamente esses testemunhos, nada auctorisa
tal supposição. Trazer esta passagem para
provar, que já em 1415 existia a
tradição, ao
passo que, para ella poder ter a significação
forçada que se lhe quer dar é necessario
suppôr
a existencia da mesma tradição, o que
é,
senão um circulo vicioso, uma petição
de principio?
Não é, porém, só isso.
Nestas lendas, inventadas
com fins humanos por milagreiros e
falsarios, quasi que não é possivel dar um passo
sem encontrar falsificação. A chronica de
Gomes-Eannes, publicada no fervor da guerra
contra os castelhanos, depois da revolução de
1640, e precedida por uma gravura representando
a apparição, foi viciada nesta passagem,
provavelmente para se ver nella uma allusão
obscura ao milagre, como depois viu, ou fingiu
ver, o padre Pereira. No codice authentico do
Archivo nacional, onde no impresso se lê
«
vencendo»,
está escripto
«
vendo».
«Vendo» torna o
sentido da passagem claro. O rei
vendo os
cinco
[157]
reis mouros, offereceu o seu corpo a Jesus, e pôs
nas suas bandeiras os
cinco escudos.
Substituida,
porém, a palavra
vendo
por
vencendo, a phrase
obscurece-se; a causa de se pôrem os cincos escudos
nas bandeiras, isto é, o serem os reis
mouros cinco, desapparece; e a lenda, de que
se cria tirar vantagem em 1644, ganha em frei
João Xira um novo, postoque bem debil, alliado.
Mas supponhamos tudo quanto quizerem.
Adoptemos como exacto o texto impresso de
Azurara: vejamos ahi a apparição, embora
não
haja lá uma unica palavra a semelhante respeito.
O testemunho singular de frei João Xira em 1415
não seria um pouco tardio para provar um successo
de 1139, profundamente esquecido nos
chronicons e monumentos coevos? Não o rejeitam
as regras da critica sincera; regras estabelecidas
accordemente por tantos e tão respeitaveis
escriptores ecclesiasticos; regras, emfim,
cuja solidez a experiencia demonstra de contínuo
aos que se votam a serios estudos historicos?
Quer v.. um exemplo domestico da utilidade
das doutrinas dos Mabillons, dos Melchior-Canos,
dos Fleurys,
desprezadas
só por aquelles que
desprezam tudo, menos os dezeseis tostões de
um sermão de milagres? É exemplo que
não está
[158]
no cartorio da camara de Evora, nem nos Commentarios
ideaes de Affonso X, mas no Archivo
Nacional, onde todos o podem vêr. Consiste n'uma
especie de summario historico dos reis de Portugal,
lançado no 4.º volume de
Inquirições
de
Affonso III, no reinado de D. João I. No preambulo
daquelle summario, destinado a avaliar-se,
á vista dos factos historicos, a genuinidade das
doações dos reis anteriores, affirma-se que para
o escrever se averiguara com extrema exacção
a verdade, fixando-se assim a serie chronologica
dos principes portugueses. Sabe v.. qual é a
exacção desse monumento destinado a servir de
padrão legal, para por elle se afferirem diplomas
que importavam á fortuna particular e aos direitos
da corôa? Citarei só os erros relativos a Affonso
I. Segundo o summario official, elle nasceu
em 1092, foi casado com a filha de D. Affonso
de Molina, neta do rei de Castella, e morreu em
dezembro de 1184. D'aqui verá v.. o credito
que deveriam merecer-nos os testemunhos do
seculo XIV ou XV, para admittirmos um milagre
do seculo XII, quando esses testemunhos existissem,
e não fossem um rol vergonhoso de
falsificações
e mentiras.
O quarto testemunho do padre Pereira é o proprio
[159]
instrumento da apparição, que existiu em
Sancta Cruz de Coimbra, antes de se conhecer o
de Alcobaça. O auctor dos Novos Testemunhos diz
que não sabe se os dous foram uma e a mesma
cousa, passando o celebre documento do archivo
daquelle mosteiro para o d'Alcobaça. Como demonstra
elle, porém, essa existencia? Pelo depoimento
de um frade de Sancta Cruz, dado em 1556,
e publicado por outro frade cruzio, insigne forjador
de textos e diplomas, e chronista da ordem,
frei Nicolau de Sancta Maria, declarado falsario
pelos seus proprios confrades
[34].
Se acreditarmos
este, os conegos de Sancta Cruz,
empenhados em
fazer canonisar Affonso I, requereram se tirasse
um depoimento de testemunhas sobre os milagres
do primeiro rei português, do
Pharaó obdurado
dos monges de Cella-Nova. Quem primeiramente
depôs foi um
dos conegos
empenhados, e foi
este que disse constar o milagre de Ourique pelo
juramento que existia do mesmo rei. Desse juramento
original tiraram-se então em duplicado
copias authenticas; uma para se guardar no
mosteiro, outra para ir a Roma, o que não chegou
[160]
a verificar-se. Havia, pois, em Sancta Cruz
o original e uma copia em instrumento, e fóra
d'alli outra copia authentica. Tudo isto se perdeu,
e nada resta de um documento de tanta
valia, que forçosamente se havia de guardar com
recato, senão a grosseira impostura dos frades
bernardos, restando tambem, nos fins do seculo
passado, um traslado que se dizia transcripto
de
um original, diverso no seu theor
do outro
original de Alcobaça, e só
semelhante a elle em
ter sellos pendentes, cousa que não existia na
epocha em que o juramento se diz exarado.
O que tudo isto vem a ser é uma serie de vergonhas
e miserias repugnantes, e sobretudo de
falta de juizo. Se o houvesse nos falsarios, elles
nos dariam hoje mais trabalho para atinar com os
seus embustes. Se frei Nicolau, ou os conegos de
1156 (porque eu não sei se a historia do depoimento
se verificou, ou se é invenção do
chronista)
se lembrassem do que passou antes d'elles,
teriam procedido com mais cautela nas suas mentiras.
Quem lê a façanhosa chronica dos conegos
regrantes conclue que no tempo de frei Nicolau
os pergaminhos originaes eram aos milhares em
Sancta Cruz de Coimbra. Pois aqui está o que não
só elle proprio, postoque fraca testemunha, mas
[161]
tambem escriptores mais serios, que se reportam
a um documento coevo, nos referem como acontecido
em 1411. No dia de Corpo de Deus desse
anno, uma tempestade que estourou sobre Coimbra
produziu uma chuva espantosa, que quasi destruiu
o mosteiro de Sancta Cruz. «A agua (diz o
auto que sobre isto se redigiu) levou, além de
muitas outras cousas, quatro caixas de escripturas
de memorias antigas e de doações que os reis
fizeram ao dicto mosteiro, que
todas
foram molhadas
e a mór parte dellas
perdida». Sabendo
elrei D. João I do successo, segundo confessa o
mesmo frei Nicolau, ordenou se trasladassem
em publica fórma as
doações e mais
escripturas
que restavam dando-se a este transumpto a
mesma força dos originaes, «
com o
que, prosegue
o chronista,
se restaurou parte da perda
de tantas e tão antigas escripturas que hoje nos
fazem grande falta». De duas uma: ou o
instrumento
da apparição depositado em Sancta Cruz
pereceu em 1411, ou escapou. Se escapou, devia
ser trasladado no chartulario em que, segundo
a ordem delrei, se lançou o que restava. Esse
chartulario existia ainda no tempo do chronista,
e provavelmente existe ainda hoje. Para que inventaram,
pois, o ridiculo pergaminho de Alcobaça?
[162]
Porque, em vez de imaginarem cem mentiras
para amparar a tradição, não foram a
Sancta
Cruz extrahir desse traslado authentico dez
ou cem traslados novos, que tambem seriam
historica e até legalmente authenticos? Porque
não vão lá buscá-los ainda
hoje para confundirem
a minha impiedade? Se, porém, o pergaminho
original pereceu em 1411, que são essas
historias de publicas-fórmas
do
original feitas
pelos notarios Manso e Thomé da Cruz, e não
sei por quem mais, senão embustes, ou copias
tiradas de um documento falso. Porque eu não
disputo, nem me importa, que elle fosse forjado
pelos frades de Sancto Agostinho ou pelos de
S. Bernardo.
Falta o segundo testemunho, que deixei para
ultimo logar, porque se prende com o que me
resta a dizer a v.. sobre a lenda da apparição.
Esse testemunho é o de Vasco Fernandes de
Lucena, que, indo como orador da embaixada
enviada por D. João II ao papa em 1485, referiu
a historia da apparição no discurso que recitou
perante Innocencio VIII e perante a curia.
Como prova do successo, elle tem pouco
mais ou menos o valor do de Olivier de la Marche.
Se aos historiadores que escreveram depois
[163]
de 1495 se não póde attribuir, segundo Pereira,
e muito mais segundo as doutrinas dos pios e
eruditos escriptores a que me referi na carta antecedente,
auctoridade bastante para nos compellirem
a acceitar a tradição de Ourique,
tê-la-ha,
porventura, o testemunho singular de um homem
que o refere apenas dez annos antes, tractando-se
de um milagre que se diz succedido
n'uma epocha anterior de mais de tres seculos?
É impossivel que v.. não sinta que semelhante
auctoridade nada vale.
Eis aqui os testemunhos que Pereira colligiu.
O primeiro e o segundo são dos fins do seculo
XV, e ainda assim, ao que parece, reduzem-se a
um só. Persuadem-no o affirmar Olivier de la
Marche que sobre a questão das armas portuguesas
ouvira pessoas
notaveis de Portugal
com quem
tractara
[35]
tendo-se espraiado pouco antes em encarecidos
elogios á sciencia e talento de Vasco de
Lucena. O terceiro é uma passagem, aliàs viciada,
de Gomes Eannes, a qual, quer viciada, quer
correcta, não contém uma unica palavra
ácerca
da apparição. Finalmente, o quarto é o
juramento
[164]
de Affonso Henriques, que
consta
existia em
Sancta Cruz muito antes de Fr. Bernardo de Brito
encontrar o de Alcobaça, o qual se não sabe
se é o mesmo que estava em Sancta Cruz, mas
que nós sabemos perfeitamente que é falso. Eis
aqui os testemunhos do milagre de Ourique,
«
de
tanto peso e auctoridade, que não ha para que se
desejem outros mais graves».
Ainda uma vez lembrarei a v.. que lhe deixo
a decidir se o padre Pereira escreveu isto em seu
juizo, ou se estava dando largas á sua jovialidade.
Resta-me só fazer um esforço para acceder,
até
onde é possivel, a uma pretensão de v.. embora
já ficasse provado que ella era infundada. Diz
v.. que para refutar plenamente a fabula da
apparição
deveria eu dizer quando, como, para que,
e por quem fora inventada. É evidente que o falsario
havia de precaver-se para não o descubrirem,
e só elle poderia dizer positivamente qual
era o seu intuito quando forjou a patranha. Sendo
homem astuto, saberia não somente guardar
segredo, mas tambem fazer espalhar com arte a
fabula. Que calumnias não tem alevantado uns
aos outros os partidos politicos nestes nossos tempos?
Muitas dellas, passando primeiro de boca em
boca, vindo á imprensa, combatidas pelos calumniados,
[165]
nem por isso hão deixado de generalisar-se,
e de tomar ás vezes tal consistencia, que é
possivel passarem algumas, d'aqui a um seculo,
por factos historicos, até que uma critica severa
e desapaixonada as reduza ao seu justo
valor. Sobre a origem da fabula de Ourique não
se podem produzir factos decisivos, mas podem
reunir-se alguns, que, assim aproximados, offerecerão
fundamento a suspeitas vehementes sobre
a epocha do nascimento da tradição, sobre
seus auctores, e sobre os fins com que foi inventada.
Note v.. que eu falo da tradição e não
do
juramento, que provavelmente, no estado em que
hoje o temos, é mais moderno. Quanto a esse invento
grosseiro, considerado em si, confesso que
me fallece o animo para o analysar.
Partamos de um facto. O primeiro testemunho
sobre a existencia da tradição relativa ao
milagre
de Ourique, preciso, incontroverso, é o de Vasco
Fernandes de Lucena em 1485: tudo o mais são
chronicas que
se perderam, vestigios
que
se apagaram,
obras que
ninguem conhece. Isto faz
lembrar
o gracioso livro das
Antiguidades de
Evora,
que muitos tem tomado por obra de um tolo, e
que na realidade são a satyra dos falsarios e crendeiros,
feita por um homem espirituoso e engraçado.
[166]
Tudo quanto se cita anterior a 1485 são
embustes e ridicularias, sem exceptuar as chronicas
do tempo de Affonso Henriques attribuidas
aos imaginarios chronistas João Camello e
Pedro Alfarde, onde se diz que
talvez se achasse
a tradição. A invenção dos
taes chronistas, frades
de Sancta Cruz, tinha já sido reduzida a pó pelo
cruzio D. Thomás da Incarnação, e por
frei Manuel
de Figueiredo, frade d'Alcobaça. A referencia
a semelhantes mentiras feita por Pereira e por
Cenaculo, que escreveram depois de ellas estarem
refutadas, prova a
sinceridade com
que foram
redigidos nesta parte os
Cuidados
Litterarios,
e tambem os
Novos Testemunhos.
Temos, pois, um homem celebre, um castelhano,
erudito, valido de D. João II, que, n'um discurso
recitado perante Innocencio VIII, menciona
pela primeira vez a apparição. Singular origem
de uma fabula, que, revelada por um estrangeiro,
vem á luz em terra estrangeira, regida por um
governo theocratico, que tem por fundamento
primitivo do seu dominio temporal um titulo
falso.
A memoria de D. João II é odiosa. Entre todos
os reis legitimos portugueses, é elle o unico ao
qual sem injustiça a historia póde attribuir a
[167]
qualificação de tyranno. Elle foi quem deu o
golpe
mortal nas velhas liberdades desta nossa terra.
No seu reinado tem de ir buscar o historiador a
causa fundamental da nossa decadencia, que começa
com o estabelecimento do absolutismo,
embora a podridão que corroe a arvore se esconda
por alguns annos no cerne. É tambem singular
por esta circumstancia a origem da tradição.
Nasce, dilata-se, cresce, firmando as raizes no
tumulo da liberdade.
Vivia em Roma nos primeiros annos do reinado
do
principe perfeito um foragido
português,
seu inimigo entranhavel, o cardeal D. Jorge da
Costa. Depois do assassinio judicial do duque de
Bragança, o cardeal aproveitou o ensejo para
malquistar o rei português com Sixto IV. Em consequencia
d'isso (ao menos assim se acreditava),
o papa enviou em 1483 um nuncio a Portugal, a
queixar-se dos abusos do poder temporal contra
as pretendidas immunidades da igreja, que o filho
de Affonso V respeitava tanto como os foros
politicos do reino. Foi o rei emprazado para apparecer
ante o papa, por si ou por procurador,
para dar explicações ácerca do seu
procedimento.
Nomearam-se embaixadores; mas antes de partirem,
Sixto IV relevou o rei da citação, diz-se
[168]
que a instancias do mesmo cardeal que excitara
a tempestade, receioso de que os ministros portugueses,
chegando a Roma, lhe pagassem em
igual moeda, fazendo-lhe perder parte do poder
e credito de que gosava
[36].
Parece, porém, que, emquanto proseguia em
Portugal a lucta tenebrosa e encarniçada de uma
aristocracia suberba com um rei ambicioso e
inexoravel, o cardeal não dormia em Roma. Invectivava-se
ahi ou fingia-se invectivar contra a
frouxidão de Sixto IV, que deixava o rei português
quebrar os privilegios do clero sem se lhe
comminarem censuras
[37].
Deste clamor sincero,
ou desta farça, resultou uma bulla concebida em
durissimos termos, que se expediu nos primeiros
mezes de 1484. A linguagem della era a linguagem
habitual da curia, insolente e grosseira;
mas havia ahi uma circumstancia digna de reparo.
O papa recordava uma cousa de que os reis
portugueses se haviam esquecido; recordava a
D. João II que
tinha a dignidade real por
dadiva
da sé apostolica e de que era seu
tributario[38].
[169]
Uma bulla destas faria hoje desatar a rir quaesquer
ministros portugueses, até em pleno parlamento.
Naquelle tempo, porém, ainda o negocio era
um pouco serio. D. João II, se riu, foi em particular.
O arcebispo D. João Galvão, um dos
valídos
do rei e inimigo figadal da familia de Bragança
[39],
tinha sido transferido, ainda em tempo de Affonso
V, da sé suffraganea de Coimbra para a
metropolitana de Braga. O arcebispo olhava para
as cousas ecclesiasticas como certos prégadores
d'hoje olham para a prédica; pelo lado solido.
Sem lhe importar obter o pallio, foi usando
do titulo de arcebispo e tomando conta das rendas
da mitra. Ligado com o rei, que lhe deixava
devorar pacificamente tão bom quinhão na mesa
ecclesiastica, ajudava-o do modo que podia a opprimir
o clero
[40];
mas até que ponto eram graves
as culpas do arcebispo, que assim se arriscava a
perder a dignidade archiepiscopal (como tem
succedido a muitos outros) não sei eu dizer: falo
pela boca do papa, que lhe dirigiu tambem uma
[170]
carta de ameaças. O que é certo é que
o movedor
das fulminantes bullas de Sixto IV, o cardeal
da Costa, não devia esquecer-se de carregar a
mão no valído do seu adversario. Odio de padre
contra padre ainda é mais profundo e tenaz do
que contra qualquer secular.
As relações com Roma offereciam, pois, um
aspecto pouco agradavel, quando Sixto IV veio a
fallecer (agosto de 1484) na mesma conjunctura
em que elrei apunhalava em Setubal o Duque de
Viseu, mandava envenenar o Bispo d'Evora, assassinar
D. Gotterre no fundo de um calabouço,
e degolar e esquartejar em praça outros fidalgos.
D. João I tomara da côrte de Inglaterra o
esplendor,
os habitos cavalleirosos, o amor da cultura
litteraria, as virtudes domesticas, que ainda hoje
distinguem as classes elevadas na Gran-Bretanha.
Seu bisneto tomava da côrte de França apenas
um typo, o de Luiz XI, pelo qual buscava
modelar as manifestações da sua alma.
A casa de Bragança procedia de D. João I,
mas de D. João I antes de rei e simples mestre
da ordem d'Aviz. A cruz dessa ordem tinha-se
enlaçado com as armas de Portugal, porque D.
João I não se esquecera, depois de rei, de que
fora o chefe dos freires portugueses de Calatrava.
[171]
Com as mãos tinctas do sangue do duque de
Viseu, D. João II arrancou a cruz do escudo de
Portugal, e alterou a posição dos escudetes
lateraes,
collocados até ahi horisontalmente, dando
assim nova fórma ás armas do reino. Dir-se-hia
que até d'alli quizera affastar a memoria da linhagem
dos seus principaes adversarios.
Era essa a causa da mudança? Não o sei. Ruy
de Pina, um dos amoucos do principe perfeito,
attribue-a a outros motivos. Podemos acceitar
ou recusar o seu testemunho, assaz suspeito. O
que é certo é que a
alteração se fez no mesmo
anno de 1484.
Hoje a heraldica e os brasões são dixes com
que se entretem
as
creanças barbadas: o jogo do
xadrez é cousa incomparavelmente mais grave.
Nos fins do seculo XV não era, porém, assim. A
attenção da Europa devia volver-se principalmente
para o ensanguentado drama que se representava
na côrte de Portugal; mas a cruz de Christo
expulsa das moedas, dos sellos e das bandeiras
do reino, pelas mãos de um rei algoz, havia de
dar occasião a mais de um commentario pouco
favoravel.
Todavia, se, como resavam as lendas, os cinco
escudetes representassem uma cruz, e ao mesmo
[172]
tempo contivessem uma allusão mysteriosa á
paixão
de Christo; se as arruellas que os ornavam
representassem os trinta dinheiros por que Judas
vendeu o Senhor, que falta faria a cruz floreteada
de Aviz nas armas de Portugal? Não ficava ahi
uma cruz mystica, um symbolo piedoso?
Fallecido o papa que recordara a D. João II
qual era a origem da independencia de Portugal
relativamente a Leão, e que ainda ousava lembrar-se
do signal de vassallagem que outr'ora se
offerecera á igreja de Roma, elle fora substituido
por Innocencio VIII. Sabido o successo, elrei resolveu
mandar a Roma uma embaixada, para orador
da qual escolheu um homem de plena confiança,
o castelhano Vasco de Lucena.
Quem sabe se elrei tinha algum titulo melhor
que as bullas de Lucio II e de Alexandre III ácerca
da independencia do reino, e que talvez Affonso
Henriques houvesse dado a guardar aos seus
chronistas, João Camello e Pedro Alfarde? Se o
tivesse, bom seria que os embaixadores advertissem
dessa circumstancia o novo papa, tirando
assim á curia a vontade de repetir as doutrinas
carunchosas e oblitteradas da bulla de Sixto IV.
Porei aqui a parte mais interessante do discurso,
que o orador de Portugal fez ao papa rodeado
[173]
dos seus cardeaes, em cujo numero se contava
o implacavel velho D. Jorge da Costa. O padre
Pereira já traduziu uma porção desse
discurso;
mas era um preguiçoso aquelle bom do padre Pereira.
V.. hade permittir que eu o seja menos, e
dê um talho mais largo.
Depois de indicar em poucas phrases as origens
de Portugal, o orador fala dos primeiros annos
do governo de Affonso I e da pequenez dos seus
estados; diz-nos em seguida quaes as suas empresas
e conquistas: Leiria, Santarem, Lisboa tomadas,
o Tejo transposto, a provincia transtagana
submettida, com Evora sua capital, Cezimbra
e Palmela, fortalezas inexpugnaveis, reduzidas,
sendo por elle desbaratados
milhares
infinitos[41]
de mouros com poucos cavalleiros. «Outra vez
(ou
novamente)―prosegue Lucena―no
campo
de Ourique, naquelle sitio a que o
vulgo chama
agora Cabeças dos Reis,
com um pequeno exercito
venceu cinco poderosissimos reis mouros.
Na qual batalha, para se ver quão porfiada fosse,
e quão excessivo o seu valor, cinco vezes lhe quebraram
as lanças dos barbaros os escudos que
[174]
embraçava na mão esquerda. Desta singular e
famosa
victoria procedeu
fixar elle as insignias e
armas dos reis de Portugal, pondo nellas cinco
escudos, e collocando em cada um delles cinco dinheiros,
sendo sabido que até então as armas
eram um escudo só, todo semeado de besantes.
Estes cinco escudos
postos em fórma de
cruz, e
estes besantes quinarios
tambem distribuidos em
cruz, que nos indicam senão os trinta
dinheiros,
preço do sangue de Christo, pelo qual este foi entregue
aos judeus pelo crudelissimo Judas? Antes
de dar o signal para a batalha, este rei, orando de
joelhos, viu o Salvador pendente da cruz, e foi
tal a confiança do regio animo, tal a fé gravada
no
seu coração, que, sem se aterrar com a estupenda
maravilha,
se atreveu a dizer que
não convinha
que Christo apparecesse a um firmissimo crente,
mas que tal apparecimento era necessario aos hereges,
aos que se afastavam da fé christan. D'isto
e d'outras cousas, que por brevidade calo, vossa
sanctidade conhecerá mais claro que esta luz que
nos alumia
por qual constancia d'animo, por
qual ardor de virtude, por que prendas, por quaes
degráus e successos subiu ao fastigio
regio; como
esse varão tão religioso, forte e pio augmentou
os estreitos limites do reino, e o libertou do tristissimo
[175]
jugo da servidão; com que razão, por
força
da
clarissima vontade e da suprema
direcção
(optimo auspicio)
da eterna
magestade, com
auxilio
do povo e
adjutorio da sancta igreja romana,
tomou o regio nome com direito
perfeito (optimo
jure)
e o legou aos seus
successores; mais feliz nisto
que outros principes, dos quaes muitos aspiraram
ao titulo real pelo favor dos povos; outros
por temor dos seus satellites armados; poucos,
a quem o justo Jupiter amou, pelo verdadeiro
caminho da virtude.»
Aqui tem v.. o que se lê na oração de
Lucena
relativamente a Affonso I. Note v.. que o
orador passava por um dos homens mais instruidos
do seu tempo, e não podia por ignorancia
fazer o que fez; isto é, inverter a ordem dos
successos do reinado d'aquelle principe. Deste
discurso o que se deduz é que a batalha de Ourique
foi a ultima façanha notavel delle, posterior
a tudo, inclusivamente á tomada de Evora,
e quem sabe se á bulla de Alexandre III, que
concedeu ao principe português a
qualificação
de rei? O que é certo é que, se a chronologia
fingida por Lucena fosse verdadeira, a batalha
e o milagre de Ourique, em que elle visivelmente
quer fundar a independencia de Portugal,
embora
[176]
com o favor do povo e de Roma,
teriam sido
posteriores á carta de feudo á sé
apostolica e á
bulla de acceitação de homenagem expedida
por Lucio II. Assim, a dignidade do rei e a independencia
de Affonso I assentariam n'um titulo,
não só incomparavelmente melhor, qual
era a vontade de Deus milagrosamente manifestada,
mas tambem posterior á offerta e
acceitação
da homenagem feita em 1144, que
por esse facto ficavam invalidadas por inuteis.
Presupposto isto, a impertinente recordação da
curia romana, inserida na bulla «
Ut
saluti» de
Sisto IV, ficava tambem de todo o ponto refutada.
Mas dirá v..―o cardeal D. Jorge da Costa,
presente ao acto, não podia impugnar este inaudito
milagre?―Não se impugnam assim milagres.
Reflicta v.. na furia dos padres actuaes contra
mim, porque no seculo XIX não creio n'uma fabula
provada tal até a saciedade, e imagine se
um padre se atreveria a rejeitar o minimo milagre
nos fins do seculo XV; e quando se atrevesse
a dizer alguma cousa, seria em particular
ao papa e aos cardeaes. Outra flagrante mentira
dizia ahi Lucena sem temor de que D. Jorge o
contradissesse: era a historia dos cinco dínheiros
em cada escudete, desmentida por todas as
[177]
armas reaes gravadas nos sêllos e moedas dos
nossos antigos reis da primeira dynastia, começando
em Sancho I. Restam muitos desses sêllos
e moedas; muitos mais deviam restar naquella
epocha: o cardeal era homem instruido e pessoa
notavel: havia de ter visto muitissimos; mas nem
por isso Lucena titubeou, antes nesta parte o seu
discurso, geralmente frio, melifluo, calculado,
tem certo sabor de colerica invectiva contra os
que disso duvidassem. O descaramento é, ha muitos
seculos, um dos dotes do homem d'estado.
Outro facto: Vasco Fernandes tinha sido orador
de Portugal no concilio de Basiléa, e na
embaixada a Roma de 1450; tinha recitado as
orações de abertura nas côrtes de 1478
e de
1481. Todas essas orações, que não
deviam ser
menos elegantes e curiosas, se perderam; apenas
escapou a da embaixada de Roma de 1485,
e não só escapou, mas tambem foi impressa, e
não só foi impressa, mas ainda mais; fizeram-se
della duas edições em caracteres gothicos e sem
data, ao que parece, estampadas
fóra do
reino
e com todos os signaes de
pertencerem aos primeiros
tempos da arte da impressão[42]. Se de
feito
[178]
a oração foi reproduzida pela imprensa pouco
depois de recitada, devia sê-lo fóra do reino,
onde a imprensa de livros latinos e vulgares não
consta que existisse ainda. Mas duas edições da
mesma epocha, que provam, senão que
alguem
interessava em dar áquelle discurso a maxima
publicidade?
Recorde-se v.. do que eu disse a proposito
de Olivier de la Marche, e da influencia que é
provavel Lucena tivesse na narrativa do chronista
flamengo ácerca das armas de Portugal. Vê-se
que em 1492, em que este escrevia, as opiniões
andavam encontradas. As armas que ahi mais
se deviam conhecer eram as antigas com a cruz
d'Aviz, porque a reforma de D. João II tinha apenas
oito annos. Entretanto a noticia do milagre
de Ourique, postoque alterada, corria já alli, e
a alteração provinha de quererem
alguns acommodar
a fabula ás armas antigas. Consequentemente,
outros não queriam: logo disputava-se
ácerca disso: logo a historia da
apparição era
uma cousa nova e incerta. Se ella fosse a
explicação
sabida e ordinaria, como Lucena dissera
em Roma, teria De la Marche accumulado a serie
de despropositos que anteriormente transcrevi?
Elle falara ácerca d'isto com muitos portugueses,
[179]
e escrevia á vista das suas
informações. O que
indica essa completa confusão d'idéas do
chronista?
Que o milagre de Ourique, caindo inesperadamente
no meio das lendas que se ligavam ao
brazão dos reis de Portugal, as tinha inteiramente
baralhado.
Agora note v.. que por estes mesmos annos
de 1491 e 92 Lucena devia estar em Flandres,
porque é neste tempo que elle começa a
intitular-se
conde palatino (titulo que parece provir-lhe
do cargo d'escanção da viuva de Carlos o
Temerario),
ao passo que nessa conjunctura o achamos
ausente de Portugal
[43].
V.. ajuisará das
illações
que destes factos se podem tirar.
Mais ou menos inexactas que sejam as noticias
que nos restam ácerca da existencia em Sancta
Cruz de Coimbra de um monumento relativo á
apparição, parece todavia que alguma cousa ahi
houve, e o transumpto do juramento de Affonso
I, feito pelo notario Manso
em tempo d'elrei D.
João II, não é de
desprezar, logo que um homem
como frei Francisco Brandão affirma tê-lo visto.
Tal transumpto, se não prova a existencia de um
documento verdadeiro, faz crer que
alguma
cousa
[180]
sobre a apparição
tinha apparecido
em Sancta
Cruz no tempo daquelle rei.
Advirta, porém, v.. que D. João
Galvão, o arcebispo
de Braga, valído de João II, tinha sido
prior mór de Sancta Cruz, devendo por isso conservar
estreitas relações com os frades, e que a
familia Galvão parece ter tido particular tendencia
para aquelle mosteiro; um outro D. João
Galvão era seu prior crasteiro no principio do seculo
XVI, e, como vimos, diz-se que em 1556 um
frade cruzio, velho de oitenta annos, o
cartorario
D. Manuel Galvão, depôs que existia o auto do
juramento de Affonso I,
em que os prelados e os
grandes da corte estavam assignados, grossa mentira,
seja de passagem dicto, porque o estylo
constante, sem excepção no seculo XII e ainda
no XIII, era escrever nos diplomas regios o mesmo
notario que os exarava os nomes dos prelados
e ricos-homens confirmantes. Mas os Galvões
não acabam aqui. Duarte Galvão,
irmão do arcebispo
valído, escrevendo depois de 1500 a
chronica
de Affonso Henriques (no fim da qual adverte
innocentemente
que seu irmão o arcebispo lhe dissera
que tinha motivos para crer
que Affonso
Henriques fora sancto,) introduz na narrativa
da batalha de Ourique a historia da apparição,
[181]
aperfeiçoada com a scena do ermitão que esquecera
a Lucena. Galvão refere-se nesta parte ao
que
elle mesmo (Affonso I)
disse, e dentro da sua
historia se contém, o que parece alludir a
uma
especie de memoria ou diploma em que figura o
filho de D. Theresa, o
Pharaó
obdurado. Tudo
o mais, pelo que se colhe da narrativa, andava em
fama; isto é, a reprehensão dada pelo rei a
Christo
por lhe apparecer a elle; as promessas da
protecção
perpetua do reino feitas por Deus; emfim
tudo aquillo que os frades de Alcobaça metteram
para dentro do
seu original do
juramento, porque
em verdade era pena que andasse tanta cousa
boa só em
confirmada
fama, como diz Duarte
Galvão. Mas se os frades bernardos souberam
aproveitar esses fragmentos soltos para delles fazerem
um juramento vistoso, e de uma apparição
rachitica uma apparição ancha e acabada, o
chronista
não tinha mostrado menos juizo em lhe dar
uma applicação util. Para D. João II,
morto e sepultado,
não servia ella já de nada. A bulla
Ut
Saluti, e Sixto IV, e o seu successor Innocencio
VIII tinham desapparecido da scena politica. Na
cadeira de S. Pedro estava assentado o sancto padre
Alexandre Borgia, que tinha assaz que fazer
em administrar piamente a igreja de Deus, para
[182]
não cogitar na sujeição politica de
Portugal á sancta
sé. O milagre de Ourique andava de todo desaproveitado.
Era uma lastima. O chronista olhou
para o mosteiro de Sancta Cruz, especie de viveiro
dos Galvões, e entendeu que a
apparição lhe podia
ser util. Descobriu, portanto, a causa efficiente
da apparição, no que ninguem até ahi
sonhara.
Fora a causa de tamanha mercê do céu o ter Affonso
I fundado e enriquecido Sancta Cruz
com
grande devoção. Na verdade isto
era em parte
mentira; porque as grandes doações de terras,
castellos e padroados, feitas por Affonso Henriques
áquelles frades, são todas posteriores a 1139
e anterior á batalha de Ourique apenas a de uma
horta em Coimbra
[44].
Antes, porém, da pontilhuda
dialectica dos diplomaticos não se olhava de tão
perto para as cousas. A mentira util tornava-se
em verdade pelo consenso dos sabios, e sabios
eram os inventores de pias fraudes. Ora a utilidade
de explorar a tradição em beneficio dos conegos
cruzios era indisputavel. Os caseiros e emphyteutas
do mosteiro, raça dura e rebelde em
pagar suas rendas e foros, não pagava, e ria-se
das excommunhões; os officiaes da coroa quebravam
[183]
impiamente os privilegios da ordem, e até,
anteriormente, os villãos de Montemor tinham
ousado accusá-la de haver obtido com dolo e
mentira parte das suas rendas e direitos senhoriaes
[45].
Depois, naquella conjunctura, o mosteiro
estava gasto e desbaratado das guerras que pouco
antes o prior D. João de Noronha tivera com o
bispo de Coimbra, em razão de uma pouca de
carne furtada da cozinha do bispo pelos criados
do prior; guerras em que se deram cruas batalhas
nas praças de Coimbra, sendo necessario que o
poder publico mandasse marchar tropas para pacificar
á força os dous reverendos
campeões
[46].
Postos o dominio directo, os direitos senhoriaes,
os bens e rendas de Sancta Cruz sob a protecção
de um bom milagre, naquella occasião desoccupado,
d'ahi só podia provir utilidade aos cruzios
sem damno de terceiro. Valia a pena, por isso,
de achar a causa verdadeira do milagre de Ourique,
com que ninguem ainda tinha atinado.
Paro aqui; e peço desculpa a v.. da minha
[184]
linguagem. Ha cousas que nenhuma equanimidade
basta para dellas se falar sem indignação, ou
sem riso. É necessario escolher, e eu prefiro o
ultimo quando se tracta de embustes e miserias
que já não fazem mal. V.. tomará na
conta que
merecem os factos e as reflexões que no decurso
desta carta lhe submetto, e de que no seu foro
intimo tirará as conclusões que julgar razoaveis.
Terminarei por dizer que sinto haver v.. declarado
pela imprensa que se retirava da arena da
discussão. Por mais oppostas que sejam em tantas
cousas as nossas doutrinas, a contenda pacifica
com um homem honesto, cortez e instruido,
era-me summamente agradavel. Mas d'hoje avante,
dirigindo-me a v.. diz-me a consciencia que
não faria uma acção boa.
Até certo ponto sería
ferir pelas costas um adversario leal. Cessou por
isso a nossa correspondencia. Restam mil outros
meios de falar com o geral dos homens de bem
e sinceros, e de dizer ao meu paiz as verdades
em que a guerra da maioria do clero me obriga,
por propria defesa, a fazê-lo pensar.
V
A SCIENCIA ARABICO-ACADEMICA
AO SR. A. J. DA SILVA TULLIO
(Março, 1851)
Meu amigo.―Remette-me v.. o folheto de
A. C. P. (que me diz ser um «academico» o sr.
Antonio Caetano Pereira) destinado a mostrar os
crimes, as fabulas, as contradicções, as
ignorancias
e não sei quantas cousas mais, em que o peccador
de mim caiu na narrativa da batalha de
Ourique. Pede-me v.. que diga eu alguma cousa
no seu jornal acerca desta publicação, a qual
fez,
segundo v.. affirma, certo effeito, por causa das
garabulhas ou gregotins mouriscos, appensos por
lithographia ao folheto, como prova dos progressos
da arte typographica entre nós, que é o mais
que podem provar aquellas esgaratujadas rabiscas.
Sabe o bom redactor da
Semana a
primeira
impressão que o folheto me causou? A que em
[186]
mim produzem muitas cousas que se publicam
nesta nossa terra. Lembrei-me da Divina Providencia,
para lhe agradecer que o estudo da nossa
lingua esteja tão pouco generalisado na Europa.
A reputação litteraria do paiz ganha immensamente
com isso. Dizem que não se deve nunca
desesperar da patria; mas eu confesso-lhe que
litterariamente desesperava della, se não fosse a
mocidade, á qual Deus queira dar bastante amor
do estudo, e alumiá-la com um sancto horror a
cruzar os umbraes da Academia. A dizer a verdade,
meu amigo, começa a fallecer-me a paciencia
e a vontade para discutir cousas que nos escorregam
para o chão quando tentamos submettê-las
á analyse. Demais, do que eu tracto agora é de
pôr quanto antes na imprensa o quarto volume
da
Historia de Portugal, que, em
consciencia,
me tem dado mais que pensar do que todas as
criticas academicas, presentes e futuras. Com a
mão no coração, digo-lhe que,
exceptis excipiendis,
o areopago censorio mais inoffensivo, mais
divertido até, que ha em todo o mundo é a
Academia
de Lisboa. Collectivas ou individuaes, as
censuras que partem d'alli nem sequer arranham
a supposta victima. Se não escorchassem, por via
de regra, a grammatica e o senso commum, não
[187]
só seriam suaves e morbidas; seriam até,
permitta-me
dizê-lo, voluptuosas. Traduzidas em
chim, tomavam-nas por obra de algum collegio
de mandarins letrados do celeste imperio.
O opusculo que o meu amigo me remette é pasmoso
no genero: é um botaréu da maravilhosa
fabrica das memorias e actas academicas tirado
do seu logar, e a que fizeram perder aquella parte
de formosura que lhe houvera resultado da
harmonia do todo. Sinceramente, é uma cousa
que lastimo.
Agora o que, tambem sinceramente, eu não
esperava era achar no opusculo certa cortezia
nas fórmas que o auctor empregou. Sabía que
se estava imprimindo contra mim um cartapacio
mourisco. Pensei que fosse obra dos reverendos,
que, tão pobres de saber e de intelligencia como
ricos de odio, resfolgam pelo respiradouro da injuria
a colera que os abafa. E ainda bem! Apesar
do nojo que tenho desses pobres-diabos, não
quero que elles estourem, porque são meus irmãos,
como em
gira jesuitica se costuma
dizer a
cada punhalada que se dá no proximo. Estou já
tão affeito aos improperios da imprensa devota,
á caridade dos nossos khatibs e ul-máis, que
não
esperava no imminente opusculo senão mais uma
[188]
prova a favor da minha crença na atrophia moral
e intellectual da maioria do nosso clero, crença
que elle se encarregou de demonstrar até a saciedade.
Enganei-me: era obra secular; academica,
porém cortez; cortez (entendamo-nos) até
o ponto de não usar o auctor das phrases dos
prostibulos e das tabernas, mas não até o ponto
de respeitar o meu caracter moral, porque ahi
sou accusado de
falto de sinceridade
(pag. 10),
de
critico cheio de fel, de
criminoso (pag. 15),
de
aviltador do valor
português (pag. 18). Isto,
porém, pode ser violento, mas não é
immundo.
Os mentecaptos indecentes são os que a minha
dignidade de escriptor e de homem me não consente
refutar. Assim, ser-me-ha licito satisfazer
aos desejos do bom redactor da
Semana e remetter-lhe
algumas notas ácerca deste curioso
papel.
Uma explicação. Quando digo que não
posso
refutar mentecaptos indecentes, não quero significar
que essa guerra que se me faz, atroz
na intenção, ridicula nos effeitos, ha de ficar
sem punição. Não sou homem disso; mas
tambem
não sou homem que gaste polvora com
guerrilhas. Hei de ir buscar a seu tempo as columnas
de infanteria e os macissos de cavallaria
[189]
que estão atraz dellas. As miserias que ahi vão
pela imprensa contra mim são um veu que encobre,
ou antes descobre por demasiado raro,
negocio mais grave. Tracta-se hoje de saber se
a Europa catholica se hade infeudar de novo ás
corrupções da curia romana, com o seu cortejo
de jesuitas de todos os formatos, de todas as
idades e de todas as mascaras; com os seus
titeres inquisitoriaes, com os seus Torquemadas
em miniatura. Tentêa-se este solo de Portugal:
manda-se hostilisar em mim o progresso
das novas idéas, a independencia das opiniões,
não porque eu seja o mais forte, mas porque
circumstancias, que não preparei nem provoquei,
me collocaram na primeira linha do combate.
O que é certo é que alguem se ha de
enganar ácerca do desfecho da lucta, ou nós,
ou esse grupo, essa cousa, que por ahi anda
a ajunctar quanto pó e podridão ha no cemiterio
dos seculos e a tentar insufflar-lhe vida;
essa cousa hedionda, que, incapaz das ambições
grandiosas, do despotismo esplendido da
Roma de Gregorio VII; repellida pelo evangelho
que ella desmente, fulminada pela philosophia
que ella detesta, depois de apurar as
suas doutrinas espirituaes nas fontes catholicas
[190]
das margens do Neva, vem refocilar-se para a
peleja, e desafiar a justiça de Deus e dos homens
atraz dos olhos buliçosos da madona de
Frosinone. Aqui, no ultimo occidente, o recontro
final ha de ser mais tarde. Que a mocidade
não durma, porém! Prepare-se para os dias de
prova, e talvez de tribulação, com a severidade
dos costumes, que dá a energia moral, e
com a severidade do estudo, que subministra
as armas para a victoria. Por ora pedem-nos só
jesuitas; o perigo da petição não
é grande. A
igreja da
Memoria, cujas grimpas
vejo d'aqui,
collocada lá a meia encosta, vigia a foz do Tejo.
Os filhos de Loiola não passariam áquem da
barra sem que o sangue de D. José I gemesse
nos fundamentos do templo, e este gemido retumbaria
pelo reino de Portugal, porque a imprensa
tem echos.
Entretanto, meu amigo, forcejemos todos por
não deshonrar esta terra: empreguemos unidos
os nossos esforços para augmentar os thesouros
da civilisação no paiz; associemo-nos lealmente
a quantas idéas generosas e puras de progresso
material e intellectual surgirem no meio de nós.
Filhos da imprensa, os nossos deveres são arduos;
mas é necessario cumpri-los. Porque estou
[191]
eu tranquillo no meio da tormenta que ruge?
Porque tenho a consciencia de os haver
desempenhado escrevendo a historia. Se transigisse
com vaidades e mentiras; se vendesse a
minha
penna a paixões
pequenas e más; se recuasse
diante de considerações miseraveis, as
horas da solidão e do silencio, que são as mais
da minha vida, não seriam tão repousadas para
mim. Alumiado por essa luz moral, que nunca
devemos perder de vista, espero levar ao cabo
o empenho que tomei, até porque a historia
de Portugal é uma das mais ricas em
licções
para nos prevenirmos contra as astucias de hypocritas,
e essas licções são hoje altamente
proficuas.
Não ha nella, sob tal aspecto, uma só
epocha infertil, desde os tempos barbaros em
que o arcebispo João Peculiar, furioso contra o
seu suffraganeo de Coimbra, se apoderava dos
paços episcopaes deste, convertia a cathedral
em estabulo dos seus cavallos, e espalhava por
terra as sacras fórmas, n'um impeto de bruta
colera, até aquelles, não barbaros mas corruptos,
em que os devotos e pios inquisidores,
depois de mandarem desconjunctar nos tractos
do potro os membros delicados das virgens
hebreas, ou das tidas por taes, iam, curvados
[192]
sobre o leito da dôr, pousar mollemente os
olhos lubricos nos debeis corpos das martyres,
e fartar a sua luxuria de tigres palpando aquellas
carnes pisadas e sangrentas. Quando a justiça
de Deus põe a penna na dextra do historiador,
ao passo que lhe põe na esquerda os documentos
indubitaveis de crimes que pareciam
escondidos para sempre debaixo das lousas, elle
deve seguir ávante sem hesitar, embora a hypocrisia
ruja em redor, porque a missão do historiador
tem nesse caso o que quer que seja de
divina.
E o opusculo sarraceno? Perdoe, meu amigo!
O opusculo tinha-me profundamente esquecido.
O eruditissímo academico meu adversario declara-me
inhabilitado para escrever a historia do
dominio mussulmano na Hespanha, porque não
sei arabe.
Pois então dou-a por não escripta. Largo o titulo
de historiador; mas consolo-me com a boa
companhia. Masdeu, Noguera, Ferreras não sabiam
arabe; Barros não sabia o sanskrito; Raynal
não sabia as linguas bunda, tupinamba e iroquesa;
Bossuet não sabia as setenta e duas linguas
da torre de Babel.
O auctor do opusculo passa a demonstrar como
[193]
eu não sei arabe. Não era preciso: nas notas do
meu livro estou mais que confesso. Nunca citei
um texto escripto nessa lingua, que não dissesse
de que traducção me tinha valido.
Eis, todavia, as provas
da minha
insciencia:
Primeira: Attribuo ao nome do Guadiana origem
phenicia.
E continúo a attribuir-lh'a. O nome radical do
rio é
Ana: e os eruditos
concordam geralmente
em que a palavra é phenicia.
Guadi,
wadi, ou
como em mouro direito for, é árabe, e significa
rio. Até ahi chega o meu arabismo. Mas não
são
essas syllabas que o distinguem, porque os sarracenos
as ajunctavam a muitos
nomes
proprios
de rios.
Guadiana nada mais
é que o
rio Ana.
Segunda: Digo que
Alcacer significa
paços
reaes.
E porque não o havia de dizer? Os
Vestigios
arabicos de Moura dão-lhe a
significação de
palacio
acastellado; e eu, que não sei arabe, mas
que sei outras cousas que o auctor do opusculo
ignora, affirmo-lhe que naquella epocha o
Al-kassr
ou
Al-kassba (aqui me colhe n'alguma
tropelia
arabica) era isso, ou mais exactamente, um
castello apalaçado.
Quanto ao adjectivo
reaes,
asseguro-lhe
á fé de christão (e tanto da gemma,
que
[194]
não entendo o alcorão) que em virtude das
instituições
politicas d'aquelles tempos, assim entre
sarracenos como entre nazarenos, o
alcacer era
necessariamente
real, isto
é, dependente do poder
publico.
Terceira: Chamo a
Ourique nome
proprio de
logar.
Sobre isso falaremos d'espaço.
Quarta: Interpreto
Iman dignidade
religiosa.
Esta accusação deixou-me quasi academico.
Para um arabista parece-me gracejo forte de mais.
Pois
Iman não significa
dignidade religiosa? O
auctor do opusculo devia então dizer-nos se o
iman era algum capitão de
mar e guerra, mercador
de retalho, dentista, ou que demonio era o
iman. Quem a mim me metteu nestes
trabalhos
sei eu. Foi o celebre traductor e refutador do alcorão,
Marraccio, que teve a insolencia de dar
sempre á palavra
iman a
significação de
chefe do
culto, de
principal sacerdote
(sacrorum antistes)[47]:
foi o orientalista Von-Hammer
[48],
que sabe mais
das cousas mussulmanas, que toda a eschola arabica
de Lisboa desde a sua fundação até
hoje: foram
[195]
todas as exposições da
organisação religiosa
entre os mussulmanos, não só da Peninsula, mas
de todo o mundo.
Quinta: Digo ser
Ismar
corrupção de
Omar
ou de
Ismael.
É possivel que eu me enganasse: todavia,
porque não me fez o auctor do opusculo um favor
especial; porque não me citou na historia de
Abdel-Halim, na de Conde, na de Al-Makkari, ou
na de Al-Keiruani, onde se mencionam milhares
de individuos mussulmanos, um só que se chamasse
Ismar? Assim fico em duvida, e
desconfiado
de que tenhamos outra anecdota como a
d'
Iman.
Felizmente as provas não continuam. Se o auctor
proseguisse, temo que demonstrasse contra
mim que eu sabía arabe. Era um aperto em que
me punha; porque na realidade eu não sei decifrar
um unico daquelles engaços de passas, que
elle lithographou ao cabo do seu opusculo.
Passado o preambulo, o auctor annuncia que
vai provar-me pelos historiadores arabes que a
batalha d'Ourique foi uma grande batalha e o
golpe fatal dado no dominio
mussulmano. Sancto
breve da marca! Sempre são mouros! Se tal
affirmam, digo ao illustre arabista que não os
[196]
acredite. Os monumentos christãos, ainda os mais
exaggerados, não contam tanto. O dominio mussulmano
ficou como estava depois da jornada
d'Ourique. Affonso I voltou muito depressa para
os seus estados, ao norte do Mondego, porque
sabía do officio de soldado. Sessenta annos de
lucta depois da bulha d'Ourique não bastaram
para expulsar de todo do actual territorio português
os mussulmanos. Apesar da celebre jornada
de 1139, Affonso Henriques teve de ir conquistando
palmo a palmo a Estremadura e o Alemtejo.
Que
golpe fatal foi, portanto, esse
de Ourique?
Ah mouros, mouros! Isso é debicar com o
proximo.
Depois de citar o que eu refiro como introducção
á narrativa da batalha, o opusculo vem deitar-me
tudo por terra com um sopro. Errei a
chronologia, os nomes dos imperadores almoravides,
tudo. Oh peccador de mim!
Lá vai o texto do nosso academico arabico:
«Nada tem o facto de Ourique,
succedido no reinado
de Ali-Ben-Taxefin, com Aly-Ibn-Iussuf; porque este
Aly-Ibn-Iussuf foi o primeiro imperador da dynastia
dos morabethins e falleceu no anno 496 da Hegira, 1103
da era Christã...»
[197]
«Não foi,
portanto, no reinado de
Aly-Ibn-Iussuf, nem
durante o de Aly-Ben-Taxefin, que começou a
pretensão
do celebre El-Mohdy, mas sim no reinado de Taxefin-Ben-Aly,
que succedeu a Aly-Ben-Taxefin, isto é, principiou
no reinado do III imperador e só tomou seu maior
incremento no meio do reinado do IV imperador da dynastia
dos morabethins, que foi Ibrahim-Ben-Taxefin:
logo no reinado de Aly-Ben-Taxefin, em cujo tempo foi
a batalha de Ourique, não houve
revolução, nem politica,
nem religiosa, que distrahisse as tropas; o que tudo
confirmamos, convidando nossos leitores a que leiam os
capitulos desde 32 até 36 inclusivamente da Historia
Genealogica dos imperadores mussulmanos, escripta por
Abu-Mohammed-Salihn-Abd-Alihim.»
Transcrevi todas estas blasphemias historicas,
para que se veja com quanta razão dou graças a
Deus de que a nossa lingua seja pouco conhecida,
e o que se deve esperar de uma academia onde
ha destes eruditos. Pús á vista de todos o corpo
de delicto. Vamos ao auto.
A serie dos imperadores almoravides que resulta
das precedentes passagens é a seguinte.
1.º
Aly-Ibn-Iussuf |
|
1103 |
(morto) |
2.º
Aly-Ben-Taxefin |
|
1139 |
(batalha d'Ourique) |
3.º
Taxefin-Ben-Aly |
|
(apparecimento do
Mahadi) |
4.º
Ibrahim-Ben-Taxefin |
|
|
|
Em que se funda o auctor? Que é o que cita
em seu abono?
[198]
Unicamente os capitulos 32 a 36 da Historia
de Assaleh-Ben-Abdel-Halim, ou Salihn Abd-Alihim,
conforme for em mouro a graça de sua mercê,
porque não ha dous arabistas que escrevam
um nome de gente do mesmo feitio.
Ora os capitulos citados
[49]
têem apenas o pequeno
inconveniente de se referirem ás primeiras
conquistas dos lamtunenses, e ao estabelecimento
do seu dominio na Africa
na segunda
metade do seculo XI. É no capitulo 37 que
se
narra a primeira passagem á Hespanha de
Iussuf-Ibn-Tachfin e a victoria de Zalaka em
1080; no 38 a segunda passagem; no 39 a
terceira em que Iussuf incorporou nos seus
dominios os estados mussulmanos da Peninsula,
que tinham invocado o seu auxilio. Iussuf
foi o primeiro imperador almoravide d'Africa e
de Hespanha.
A serie dos imperadores, que resulta dos capitulos
[199]
39 e seguintes da Historia de Assaleh-Abdel-halim
é:
1.º
Iussuf-Ibn-Tachfin (fallecido)
em |
|
1106 |
2.º
Aly-Ibn-Iussuf
(appel. Abu-Hassan) (fallecido) em |
|
1142 |
3.º Tachfin-Ibn-Aly
(morto
em) |
|
1145 |
Se o meu amigo comparar isto com o que se
diz no opusculo, não me ha-de acreditar. Tem
razão. É monstruoso, é incrivel,
é absurdo; mas
está la. Se quizer desenganar-se, procure a
versão
de Assaleh pelo padre Moura esplendidamente
impressa pela Academia em papel pardo e letra
safada. Veja o que diz o historiador arabe, o
que eu digo, e o que diz o opusculo. Depois julgue-nos;
e, ainda depois, faça idea do que irá
pela
Classe de Sciencias Moraes e
Bellas-letras
(ou, como quem o dissesse em português,
e
Boas-letras)
da Academia
[50].
É assim que esta gente salva a gloria nacional
e vindica a bulha d'Ourique contra a minha má
fé, contra o fel da minha critica.
A má fé é minha. Repare bem nisso.
Mas haverá outros textos de Abdel-halim, que
[200]
tenham alguns capitulos 32 a 36, que nos contem
essas historias do opusculo?
Na parte da
Historia do Dominio dos
Arabes
por D. J. Conde, relativa á dynastia almoravide,
o erudito hespanhol seguiu Assaleh. Esta parte
do seu trabalho ficou imperfeita e por isso deve
aproveitar-se com cautela. Todavia Conde era
incapaz de commetter um erro tão grosseiro
como transtornar completamente a chronologia
daquella epocha. Isto estava reservado para um
membro da nossa academia.
Eis o resumo da chronologia de Conde quanto
á dynastia almoravide
[51]:
1.º
Abu-Bekr-Ibn-Omar
(unicamente na Africa) |
|
2.º
Iussuf-Ibn-Tachfin,
fallecido na
egira
(1106-1107)
|
|
500 |
3.º Aly-Ibn-Iussuf, fallecido na
egira
(1139-1140)
|
|
534 |
4.º Tachfin-Ibn-Aly fallecido na
egira
(1146-1147)
|
|
541 |
A ordem dos imperadores é a mesma. Conde
atraza dous annos a morte de Aly-Ibn-Iussuf e
adianta um a de seu filho. Ainda admittida a chronologia
[201]
Conde, a jornada de Ourique cai dentro
do reinado de Aly-Ibn-Iussuf; porque a Egira
534 correu de
agosto de 1139 a
agosto de 1140.
Os historiadores sarracenos Ibn-Khallekan
e Ibn-Al-Khatib consideram Iussuf-Ibn-Tachfin
como o fundador da dynastia almoravide. Eis a
chronologia seguida por elles:
1.º Iussuf,
fallecido na
egira |
|
500
(1106-7) |
|
2.º Aly, fallecido na
egira |
|
537 (1142-3) |
|
3.º Tachfin, fallecido na
egira |
|
539
(1144-5) |
[52] |
Já se vê que, segundo a chronologia de
Ibn-Khallekan
e de Ibn-Al-Khatib, a ordem da dynastia
é a mesma, e que o successo d'Ourique tambem
cai no reinado de Aly-Ibn-Iussuf. O celebre
Abu-l-Feda concorda com elles. «Na Egira de
500―diz Abu-l-Feda―morreu Iussuf-Ibn-Tachfin,
amir al-moslemin. Succedeu-lhe Aly
seu filho
(Aly-Ibn-Iussuf) que tomou o titulo de
amir
al-moslemin, como seu pae
[53].»
Resta apontar o que resulta da narrativa do
principal historiador arabe do dominio mussulmano
[202]
Peninsula, Al-Makkari, ácerca da dynastia
almoravide:
1.º
Iussuf-Ibn-Tachfin |
|
1052 a
1106 |
|
2.º
Aly-Ibn-Iussuf |
|
1106 a 1143 |
|
3.º
Tachfin-Ibn-Aly |
|
1143 a 1145 |
|
4.º
Abu-Ishak-Ibrahim-Ibn-Tachfin |
|
1145 a 1147 |
[54] |
Que tal parece ao meu amigo a erudição arabica
da parte sarracena da nossa Academia?
Nos arabes vê-se que se encontra exactamente
o contrario do que se lê no opusculo. Certamente
o auctor descubriu essa deliciosa historia dos
almoravides, que nos conta, nos escriptores
christãos coevos ou quasi coevos. Sempre era
gente que se confessava. Mouro e judeu mentem
por officio. Vejamos:
A chronica dos godos nas suas referencias aos
imperadores almoravides:
1.º
Iussuf |
|
(batalha de Zalaka) |
1085 aliàs 1086 |
2.º Aly-Ibn-Iussuf |
|
(cerco de
Coimbra) |
1117[55] |
[203]
A conimbricense:
2.º Aly |
|
(cerco de
Coimbra) 1117[56] |
Rodrigo de Toledo, o escriptor do seculo XIII
mais instruido na litteratura arabe e christã da
Peninsula, estabelece para a dynastia almoravide
d'Africa e de Hespanha, que diz ter durado 55
annos desde a Egira 484 até a Egira 539, a seguinte
chronologia:
1.º
Iussuf-Ibn-Tachfin
(principio da dynastia) |
|
1091-2 |
|
2.º Aly-Ibn-Iussuf |
|
|
|
3.º Tachfin-Ibn-Aly (fim da
dynastia) |
|
1144-5 |
[57] |
Ao
digno academico restam talvez
para estribar
as suas famosas historias
almoraviditicas (na
falta de arabes e christãos) alguns historiadores
tartaros, mongoles, ou chinas.
É provavel que seja assim.
Perdôe, meu amigo, estas extensas
citações.
Era necessario dar uma prova, que não admittisse
subterfugios, dos deploraveis, por não dizer
vergonhosos, extremos a que o desejo de me
combater tem levado certas pessoas.
[204]
O auctor do opusculo negou, com a mesma
sem cerimonia com que transtornou a serie dos
imperadores, que o Mahadi ou Al-mohdi (Mohammed-Ibn-Tiumarta)
começasse a revolução almohade
no reinado de Aly, e que nos ultimos annos
deste reinado, isto é, na epocha da batalha ou
recontro de Ourique, essa revolução houvesse
tomado um incremento irresistivel. Todavia são
os mesmos escriptores arabes que contam o successo
como eu o narrei: conta-o o proprio Abdel-halim,
em que elle finge estribar-se com uma
citação
falsa;
falsa, digo, porque tanta
confusão
involuntaria é moralmente impossivel. A narrativa
de Abdel-halim é, que em 1120 appareceu
o Mahadi; que de 1122 a 1125 já se achava com
forças para vir assentar campo perto de Marrocos;
que, tendo fallecido em 1130, tomou o commando
dos almohades Abdel-mumen, o qual foi acclamado
imperador em 1133, continuando guerra
incessante contra os almoravides até os destruir
[58].
É elle que, depois de narrar as victorias de Tachfin-Ibn-Aly
contra os christãos desde 1126
até 1137, refere que logo passara á Africa
[59].
[205]
Conde diz-nos que fora chamado por seu pae
ameaçado da ultima ruina
[60].
Habil e feliz general
contra os christãos, esta causa da sua partida
parece confirmada, não só pela razão,
mas
tambem pelo texto de Al-Khatib
[61].
Um monumento
christão, escripto por individuo do mesmo
seculo, a
Chronica Adefonsi
Imperatoris,
confirma e particularisa o facto. Narrando os successos
de 1138, diz que Tachfin levara comsigo,
retirando-se para a Africa, até os mosarabes e os
prisioneiros christãos para os oppôr aos
almohades
[62].
Deixaria acaso em Hespanha a flor das tropas
almoravides, quando a defesa de Marrocos o
obrigava a converter em soldados os proprios nazarenos
captivos? Destroem-se estes factos com
citações falsas? Como se explica o abandono
d'Aurelia, suppondo a existencia de uma grande
batalha dada (exactamente na conjunctura do cerco)
no occidente da Peninsula entre almoravides
e portugueses, quando de Africa se não dispensava
um soldado para a salvação d'aquella chave
da fronteira musulmana? Que se póde dizer que
[206]
tenha um vislumbre de senso commum contra o
que a este proposito reflecti?
Quem dá documentos de má fé? Sou eu ou
os
meus adversarios?
Ia-me irritando! Em boa paz, o nosso academico
arabe não vale a pena disso.
Depois d'estas façanhas, o auctor do opusculo
prosegue com accusações curiosissimas. Fora
extenso de mais citá-las todas. Uma d'ellas é que
chamo á serie dos imperadores almoravides
dynastia
lamtunense para explicar o apparecimento
das mulheres no recontro de Ourique, e para
taxar de covardes os mesmos almoravides. O auctor
faz a mercê de dizer-me que o vocabulo
lamtunense,
ou antes almolatamenense, não serve
para indicar covardia. Devéras? E eu que não
caía em nada! Isto é incrivel, amigo redactor da
Semana. Digo mais: era impossivel
haver quem
fizesse d'estas, se não houvesse academias. Chamei
aos principes almoravides
dynastia
lamtunense,
ou
lamtunita, porque todos os
historiadores
arabes, Ibn-Khaldun, Abdel-halim, Al-Makkari,
Al-Khatib, Al-Keiruani, lh'o chamam, e chamam-lh'o
para indicar valentia ou covardia tanto
como eu. Chamam-lh'o porque, entre as raças
bereberes que serviram de nucleo ao imperio almoravide,
[207]
a de Lamtuna ou Lamta
[63]
era a principal,
e porque Iussuf, o primeiro imperador almoravide,
era da tribu de Masufah pertencente a
essa raça. Aquella phrase do opusculo
«
ou antes
almolatamenense», é deliciosa.
Como o nosso
arabista precisava de mostrar a sua pobre
erudição,
fez pouco mais ou menos este raciocinio:
«o auctor da Historia de Portugal denomina os
principes almoravides
lamtunenses;
eu digo-lhe,
ex auctoritate qua fungor que era
melhor chamar-lhes
almolatamenenses»: ora
como esta denominação
provinha de terem os almoravides cuberto
o rosto com veus de mulheres n'uma batalha,
e possa crer-se um epigramma contra o seu
esforço, embora elle não usasse de tal vocabulo,
devia usar, para eu poder reprehendê-lo por isso;
porque é uma violencia negar a um pobre escholar
arabico a occasião de mostrar
erudições
reconditas.
Sabe o meu amigo o que isto faz lembrar?
Faz lembrar o prégador que punha o barrete na
borda do pulpito, encarregava-o do papel do
diabo, e depois convencia-o á sua vontade. Vamos
[208]
a outro exemplo. No opusculo mourisco
affirma-se contra mim:
Que os principes almoravides usaram do titulo
de
amir-el-muminin[64].
A prova disto é curiosa, como tudo o mais. Os
almoravides usaram-no, segundo o opusculo sarraceno,
porque Abdel-halim diz que foi usado
duzentos annos antes pelos Benu-Umeyyah (ommiadas)
soberanos arabes de Cordova. Não o diz
Abdel-halim; di-lo toda a gente; mas que tem o
que fizeram os ommiadas com o que fizeram os
almoravides? Isto, meu amigo, é incrivel! Acima
transcrevi uma passagem de Abu-l-Feda, pela
qual se vê que o titulo dos soberanos lamtunenses
era
amir-al-moslémin
(principe dos mussulmanos).
Ouçamos agora o sr. Gayangos: «Não
consta da historia―diz elle―que Iussuf-Ibn-Tachfin
ou algum dos seus successores tomasse
nunca o titulo de
Amiru-l-muminin,
que era reservado
para o khalifa, ou vigario do propheta no
[209]
oriente. Contentaram-se pelo contrario, ao que
parece, com o titulo mais modesto de
Amiru-l-muslemin,
ou
principe dos moslems (de Africa e
de
Hespanha). Os proprios sultões de Cordova, postoque
descendentes do tronco dos Benu-Umeyyah,
e tão intimamente ligados com a familia do propheta,
não se atreveram a tomar este titulo honorifico
emquanto a familia de Abbás não chegou a
ser quasi extincta na Asia pelos turcos; e ainda
assim, o uso desse titulo foi reputado sacrilego
por alguns theologos de Cordova e d'outras cidades
da Peninsula
[65]».
Effectivamente Abu-l-Feda
nos certifica que Abderrahman III «foi o primeiro
entre os principes ommiadicos do Andalus
que se arrogou o titulo de
amir-al-muminin proprio
do Khalifa[66].»
Isto não são citações
falsas. Por ellas póde ver
o meu amigo com quanta exacção eu escrevi
ácerca dos almoravides, embora não fosse esse o
objecto essencial do meu trabalho, e com quanta
leveza foi escripto o opusculo sarraceno destinado
a refutar-me. Não fica, porém, aqui o negocio.
[210]
O academico auctor do opusculo accusa-me
de ignorancia da lingua arabe e de historia por
dizer que os principes da dynastia almohade adoptaram
o titulo de khalifa ou de
amir-al-muminin,
porque, diz elle, o de khalifa só se deu aos imperadores
do oriente, e estas palavras khalifa
e amir-al-muminin significam diversas cousas.
Agradeço a ultima novidade; mas eu não escrevia
grammatica; escrevia historia, e, politicamente,
as duas expressões eram synonimas. Que
se pensaria de quem accusasse d'ignorancia de
grammatica e de historia aquelle que, falando do
imperador da Russia, dissesse «
o czar ou
autocrata?»
Por outra parte para o academico auctor
do opusculo affirmar que o titulo de khalifa se deu
ou não se deu aos principes mussulmanos do occidente,
ainda tem que estudar muito a historia
moslemica d'Africa e de Hespanha, cujos rudimentos
parece ignorar. Se ler o capitulo 5 do livro
6 d'Al-Makkari, ahi achará que o imperador
ommiada de Cordova Abderrahmam III «foi o
primeiro soberano da sua familia que assumiu
os
titulos de khalifa e de amiru-l-muminin».
Se tambem
quizer saber se os principes almohades tomaram
ou não o titulo de khalifas, leia Al-Keiruani,
e lá achará este periodo: «El-Mohdi
elevou
[211]
o khalifado para os que lhe
succederam
[67]»,
e mais
adiante, onde se conta certa anecdota do primeiro
imperador almohade, Abd-el-mumen, lerá que
um poeta da côrte dizia a outro: «Até
quando
importunarás tu
o
khalifa?»; porque é de advertir
que naquelle tempo havia poetas impertinentes,
como hoje ha criticos academicamente
originaes.
Mas, em consciencia, meu amigo, eu ás vezes
merecia ser feito socio effectivo da classe de
sciencias moraes e bellas-letras! Pois ha simpleza
maior do que citar ao auctor do opusculo sarraceno
tanta mourisma, quando o proprio Abdel-halim,
que, segundo parece, constitue toda a
matalotagem arabica do
digno
academico, se lhe
rebella e tumultua dentro do bornal litterario
em que o traz mettido? E senão, ouçamo-lo. As
palavras mandadas ensinar ao leão e ao papagaio,
de que Abdel-mumen se serviu para os almohades
o acclamarem imperador, traduzidas
por Moura na sua versão de Abdel-halim, são
«
as victorias e o poder competem ao califa
Abdelmumen[68]».
[212]
É verdade que o auctor do folheto,
que repete a historia do leão e do papagaio,
não sei para me provar o que, traduz, em
logar de
califa,
successor. Mas aqui para
nós,
meu amigo, postoque eu não saiba arabe, apostava
que isso foi uma esperteza, e que naquella
expressão
algalifatu (ou,
como Moura lê,
el-califa)
anda o que quer que seja de
khalifa.
Estou com pressa de chegar ao fim, porque
temo fazer uma carta tamanha como o opusculo,
o que seria para o publico, em vez de uma desgraça,
duas. Mas faltou-me o animo quando fui a
saltar por cima do precioso paragrapho 8, que o
auctor destinou para me provar que Ourique não é
nome proprio de logar, como eu disse, mas sim appellativo,
que significa
adversidade ou
infortunio.
Sou, porém, nesta parte absolvido do peccado,
porque quem me deitou a perder foi o padre
Moura, conforme resa o folheto. Ao menos,
valha-nos isso! A consequencia, todavia, immediata
deste importante descubrimento, que o digno
academico fez, é exactamente a contraria da
que elle desejava. Se assim é, torna-se impossivel
[213]
achar jámais uma passagem de auctor arabe
que se refira com certeza ao conflicto de Ourique.
Embora até aqui não tenha apparecido essa
passagem, podia ainda apparecer; mas desde
que a palavra ourique (tirei-lhe o
O
maiusculo,
não pensem que teimo em fazê-la nome proprio)
significa só
adversidade
ou
infortunio, o caso
muda de figura. O combate que Affonso I teve,
no fossado de julho de 1139, com os mouros
do Alemtéjo é um facto provado pelos testimunhos
que eu colligi; o que não está provado,
nem se ha de provar nunca, é que elle fosse um
successo importante. N'algum escriptor arabe,
ainda inedito, que particularisasse muito os
acontecimentos de Hespanha naquella epocha podia
vir mencionado o recontro do
campo de
Ourique;
mas como o auctor do opusculo não
consente que esse pobre
o tome as
dimensões de
letra maiuscula, qualquer passagem que appareça
ha de ser traduzida pelos arabistas da seguinte
maneira: «Houve em 1139 um combate entre
os moslems e os infieis
no campo da adversidade
ou do infortunio». Ora como nesse anno, do
mesmo modo que nos antecedentes e consequentes,
houve muitos recontros entre os christãos
e os mussulmanos, segue-se que não saberemos
[214]
a que conflicto allude o auctor arabe;
porque todos os campos de combate são de adversidade
ou infortunio para um dos contendores,
e talvez para ambos. Realmente este modo
de defender a importancia da batalha de Ourique
é galantissimo.
O que, porém, é verdadeiramente academico
e digno do pincel de Molière é o que pondera o
auctor do folheto sobre o erro de Moura ácerca
da etymologia de Ourique. «É bem clara―diz
elle―
ainda para os que não sabem
arabe, a
nenhuma analogia que se nota
com o
ouvido
entre
orique e
arique». Agora, quer o meu
amigo saber com que palavra arabe
orique se parece
muito? É com
araka. Isto
não precisa de
commentario. Nas contendas dos nossos rapazes
ácerca da Stoltz e da Novello, quem devia dar a
sentença definitiva era o illustre arabista. Proponham
a questão á Academia.
Mas a cousa mais sublime, talvez, de todo o
folheto vem neste mesmo paragrapho. É uma
novidade que escapou a todos os etymologistas
e ethnographos. Na translação das palavras de
umas linguas para as outras, ellas se transfiguram
com a irregularidade que necessariamente
resulta da ignorancia das multidões, que são
[215]
quem ordinariamente faz essas adopções de termos
peregrinos. As proprias transformações das
linguas são assim, e assim foi que a latina se
transformou nos modernos idiomas da Europa
occidental. Nestas mudanças e adopções
não ha
letra que não possa alterar-se; e basta ter uns
rudimentos de linguistica para não o ignorar.
Agora ouça o meu amigo um mysterio da lingua
arabe: «Moura―diz o opusculo―foi buscar a
raiz de tal vocabulo no verbo
araka,
cuja primeira
letra radical, que é um
alif,
não soffre a conversão
para a letra
o nas linguas
europeas». Isto
quer dizer que aos rudes portugueses do seculo
XII, que escorchavam sem piedade quantas letras,
quantas palavras celticas, phenicias, gregas,
romanas, germanicas lhes caíam nas unhas,
era prohibido tocar no
alif, especie
de
noli-me-tangere
arabico. Certamente, meu amigo, no alcorão
ha uma sura intitulada «
Dos escorchamentos
etymologicos» onde o propheta diz:
«Todo o
infiel nazareno que bulir na sancta letra
alif para
della engenhar um dos seus maldictos
ós, vai preso».
Foram peccados meus que me impediram
d'aprender arabe: teria com isso evitado deixar-me
embair por aquelle herege do padre Moura,
que pelo que vejo, era um pessimo sarraceno.
[216]
Depois vem uma longa chicana (perdoe, meu
amigo, o gallicismo, mas como isto ha de ser lido
pelo digno academico arabista membro da classe
de sciencias moraes e bellas-letras, elle entenderá
assim melhor a phrase); vem uma longa chicana
sobre as palavras
fossado,
correria,
entrada, e
não sei que mais, em que o auctor desenvolve
uma erudição pasmosa em diccionario de Moraes.
Chamei fossado á expedição de Affonso
I em
1139, porque todas as etymologias do mundo não
podem fazer com que uma cousa deixe de ser o
que é. O fossado era uma expedição que
se fazia em
regra todos os annos no começo do verão
ás terras
inimigas: questionar sobre isto não sería mais
do que mostrar-se profundamente ignorante das
nossas cousas antigas.
Correria
é um nome que
cabe ao fossado tão bem como
expedição;
porque
correria é uma especie do genero
expedição, mais
nada. Quem faz uma expedição, fossado, ou
correria
no territorio inimigo, entra nelle (emquanto
o alcorão ou a Academia não mandarem o contrario)
e por consequencia faz uma
entrada.
Não é
uma miseria, além disso, affirmar-se n'um papel
que tem a pretensão de ser cousa séria, que
eu me contradigo, porque, chamando correria ao
fossado de 1139, exprimo ao mesmo tempo a
[217]
idéa de que os mussulmanos hespanhoes buscaram
em si proprios recursos para atalhar o passo
aos invasores na falta das tropas almoravides,
visto que (diz-se ahi), sendo a correria um acto
repentino, os mussulmanos não podiam precaver-se?
Que resposta séria se póde dar a isto?
Fique-se entendendo que quando um paiz é invadido
rapidamente, os habitantes deixam-se matar
como carneiros e não se unem para se defenderem,
ou que os soldados que fazem correrias,
não andam, mas voam, ou vão em aerostatos descer
aonde e quando querem sem que ninguem os
veja passar. Dizer que no fossado de Ourique não
houve audacia, a ser como eu o narrei, embora
as tropas almoravides, ou a melhoria dellas, faltassem,
é cousa tão absurda, quanto é certo
que
essa expedição importava uma longa marcha de
cincoenta leguas (que tantas irão de Coimbra ao
campo de Ourique) quasi toda por paiz inimigo,
porque, como bem observa a chronica dos godos,
Ourique ficava
no coração das
terras mussulmanas.
Qualquer cabo de esquadra sabe que difficuldades
se offerecem á marcha de tropas, embora
disciplinadas (como de certo não eram as de Affonso
I) atravez de um paiz excitado contra essas
tropas pelo fanatismo politico e religioso. O principe
[218]
português deixava, além disso, na sua retaguarda,
por um e por outro lado, logares importantes
fortificados, e bem ou mal guarnecidos,
taes como Santarem, Lisboa, Alcacer, Elvas,
Evora, etc.; o que tornava a volta de Affonso I
aos proprios estados duplicadamente arriscada.
Emfim, meu amigo, eu deixo nesta parte aos homens
intelligentes avaliar se o fossado de Ourique,
com as poucas circumstancias que delle
sabemos, embora não tivesse as dimensões que
lhe attribuiram depois, foi ou não foi um acto de
bastante ousadia.
De passagem, meu amigo, deixe-me protestar
contra um falso testimunho que me levanta o
auctor do opusculo, quando, citando textualmente
as minhas palavras, me attribue o uso do
vocabulo
derrota por
destroço ou
desbarato (dos
sarracenos em Ourique). Não escrevi o meu livro
para se inserir nas actas da Academia: escrevi-o
para o publico português, e por isso na
sua lingua, ao menos até onde eu a sabía.
Vamos á questão principal. Para a tractar
não
me parece que fosse necessario accumular previamente
tanta inexacção e tanto desproposito.
Eu tinha affirmado que os diversos escriptores
arabes que nos transmittiram a historia daquella
[219]
epocha guardaram silencio ácerca da batalha de
Ourique. O auctor do opusculo sarraceno firma
a proposição
contraria, isto é, que
nesses diversos
escriptores arabes se encontram, não só
vestigios della, mas tambem a sua
descripção,
e as suas
consequencias terriveis.
Algum de nós, pois, engana o publico; algum
de nós commette uma acção indigna de
homens
de letras affirmando uma cousa opposta á verdade.
Eu consultei os historiadores arabes que
escreveram a historia do dominio mussulmano
na Peninsula, e que estão traduzidos. Era essa
unicamente a minha obrigação, porque
não sei
arabe. O auctor do opusculo
devia
tê-los visto
antes de escrever, e
podia ter lido
outros, porque
diz que sabe arabe. Se a minha narrativa
fosse conforme com os primeiros comparados
com os monumentos christãos, e o auctor achasse
que esses não-traduzidos os desmentiam, devia
provar que o seu testimunho era preferivel
ao delles e ao dos monumentos christãos,
sendo accordes uns com outros. Sem isso nada
tinha feito. Ora eu estribei-me na narrativa de
Abdel-halim, como a haviam vertido Moura e
Conde, e esta narrativa concorda em geral com
a chronica latina de Affonso VII, escripta ainda
[220]
no seculo XII ou nos começos do XIII. Das
tres fontes historicas resulta ou não resulta o
que eu disse? Resulta ou não resulta, que antes
de julho de 1139 Tachfin-Ibn-Aly tinha partido
para Africa, levando comsigo as tropas
que pôde, sem exceptuar os mosarabes e os captivos
christãos? É verdade que o cerco de Aurelia
ou Cazorla durou
de abril a setembro ou
outubro[69]?
É verdade que os seus
defensores pediram
debalde soccorro a Tachfin,
que se achava
então em Africa? São, portanto,
bem deduzidas
as minhas inferencias de que é absurdo imaginar
que havia trezentos ou quatrocentos mil mouros
para saltarem por cima do exercito do imperador
Affonso VII, e virem dar uma batalha campal a
Affonso Henriques, e não os havia para descercarem
uma praça daquella importancia? É para
responder negativamente a estas perguntas de um
modo tão categorico como eu as faço, que desafio
o auctor do opusculo sarraceno.
Ao que se colhe dos monumentos christãos e
mussulmanos coevos ou quasi coevos
[70]
que textos
[221]
exquisitos e reconditos vem, porém, oppôr
o
digno academico? Vejamos:
Um mouro chamado Hamed-el-Nabil,
que viveu
no principio do seculo XVII, vindo a Hespanha,
escreveu um itinerario. Nelle diz, falando da
epocha em que succedeu o caso d'Ourique, as
palavras seguintes, que vou transcrever, porque
gósto de apresentar o corpo de delicto:
«E dizem alguns dos sabios precedentes
sobre
o governo da Andaluzia (
sic) que
ella muito se
engrandeceu:
e na verdade conquistou com boa
posse (
sic) muitos
dos logares
os
(
sic) mais notaveis:
e foi isto depois que l'Enrick
derrotou os
mussulmanos; (
sic) não
persistiram estes depois
disso no paiz senão quando obravam pacificamente;
e
por isso
(
sic) ficaram os
christãos neste
paiz senhores de suas terras e de suas riquezas
(
sic),
(
sic),
(
sic).»
O meu amigo ha de ficar espantado quando
souber que nesta salsada, que até certo ponto
simula lingua portuguesa, ha,
não
só claros vestigios
da batalha de Ourique, mas tambem a
descripção
[222]
della e das suas consequencias. Pois
saiba
que ha. Saiba tambem que, um ou dous mezes
antes de se imprimir o opusculo sarraceno,
se dizia pelos cantos, que na Academia se lera
uma cousa mourisca, que excitara o enthusiasmo
d'alguns daquelles padres-conscriptos, porque
ahi se me provava com textos arabes que eu
não soubera o que tinha dicto quando falei com
tanta irreverencia e falta de patriotismo nesse
facto d'Ourique. Rogia-se de um papel achado
n'uma tenda de Marrocos, que desmanchava todas
as minhas opiniões aereas. No fim de contas
era o sr. Hamed, que no principio do seculo XVII
tinha escripto em mouro o que o meu amigo ahi
vê em meio-mouro. Realmente a cousa é
séria,
sobretudo exornada com as erudições e
commentarios
do traductor, a quem Deus dê alguma
inclinação mais proveitosa do que esta de
traduzir
para lingua franca os itinerarios dos viajantes
marroquinos.
Pretende-se nesses commentarios que o mouro
Hamed, na phrase relativa a l'Enrik (que é
possivel seja Affonso Henriques) se refira aos
[223]
mesmos escriptores a quem, sob o nome de sabios
precedentes, allude no principio do periodo,
e que por sabios precedentes se devem entender
antigos escriptores sarracenos, porque os arabes
servem-se da palavra
ulmá-i para significarem
os
seus historiadores. Vamos por
partes. Se o
sr. Hamed escreveu
sabios
precedentes, é porque
já tinha dicto quem elles eram: nesse caso,
em vez de uma dissertação ácerca da
palavra
ulmá-i,
não seria mais simples e mais a proposito
dizer-nos o traductor os nomes delles? Teriamos
a Bibliotheca de Haji-Khalfah traduzida por
Fluegel; teriamos a Bibliotheca de Casiri; teriamos
as notas de sr. Gayangos á versão de Al-Makkari,
notas preciosas como fonte de erudição
arabica; teriamos, emfim, estes ou outros
recursos para sabermos que importancia deveriamos
dar aos
sabios precedentes como
auctoridades
para os successos do seculo XII, que era o
que importava. Hamed ou trinta Hameds, que
vivessem em tempos modernos ou houvessem
vindo a Hespanha e repetissem o que por cá tivessem
ouvido ácerca do recontro d'Ourique ou
de outra qualquer cousa succedida 400 ou 500
annos antes, provariam tanto a favor della como
a
precedente
traducção prova que o auctor do
[224]
opusculo sabe grammatica e conhece a indole da
nossa lingua. Suppondo, porém, que Hamed se
refira no principio do periodo a historiadores
arabes, e que esses historiadores sejam assaz
antigos, o que é certo é que a phrase relativa a
l'Enrik não é dos taes
sabios
precedentes, mas
do proprio Hamed-el-Nabil. Creio que o meu
amigo sabe bastante da lingua franca para ver
que desde as palavras «
e na
verdade» não são
os
sabios precedentes, mas sim o
proprio Hamed,
em corpo e alma, quem fala; quem parece
querer confirmar com o seu testimunho o dicto
delles, se é possivel perceber aquelle
imbroglio
que o traductor alli arranjou. Mas a curiosidade
maior é que o proprio texto está provando que
Hamed, longe de alludir ao facto d'Ourique ou a
facto algum especial, se refere em geral ás victorias
e conquistas de Affonso I, (se é que se refere
a isto) as quaes ninguem contesta, e que eu
particularisei com a miudeza e exacção, a que os
sabios precedentes, os
ulmá-i da nossa terra,
não tinham chegado. Se Hamed se referisse a
Ourique falando do desbarato dos mussulmanos
por l'Enrik, tudo o mais que vem na passagem
seria um rol de mentiras; porque as consequencias
materiaes desse recontro foram nenhumas.
[225]
Como já disse, Affonso Henriques voltou aos
seus estados sem conquistar um palmo de terra,
e foi annos depois que submetteu a Estremadura
e o Alemtéjo, ficando no paiz os mussulmanos
que curvaram a cabeça ao jugo christão.
Aqui tem o bom redactor da
Semana o
que é
e o que vale o papel da tenda de Marrocos, que
devia vir pulverisar o que eu escrevi firmado nos
monumentos coevos, e em argumentos de congruencia
irresistiveis. É o dicto vago e obscuro de
um viajante moderno, dicto que se torce para se
fazer com que o pobre mouro diga aquillo em
que nem sequer pensou. Que terra esta nossa,
meu amigo, em que o auctor de um livro serio é
ás vezes obrigado a acceitar o triste encargo de
refutar taes miserias!
O famoso texto do viajante marroquino é reforçado
com um contraforte tirado do Abdel-halim
do uso particular do auctor do opusculo; digo
do uso particular, porque nem em Conde, nem
em Moura se encontra semelhante passagem, nem
no logar indicado, nem em outro qualquer. Vamos
ver o texto
inedito de Assaleh ou de
Ibn-Abi-Zara,
que o meu critico trouxe á luz do dia:
«E neste anno 533 (8 de septembro de 1138
a 27 d'agosto de 1139) desbaratou o general Taxefin
[226]
as multidões dos christãos
nos
campos de
Attibbat; e fez perecer delles um numero
extraordinario;
e levou de seus prisioneiros
seis mil captivos:
em consequencia do que partiu para Marrocos,
e á sua chegada
lhe saiu ao encontro seu
pae, o imperador dos mussulmanos,
que ficou em
profundo desgosto e cheio de grande susto.»
No capitulo 33 do Karttás traduzido pelo padre
Moura não vem esta passagem. Entretanto não
devo crer que o auctor do opusculo a inventásse.
Cumpre suppôr que elle se serviu de algum
exemplar mutilado, viciado, ou extremamente
incorrecto da obra de Abdel-halim. Na versão de
Moura é no capitulo 40 que se contém as ultimas
acções do Tachfin na Hespanha, antes de partir
para a Africa. Eis o que ella nos diz:
«No anno 532 (19 de septembro de 1137 a 7
de septembro de 1138) passou o principe Taxefin
de Hespanha para a Mauritania, depois do ter
combatido e tomado de assalto
a cidade de
Segovia,
levando comsigo
seis mil captivos; e
tendo
chegado a Marrocos
veio seu pae
encontrá-lo com
grande pompa e
se alegrou com elle,
etc.
[71].»
As duas passagens são, se não identicas, por
[227]
certo parallelas. Tracta-se em ambas da partida de
Tachfin para a Africa, depois de obtido um triumpho
em que captivou seis mil homens. A differença
está nas circumstancias, e
na
data. Qual dessas
se deve preferir? Vejamos.
Conde refere a partida de Tachfin menos precisamente:
mas põe-na como immediata á
reducção
de Cuenca, a qual fixa em 531 (29 de septembro
de 1136 a 18 de septembro de 1137) e assim
concorda com Assaleh quanto ao anno da partida,
visto que, se Cuenca fosse reduzida nos fins
de 531, a saída do principe almoradive para a
Africa devia verificar-se já em 532, isto é, nos
fins de 1137 ou nos principios de 1138.
Com esta data concorda o auctor da chronica
de Affonso VII, mencionando a partida de Tachfin
para além-mar entre os successos de 1138, e descrevendo
a mensagem que lhe enviaram á Africa
os defensores de Aurelia durante o cerco posto a
esse castello por Affonso VII
em abril
de 1139.
O chronista christão vai de accordo na chronologia
com os historiadores arabes sem os conhecer,
e limitando-se a narrar os factos que
ouvira
ás
pessoas que os tinham presenciado[72].
[228]
Não quero suppôr, torno a repetir, que o auctor
do opusculo forjasse a passagem que cita,
ou que alterasse a data da hegira para provar que
Tachfin estava em Hespanha em julho de 1139.
N'uma questão em que se tem procurado associar
á idéa de que caí n'um erro historico
a de
que tive em mira deshonrar o meu paiz, tal procedimento
fora duplicadamente torpe. Todavia o
digno academico ainda assim tem
d'escolher entre
a ignorancia e a má fé. Se conhecia a chronica
de Affonso VII, a narrativa de Conde e a versão
de Assaleh por Moura, tinha que fazer duas cousas:
primeira, provar que essas auctoridades em
que eu me estribava eram insufficientes; segunda,
mostrar que o seu manuscripto tinha uma
importancia, uma auctoridade tal, que as annullava.
Onde o fez? Como o fez? Acaso só porque
se mandaram escrever n'uma pedra lithographica
uns poucos de caracteres arabicos ou o que quer
que seja, provou-se que as palavras que resultam
da sua união são indubitaveis como o evangelho,
ou sequer que é preferivel a leitura do codice de
que se tiraram á leitura de codices já conhecidos
e traduzidos por outros arabistas, que pelo
menos sabiam tanto arabe como o auctor do opusculo?
[229]
Á vista destas simples e claras reflexões, o
texto de Abdel-halim citado pelo digno academico
vale tanto e prova tanto como o de Hamed-el-Nabil.
Eu, porém, acceito-o por um momento.
Vamos a discuti-lo em si.
Que diz o tal texto? Que Tachfin desbaratou no
campo da total destruição (Attibbat) as
multidões
dos christãos; que aprisionou seis mil homens,
e que partiu para Marrocos, com o que seu pae
ficou cheio de desgosto e de susto. Onde se fala
aqui em Ourique? Para entender
Ourique por
Attibbat o auctor faz o seguinte
raciocinio:―«a
batalha de Ourique foi de
total
destruição para os
mussulmanos, logo
Attibbat
é Ourique:»―e querendo
provar que o recontro de Ourique foi uma
grande batalha, faz outro raciocinio do mesmo
jaez:―«Attibbat quer dizer Ourique, logo em
Ourique houve uma
total
destruição.»―Todos
os argumentos, todas as erudições do folheto
nesta parte, embora por outras phrases, reduzem-se
a isso; reduzem-se a duas petições de
principio. Depois, não é admiravel o desgosto
e susto de Aly-Ibn-Iussuf vendo seu filho voltar
á Africa depois de uma victoria em que desbarata
os christãos, mata muitos, e leva seis
mil captivos? Felizmente para Aly, Tachfin não
[230]
levou, em vez de seis, doze mil captivos, e não
deixou o resto passado inteiramente á espada.
Se tal acontece, o pobre amir el-moslemin caía
fulminado por uma apoplexia. Até o auctor do
opusculo achou a cousa absurda. Mas como saíu
da difficuldade? Dizendo-nos que o texto arabe
tanto póde significar «
Tachfin
desbaratou os
christãos» como
«
os christãos desbarataram
Tachfin.»
Estava eu tão desgostoso por não saber
arabe como o velho Aly por seu filho ganhar victorias,
quando veio esta declaração consolar-me.
A historia é impossivel na lingua arabe; porque
a mesma phrase significa branco e significa
preto; exprime os dous factos mais oppostos.
Os traductores de historias sarracenas tem andado
a debicar com a Europa: onde dizem que tal
batalha foi ganhada por A contra B, podiam ter
dicto com a mesma veracidade que fora ganhada
por B contra A. Isto, meu amigo, não se
discute: está discutido por si.
Depois de vermos sacrificada a logica e até o
simples senso commum á necessidade de achar
um texto arabe que prove a importancia da
batalha de Ourique, o que é mais divertido é
o completo esquecimento em que o auctor do
opusculo sarraceno, enlevado no seu Abdel-ha-lim
[231]
particular, deixa os monumentos
christãos
coevos que referem o successo. A chronica lamecense,
a conimbricense, a dos godos, todas
dizem que o general sarraceno era Ismar
(
præside
rege Smare). Se Ismar não significa
Tachfin
como Attibbat significa Ourique, segue-se que
ou mentem as chronicas coevas, ou mente o
Abdel-halim
particular, que diz ter
sido o general
dos sarracenos o proprio Tachfin, ou a
passagem citada não se refere ao successo de
Ourique. Daqui parece-me que não ha fugir. A
ultima explicação é sem duvida a
verdadeira.
Essa passagem é evidentemente a que Moura
traduziu, e Conde substanciou; passagem que
se combina chronologicamente com a narrativa
da chronica de Affonso VII, e que no opusculo
apparece alterada nas circumstancias e na data.
Quem a alterou, e para que fim? Isso pertence
a Deus, que vê os corações, e nos ha de
julgar
a todos no dia de juizo.
Depois, como accommodar os factos, que o
auctor do opusculo acceita do seu Abdel-halim
particular em demonstração da grandeza da
batalha,
com o que nos diz a chronica dos godos e
com o resultado daquella jornada? Pois os mussulmanos
são postos em fuga ao primeiro recontro,
[232]
por um troço de cavalleiros escolhidos
(
electi milites) ficando
entrincheirados os restantes
dos poucos soldados (
paucis suorum),
de
Affonso Henriques, e Tachfin, que foge, leva
seis mil prisioneiros? Que digo eu, seis mil!
Segundo o commentario do digno academico
eram muitos mais. Aquelles seis mil foram escolhidos
um a um, no meio do grande vagar
que para isso tinham os sarracenos fugitivos,
entre milhares de christãos de rebotalho, aos
quaes iam cortando os pescoços. As causas determinantes
da escolha (que eu deixarei nas paginas
do opusculo, porque não as consentem as
paginas da
Semana) deviam tornar os
bons dos
sarracenos demasiado pechosos na selecção, e
pelas minhas contas, para apurarem seis mil
como lhes eram precisos, não podiam deixar
de refugar os seus cento e noventa quatro mil,
esmando pelo baixo. A mim parece-me, salvo
o respeito devido a um representante da parte
sarracena da Academia, que era melhor ter traduzido
do Abdel-halim particular, (lithographando
tambem no fim do opusculo o original mourisco
e subministrando assim mais abundante
alimento á pasmaceira dos parvos) uma carta
de Tachfin dirigida ao principe português, escripta
[233]
ao começar a retirada, e concebida pouco
mais ou menos nos seguintes termos: «Meu Affonso-Ibn-Errik.
Estou capaz de renegar Mafoma
com a grande róta que me déste. Vou para Africa
amuado, metter-me em casa de meu pae, que
se chama Aly-Ibn-Iussuf, embora os
ulmá-i academicos
da tua terra queiram á fina força chamar-lhe
Aly-Ben-Taxefin. A guerra é guerra, e
uma batalha perdida ou ganhada não é motivo
para nos desestimarmos. Eu preciso de levar comigo
em ar de prisioneiros uns seis mil rapazes
christãos airosos e bempostos. Se os podéres
dispensar, far-me-has nisso particular favor e
uma acção de cortezia. Só Deus
é Deus e Mohammed
o seu propheta. Aos 26 de zilkhada da
Hegira 533.»―Com isto ficava tudo explicado.
Os seis mil prisioneiros tinham sido uma generosidade
do
Pharaó obdurado,
embora fingida;
porque, tendo Christo acabado de lhe asseverar
que havia de vencer sempre os sarracenos, não
só podia fazer presente a Tachfin de todos os soldados
imberbes do exercito, mas tambem de
quanto soldado barbudo, velho e relho, achasse
alli á mão vasculhando o acampamento, os quaes,
se não prestassem para mais nada, prestariam
para bichos da cozinha do amir-el-moslémin.
[234]
Meu amigo, n'outro qualquer paiz, uma academia,
cujos membros fossem capazes de escrever
opusculos destes, dissolvia-se para se
reconstruir com outros elementos, aproveitando
só, e com grandes cautellas, o pouco que
ahi houvesse de aproveitar. A nossa Academia,
especie de congregação bernarda que come e
dorme, acodem-lhe ás vezes á pelle estes tumores
litterarios, estas secreções eruditas, que,
longe de a matarem, lhe fortificam a compleição.
Deus lhe dê uma longa vida.
DO ESTADO
DAS
CLASSES SERVAS NA PENINSULA
DESDE O VIII ATÉ O XII SECULO
1858
I
Por mais que a tradição de antigas
malquerenças
e o ciume da nossa autonomia nos affaste
dos outros povos da Hespanha, dos quaes os
eventos politicos fizeram, mais ou menos forçadamente,
uma só nação, é certo que,
apesar de
todas as repugnancias entre portugueses e hespanhoes,
nas opiniões, nos costumes, nas tendencias
moraes de ambas as nações se está
revelando
a cada passo uma origem commum. Postoque
cada uma dellas tenha defeitos especiaes,
como os ha de provincia para provincia, dão-se
alguns tão nossos e tão hespanhoes, que de per
si, sem outros adminiculos, provam de sobejo essa
communidade de origem.
Esta reflexão occorreu-me naturalmente ao
começar um escripto, em que tenho de dizer
poucas palavras ácêrca do homem a quem elle
é
dirigido. Ha na Academia da Historia, de Madrid,
um modesto empregado, envolvido na obscuridade
da sua situação, sem cargos publicos, sem
condecorações, sem pingues sinecuras, e de que
[238]
talvez se podesse dizer―sem pão―se a Academia
não o houvera encarregado das suas
collecções
litterarias. Este empregado modesto, este
homem socialmente obscuro, é todavia um dos
maiores eruditos da Hespanha, um dos que mais
profundamente e com mais san consciencia (dote
raro nestes nossos tempos) tem cavado na rica
e tão pouco explorada mina das antigas
instituições
e costumes da Peninsula, isto é, do que
na historia della ha mais serio, mais importante
e mais difficil d'estudar. Falo de Thomás Muñoz
y Romero, do auctor da
Colleccion de Fueros
Municipales, obra notavel, que, sendo de um homem
só, honraria uma corporação
litteraria, que
a houvesse emprehendido e executado. E todavia,
esse livro importante foi interrompido, segundo
me affirmam, por falta de protecção; e
Muñoz y Romero ainda nada mais é hoje do que
era ha dez annos, quando publicou aquelle seu
primeiro trabalho, o modesto official da bibliotheca
da Academia da Historia!
É o que provavelmente succederia ao livro e
ao homem nesta terra, neste fragmento da Peninsula
chamado Portugal, irmão gemeo desse
maior fragmento, que chamam especialmente a
Hespanha.
[239]
Na
Revista Española de
Ambos-Mundos, nos
numeros correspondentes a novembro de 1854,
appareceram successivamente dous artigos, assignados
por Muñoz y Romero, sobre o estado das
pessoas nos reinos de Asturias e Leão nos primeiros
seculos posteriores á invasão dos Arabes.
Escriptos como aquelles, manifestações
tão brilhantes
de verdadeira sciencia, não são frequentes
em publicações periodicas, ainda além
dos Pirenéus.
Li-os com avidez e interesse sempre crescentes.
Ahi encontrei que aprender, e sobretudo
pude emfim assentar as minhas idéas
ácêrca da
origem, ou antes da denominação dos malados e
das maladias, ponto em que a propria opinião que
adoptara no terceiro volume da Historia de Portugal
não me satisfazia completamente. Vi, porém,
que discordavamos n'uma questão capital d'historia;
no modo de apreciar o estado das classes servis
nas Asturias e Leão durante os seculos immediatos
á reacção christan, e tive o desgosto
de não
poder, apesar de todas as considerações do sr.
Muñoz,
abandonar a propria opinião para adoptar a
sua. Ou seja por um modo errado de interpretar
os antigos monumentos, a que o meu espirito se
tenha affeito, ou porque a razão esteja do meu
lado, é certo que nenhum dos muitos documentos
[240]
que o sr. Muñoz oppõe ás minhas
opiniões me
pareceu contrariá-las: alguns, pareceu-me que até
serviam para as corroborar. Desde esse momento
entendi que não sería absolutamente inutil ao
progresso
dos estudos historicos da Peninsula expôr
as duvidas e reflexões que me occorriam sobre a
materia, deixando depois aos homens competentes
comparar os dous systemas e escolher entre elles.
Quando pensava em realisar este designio,
sobrevieram acontecimentos que durante quasi
dous annos me forçaram a abster-me dos trabalhos
historicos. Affastado por tão largo tempo
dos meus habituaes estudos, se, á custa de
serios desgostos, aprendi muito a respeito dos
homens e das cousas do meu tempo e do meu
paiz, esqueci tambem muito do que sabía ou
cria saber ácêrca dos homens e das cousas do
passado. Aberto para mim de novo o caminho
dos trabalhos historicos pela força da opinião
em lucta com a immoralidade do poder, renovei
esses abandonados estudos, mas renovei-os
como um dever de consciencia, como um serviço
que me exigem, como o cumprimento de
um contracto tacito com o publico. O amor, diria
antes a religião ardente, com que cultivava
a sciencia da historia, perdi-o no campo de batalha.
[241]
Escrever é hoje para mim o mesmo que
ser vereador, jurado, ou membro de um conselho
de districto: é um encargo e mais nada.
No horisonte das minhas ambições, e Deus sabe
se falo sincero, só vejo o dia em que possa
depôr a penna, e sumir-me em completa obscuridade.
Será esse o melhor da minha vida. Na
situação d'animo em que por tanto tempo me
achei, a questão dos servos na Peninsula durante
os seculos medios esqueceu-me completamente.
Veio recordar-m'a, porêm, uma circumstancia
casual. Tendo de examinar um volume
da
Revue Historique du Droit Français et
Étranger, passou-me pelos olhos um artigo
de
M. de Rozière (julho e agosto de 1855) sobre o
escripto do sr. Muñoz, escripto que o illustre
professor, a quem devo mais de uma prova de
benevolencia, resume com a sua habitual lucidez,
e cuja doutrina acceita como a mais verosimil.
A doutrina, porêm, expressamente combatida
pelo auctor do opusculo sobre o estado
das pessoas nos reinos de Asturias e Leão, nos
primeiros seculos depois da invasão arabe, é
unicamente a minha. É de mim que elle declara
discordar completamente sobre a natureza da
servidão na monarchia néo-gothica desde o VIII
[242]
até o XII seculo. A verosimilhança da sua
opinião
torna portanto menos provavel para o illustre
professor da
École des
Chartes a doutrina
que estabeleci. Se a questão pendesse tão
sómente
entre mim e o sr. Muñoz, demorar, ou, até,
pospôr
completamente a defesa da minha theoria
ácêrca da servidão n'aquelle periodo
não teria
grande inconveniente. Os documentos invocados
pelo sr. Muñoz e as suas ponderações,
e bem
assim os documentos que eu citei e as conclusões
que delles deduzi estão ao alcance dos homens
de letras da Peninsula que se dedicam
aos trabalhos historicos; e os archivos de Portugal
e de Hespanha encerram centenares de
outros monumentos ainda não estudados, que
poderiam lançar nova luz sobre o assumpto.
Nada mais facil, até, do que conduzirem-nos
novas investigações, a mim ou ao sr.
Muñoz, a
abandonar o proprio systema, porque ambos
buscamos sinceramente a verdade. Mas desde
que a materia do debate, transpondo os Pirenéus,
foi exposta a uma luz que não creio
verdadeira, por um homem como Mr. de Rozière,
e a um publico privado dos meios de apreciar
por si proprio os documentos e raciocinios
em que se fundam as duas opiniões oppostas,
[243]
entendo que é do meu dever publicar as
observações
que se me offerecem relendo os artigos
do sr. Muñoz, observações que, feitas
ha dous
annos, quando estas materias eram quasi a unica
occupação do meu espirito, seriam sem duvida
mais efficazes para a defesa de um systema
que ainda hoje me parece ser o que melhor se
estriba nos antigos documentos, e que ao mesmo
tempo melhor os explica.
Antes de tudo cumpre determinar bem a materia
controversa e circumscrevê-la. Tanto eu como
o sr. Muñoz falámos da servidão no
periodo em
que por successivas transformações o homem de
trabalho, o homem escravo, o homem
cousa dos
romanos chegou a ser a pessoa civil, a pessoa livre,
o cidadão mais ou menos humilde dos tempos
modernos. Deixando de parte maiores ou
menores differenças de opinião entre
nós quanto
aos tempos da monarchia gothica, ou que se
possam deduzir das nossas palavras quanto aos
tres ultimos seculos da idade média, limitar-me-hei
a expôr o que contradictoriamente entendemos
ácerca da situação das classes servis
do VIII
até o XII seculo. Escrevendo um artigo e não um
livro, procurarei affastar todas as questões secundarias
que se ligam a esse grande facto da
[244]
transformação das classes trabalhadoras, e
abstrahindo
das causas e consequencias da situação
em que se acharam os servos depois da invasão
arabe e da reacção asturiana (successos coevos e
quasi simultaneos) em tudo o que não fôr
indispensavel
para a clareza da materia, reduzirei o
discurso ao que a razão persuade e os monumentos
confirmam ácerca do facto geral da
transformação
gradativa da população serva naquelle
periodo de quatro para cinco seculos.
II
O estudo reflectido dos historiadores arabes e
dos monumentos christãos da épocha da conquista
e do dominio sarraceno tem feito sentir
que essa conquista e esse dominio extranho foram,
na historia das invasões e da sujeição
de raça
a raça, de povo a povo, entre os factos de semelhante
ordem, um dos que custaram á humanidade
menos tyrannias, menos lagrymas e menos
sangue. Tem-se dado o devido desconto ás
exaggerações das chronicas e á
linguagem de certos
escriptores christãos contemporaneos, aonde
auctores mais modernos foram buscar os lineamentos
dos seus quadros de terror, quando ahi
mesmo se encontram as provas de que os factos
não correspondem ás expressões
genericas com
que é descripto como um dos mais crueis flagellos
o predominio dos sarracenos na Peninsula.
Se juncto ao Guadalete se desmoronou o imperio
dos godos, a sociedade wisigothica ficou. As
provincias ou as cidades que acceitaram sem resistencia
o jugo dos novos senhores não tiveram
[246]
que padecer senão as consequencias dos grandes
movimentos militares sobre qualquer territorio,
as violencias accidentaes e individuaes durante a
lucta. Em geral, a ordem das relações civis, e
uma parte das publicas continuam a subsistir do
mesmo modo que d'antes. O tributo e o exercicio
das altas funcções da
administração do Estado
é que mudam. Nas provincias meridionaes da
Hespanha fica, até, por algum tempo um simulachro
do imperio gothico, o reino de Theodemiro,
tributario mas livre, que se incorpora obscuramente
depois nos dominios do khalifa. No meu
livro busquei desenhar com fidelidade essa nova
situação; dar aos successos o seu verdadeiro
valor,
estribando-me nos monumentos coevos, e
fazer sobresair a população mosarabe
(godo-romana),
tão esquecida em geral pelos historiadores.
Entre os mosarabes a situação dos servos devia
ser a mesma que entre os godos antes da
conquista. Não é provavel que esta formula da
sociedade civil se alterasse quando todas as outras
se mantinham. Nessa parte a conquista arabe
não trouxe o que trazem sempre os grandes
abalos politicos, um progresso de civilisação.
[247]
Succedeu o mesmo com a reacção asturiana?
Podia succeder? Pús este problema a mim mesmo,
e resolvi-o negativamente; porque a razão
e os documentos me forçavam a essa
solução
negativa.
O levantamento de Pelaio não chegou a ser
uma revolução: foi uma resistencia: resistencia
feliz nos primeiros passos e que não tardou
a converter-se n'um perigo serio para o dominio
mussulmano. Dentro de poucos annos a reacção
obscura de um punhado de soldados godos
fundava uma monarchia christan e independente,
que se contrapunha ao islamismo triumphante,
que estabelecia fronteiras, embora variaveis,
e que tomava ou fundava logares fortes,
onde os novos senhores da Hespanha encontravam
dura repulsa ás suas diligencias para suffocar
esta perigosa entidade politica. Da desproporção
das forças entre as duas potencias
mussulmana e christan, se o nome de potencia
póde dar-se aos estados de Pelaio e dos seus
immediatos successores, resultava necessariamente
um facto. Todo o homem válido devia
ser chamado ás armas nas Asturias, mas de um
modo em que interviesse a espontaneidade individual.
Não alcanço sequer como podesse ser
[248]
de outro modo. A servidão dos godos; os senhores
levando os servos armados ao combate,
sem crença, sem ardor, sem interesses moraes
ou materiaes que defender, como nos tempos
gothicos, sería um facto que não sei como
poderia dar em resultado a fundação e
engrandecimento
da monarchia de Oviedo.
Na verdade, com o tempo, as instituições
wisigothicas
foram-se restaurando á medida que
se engrandecia o novo reino, que uma parte do
territorio deixava de ser perenne campo de batalha,
e que a segurança, maior ou menor, favorecia
o maior ou menor desenvolvimento da
agricultura e de uma especie de industria. Uma
parte da população mosarabe, ou pelas
migrações
tanto forçadas como espontaneas, ou pela
aggregação
successiva de territorios habitados por
ella, incorporava-se gradualmente na sociedade
néo-gothica, e, trazendo comsigo a jurisprudencia
antiga, que tinha conservado intacta sob o jugo
sarraceno, devia exercer naquelle sentido uma
influencia, digamos assim, reaccionaria. Mas o
que não podia era destruir a força das
circumstancias;
o que não podia, n'uma sociedade em
cuja origem, em cujo amago estava a resistencia,
a espontaneidade, a liberdade, era restabelecer
[249]
a servidão pessoal antiga em toda a sua
plenitude.
Supponhâmos um nobre, e até um simples
possessor, acolhendo-se
ás Asturias, a Oviedo,
nos tempos de Pelaio ou dos seus immediatos
successores.
Como arrastará elle comsigo os servos
que o rodeiam? Invocará a força publica, a
auctoridade mussulmana para os constranger a
acompanharem-no? Sería absurda a hypothese.
Esse nobre, ou esse
possessor ha-de
descer á
persuasão; ha-de falar de manumissão, ha-de
approximar de si o homem envilecido, ha-de
recorrer aos afagos, ás promessas. Ficar onde
se acha é para o servo a liberdade, quando o
senhor abandona o lar domestico. Devemos acaso
crer que nelle estão inteiramente mortos todos
os instinctos humanos?
Supponhâmos a conquista; a accessão de territorio.
O mosarabe senhor de servos, que se
incorpora por esse facto na sociedade ovetense,
acha actuando energicamente nesta o sentimento
da liberdade e da espontaneidade individuaes,
as classes servis armadas, os antigos laços hierarchicos
quebrados em grande parte. Esse facto
não influirá em nada nas suas
relações com
os proprios servos? Depois, além, pouco além,
[250]
estão os castellos sarracenos, a
administração
mussulmana. Se elle não affrouxar os rigores
da servidão; se não ligar a si o homem de
trabalho
por algum interesse, por algum motivo
racional, será difficil que esse homem o abandone,
e que conquiste pela fuga, e talvez pela
mudança de fé, a sua
emancipação?
Se os documentos nos não provassem que a
servidão de gleba fora o passo immediato dado
pelas classes infimas para a liberdade, a razão,
longe de nos persuadir que a servidão se mantivera
em Oviedo e Leão como nos tempos gothicos,
far-nos-hia antes acreditar que ella fora
substituida pelo colonato espontaneo. O colonato,
eis o grande meio de ligar o homem de trabalho
á terra, por este instincto, por este amor
quasi connubial, que une a mãe commum ao individuo
que a faz fructificar. Da servidão gothica,
porém, para a adscripção havia um
passo gigante,
e as classes servis eram assás rudes para
não perceberem toda a differença do colonato
á
adscripção, porque essas differenças
são pela
maior parte de ordem moral. Na practica, materialmente,
sobretudo em tempos de bruteza e
violencia, n'uma sociedade perturbada e vacillante,
as distincções entre a posse e o uso da terra
[251]
pelo colonato ou pela adscripção não
podiam ser
demasiado sensiveis. O sentimento, a aspiração
do individuo que cultivou o solo, que construiu
a choupana, que plantou a arvore é principalmente
o não separar-se do campo, da choupana,
da arvore. A este sentimento correspondem ambas
as formulas de consorcio entre o homem e a
terra, mais ou menos imperfeitamente, não tanto
em virtude das condições theoricas de cada uma
das duas formulas, como do estado mais ou menos
civilisado da épocha em que se applicam.
Acaso a historia não nos subministra provas de
oppressões exercidas sobre colonos espontaneos,
e consagradas até por contractos, tão barbaras
como as que padeciam os adstrictos á gleba,
quando já a adscripção do homem tinha
cedido
o campo á servidão exclusiva da terra?
Assim comprehende-se como a transformação
do servo em adscripto podia resultar da situação
em que se achou a monarchia ovetense-leonesa
no seculo VIII, em vez de resultar della o
colonato livre, que á primeira vista a razão nos
pinta como mais provavel, e que de feito o era,
se abstrahirmos das circumstancias sociaes para
só attendermos ás politicas.
Mr. de Rozière, expondo o debate entre mim
[252]
e o sr. Muñoz, diz: «Esta
transformação (a da
servidão para a adscripção) tinha-se
realisado de
todo quando os christãos se refugiaram nas Asturias
sob o mando de Pelaio? Não o crê o sr.
Muñoz, e combate, neste ponto, a opinião dos
historiadores de maior credito. Os exemplos, em
que esteia o seu pensar, dão a este um alto gráu
de verosimilhança. Nelles se vêem escravos
destinados
ao serviço domestico; uns são cozinheiros,
padeiros, sapateiros ou alfaiates; outros empregam-se
no commercio e servem nas lojas de
venda. Nada ha fixo nas suas funcções, que
dependem
do capricho do dono. A sorte dos escravos
agricolas não é mais segura: uns trocam-nos
por cavalgaduras; outros entregam-nos aos
mussulmanos em resgate de captivos: todos podem
ser separados da propria familia e do campo
que cultivaram».
N'esta exposição ha uma
inexacção chronologica:
a doutrina que eu estabeleci não é que a
adscripção se tinha já substituido
á servidão
quando occorreu o alevantamento de Pelaio: é
que este alevantamento e a fundação do reino de
Oviedo trouxeram de necessidade essa
transformação.
Sejam quaes forem a differença ou a semelhança
entre o meu modo de pensar e o sentir
[253]
do sr. Muñoz sobre a servidão gothica,
não é
ahi que está a profunda divergencia entre nós.
A divergencia completa refere-se aos tempos
posteriores á invasão dos arabes. É,
até, o que
se deduz do titulo do opusculo do sr. Muñoz: é
a essa épocha que verdadeiramente se refere o
trabalho publicado na
Revista de
Ambos-Mundos.
Eis as suas palavras: «Um escriptor... do vizinho
reino de Portugal estabelece a doutrina de
que a servidão se distinguia,
na
épocha de que
tractamos, em estar vinculada ao solo, não
admittindo
outra classe de servos senão a dos adscriptos
á gleba. A seu vêr não existia nenhuma
outra servidão pessoal senão a dos arabes
captivos
na guerra, o que cremos não ser conforme
com o que o mesmo escriptor diz n'outra parte,
isto é, que o serviço domestico dos senhores e
nobres parece ter sido desempenhado, sob o dominio
leonês, por membros das familias adscriptas,
e que este serviço se converteu n'um acto
espontaneo no seculo XIII. Se os homens e familias
podiam contra sua vontade ser separados da
gleba, onde se achavam estabelecidos, para o
serviço domestico, não podiam chamar-se
adscriptos,
porque este nome traz comsigo a idéa de
inamovibilidade do colono do torrão que cultiva.
[254]
Além d'isso, a sua opinião não
concorda com os
monumentos da nossa historia.»
N'outra parte do opusculo do sr. Muñoz leem-se
as seguintes passagens, em que elle estabelece
positivamente a sua theoria relativa á servidão
dos tempos neo-gothicos. «A condição
dos servos
era indubitavelmente a de cousas. Podiam
ser vendidos ou dados como um animal domestico,
como uma alfaia... Esta opinião, que sustentámos
n'uma obra publicada ha annos, foi impugnada
pelo sr. Herculano n'uma extensa nota
sobre o caracter da servidão na monarchia
néo-gothica...
Na monarchia néo-gothica continuaram
os servos a ser o mesmo que na dos godos...
E se em Asturias e em Leão se encontram
vestigios de servidão diversa da dos adscriptos,
poderão julgá-lo os que examinarem os documentos
que já publicámos e os que damos agora
á luz.»
Effectivamente aos documentos impressos na
Colleccion de Fueros Municipales, o
sr. Muñoz
ajuncta muitos outros tendentes, segundo crê, a
corroborar a sua doutrina. Que antes de entrar
na apreciação delles, me seja permittido fazer
breves reflexões.
O sr. Muñoz, limitando o debate aos textos
[255]
dos documentos pospôs os factos sociaes e politicos
de que deduzi, digâmos assim
à
priorì, a
necessidade de uma profunda alteração das classes
servis nas origens da sociedade néo-gothica.
Os factos podem não ser como eu os expús, ou as
consequencias que delles tirei ser inexactas, ou
finalmente essas consequencias não ter tido força
bastante para mudar a situação d'aquellas
classes: podem peccar de muitos modos as largas
observações que fiz a este proposito no terceiro
volume da Historia de Portugal, e que tentei
resumir em poucos periodos deste modesto
trabalho. Mas seria licito deixar ou esquecidas
ou inconcussas essas ponderações? O methodo
que segui foi estudar os acontecimentos, examinar
qual devia ser a sua influencia na condição
dos servos, e verificar se os documentos confirmavam
à posteriori as
illações deduzidas dos
mesmos acontecimentos. Bem sei que, prevenido
por essas illações, era possivel, era
até facil,
se quizerem, apreciar preoccupadamente os documentos;
não poderia, porém, o sr. Muñoz,
interpretando-os
sem attender aos factos geraes, ás
consequencias naturaes dos successos historicos,
ás leis moraes que regem as phases das sociedades,
dar-lhes uma significação diversa da verdadeira?
[256]
Foi, se não me engano, o que de feito lhe
succedeu.
É essa justamente uma das difficuldades capitaes
dos trabalhos historicos relativos á idade
media. O historiador tem de attender constantemente
á acção e á
reacção mutuas dos factos politicos
e dos factos sociaes uns sobre os outros
para d'ahi deduzir factos desconhecidos; tem de
substituir por illações fundadas nas leis que
actuam nas sociedades humanas, independentes
da vontade dellas, o silencio tantas vezes inopportuno
dos monumentos. Quando estes existem
e são genuinos, claros e precisos, sem duvida
constituem o guia mais seguro para determinar
os factos, e se as illações que
tirámos os
contradizem, é necessario confessar que os principios
eram inapplicaveis á hypothese, ou que
se applicaram mal. Mas, abstrahindo da questão
de genuinidade, são a clareza e a precisão
qualidades vulgares nos documentos dessas épochas
tenebrosas? O sr. Muñoz sabe tão bem como
eu quão raros são os que achamos com taes
condições; quantos annos, quantas vigilias
é necessario
applicar ao estudo dessas fontes historicas
para nos habituarmos a comprehendê-las.
Á difficuldade, que resulta das referencias a cousas
[257]
vulgares no tempo em que o documento se
redigiu, e que actualmente são desconhecidas
ou conhecidas imperfeitamente, ajuncta-se a lingua
barbara, ás vezes horrivelmente barbara,
que nelles se empregava, mistura monstruosa de
latim de todas as epochas com uma linguagem
vulgar que hoje se pode reputar morta, tão
transformada se acha nas linguas modernas da
Peninsula: accresce a isto a differença profunda
entre os homens daquelle tempo e os do
nosso, no modo de conceber e exprimir as idéas;
ajuncta-se a tendencia, quasi invencivel, para
vermos as cousas da idade media através do
prisma dos habitos, das opiniões, dos costumes,
e direi, até, das preoccupações
actuaes. Subjugar
esta tendencia é difficil; porque presuppoem um
esforço de abstracção, de que
não são capazes ás
vezes os mais robustos espiritos.
Mas, vencidos todos estes obstaculos, resta
ainda a vencer o que resulta da comparação dos
proprios documentos, especialmente quando nelles
estudamos as instituições, a
organisação da
sociedade. É ahi que o talento historico tem de
passar por mais dura prova, e onde o discernimento
nas apreciações precisa de ser mais subtil.
A idade media não procedia sempre como
[258]
nós das idéas geraes para a
applicação especial,
ou antes possuia poucas idéas geraes. Os costumes,
as instituições, os usos, os factos tinham
principalmente o caracter individual, local. Essas
poucas idéas geraes que havia eram pela maior
parte mal circumscriptas, fluctuantes. D'aqui as antinomias
nas doutrinas, a contradicção frequente
nos factos. Na verdade o senso moral, a tendencia
instinctiva para a generalisação produziam a
maior parte das vezes em contraposição ao
desordenado,
ao repugnante, as analogias ou a identidade
de factos, quando se davam as analogias ou
a identidade de circumstancias; mas o phenomeno
era mais casual do que intencional, e
nem por isso faltavam as excepções, a
desharmonia,
quando as paixões, os interesses ou a inexperiencia
vinham augmentar a confusão natural
dos tempos barbaros. Saber deduzir os
caracteres geraes de uma épocha, debaixo dos
seus diversos aspectos, não dos principios que
guiavam os homens na vida practica, porque a
maior parte das vezes não os havia, mas dos
factos isolados, dos monumentos especiaes; differençar
a regra da excepção, regra e
excepção,
que não raro existem só por uma
abstracção
para nós, e que não existiam para elles, eis a
[259]
summa difficuldade no estudo dos documentos,
da legislação, e das memorias historicas da idade
média, mas difficuldade que cumpre superar
para se escrever de modo util a historia daquellas
obscuras éras.
Longe de mim a pretensão vaidosa de ter navegado
sem naufragios nesse mar d'escolhos;
mas seja-me ainda permittido duvidar de que
tal infortunio me occorresse na questão do estado
dos servos do VIII até o XII seculo; seja-me
licito por emquanto suspeitar que fiz fazer
um progresso á historia da Peninsula, collocando
á sua verdadeira luz a situação dessa
classe
durante aquelle periodo.
Como já disse, o sr. Muñoz, abstrahindo das
considerações
à
priori que fiz a semelhante respeito,
limita-se a combater a minha opinião e
a propugnar a sua com os factos que elle crê
resultarem de um grande numero de documentos
que invoca: limitar-me-hei tambem por isso
a apreciar esses documentos e a examinar o que
elles provam, recorrendo sómente a outros quando
o julgar indispensavel para estribar melhor
as minhas affirmativas.
III
Estabelecendo a doutrina de que o servo continúa
a ser na monarchia de Oviedo e Leão o
que era entre os godos, o sr. Muñoz funda-a
n'uma serie de factos, que em seu entender
resultam dos documentos e caracterisam a condição
do escravo, a posse e dominio absolutos
do homem sobre o homem, a servidão na sua
fórma mais completa e humilhante, a do homem-cousa,
a do homem animal de trabalho. Estes
factos consistem na venda, doação e troca dos
individuos sem dependencia de um contracto
ácêrca do solo em que elles habitam; em serem
arrebatados nas guerras privadas os colonos de
herdades privilegiadas ou nobres ou ecclesiasticas,
reduzidos á escravidão dos raptores e vendidos
por estes como escravos; na entrega dos
servos christãos aos sarracenos como preço de
resgate de nobres captivos (pag. 5 a 7)
[73];
em
[261]
exercerem os servos os diversos misteres do
serviço domestico e os officios mechanicos, sendo
parte de taes misteres incompativeis com o cultivo
do solo; em viverem alguns nos coutos de igrejas
e mosteiros obrigados a serviços geraes, isto
é, a quaesquer que lhes mandassem fazer (pag. 12
a 13). Excluidos da representação em juizo
pela lei (wisigothica), que não admittia o seu testemunho
senão á falta de outras provas, não
tinham
acção para perseguir um delicto contra a
propria pessoa ou contra os filhos; ao dono
competia sollicitar a indemnisação do damno
padecido
pelo servo como de cousa sua. No caso
de homicidio, era elle quem tambem obtinha a
compensação pecuniaria; e do mesmo modo se
o servo matava, feria, ou atacava propriedade
alheia, o responsavel era seu dono (pag. 15 e
seg.). Os filhos de um servo e de uma serva de
diversos donos eram pessoalmente divididos entre
elles (pag. 24 e 25).
Taes são os factos sociaes que o sr. Muñoz
apresenta como contrariando a minha opinião:
esses factos estriba-os nos documentos cujas
[262]
passagens correlativas transcreve, referindo-se
outras vezes aos monumentos por elle já publicados
na
Colleccion de Fueros, ou a alguns
que
se encontram em outros escriptos, principalmente
nos appendices da
España
Sagrada.
Se o meu animo não fosse sincero; se eu não
quizesse trazer á evidencia o erro em que me
parece laborar o sr. Muñoz, limitando-me ao
que menos importa, á defesa do meu livro, facil
me seria annullar as illações tiradas dos
documentos
invocados contra mim, visto que o sr.
Muñoz não nos mostra, nem talvez lhe
sería possivel
mostrar, que elles se referem a servos de
raça e não a prisioneiros de guerra, a sarracenos
captivos nas continuas luctas entre os reis de
Oviedo e Leão e os principes mussulmanos, ou
aos filhos e descendentes desses captivos
[74].
Um
ponto em que estamos ambos de acôrdo é que
a sorte destes era a de verdadeiros escravos. Das
chronicas de Sebastião de Salamanca, de Sampiro,
do Silense e de outros vemos que o systema
[263]
de exterminio adoptado a principio pelos
immediatos successores de Pelaio não tardou em
ser modificado, e que milhares de captivos vinham
successivamente caír nos ferros da escravidão,
ou reservando-os o rei para si, ou distribuindo-os
pelos seus guerreiros. Uma parte
dos edificios religiosos alevantados por Fernando-magno
foram construidos por esses desgraçados,
salvos da morte por uma politica menos
deshumana que a dos barbaros reis das Asturias.
Com um monumento, porém, tão incontroverso
como explicito, eu provei
[75]
que ainda no
meiado do seculo XII a sorte dos mosarabes,
aprisionados com as armas na mão pelos soldados
dos principes christãos, era analoga á dos
crentes do islam, sendo como elles reduzidos á
escravidão. Não é crivel que a sua
sorte fosse
melhor nos seculos anteriores. Ainda suppondo
que os documentos citados pelo sr. Muñoz se
devessem entender em geral como elle pretende
que se entendam, ninguem poderia affirmar que
os nomes gothicos a que ahi se allude não fossem
sempre e em todos elles de captivos mosarabes
ou de filhos seus e não de mouros convertidos
[264]
ou não convertidos. Tambem me parece
que poderia limitar-me a advertir que, fundando-se
a minha opinião em muitos documentos,
que o sr. Muñoz não se encarrega de interpretar
de um modo acorde com a sua doutrina, e tendo,
alêm disso, a meu favor as illações que
tirei
dos successos politicos, poderia considerar
todos esses diplomas a que elle recorre apenas
como manifestações das violencias, das
excepções;
como mais uma prova da falta de caracteres
constantes, de regras geraes absolutas
nos factos sociaes de uma épocha de barbaria e
de transformação.
Mas estas soluções, que talvez bastassem ao
debate, não bastariam á minha consciencia:
poderiam
abonar uma opinião, aliás estribada em
outros fundamentos, mas deixariam certa duvida
no espirito dos que estudassem o assumpto.
Desçamos, por isso, á analyse dos factos e
documentos a que o sr. Muñoz recorre para assentar
a existencia da escravidão pessoal como
regra nos quatro primeiros seculos da monarchia
leonesa.
IV
A venda, troca e doação dos individuos da
classe servil sem dependencia de um contracto
relativo ao solo em que habitam é o primeiro
facto que affirma o sr. Muñoz, e que estriba nos
seguintes documentos:
1.º Carta de doação á
sé
de Oviedo por Affonso
II em 812. Incluem-se entre as dadivas
mancipia,
id est, clericos sacricantores, dos quaes
um é presbytero, outro diacono, e os mais simples
clericos, talvez ostiarios,
psalmistas, exorcistas,
etc. Alguns, declara-se terem sido comprados
pelo rei. Os outros
mancipia
são seculares, declarando-se
tambem que alguns foram havidos
por compra. Os nomes tanto de uns como de outros
são godos.
2.º Carta de dote de 887. O noivo doa á esposa,
além de alfaias, bens semoventes e dinheiro,
dez
pueros e dez
puellas, 30 villas (aldeias granjas)
as quaes diz serem situadas
in
Nemitos, e
enumera-as
Generoso,
Vivente etc.
3.º Doação de marido a mulher, de 1029.
Doa,
[266]
entre outras cousas,
mancipios et mancipiellas
quos fuerunt ex gente hismaelitarum et agareni,
os quaes nomeia: uns tem nomes godos, outros
nomes arabes. Além destes, doa-lhe
de
avolengarum
criazone parentum varios individuos
cujos nomes parece serem todos godos.
4.º Carta de agnição de 962 em resultado
de
uma demanda entre o mosteiro de Cella-nova e
o conde Ordonho Romaniz. Versava a questão
sobre duas granjas ou aldeias, querendo o conde
tirar
homines et hereditates de jure monasterii
volens eos ad servitutem abdigare. Apresentaram
os monges os seus titulos perante elrei, e quando
iam a provar, diz o sr. Muñoz, que o rei Ramiro
dera os homens que o conde usurpava, e o
bispo D. Rosendo os entregara ao mosteiro, o
conde supplicou aos magnates que obtivessem
dos monges darem-lhe as duas villas em prestamo
vitalicio,
absque homines in
adtonitum, no
que os monges convieram.
5.º Carta de agnição de 1074, em
resultado
da demanda entre o mosteiro de Cella-nova e a
condessa D. Guncina, que affirmava ter o rei Ramiro
tirado do testamento (predio ecclesiastico)
de Vanate dez homens, os quaes dera ao mosteiro
de Porcária. Replicava o abbade de Cella-nova
[267]
que
de hodie, quod est 120 annos nunquam auditum
fuit istum tale verbum. Julgou-se a favor
do abbade.
6.º Doação de 1094 feita á
sé de Lugo por
Suario Moniz de varias
villas cum sua criacione
et homines pertinentes... excepto Alvito Pepiz et
suos filios.
7.º Carta de arrhas de 1108 em que o noivo
doa varios bens de raiz, e alêm disso, um cavallo
baio e
uno homine de creacione.
8.º Doação do mosteiro de Sobrado em
1118
feita pela rainha D. Urraca a Fernando Peres e a
seu irmão com todos os termos e coutos antigos
e suas pertenças,
et cum sua criacione,
servos et
ancillas, exceptis quibusdam.
9.º Memoria da divisão de Rovoredo, sem data,
caractéres do seculo XIII. Na opinião do sr.
Muñoz pertence ao seculo XI. Um certo Vermudo
Cresconiz comprara o sarraceno Sendimiro (nome
godo) que fora visavô de Diogo Erit. Este foi
a Rovoredo e casou com uma mulher que era vaqueira
de Ardio Dias, uma de duas irmans, que,
herdando Rovoredo, haviam dividido entre si o
predio. Veio em busca delle Pelagio Froilaz (provavelmente
herdeiro ou representante de Vermudo
Cresconiz) e levou-o comsigo. Seguiu-se uma
[268]
manda entre Ardio Dias e Pelagio Froilaz, que
terminou por uma composição, em virtude da
qual ficou Diogo Erit em Rovoredo e foi dada em
trôco delle uma irman da vaqueira de Ardio Dias.
Taes são os documentos de doação,
vendas e
escambos, exclusivamente de individuos, que o
sr. Muñoz cita em prova da inexacção
da minha
doutrina.
No 1.º documento peço que se note que as pessoas
doadas são denominadas
mancipia, e não
servos, e que entre elles um
é presbytero, outro
diacono, e outros simples clerigos; que os seculares
são tambem denominados
mancipia, e que
todos elles tem nomes godos. Pergunto: tolerava
a disciplina ecclesiastica recebida na Peninsula
naquella epocha, que homens servos, e que continuavam
a ser servos, doados ou vendidos depois
a bel-prazer de seus donos, fossem elevados
não ás menos importantes
funcções do culto, mas
á ordem do presbyterado e ainda do diaconado?
Não era impossivel acumular as
condições da
servidão e do sacerdocio? Basta abrir o resumo
dos canones da igreja d'Hespanha publicados
por Aguirre e Cenni para nos desenganarmos
da impossibilidade desta associação monstruosa.
Todavia o facto da venda de um presbytero, de
[269]
um diacono e de outros clerigos deu-se no principio
do seculo IX, como o prova este documento.
Não haverá, porêm, atraz desse facto
outro
ou outros que o expliquem?
A designação de
mancipium, applicada a individuos
dos mais elevados gráus do sacerdocio, o
presbyterado e o diaconado, é não menos singular.
Notei mais de uma vez no meu livro
[76]
que a
palavra
mancipium, entre os godos,
sem deixar
de se tomar ás vezes na significação
lata de servo,
significava de ordinario o servo infimo, o
escravo,
o individuo reduzido á ultima
degradação; significava
antes uma
situação de
aviltamento do que
uma
condição
originaria. São notaveis a este proposito
dous logares do codigo wisigothico, a lei
que tracta dos
escravos dos servos
fiscaes, e a que
tracta dos
mancipia dos judeus, quer
ingenuos,
quer servos. Antes de mim já Masdeu tinha feito
com pouca differença a mesma
observação. Entre
os romanos
mancipium era synonimo de
servus,
mas a origem dos vocabulos era diversa:
servus de
servire;
mancipium de
manu
captum,
do homem aprehendido, do prisioneiro reduzido á
á escravidão. Evidentemente a
designação de
[270]
mancipium serviu a principio para
indicar o captivo,
o individuo a quem se deu a vida, que se
lhe podia tirar, para o collocar na situação de
um
animal de carga, de uma alfaia; representou um
facto accidental, personalissimo, differente da
servidão herdada, da servidão de raça,
ou para
exprimirmos com dous vocabulos modernos duas
idéas semelhantes, mas diversas, o
mancipium
era servo, mas
escravo. Na Russia ha
servos; na
America ha
escravos. Note-se,
porêm, que com
este exemplo não quero estabelecer analogia completa
entre a distincção primitiva e a
distincção
actual.
Baste, porém, que
mancipium servisse entre
os godos para exprimir especialmente a mais vil
servidão, a escravidão. Não teria a
palavra na
monarchia neo-gothica este mesmo valor especial,
embora ás vezes pela fluctuação da
linguagem
(fluctuação que existe sempre, mas que
é grandissima
nas epochas barbaras) se tomasse como
synonimo de servo, por isso que, n'um grande
numero de relações, a sorte de um e a sorte de
outro eram identicas? No 3.º documento que cita
o sr. Muñoz, os individuos doados são denominados
mancipios e
mancipiellas, e exprime-se que
são da gente ismaelita e agarena; que são
captivos.
[271]
N'uma carta de doação á sé
de Lugo
[77]
de 897
Affonso III doa-lhe, além de outras cousas,
mancipia,
quae ex hismaelitarum terra captiva duximus.
No meio de uma lucta odienta e atroz,
como foi durante o seculo VIII e ainda durante o
IX a das monarchias de Oviedo e de Cordova, é
natural, é crivel, sequer, que a sorte dos prisioneiros
de guerra que não eram passados á espada
fosse inteiramente a mesma dos servos de raça,
classe a que, além de outros, um documento
de 985 chama
servos originales[78],
por infima que
se reputasse a condição destes? E não
haveria
um meio de expressar por palavra ou por escripto
a differença das duas situações,
quando fosse
necessario fazê-la sentir?
É indubitavel, á vista das chronicas coevas e
dos documentos, que os reis de Oviedo e Leão e
os seus capitães, alargando os limites da monarchia
ou reduzindo o poder mussulmano por victorias
repetidas, por saltos e correrias inesperadas,
por devastações e incendios, conduziam
annualmente
para o interior das provincias ovetense-leonesas
milhares e milhares de captivos. Devemos
[272]
acaso suppôr que nenhum desses contractos
sobre individuos pessoalmente escravos,
em que se calla a procedencia dos mesmos individuos,
se refira a prisioneiros de guerra, e
que entre estes não houvesse muitos mosarabes?
A pretensão parece-me que sería insustentavel.
Embora eu não queira, nem seja preciso
explicar por esse facto muitos dos documentos
citados pelo sr. Muñoz, ha outros em
que semelhante explicação é a mais
simples e natural,
e a este numero pertence indubitavelmente
a doação de 812.
Civilmente, socialmente, os mosarabes eram
sarracenos. Do modo como essa grande maioria
da população romano-gothica buscava em geral
assimilar-se aos conquistadores temos sobejas
provas nos escriptos contemporaneos de Alvaro
de Cordova, d'Eulogio, do biographo de João de
Gorze, nas actas dos martyres Voto e Felix e em
outros monumentos. Os mosarabes serviam nos
exercitos mussulmanos e por consequencia combatiam
contra os seus correligionarios. Entre os
altos officiaes da coroa na corte de Cordova figuram
condes godos, e apparecem-nos a cada passo
magistrados, funccionarios, prelados, sacerdotes
godo-romanos nas provincias do vasto imperio
[273]
dos Benu-Umeyyas. Quantos destes, pospondo as
questões religiosas, e adoptando a tolerancia dos
dominadores arabes, seriam verdadeiramente addictos
á situação politica em que se achavam,
elles que abraçavam não raro os nomes proprios,
os costumes, as usanças, a civilisação
e a lingua
dos mussulmanos, a ponto de esquecerem completamente
o idioma neo-latino, segundo o testemunho
de Alvaro de Cordova; elles que admittiam,
até, a circumcisão, se acreditarmos o
Indiculum
e a biographia de João de Gorze? Não
achamos nós ainda no seculo XI os bispos mosarabes,
esquecidos das funcções episcopaes, e dedicados
inteiramente á vida politica, empregarem-se
no serviço profano dos respectivos soberanos
sarracenos?
[79]
Se nos proprios estados dos
reis de Leão a mistura dos usos mussulmanos
[274]
com os christãos dava ás vezes, nas
exterioridades
do culto, occasião a factos que seriam comicos,
se não fossem irreverentes
[80],
o que seria
essa mistura entre mosarabes e ismaelitas nos estados
mahometanos?
Imaginar, portanto, que entre os milhares de
captivos que annualmente eram arrastados da
Spania para os sertões das Asturias e de Leão
não vinha um grande numero, digamos assim,
de
sarracenos christãos;
que entre uns e outros
captivos se fazia distincção, se poderia sequer
fazer;
que os violentos e brutaes barões e cavalleiros
dos reis leoneses consentiriam em perder uma
parte dos seus escravos, que exteriormente em
nada se differençavam dos restantes, dos verdadeiros
mussulmanos, ainda admittindo gratuitamente
que os principes o desejassem, seria suppôr uma
cousa inacreditavel, embora não existisse o testemunho
[275]
do biographo de S. Theotonio, testemunho
preciso de que a praxe era inteiramente
contraria.
Na adiantada civilisação de hoje não
se comprehenderia
o direito de vida ou de morte sobre
os prisioneiros de guerra, e nem sequer a escravidão
para o vencido, ou que possa haver outros
prisioneiros senão combatentes. Deste estado da
civilisação derivam a
distincção entre prisioneiro e
prisioneiro, e os diversos gráus de benevolencia
e de attenções para com os mais qualificados.
Entre barbaros ou nas eras barbaras, o nosso
proceder, as nossas idéas actuaes a este respeito
seriam igualmente incomprehensiveis. Na verdade
o senhor do captivo, sabendo que se apoderara
de um homem opulento, importante entre os
adversarios, podia por calculo de cubiça
tractá-lo
melhor, evitar-lhe os padecimentos e as injurias
á espera de avultado resgate. Mas a regra, o
principio, a idéa de então consistia em ser o
captivo,
fosse quem fosse, como um ente novo, a
[276]
cujo nascimento, digamos assim, não se tinha
opposto o gume da espada. O passado desse ente
não importava para nada. Era um animal, uma
propriedade do que o captivara e que licitamente
poderia ter feito com que não existisse: era o
manu-captum, a
acquisição, o escravo; emfim, o
homem-cousa.
Tendo presentes todos estes factos, que o sr.
Muñoz não ignora, mas que me era necessario
recordar
aqui, entende-se facilmente a doação de Affonso
II á sé de Oviedo: entende-se como esses
clerigos podiam ser em parte comprados, em
parte libertados pelo rei, e unidos á sé
ovetense.
Eram mosarabes arrebatados, mau grado seu, por
occasião de alguma correria. Pelos canones da
igreja gothica os sacerdotes viviam n'uma especie
de adscripção canonica á igreja a que
pertenciam,
e Affonso II, conforme o chronicon de Albaida,
foi quem restabeleceu em Oviedo as jerarchias
civis e ecclesiasticas dos godos
[81].
Resgatando
aquelles individuos da escravidão, e ligando-os
indissoluvelmente á sé ovetense, respeitava as
idéas do seu tempo e mantinha a antiga disciplina
[277]
ecclesiastica, embora o fizesse de modo um
tanto rude. Se admittissemos, porêm, a hypothese
de que elles eram servos originarios semelhantes
aos servos dos tempos gothicos, que como
taes haviam recebido ordens sacras, que, depois
de doados á sé de Oviedo, continuavam a ser o
que eram, segundo a theoria do sr. Muñoz, isto é
cousas e não pessoas, e que, portanto, podiam
ser destinados pelo bispo Adaulfo para exercerem
os mais abjectos misteres, o diploma de 812
ficaria não só repugnando á historia,
mas sendo,
alêm disso, um indecifravel mysterio.
Este documento não me escapou quando redigia
o VII livro da Historia de Portugal; mas tinha
de attender a muitos outros, de condensar muitos
factos sociaes em poucos periodos. Não podia
descer á analyse minuciosa delle. Estava tão
convencido
da verdade da doutrina que estabeleci,
que não o julguei sufficiente para a destruir. O
leitor avaliará se elle effectivamente a destroe.
Suppús que, quando muito, era uma das anomalias
tão frequentes nos factos sociaes dos tempos
barbaros, a manifestação da anarchia que reinava
ainda nas idéas e nos factos. A analyse parece-me
provar que nem sequer isso era.
O 2.º documento explica-se como o antecedente
[278]
pela existencia d'escravos captivos. É notavel
que nelle tambem se evite a palavra
servos, mais
generica, para se empregar a singular expressão
pueros e
puellas. Parece haver a necessidade
de
recorrer a um vocabulo especial para exprimir
uma variedade da servidão. Além disso, este
documento
parece igualmente entrar na categoria
de varios outros que citei no meu livro para provar
a adhesão do servo originario á gleba, pelo
modo por que indistinctamente se empregava o
nome do individuo ou o da propriedade para designar
esta. Doando trinta granjas, o doador declara
que são situadas no districto de Nemitos, e
que são
Generoso,
Vivente &c. nomes proprios
de individuos e não de predios.
O 3.º documento creio servir antes para combater
a opinião de sr. Muñoz do que a minha. O
doador distingue em dous grupos os servos doados:
a 1.ª dos
mancipios e
mancipiellas que foram
das gentes dos ismaelitas e agarenos, e dos
quaes, todavia, uns tem nomes godos, outros nomes
arabes: a 2.ª dos
homens de
creação havidos
de avoengas (heranças de familia)
dos antepassados
(do doador) e cujos nomes são todos godos.
Porque a divisão em dous grupos, se a
condição
dos que pertencem a uma e a dos que pertencem
[279]
a outra é absolutamente identica? Porque uns
são chamados
mancipios,
outros
homens de
creação,
equivalente de servos de raça? Porque entre
os
mancipios tem uns nomes godos e
outros
arabes, emquanto os de
criazione
são todos godos?
Peço ao sr. Muñoz que aproxime estes factos
das ponderações que acima fiz, e que decida
depois se o documento prova contra a minha, se
contra a sua doutrina.
Refere-se no 4.º documento a historia de uma
demanda entre o conde Ordonho Romaniz e o
mosteiro de Cellanova ácêrca de certas herdades
do mosteiro e dos homens que n'ellas viviam. O
que neste documento importa para a questão é o
desfecho da contenda. Convencido de que não tinha
razão, o conde propôs aos monges uma
transacção,
que acceitaram, e que consistia em elle
possuir as granjas emquanto vivo
absque homines
in adtonitum. Nestas ultimas palavras o sr.
Muñoz
vê a separação dos homens da terra.
Será essa
a verdadeira interpretação?
Adtonitum é evidentemente
a traducção latino-barbara
da palavra
atondo.
Atondo significava alfaia,
traste de uso,
objecto de serviço. As
obrigações
do servo de gleba, como depois as dos colonos
livres em seculos mais proximos de nós, eram,
[280]
em relação ao senhor da gleba, e depois em
relação
ao senhorio directo do predio, de duas
especies―prestações
agrarias e serviços pessoaes;
estes abrangiam serviços de todo o genero, ainda
os mais baixos; alguns, até, que poderiam ser
feitos por animaes domesticos. Nada mais facil,
portanto, do que applicar a palavra
atondo ao
serviço pessoal dos servos, n'uma épocha que de
certo se não distinguia pela precisão rigorosa da
linguagem
[82].
Que ficava percebendo Ordonho por
aquella concessão dos frades? As
prestações agrarias.
Os serviços pessoaes ficavam ao mosteiro.
E os monges procediam assisadamente fazendo
uma concessão restricta ao homem poderoso. Pelos
individuos que agricultavam as glebas, cujos
redditos senhoriaes elles cediam vitaliciamente ao
conde, ficando aliás esses individuos ligados pelos
serviços pessoaes ao mosteiro, era facil provar
a todo o tempo a quem o solo pertencia, se, como
eu creio, o servo se achava unido ao predio que
agricultava e onde vivia.
[281]
Não comprehendo como possa applicar-se á
materia debatida o 5.º documento citado pelo sr.
Muñoz. Para elle servir ao intento era necessario
que a condessa D. Guncina provasse o que affirmava.
Não o provou, porque a sentença deu-se
a favor dos frades. Logo a separação dos dez
homens
pelo rei Ramiro nunca existiu conforme o
que pretendia o abbade de Cellanova. Supponhamos,
porém, que fosse verdade o que ella dizia.
N'esse caso perguntaria: d'onde consta que dez
glebas do testamento de Vanate não passaram
com os dez homens para o dominio do mosteiro
de Porcária? A contenda podia versar sobre os
dez servos e os dez predios, embora se falasse
unicamente de homens: esta confusão da linguagem
juridica nos documentos daquelles tempos
é uma cousa que me parece ter demonstrado no
meu livro até a evidencia.
No 6.º documento doam-se varias granjas
com
sua criacione et homines pertinentes, exceptuando
um d'estes homens com seus filhos. Não comprehendo
[282]
igualmente como se possa invocar contra
mim um documento de que me poderia ter servido,
cumulativamente com tantos outros, para
estribar a minha theoria, se o houvera conhecido.
A phrase latino-barbara acima citada exprime
exactamente a situação dos servos: doam-se as
glebas com a
sua
creação, com os homens
que
lhes pertencem. Supponhamos que a reserva que
se faz de uma familia signifique o que o sr. Muñoz
pretende. Sería um acto legitimo ou illegitimo;
mas o que é certo, pelo menos, é que
até ahi essa
familia pertencia áquellas glebas como os outros
homens de creação. Isoladamente este documento
não seria bastante para provar o facto geral da
adscripção, embora prove que havia adscriptos;
mas o que elle de certo não prova é que a
situação
dos servos na sociedade leonesa fosse a mesma
dos tempos gothicos.
A adhesão á gleba era um facto de indole
complexa.
Por um lado era um progresso immenso
das classes laboriosas no caminho da liberdade;
por outro uma garantia para os donos do solo;
porque, circumscrevendo, coarctando a acção do
senhor sobre o servo, a tornava por isso mais legitima
e por consequencia mais solida. Nas relações
entre ambos havia vantagens mutuas, de que espontaneamente
[283]
se podia ceder de parte a parte para
as trocar por outras vantagens maiores. A
adscripção
não era uma lei escripta, como na Russia
moderna; pelo menos nenhuns vestigios restam
de que o fosse: era um facto social, um costume,
uma praxe, que resultava da natureza das cousas,
de factos politicos anteriores. É possivel apparecerem
exemplos de separação entre o servo e a
gleba por um acto violento do senhor. De que
actos violentos deixa de nos subministrar exemplos
a idade media? Mas o senhor tambem podia
quebrar os laços que prendiam o servo ao predio
com vantagem e assenso delle, como por exemplo
para o unir a uma gleba mais productiva ou
mais vasta, sem que por isso se reputasse offendida
a praxe, a especie de lei mental que a força
das cousas trouxera, e sem que hajamos de inferir
d'ahi a não existencia do facto contrario como
regra. Isto explicaria a reserva de Alvito Pepiz e
seus filhos na doação de 1094 á
sé de Lugo, se
não se podesse tambem entender que com elles
fora exceptuada a respectiva gleba.
Depois do que fica dicto a analyse dos 7.º, 8.º
e 9.º documento do sr. Muñoz parece-me inutil,
e a theoria da adscripção não
obstará por certo á
sua facil interpretação. Seja-me, todavia, licito
[284]
fazer algumas observações a respeito do ultimo
documento. Não me lembra ter jámais visto
mencionado,
nem nos historiadores nem nos monumentos,
um unico mussulmano cujo nome seja
godo. E comtudo na memoria da divisão de Rovoredo
menciona-se o
sarraceno Sendimiro.
Não
sería um captivo mosarabe? Mosarabe, porêm,
ou arabe, elle não fora um homem de
creação,
fora um escravo. Diogo Erit fugindo para Rovoredo
casou ahi. Mas porque não sería a mulher
da sua condição e da sua raça? E
então porque
não se daria em troco d'elle uma irmã da sua
mulher?
Que póde esse facto provar contra a
adscripção
dos servos originarios? Onde neguei eu que
a escravidão dos sarracenos ou de seus filhos fosse
a servidão pessoal?
V
Outra ordem de factos, que o sr. Muñoz recorda
como vehemente indicio de que a condição
dos servos era a mesma dos tempos gothicos, é
que ás vezes os poderosos nas suas
depredações
roubavam uns aos outros os colonos e iam vendê-los,
o que não poderia acontecer se a servidão
pessoal não existisse; que se davam servos aos
mouros em resgate d'illustres captivos
[83];
que os
servos eram obrigados ao serviço domestico, a
trabalhos mechanicos da industria, como por
exemplo, a serem cozinheiros, padeiros, tecelões,
carpinteiros, ferreiros, alfaiates, etc.; que alguns
tinham os mais baixos encargos, como limpar
os logares immundos, concertar os caminhos,
tractar das cubas em que seus senhores se banhavam
etc.
[84];
o que tudo, no entender do sr.
Muñoz, repugnava á
adscripção. Lembra-se então
de alguns monumentos em que esses factos podem
[286]
estribar-se, e que crê servirem para condemnar
a minha opinião. Examinemo-los.
N'uma doação de Bermudo III á
sé de Santiago
fala-se de um certo Galiariz, que, entre outras
rapinas que fez, roubou seis homens alheios e
vendeu-os como captivos (
et vendivit eos sicut
captivos). Se eu procurasse um documento que
positivamente contradissesse a doutrina do sr.
Muñoz, não o acharia por certo mais a proposito.
Galiariz vendeu os servos alheios
como se fossem
captivos, e este acto enumera-se entre os seus
delictos. O que pois se vendia sem offensa dos
usos e costumes era o prisioneiro,
captivum.
Vender como tal o servo alheio é uma circumstancia
que aggrava o roubo, e porque? Porque
o servo, o homem d'alguem, não era um captivo,
uma
cousa venal. Peço que
se reflicta neste documento.
Dous nobres de Galliza, conforme refere a Historia
Compostellana, foram aprisionados pelos
sarracenos. Tractou-se do seu resgate, e deram-se
para os remir LX
captivos christianos, tamen
ex servili conditione. E é sobre
semelhante texto
que o sr. Muñoz assenta a idéa de que se
entregavam
servos originarios aos sarracenos em
resgate de cavalleiros leoneses! Que é o que se deu
[287]
pelos dous nobres? Captivos christãos. Pois
captivo
foi nunca synonimo da palavra generica
servo?
Captivo, na idade media, significava
o que
significa hoje, o que significou sempre, o prisioneiro.
O que houve foi uma troca de prisioneiros.
Deram-se por dous sessenta, facto que o historiador
explica:
tamen ex servili
conditione. Se
dessem sarracenos nobres dariam um, dous, quatro,
ou seis. Não tinham prisioneiros
de
mais elevada
jerarchia ou não os quizeram entregar: deram
sessenta de condição servil. Mas esses homens
eram christãos. Por certo; mas tambem eram indubitavelmente
captivos. A Compostellana é igualmente
explicita a ambos os respeitos. Eis a necessidade
de nunca esquecer a população mosarabe.
Por ella se explica facilmente a existencia
de prisioneiros christãos em poder de christãos.
Aprisionados com seus senhores ou sem elles
n'uma batalha ou n'uma correria dos leoneses na
Spania, tinham mudado de donos, e
agora entregavam-nos
a outros donos em cujo poder de
certo a sua condição desgraçada
não melhoraria.
Eis o que unicamente se pode inferir com plausibilidade
da narrativa da Compostellana.
Não escrevendo a historia de Leão, ou dos outros
estados da Peninsula, mas a de Portugal, eu
[288]
era obrigado a esboçar rapidamente a
organisação
social da Hespanha de que se desmembrara
a monarchia portuguesa; só, porêm, até
onde
fosse necessario para se entender a historia social
do meu paiz. Apesar disso, creio que fui o
primeiro que tentei fazer sentir aos escriptores
hespanhoes a importancia de dedicar profundas
investigações á historia dos
mosarabes, dessa população
distincta, que, em meu entender, devia
constituir a maioria dos habitantes da Peninsula,
ainda dous ou tres seculos depois da invasão dos
arabes e da tentativa de Pelaio, pela simples razão
de que a grande massa da população de um
vasto paiz não se pode substituir como o poder supremo,
como o predominio de um
precedente
conquistador,
sobretudo quando se tracta de uma nação
civilisada, e não de tribus selvagens, sempre
insignificantes em numero, e que a atrocidade fria
e permanente dos vencedores chega a destruir no
decurso de seculos. Depois das invasões e conquistas
germanicas, a grande massa da população
do imperio romano ficou sendo celto-romana: depois
da invasão e conquista da China pelos tartaros
mantchús, a maioria dos habitantes daquelle
immenso paiz ficou sendo chim: o sangue inglês
é o sangue anglo-saxonio, apesar do predominio
[289]
normando. E todavia nenhuma daquellas raças
de conquistadores foi tão moderada, tão benigna
para com os vencidos como os arabes na Hespanha.
Por essa mesma brandura e tolerancia certa
ordem de factos politicos e sociaes, que se dão
depois dos grandes cataclysmos das nações, deviam
ser mais prominentes, mais efficazes na
Hespanha, e portanto influir mais poderosamente
nas phases dos acontecimentos posteriores tanto
politicos como sociaes. Nós, os homens d'hoje,
que vimos ou ouvimos contar a nossos paes
as scenas do dominio francês na Peninsula no
principio d'este seculo, deveriamos saber adivinhar
o estado moral da população romano-gothica
depois do estabelecimento do imperio dos khalifas,
se aliás os monumentos fossem menos explicitos
ou guardassem silencio a tal respeito. O
transitorio dominio francês na Peninsula não
deixou
de produzir logo um grande numero de
afrancesados na Hespanha e de
jacobinos em Portugal.
Qual sería o jacobinismo, permitta-se-me
a expressão, entre os godo-romanos em
relação
aos sarracenos pode imaginar-se tendo presente
o estado de dissolução moral do imperio
wisigothico,
anniquilado n'uma unica batalha; o longo
dominio dos arabes; a superioridade da sua
civilisação
[290]
material; a sua tolerancia para com a religião
dos vencidos; o respeito guardado ás
instituições
civis destes; a benevolencia, emfim, dos principes
mussulmanos para com os seus subditos christãos.
Não quero dizer com isto que o patriotismo wisigothico;
que a impaciencia do jugo extranho; que
o sentimento de hostilidade religiosa não ardessem
em muitos corações, e até subissem ao
gráu
de fanatismo. Pelo contrario. Não era preciso
que os monumentos nos dissessem que a reacção
se manifestava até na corte de Cordova. O conhecimento
da indole das paixões humanas dispensa
ás vezes em historia o testemunho dos monumentos.
O homem é essencialmente o mesmo
em todas as epochas. Mas é por isso que os interesses,
a reflexão, os vicios, as virtudes, os habitos,
a educação, as mil causas moraes que impellem
e dirigem o individuo e lhe determinam os
affectos e as tendencias, deviam impellir outros,
e talvez o maior numero, a manifestações
oppostas.
O
Indiculo Luminoso de Alvaro de
Cordova,
especie de extenso artigo de fundo de jornal partidario,
libello apaixonado contra o mosarabismo,
revela-nos quão numeroso e importante era o
partido arabe entre os romano-godos da Spania,
partido que abrangia nobres, guerreiros, prelados,
[291]
sacerdotes, magistrados, povo. Se não existisse
este testemunho insuspeito, a razão e a experiencia
nos diriam o mesmo que elle nos diz
[85].
Imagine-se agora qual sería durante a lucta entre
a monarchia néo-gothica e o imperio dos Benu-Umeyyas
o papel dessa maxima parte da população
peninsular chamada os mosarabes: uns
indifferentes á contenda, acceitando do mesmo
modo o dominio dos reis d'Asturias e Leão ou o
dos principes sarracenos, no meio dos éstos da
guerra; outros forcejando por identificar-se com
a nova sociedade que se constituia á semelhança
da patria wisigothica; outros, emfim, addictos
por esperanças, por cubiça, por beneficios
recebidos,
e até por laços de sangue, resultado dos
[292]
consorcios mixtos, á manutenção do
dominio
mussulmano, e calcule-se quantos factos politicos
haviam de dimanar de um estado de cousas
tal; quantas peripecias, quantas violencias se dariam
em qualquer districto ou provincia da Hespanha
a cada invasão, a cada correria, quer dos
sarracenos, quer dos leoneses; como se traduziriam
em vinganças acerbas os odios occultos; como
as paixões mais oppostas trariam a mudança
de partido e até de crença; como os homens da
mesma raça e da mesma religião se perseguiriam,
se denunciariam por desleaes a um ou a outro
dos dous poderes publicos, que pelos accidentes
da guerra se succediam tão frequentemente nos
variaveis limites dos dous estados; como a
condição
[293]
do mesmo individuo mudaria mais de uma
vez; como o nobre, o rico, o funccionario, o sacerdote
poderiam cair de repente da situação
mais elevada na mais abjecta servidão, e os mais
humildes elevarem-se por acontecimentos imprevistos
até as mais altas graduações sociaes;
como,
finalmente, os monumentos na sua linguagem,
nos factos que delles resultam podem illudir-nos,
se entre os elementos a que devemos recorrer
para a sua apreciação esquecermos o elemento
mosarabico.
Que se me permitta referir aqui uma anecdota
que pinta a vida agitada da população mosarabe
nos territorios submettidos ora pelos arabes,
ora pelos leoneses, no meio das vicissitudes da
[294]
guerra, e que está confirmando o que precedentemente
disse ácêrca do mosarabismo e das
peripecias a que estavam sujeitos os individuos
naquella situação incerta e cambiante. Dos
territorios
da Hespanha nenhum, talvez, mudou mais
vezes de senhores durante a lucta do que os districtos
d'entre Douro e Tejo, sobretudo nas proximidades
do oceano, e porventura que em nenhum
ficaram mais vestigios da existencia da
sociedade mosarabica, da sua civilisação
material,
das suas paixões, dos seus interesses encontrados,
e até dos seus crimes e virtudes. A
publicação,
que a Academia prepara, dos documentos
dessas epochas, e especialmente dos que nos foram
conservados nos archivos da cathedral de
Coimbra e do mosteiro de Lorvão,
lançará grande
luz sobre o assumpto. É um desses documentos,
tirado do chartulario de Lorvão, o Livro dos
Testamentos, e que foi publicado já por Fr. Munuel
da Rocha, mas horrivelmente deturpado,
que me subministra os elementos de uma narrativa,
a qual reproduz, embora apenas n'uma das
suas phases, o viver daquelles tumultuarios tempos.
Era nos fins do seculo X e regia o abbade Primo
o cenobio de Lorvão. Coimbra, em cujo territorio
[295]
estava situado o mosteiro, pertencia á coroa
leonesa pouco antes da epocha em que a espada
irresistivel do hadjib Al-manssor fez recuar de
novo as fronteiras da monarchia néo-gothica para
além do Douro (987). Os districtos ao sul deste
rio, que depois da invasão de Tarik e Musa tinham
pertencido a maior parte do tempo aos sarracenos,
encerravam uma população essencialmente
mosarabe. Cordova era ainda para ella a
capital da industria, das artes, da civilisação.
O
architecto cordovês Zacharias viera a Lorvão,
provavelmente chamado pelo abbade Primo para
alguma obra do mosteiro. Sabendo isto, os regedores
de Coimbra falaram com o abbade para
que o architecto cordovês construisse algumas
pontes sobre os rios das circumvizinhanças. Primo
accedeu, e acompanhou Zacharias na empreza.
Edificaram-se então quatro pontes, em Alviaster
(Ilhastro), em Coselias (Coselhas), em Latera
Buzat (Ladeiras do Bussaco?) e na ribeira de
Forma (Bossão?) Aqui, em memoria da ambos,
e por conselho do architecto, Primo construiu
umas azenhas que ficaram pertencendo ao mosteiro.
Taes foram os factos succedidos nos fins do
seculo X que narra o documento de Lorvão.
Passaram tres quartos de seculo. Coimbra e o
[296]
seu territorio, submettidos de novo por Al-manssor,
tinham-se conservado sob o jugo do islam.
Fernando magno veio, porêm, a unir definitivamente
aquella provincia á coroa de Leão nos
meiados do seculo XI. As azenhas da ribeira de
Forma já não eram do mosteiro. Fernando I
restituiu-lh'as,
ajunctando o senhorio da ponte. Pelagio
Halaf, nome que indica um mosarabe christão,
fora, segundo parece, espoliado naquella
restituição. Demandou os monges, affirmando
que seu avô Ezerag edificara as azenhas, ao passo
que o abbade Arias invocava os nomes de
Primo e Zacharias. O mosarabe Sisnando, conde
ou wasir de Coimbra, exigindo o juramento de
Arias ácêrca do que este affirmava, manteve a
restituição. Surgiu então novo
contendor. Era
Zuleiman Alafla, primo-coirmão de Pelagio, talvez
mussulmano, talvez christão, mas como elle da
raça mosarabe. Sisnando enviou os contendores
á curia do rei. Ahi, longe de estribar o seu direito
na fundação do avô, Zuleiman recorreu a
um
titulo que hoje sería singular, mas que então
elle
cria assás natural, e sufficiente para legitimar
a sua pretensão. Era a historia do que se havia
passado quando Al-manssor se apoderara de
Coimbra. Ezerag habitava em Condeixa quando
[297]
se restabeleceu o dominio de Cordova. No tumulto
da invasão os habitantes das aldeias internavam-se
nos bosques. Ezerag pensou então que a
desordem geral podia enriquecê-lo. Dirigiu-se ao
chefe sarraceno Farfon-ibn-Abdallah, e abraçou o
islamismo. Depois pediu trinta soldados sarracenos,
escondeu-os nas brenhas, e dirigindo-se á
gente foragida, aconselhou-os a voltarem aos
seus lares, asseverando-lhes que tudo estava pacificado.
Acreditaram-no e voltaram ás aldeias.
Os soldados sarracenos, saindo então dos escondrijos,
captivaram muitos, e levando-os a Santarem
venderam-nos por grossas sommas. Os captivos
foram conduzidos a Cordova com guia de
Ibn-Abdallah e com o preço por que tinham sido
vendidos. Então Ezerag pediu em recompensa os
moinhos de Forma e diversas aldeias. Al-manssor
concedeu-lhe tudo; porque Al-manssor era
um heroe, e os heroes não tem tempo para pensar
nos direitos da humanidade conculcados
[86].
[298]
Era nesta concessão que Zuleiman fundamentava
a sua justiça.
A doação do hadjib aos olhos de Alafla, do neto
do renegado, era um titulo legitimo, embora
essa mercê tivesse tido por causa uma atroz villania,
e procedesse de um acto de auctoridade
que o tribunal leonês, conforme as ideas de hoje,
não poderia reconhecer. Zuleiman, porêm, suppunha
tão legitima, tão respeitavel a
concessão
de Al-manssor como o julgamento da curia de
Fernando-magno. Era um poder que passara na
terra: era outro que nella existia agora. Nisto se
resumia, necessariamente, a crença politica de
uma grande parte dos proprietarios e agricultores
mosarabes. Mas o mais importante neste documento
é o proceder d'Ezerag e os factos que
d'ahi resultaram. Elles nos explicam como quaesquer
individuos da grande maioria da população
podiam descer ao misero estado d'escravos. Sem
[299]
duvida a historia de Ezerag não é a unica da sua
especie succedida naquelles quatro seculos de
uma terrivel lucta: devia repetir-se com circumstancias
variadas. E é mais que provavel que as
conversões ao christianismo por baixos intuitos
de cubiça, de vingança ou de
traição, fossem,
pelo menos, tão frequentes como as conversões
mussulmanas.
Insisti neste ponto, porque o reputo capital.
Passemos agora á objecção deduzida de
serem
os servos originarios obrigados a trabalhos industriaes
e ao serviço domestico dos senhores,
trabalhos e serviços que, no entender do sr.
Muñoz,
repugnavam á adscripção da gleba.
No opusculo do sr. Muñoz parece-me haver
duas preoccupações que allucinam o illustre
escriptor.
A primeira é a das idéas modernas applicadas
ás expressões, ás phrases e aos factos
da idade media. Desta é facil possuirmo-nos, e
nella terei eu caído mais de uma vez. A outra é
na verdade singular, mas em boa parte deriva
da primeira. Consiste em suppôr a impossibilidade
de accumular os trabalhos da vida rural
com os industriaes e mechanicos, ou com os serviços
pessoaes feitos a outro individuo. Entre as
nações onde o progresso das industrias fez
predominar
[300]
quasi exclusivamente o principio economico
da divisão do trabalho, effectivamente
não se dá tal associação: o
official mechanico, o
operario fabril, o creado domestico não associa
de ordinario a occupação a que se entregou com
o grangeio dos campos. Mas assim como a divisão
e subdivisão dos misteres se vai multiplicando
com o desenvolvimento industrial, assim
quanto mais atrazado se acha um povo, mais o
homem varía de occupações, porque
é obrigado
a variar, e porque justamente a imperfeição das
industrias, a simplicidade e grosseria dos artefactos
favorecem a accumulação e a variedade das
occupações individuaes. Não sei o que
succede
em Hespanha: em Portugal, nos districtos ruraes,
mais de uma industria fabril se associa
com a agricultura sob o tecto do lavrador. E todavia,
por atrazado que esteja este paiz nos progressos
fabris, está sem comparação mais
adiantado
do que a monarchia leonesa no seculo X ou
XI.
Recusar admittir que o servo da gleba podesse
separar-se do cultivo da mesma gleba para se
empregar de outro modo no serviço do senhor,
não é só negar o passado; é
negar o presente.
O camponês russo é servo da gleba, e nem por
[301]
isso deixa de separar-se della para exercer outros
misteres. O que não pode é ser vendido
como os brutos. Muda de senhor, ao menos legalmente,
só quando é alienada a terra a que
pertence.
O V volume da Historia de Portugal, ainda
não publicado, conterá uma parte relativa ao
systema do tributo, da renda, e do serviço publico
nos seculos XII e XIII. Ahi se encontrarão numerosas
provas de que n'uma épocha em que já
a adscripção voluntaria succedera á
forçada existiam
para o colono, pessoalmente livre, ao lado
das prestações agrarias esses mesmos encargos
de serviço pessoal que ao sr. Muñoz parece
repugnarem,
não ao colonato livre, mas á propria
servidão da gleba; e o mais é que continuamos
a encontrá-los ainda nos contractos emphyteuticos
de seculos mais modernos. Por singulares,
por extranhos á vida rural que esses serviços se
nos affigurem nos documentos citados no opusculo
que examino, os dos colonos portugueses
do seculo XIII, colonos indubitavelmente livres
de uma gleba serva, não são menos singulares
e extranhos. Lembrarei, entre outros, o encargo
que pesava sobre os moradores de tres casaes
de Tras-os-Montes. Deviam ir servir de espias
[302]
em Leão quando a isso os enviassem.
[87] Era,
por certo, um serviço mais abjecto do que o
purgare tristigas de que falam os
documentos
leoneses.
Mas o mais notavel é que o proprio sr. Muñoz
se encarregou de combater a sua opinião. Ao
lado da servidão
pessoal
dos servos
originarios
admitte a existencia da servidão de gleba, a existencia
simultanea de adscriptos, de que fórma
uma classe á parte. Depois de enumerar as
prestações
agrarias que pagavam esta especie de colonos-servos,
o sr. Muñoz adverte
[88]
que, além de
uma quota de fructos, e de variadas foragens,
esses colonos forçados estavam adstrictos a
serviços
pessoaes, que consistiam nos amanhos de
predios diversos da propria gleba, em
construcções
de edificios, e
em fazer quanto se lhes
ordenasse.
Suppôs o sr. Muñoz que havia
contradicção
em dizer eu que os servos originarios eram
[303]
todos adscriptos e ao mesmo tempo obrigados a
serviços pessoaes fóra da respectiva gleba, e
todavia
não só acceita essa doutrina contradictoria
no seu mesmo opusculo, mas, além disso, acceita-a
depois de affirmar a sua impossibilidade,
para desta inferir contra mim a continuação na
monarchia ovetense-leonesa da servidão wisigothica.
Se os serviços pessoaes alheios ao cultivo
da gleba importavam forçosamente a
não-adscripção,
é necessario confessar que a
adscripção,
cuja existencia o sr. Muñoz crê descubrir ligada
com quaesquer encargos de serviço pessoal ao
senhor, é um sonho, e que os documentos que
se referem a esse estado de cousas, ou são falsos,
ou se hão de entender, custe o que custar,
de escravos semelhantes aos dos wisigodos ou
aos captivos sarracenos.
Na
Colleccion de Fueros
Municipales[89]
publicou
o sr. Muñoz dous interessantes documentos sem
data, mas que parecem do seculo IX, relativos
aos encargos pessoaes dos servos originarios. A
estes documentos se reporta igualmente no seu
opusculo para abonar a these que estabelece da
existencia simultanea de adscriptos e de escravos
[304]
originarios. É o primeiro uma memoria dos
serviços a que era obrigada para com a sé de
Oviedo cada familia serva da terra de Gauzon:
é o segundo uma memoria especial das
obrigações
dos servos de Pravia, logar ou aldeia incluida
no mesmo territorio de Gauzon. Na
Colleccion
vê-se que as idéas do sr. Muñoz
fluctuavam
ainda. Estas duas memorias suppõe-nas
elle ahi relativas indistinctamente aos servos da
sé ovetense residentes naquelle territorio, quer
adscriptos, quer não: no opusculo
[90]
suppõe-nas,
porém, relativas exclusivamente aos
não-adscriptos,
isto é, aos servos de raça, que, segundo
a sua doutrina, continuaram a ser na monarchia
néo-gothica de condição identica
á dos servos do
VI e do VII seculos.
Permitta-me, todavia, o sr. Muñoz pensar que
se houvera reflectido mais detidamente nestes
documentos elles o teriam, talvez, conduzido a diverso
resultado. Suppondo que se refiram a servos
que, no seu entender, equivaliam a cousas, e
de que seu antes dono que senhor podia dispôr
livremente, a propria existencia dessa especie
de memorias sería incomprehensivel. Na idade
[305]
media não se escreviam cousas absolutamente
inuteis, porque a arte de escrever poucos a possuiam,
e até a materia da escriptura era assaz
rara. Ora nada mais completamente inutil do que
esses
cobrinellos ou ementas, dada a
theoria do
sr. Muñoz. Para que escrever n'um pergaminho:
a familia de fulano de tal aldeia ou
granja (villa)
é obrigada a tal
serviço? Pois uma familia de
escravos, que pode ser empregada a bel prazer
do senhor nos mais oppostos misteres dentro do
mesmo anno, do mesmo mez, do mesmo dia,
como um animal domestico; que por arbitrio delle
pode mudar de domicilio quando isso convier;
que, em summa, pode collectiva ou individualmente
ser vendida, escambada, doada; uma tal
familia, digo, tem acaso obrigações determinadas,
de que seja necessario conservar a memoria para
o futuro? De que serve declarar a granja, o villar,
o casal onde cada uma dessas familias reside,
se, no dia seguinte ao da redacção da ementa, o
senhor pode achar mais conveniente outra
distribuição
dos seus escravos? Apesar da facilidade
com que hoje se escrevem cousas inuteis, não se
reputaria louco o proprietario que escrevesse e
archivasse a seguinte memoria:
A raça do
cavallo
N. tem de conduzir madeiras; a raça do
touro
[306]
N. tem de lavrar taes terras; tal vehiculo tem
de servir de transporte a tal objecto; tal alfaia é
destinada a tal uso?
Na minha opinião, o que estas memorias provam
é o mesmo que provam directa ou indirectamente
todos os documentos que se referem
á condição ou aos encargos dos servos
originarios,
ou homens de creação: é que estes
estão
unidos a certos predios indissoluvelmente; que
desse complexo do homem e do predio o senhor
tem de auferir prestações agrarias e
serviços
determinados. Nesta hypothese o
cobrinellum é
uma cousa racional. A
casata, isto
é, a familia
que vive n'uma certa choupana ou grupo de
choupanas, (
casa) tem de satisfazer,
de geração
em geração, perpetuamente, aquelles encargos.
Os enlaces inevitaveis com outras familias podem
produzir complicações de direitos entre diversos
senhores, mas o
cobrinellum ou
ementa
particular de cada um servirá para os deslindar,
indicando os serviços, independentes das
prestações
agrarias, que essas familias devem,
debent.
Esta idéa de dever que se manifesta nos
documentos presuppõem a do direito. O escravo
não tem deveres; porque as
cousas são incapazes
delles. Nos proprios tempos barbaros dever
[307]
e direito são inseparaveis; porque as duas idéas
são forçosamente correlativas.
Conforme o que n'outro logar adverti, a
adscripção
não era de feito simplesmente uma
grande restricção da liberdade; importava tambem
vantagens, as de uma especie de co-propriedade
do servo colono na sua gleba. O sentimento
do servo de gleba devia ser analogo ao
do camponês russo dos nossos tempos. «No
momento em que os servos separados da terra―diz
o marquez de Custine―vissem vendê-la,
arrendá-la, cultivá-la independentemente delles,
amotinar-se-hiam de golpe, clamando que os
despojavam
dos seus bens[91]. Do
mesmo modo
que na Russia, onde se caminha da barbaria para
a civilisação, nas origens barbaras da monarchia
néo-gothica a adscripção como regra
succedeu
naturalmente á servidão pessoal, e a
servidão
da terra cultivada por um colono pessoalmente
livre succedeu á adscripção nos
seculos
XII e XIII, como me persuado que demonstrei
no meu livro. Suppôr que da escravidão se passou
de salto á liberdade pessoal affigura-se-me
a supposição de um impossivel historico.
[308]
Effectivamente: como achamos mais geralmente
estabelecido o colonato nos seculos XII e XIII?
O colono é
obrigado a
morar no predio que cultiva,
mas não é forçado a isso. Se delle
sai, não
lhe é licito cultivá-lo; perde-o; não
o reconduzem,
porém, violentamente a elle. A união do
homem á terra subsiste, mas essa união
não é
indissoluvel. A liberdade pessoal nasceu. Entre
esta situação e a do homem-cousa, do escravo,
ha um abysmo. Como se transpôs? O meio principal
consistiu na servidão da gleba. O homem-cousa
foi-se transformando em
pessoa
serva: a
pessoa serva em pessoa livre; mas ficou ainda
adscripta na qualidade de colono. Para ser plenamente
pessoa livre precisava de desaggregar de
si esta qualidade; de divorciar-se da gleba, a que
aliás o prende esse amor ardente do homem de
trabalho ao solo que cultiva. E que importava,
se
podia fazê-lo?
É por isso que disse no meu
livro que a servidão desceu do homem para a
terra. Depois, lentamente, é que veio o colonato
na sua fórma quasi definitiva: o laço unico que
liga o colono é a solução do canon e a
prestação
dos serviços pessoaes ao já não
senhor, mas
senhorio.
Depois, finalmente, chegou-se á formula
definitiva: os serviços pessoaes ou desappareceram
[309]
ou poderam ser substituidos, á vontade do
colono, pela solução de um
quantum que os representasse.
Desde este momento o colonato não
conteve mais em si elemento algum que repugne
ás nossas idéas actuaes de direito, e nem sequer
ás da economia politica.
Eu cri ver a liberdade humana despontando
tenue nos horisontes da vida do povo desde os
tempos wisigothicos. Para o sr. Muñoz a noite
profunda da escravidão durou nesses horisontes
até a fatal jornada do Guadalete. E não
só, na sua
opinião, durou até aquella epocha, como tambem
subsistia ainda com todo o peso das suas
sombras no seculo XI. Mas em que periodo collocar
a transição para a liberdade pessoal dos seculos
XII e XIII, cuja existencia demonstrei como
facto predominante no colonato dessa epocha, se
não for no estado dos servos originarios da monarchia
leonesa? Se assim não houvera sido, singular
excepção á lei de desenvolvimento
gradual
e constante do progresso humano sería a historia
da Peninsula durante quatro seculos!
VI
O sr. Muñoz contrapõe ainda á minha
opinião
varios factos, que entende provarem ser o estado
dos servos o de cousas na monarchia de Oviedo
e Leão. Um delles é não ter o servo
representação
em juizo, nem poder servir de testimunha,
havendo outro meio de prova.
De se me oppôr este facto parece poder inferir-se
ter eu affirmado em alguma parte que o
servo se convertera em homem plenamente livre
na monarchia leonesa. Nesta hypothese a objecção
poderia parecer plausivel, ainda que realmente
o não seja; porque não se segue da plena
liberdade
do individuo, em qualquer estado social, a
necessidade positiva de ser igual em direitos, ainda
civis, a todos os individuos livres. O que, porêm,
affirmei, e o que julgo poder continuar a
affirmar é que a servidão mais ou menos absoluta
dos wisigodos se tornou na monarchia néo-gothica
em servidão da gleba, e que esta
modificação
foi um grande passo para a emancipação
das classes populares. Se o servo não podia desaggregar-se
[311]
da gleba, é evidente que a gleba
tambem não podia desaggregar-se do servo, e que
desse estado resultava para elle uma especie de
co-propriedade de facto, que, por indestructivel,
creava um direito positivo. O alcance deste direito
era tal que as suas consequencias, na successão
dos tempos, deviam trazer mais tarde ou mais
cedo a plena liberdade pessoal, como de feito trouxeram.
Eis o que eu estabeleci. Objectivamente, a
existencia da pessoa civil resulta da
manifestação
da sua capacidade juridica, embora essa
manifestação
seja incompleta. Entre os romanos, o servo
considerava-se como cousa, porque objectivamente
era incapaz, não de um ou de outro direito,
mas de todos elles, e por isso perdia a personalidade:
nas sociedades modernas, porêm, o privilegio,
a jerarchia, a idade do homem, o seu estado
physico ou moral produziram sempre e produzem
ainda differenças de direitos, até civis,
que nem por isso destroem a personalidade
de ninguem. Fosse o poder publico, fosse o
proprio adscripto que podesse invocar o principio
da adscripção para não ser
violentamente separado
da gleba nativa; fosse o costume, a opinião,
ou a lei que sanctificasse a união da terra
com o seu cultor, o que é certo é que se
invocava,
[312]
sanctificava e mantinha um direito, uma vantagem
importantissima do adscripto. Fosse qual
fosse a dependencia deste do respectivo senhor,
a sua personalidade existia.
Assim, quaesquer que fossem as restricções que
houvesse a respeito dos servos no systema judicial
desde o seculo VIII até o XII, essas
restricções
nem provam contra a personalidade objectiva
dos servos, nem importam á adscripção
ou não
adscripção. Sobre aquelle systema judicial e
sobre
o papel que os servos representavam nos pleitos
poderia accrescentar aqui algumas ponderações
que me parece mereceriam a attenção do sr.
Muñoz,
mas que me levariam mais longe do que
comportam as dimensões deste pequeno trabalho,
e que seriam sobejas para o fim que me proponho.
Deixando, pois, de parte questões agora
inuteis, venhamos a outros factos juridicos em
que o sr. Muñoz vê a morte da personalidade,
e que evidentemente não provam o que elle pretende,
antes em parte demonstram que do mais
ou menos incompleto dos direitos civis em individuos
desta ou daquella classe nunca se poderá
deduzir a escravidão, a não-personalidade, a
suppressão absoluta desses direitos.
«Competia ao dono sómente―diz o sr.
Muñoz―reclamar
[313]
a indemnisação do damno padecido
pelo servo como cousa de sua propriedade
[92].»
Os documentos, aliás numerosos, em
que esta affirmativa póde estribar-se não servem
de modo algum para dirimir a contenda;
porque para provarem a não-personalidade dos
servos e a sua não-adhesão á gleba
(suppondo
que o facto o provasse) cumpria mostrar que
elles se referiam aos servos originarios, e não
a escravos captivos. Admittindo, porêm, que
taes documentos se refiram a servos originarios,
essa concessão de nada servirá para revalidar a
opinião do sr. Muñoz. A
representação pelo senhor
não se limitava ao escravo, e nem mesmo
a este e ao servo de gleba: estendia-se a individuos
livres collocados na dependencia juridica
de alguem. Seguir-se-ha d'ahi que semelhantes
individuos eram cousas; não tinham personalidade?
O sr. Muñoz estabeleceu excellentemente no
seu opusculo
[93]
a natureza da maladía. O malado
era o homem livre, que se collocava n'uma especie
de vassalagem para com seu senhor adoptivo,
[314]
e esta especie de relações provei eu que
eram inteiramente pessoaes e independentes do
caracter de colono, situação em que o malado
podia estar em relação a outro senhor, bem como
mostrei a transmissão da maladia de paes a
filhos
[94].
A reparação, porêm, dos
damnos feitos
aos malados revertia ainda no seculo XI em beneficio
do patrono
[95].
Admittida a doutrina estabelecida
depois pelo sr. Muñoz, esta jurisprudencia
provaria contra elle proprio; provaria
que o malado, longe de ser, como tal, homem
livre, era apenas uma cousa, apenas uma propriedade
do
dominus.
Como os malados, os solarengos (solariegos)
eram colonos livres. Di-lo o sr. Muñoz, e com elle
dizem-no os monumentos. Todavia nós lemos
no Foro Velho de Castella
[96]:
«
Ninguem deve
pousar nem entrar por força em casa de nenhum
solarengo, e se alguem o fizer deve pagar
[315]
300 soldos ao senhor, de quem for o solar, e o
damno em dobro ao lavrador que recebeu o
aggravo».
Nos foraes do typo de Salamanca lemos
tambem: «
Se alguem matar o creado de
qualquer
vizinho, receba este a multa do homicidio.
O mesmo é applicavel ao seu hortelão, ao caseiro
que lhe paga quartos, ao seu moleiro e ao seu
solarengo[97]».
A simples relação de vassalagem e clientela
produzia ás vezes os mesmos effeitos. Assim,
em alguns desses foraes do typo de Salamanca
se estatue tambem que
se forem assassinados
homens que alguem tenha nas suas herdades,
ou que sejam seus vassalos pertencerá ao senhor
a multa do homicidio[98].
Eis aqui como ainda nos seculos XII e XIII o senhor
ou patrono havia a multa dos crimes commettidos
contra os seus dependentes, sem que
[316]
d'ahi se possa nem por sombras inferir que a dependencia
do cliente, do vassalo, do malado, do
solarengo ou do creado fosse a da escravidão.
Nada direi acerca de o sr. Muñoz qualificar a
calumnia,
a multa judicial,
de compensação
pecuniaria
imposta como pena ao matador. O sr.
Muñoz sabe perfeitamente que não era essa a
indole
de taes multas: foi uma phrase inexacta que
lhe escapou na rapidez da composição, como talvez
me terão escapado a mim outras analogas.
Mas o que não posso deixar de observar é uma
circumstancia que prova como os espiritos mais
elevados e de mais solida sciencia chegam a precipitar-se
quando subjugados por um preconceito.
Possuido da idéa da escravidão dos servos
originarios nos quatro primeiros seculos da monarchia
leonesa, o sr. Muñoz, ao passo que viu
dimanar a não-personalidade do servo do direito
do senhor ás multas dos crimes perpetrados contra
elle, não viu, buscando estribar-se em documentos,
que o primeiro que citava, tirado de um
chartulario do mosteiro de Cellanova, continha a
refutação peremptoria da sua doutrina. Este
documento
do anno 940 é uma carta ao mesmo
tempo de
agnição e de
incommuniação,
em que
Pelagio
incommunía os
bens que tinha em certas
[317]
aldeias a D. Ilduara e a seus filhos, por elle haver
com uns clientes seus espancado por tal modo
Froila,
junior de D. Ilduara, que o
espancado
morrera, e Pelagio, não podendo talvez pagar a
D. Ilduara a multa que lhe fora imposta, recorria
ao expediente de lhe
incommuniar
aquelles
bens
[99].
Mas Froila era um
junior,
colono da mais
humilde classe, porêm livre. O texto das cortes
de Leão de 1020 e a sua antiga versão em vulgar
não consentem que se interprete de outro
modo a palavra
junior: nisto o sr.
Muñoz está
perfeitamente de acôrdo comigo no seu commentario
áquelle celebre monumento legislativo
[100].
Como, pois, se invoca um diploma que formalmente
contradiz a doutrina que é destinado a
sustentar?
VII
Os consorcios entre individuos das classes servis
offereciam varias hypotheses juridicas: o servo
podia casar com uma serva do mesmo senhor,
ou com a de outro: ter um ou mais filhos ou nenhum:
o marido podia ir viver na residencia anterior
da mulher, ou a mulher na residencia anterior
do marido: materialmente, essas translações
de domicilio podiam occorrer com licença
do senhor ou sem ella. Estes diversos factos influiam
necessariamente nas relações do senhor e
do servo. Restam em Portugal e em Hespanha
bastantes documentos de que elles se davam, e
de que se buscavam arbitrios para solver as difficuldades
que d'ahi procediam. Achamos contractos,
inqueritos, memorias particulares, sentenças,
em que se previnem, se memoram, ou se
remedeiam as consequencias dessas varias hypotheses
em relação aos direitos dos senhores, e
em que, portanto, obtemos a certeza de ellas se
haverem dado desde o VIII até o XII seculo. Para
occorrer aos conflictos de interesses e de direitos,
[319]
vê-se dos mesmos documentos que se recorria
á divisão das familias. Em que consistia esta
divisão? O que é que se passava na realidade?
O desacôrdo entre mim e o sr. Muñoz já
se
vê que deve ser completo na apreciação
dos documentos
relativos a semelhante assumpto. Elle
vê a escravidão como
condição geral dos individuos
da classe servil do seculo VIII ao XII: eu
vejo-a só em relação aos captivos
sarracenos, e a
servidão da gleba em relação aos
homines de creatione,
aos
servi originales. N'uma nota do
meu
livro
[101]
mostrei, segundo creio, que os documentos
com que elle pretendera provar que os filhos
do servo e da serva de differentes senhores se
dividiam entre estes
[102]
se deviam entender de um
modo diverso. Na minha opinião, o que se dividia
eram os serviços pessoaes, e em certos casos
(como na incerteza de pertencer a um ou a
outro senhor o dominio da gleba habitada pelo
homem de creação) as
prestações agrarias. Em
relação ás glebas possuidas de paes a
filhos pelas
familias servas, a minha theoria era e é que
o
dominio e o
uso de qualquer desses predios se
[320]
moviam em duas espheras: que o
dominio, manifestado,
traduzido materialmente na percepção
das prestações agrarias e na exigencia de
serviços,
era a propriedade do senhor; constituia o
objecto de uma grande parte desses milhares de
contractos do seculo VIII ao XII que restam nos archivos
da Peninsula; que o que se vendia, doava,
escambava mais ordinariamente era o direito a
haver dos servos, dos
juniores, dos
malados,
dos solarengos, do homem de trabalho, em summa,
ingenuo ou não ingenuo, certas
prestações
agrarias e certos serviços pessoaes, que nas glebas
servis derivavam da duplicada servidão do
homem e da terra a que estava unido, e que na
herdade ou casal do peão
(
junior), na maladia,
no solar, derivavam de um contracto voluntario,
tacito ou expresso; que as prestações e os
serviços
do adscripto, representando a renda da terra
e a obrigação servil do individuo nella
incorporado,
eram duas cousas que facilmente podiam
distinguir-se quando por consorcios, ou por outra
qualquer eventualidade, o direito ás
prestações
da gleba e aos serviços do homem ou da familia
vinha a achar-se dividido entre dous proprietarios
(
domini) diversos; que, assim
distinctos,
tanto aquellas prestações, como aquelles
[321]
serviços podiam não só affastar-se,
unir-se de
novo, mudar de proprietario separadamente por
toda a especie de transmissão, mas até
fraccionar-se
em si mesmos ou accumular-se, sem que
por isso mudasse a condição do individuo que
usufruia o predio, quer como adscripto, quer
como colono livre.
Não sei se varios documentos que o sr. Muñoz
cita, logo no principio do seu opusculo
[103],
provam,
como elle pretende, que as palavras
servus,
homo,
creatio,
familia se applicavam
indistinctamente
aos servos, ás familias da mesma origem,
aos adscriptos, e não poucas vezes aos homens
livres, postoque sujeitos a alguma especie de vassalagem.
Não vem isso para esta questão. O que
sei é que mostram, como muitos outros, a verdade
da precedente theoria, por ser ella unicamente
que os explica. Assim, lemos alli que em 934
Eximina doou a aldeia ou granja de Malares ao
mosteiro de Sobrado com todos os seus bens e
pertenças,
e com todos os seus homens,
assim
servos como livres, que serviram na mesma aldeia
no tempo de meus paes e avós; lemos que
em 1016 o mesmo mosteiro fez um escambo
[322]
com Gutier Dominico dando este a aldeia de Luzario
com as suas dependencias e
com a sua
creação, servos e libertos e homens livres,
quantos
servem na mesma aldeia; vemos que na
doação
de certas aldeias ao mosteiro de S. Salvador,
em 932, se diz doarem-se
com a familia, libertos
e pessoas livres (que façam) ao dicto mosteiro
e aos dictos senhores o serviço que costumavam
fazer. Como explicar doações e
escambos
de pessoas livres e ainda de libertos conjunctamente
com os de servos e com os das aldeias
em que tantos estes como aquelles moravam, se
entendermos esses documentos ao pé da letra?
Não é evidente que se tracta das
prestações agrarias,
que pagavam tanto as glebas servis, como
os predios colonisados por homens livres, e dos
serviços que tanto os adscriptos como os ingenuos,
forçadamente uns e por contractos espontaneos
outros, eram obrigados a fazer? Não vemos,
até, no 1.º documento que os individuos de
ambas as categorias são, sem
distincção,
herdeiros,
uns nos predios colonisados, outros nos predios
de adscripção, porque os serviços que
delles
devem uns e outros vem de tempos remotos:
tam servis seu ingenuis qui ad ipsam villam
deservierunt
in vita aviorum et parentum meorum?
[323]
A hereditariedade do servo na gleba, consequencia
forçosa da adscripção, eis, como
já disse
n'outra parte, o grande passo dado na Peninsula,
desde o seculo VIII até o XII, pelo homem de
trabalho, pelo antigo escravo, para a liberdade.
Quando o artigo VII do concilio ou cortes de
Leão de 1020 diz:―
Ninguem
compre a herdade
do servo da igreja, do rei ou de alguem.
Quem a comprar perca-a e o que deu por
ella―faz-nos
recordar a doutrina parallela do codigo
wisigothico
[104].
Mas ha na lei de 1020 duas palavras
que assignalam um abysmo entre as duas
legislações:
haereditatem
servi, phrase que seria
monstruosa no seculo VII, mas que no XI indica
apenas um facto assás trivial para exigir providencias
que o regulem e limitem.
Haereditas
é nas actas daquella assembléa, como em geral
nos documentos das Hespanhas, o
hereditagium
de além dos Pirenéus; é o predio
possuido de
paes a filhos, o predio em que se succede por
herança. O servo ligado á gleba sabe que, quando
morrer, ficarão ahi os proprios descendentes;
porque tambem sabe que elles e a gleba mutuamente
se pertencem. Nas palavras
herdade
do
[324]
servo está resumida a
historia de uma transformação
social.
Que oppõe o sr. Muñoz a um facto que as leis,
os contractos, as decisões forenses conspiram
em mostrar não só como existente, mas tambem
como universal em relação a todos os servos
originarios ou homens de creação? Uma
difficuldade
practica. Suppõe que o servo de uma gleba
poderia ir casar com uma mulher de uma gleba
remota e de diverso senhor. Prestações agrarias
não as podia pagar, porque a terra era de
outro dono; serviços pessoaes não os podia
prestar,
pela distancia em que vivia. Assim seus filhos.
Dividindo-se estes materialmente, e levando
o senhor do pae metade delles, emquanto a
outra metade ficava na gleba materna, aquelles
podiam ter o destino que conviesse a seu dono
se eram escravos, ser repostos na gleba paterna
se fossem de raça adscripta. D'aqui a necessidade
de entender os documentos no seu sentido apparente,
e de crer que a praxe de se dividir a
prole dos servos de dífferentes senhores era a
geralmente seguida. Ora esse facto, equiparando
a classe servil aos bens semoventes e aos
moveis, destruia a personalidade dos individuos
de semelhante classe, escrava em tal hypothese,
[325]
situação que o opusculo do sr. Muñoz
tende a
provar ser a dos servos desde o VIII até o XII seculo.
Mas este argumento pécca pela sua propria
indole. Inferir que não existiu, ou pelo menos
que não foi geral e predominante certa
instituição,
de ter ella inconvenientes, que aliás não
existiriam
predominando uma instituição diversa ou
contraria, e concluir d'ahi que foi esta a que
existiu ou predominou, parece-me que seria um
pessimo raciocinio na historia de épochas e de
paizes altamente civilisados, quanto mais na de
eras semi-barbaras e de um paiz semi-barbaro.
Que havia em Oviedo e Leão desde o VIII seculo
até o XII no direito publico, na
administração,
no estado das pessoas, nas relações civis, que
fosse absoluto, uniforme, sem excepção na
practica?
Que condições sociaes havia que não
fossem
incompletas, antinomicas, obscuras sob um
ou sob outro aspecto? Que foi a idade média,
senão a infancia dolorosa e longa da
civilisação
moderna; que foi, senão uma serie de experiencias
e tentativas de organisação das
nações, que
surgiam do singular consorcio da sociedade romana,
corrupta e dissolvida, com as aggregações
quasi selvagens das hostes e das tribus germanicas,
[326]
mixto tornado ainda mais confuso na Peninsula
pelo influxo da cultura arabe? Que cousa
mais enredada, mais desharmonica, mais cheia
de soluções difficeis do que a vida social
d'então?
Sem duvida que certas leis supremas, que
regem a humanidade em qualquer situação que
ella se ache, actuavam então entre os povos, como
sempre, e as paixões impelliam os individuos
do mesmo modo e produziam effeitos identicos
ao que produzem em todos os tempos; mas
disto á perfeição, á
harmonia das instituições
vai uma distancia immensa.
Acceitando, porêm, a doutrina do sr. Muñoz
sobre a escravidão absoluta dos servos originarios
ficam, acaso, resolvidas as difficuldades de
applicação practica que elle vê na
existencia da
servidão de gleba? A hypothese que lembrou póde
modificar-se. Supponhamos que o escravo,
ido para outro logar e ahi casado com uma escrava
de diverso dono, tinha um filho só. Como se
dividiria materialmente esse individuo? Supponhamos
que tinha um filho e uma filha. Á luz a
que os escravos eram considerados, isto é, como
animaes de carga, como machinas de trabalho, como
cousas, emfim, o sexo dos individuos representava
forçosamente um valor diverso. A quem cabia
[327]
o filho? A quem a filha? Mais: supponhamos
a união infecunda. Conforme quer o sr. Muñoz,
o meio ordinario de reparar a perda do escravo
ou escrava, que pelo consorcio ia viver na gleba
de um senhor differente, era a repartição
material
dos filhos. Na falta destes, resignava-se, acaso,
o senhor do servo fugido a perder os serviços
delle, porque, não podendo dissolver-se o
matrimonio e vivendo a familia escrava a grande
distancia, não era possivel exigi-los?
A lei wisigothica, porêm, ainda em vigor na
monarchia néo-gothica, estatuia a respeito destes
consorcios, não devidamente consentidos, entre
servos de differentes donos uma regra clara e
exequivel. Aquelle dos dous senhores que se aproveitara
desse acto irregular, que se appropriara
por tal meio o servo ou a serva alheios, perdia
os dous conjuges e a respectiva prole em beneficio
do que fora espoliado
[105].
Se a situação dos
servos
originarios não tinha mudado, porque não se
applicava a lei? Que a divisão das familias, quer
como a entende o sr. Muñoz, quer como eu a entendo,
constituia já a jurisprudencia ordinaria do
seculo XI é uma cousa de que os documentos citados
[328]
por elle, e outros que poderia citar, não
permittem que se duvide. Porque se oblitterou a
lei wisigothica nesta parte? É evidentemente porque,
tendo mudado a situação dos individuos a que
ella era applicavel, devia buscar-se um meio de
reparar a offensa do direito sem tractar os servos
como bens semoventes.
O direito dos senhores das glebas, ás quaes
os servos pertenciam, sobre as prestações
agrarias
das mesmas glebas e aos serviços dos individuos
ou familias a ellas adscriptos não offereceria
realmente os inconvenientes practicos que
suscitaria o systema supposto pelo sr. Muñoz. Já
notei que este argumento é máu; mas é
certo
que nem esse máu argamento favorece a sua
opinião.
O servo, que se desaggregava da gleba sem
consentimento do senhor, podia ser reconduzido
violentamente a ella. Este era o principio. Mas se
elle lhe fizesse os serviços pessoaes que d'antes fazia,
parece que devia ser facil o chegar-se a uma
transacção, a um acôrdo. A gleba
lá ficava cultivada
pelo resto da familia adscripta e produzindo
as mesmas prestações agrarias, ao passo que
o individuo desempenhava os mesmos deveres
pessoaes. Suppondo que este fosse residir a grande
distancia (hypothese rarissima n'uma epocha
[329]
em que não existia a menor facilidade de
communicações)
esses serviços podiam ser transformados
em prestações em generos, ou em moeda. Se
o servo se casava e tinha filhos, metade dos serviços
da nova familia pertenciam ao seu antigo
senhor, obrigação herdada, que podia ser
satisfeita
do mesmo modo. Era um systema complicado,
e que daria, como dava, origem a mais de
um pleito entre senhor e senhor, mas que me parece
não offereceria hypotheses insoluveis como
a theoria adoptada pelo sr. Muñoz.
Na
noticia dos homens do mosteiro de
Cartavio
publicada na
Colleccion de
Fueros[106]
lê-se
in
Garrio, Maria Ectaz medium cum suis filiis mediis...
in Mirites... Savaricum integrum...
in Mintes... Petrum Vistiz integrum cum suis
filiis mediis, etc. Temos, pois, nos proprios
documentos
publicados pelo sr. Muñoz a prova de
que um individuo morador em certa granja ou
aldeia podia pertencer integralmente ou parcialmente
ao dono dessas glebas. É uma das hypotheses
que eu figurei, e que o sr. Muñoz nos não
diz como se resolveria no seu systema.
[107][330]
A interpretação que dou aos documentos que
se referem á divisão dos servos originarios, e
que eu supponho geralmente adscriptos, é tão
obvia; esses documentos provam tão pouco que
a divisão dos membros da familia serva se haja
forçosamente de entender como uma divisão
material;
era tão possivel moverem-se os individuos,
em relação ao dominio, n'uma esphera diversa
daquella em que se moviam as prestações agrarias
e os serviços pessoaes; a confusão da terra
com o homem, da obrigação com a pessoa a quem
ella imcumbia, era tão vulgar na linguagem juridica,
que o proprio sr. Muñoz adopta o meu systema
de interpretação a proposito de documentos
analogos nas expressões áquelles com que
pretende refutar o mesmo systema. Falando de
[331]
diplomas, em que se faz doação, venda, ou
permutação
de solares incluindo os solarengos,
accrescenta:
Obstam muito pouco alguns documentos
de venda, doação e troca feitas junctamente
com os solarengos. Não quer isto dizer
que se vendessem as pessoas; mas sim os tributos
e serviços que estas tinham obrigação
de prestar.
Se a linguagem dos documentos se póde tomar
como figurada em relação aos solarengos,
porque não se poderá entender do mesmo modo
em relação aos servos originarios ou homens
de creação? Como se pretende deduzir dessa
linguagem
um argumento para provar que estes
eram vendidos, escambados, ou doados como
cousas, como bens semoventes, e sem personalidade,
não se permittindo tirar igual inferencia
a respeito dos solarengos?
A questão do estado das classes servas na monarchia
néo-gothica comportava maiores desenvolvimentos.
Esses desenvolvimentos não cabem,
porêm, neste breve opusculo e na forma de
publicação
a que é destinado: por isso pararei aqui.
Permitta-me o sr. Muñoz y Romero que repita,
acabando, as expressões de sincero apreço pelo
seu alto merito litterario, e pelos seus esforços
para derramar luz nas trevas da nossa idade media.
[332]
O que ha de abnegação, de zelo pela sciencia,
de forças intellectuaes consummidas em desbravar
os desvios por onde o sr. Muñoz se embrenhou
só o conhece aquelle que nesse duro lavor
deixou passar os melhores dias da vida, sem
saber o que a mocidade tem de gozos, a idade
viril de ambições, e a velhice de vaidades, e
cuja
recompensa unica será escrever-se-lhe na campa:
Aqui dorme um homem que conquistou para a
grande mestra do futuro, para a historia, algumas
importantes verdades.
INDICE
A batalha de Ourique
I |
Eu e o
Clero |
|
3 |
II |
Considerações
pacificas |
|
35 |
III |
Solemnia Verba
1.ª |
|
72 |
IV |
Solemnia Verba
2. |
|
99 |
V |
A Sciencia
arabico-academica |
|
185 |
Do estado das classes servas na
Peninsula
Notas:
[1]
Sermo De Convers. S. Paul.
[2]
Epistolar. Epist. 152.
[3]
Mem. de D. Fr. Caetano Brandão, T. II, p. 411.
[4]
Concil. Trident. Sess. 25, Decr. de Purgat.
[5]
Concil. Colon I, tit. 6 c. 25.
[6]
Van-Espen, Jus Eccles. P. 1 tit. 22 cap. 10.
[7]
Gesch. der Italienisch. Staat. IV B., 4 kap. § 6.
[8]
Vol. 1 Nota 3 p. 466 e segg.
[9]
S. P. Damiani Epistol. ad Sum. Pontif. L. 1 Epist.
16.
[10]
Greg. VII Epistolar. Liv. 8 Epist. 21.
[11]
De Considerat. L. 3 c. 3.
[12]
Ibid. Liv. 4 c. 4.
[13]
Um grande numero dessas passagens e cantigas,
relativas aos seculos XI, XII e XIII, acham-se colligidas
na Historia dos Hohenstaufen de Raumer, Vol. 6, pag.
178 e segg.
[14]
Scriptores Rer. Francicar., T. XVII p. 558.
[15]
Art de Verif. les Dates, vol. 1 pag. 299.
[16]
Matth. Paris, p. mihi 607 col. 2.
[17]
Chronic. pag. mihi 287.
[18]
Def. de la Declar. I. 6.
[19]
D. Hilar. Pictav., In Psalm. 53.
[20]
D. Gregor., Expos. in Job L. 8 c. 6, L. 13 c. 4.
[21]
Recordo-me de ler em a
Nação um
communicado de
Coimbra, assignado por um parocho, em que se me dizia
que, se as assaduras da inquisição tinham
acabado, cá estavam
os bispos. O bom do homem ainda espera que os
bispos de Portugal possam queimar gente. É uma doce
illusão como qualquer outra.
[22]
«ne ab uberiori auctorum copia alliciamur, sed
potiùs
ab ipsorum merito et
gravitate;
multotiès enim fit,
ut
gravis, periti atque sinceri
scriptoris auctoritas, etc.»
Que diria um desses furiosos que crêm que o vocabolario
dos prostibulos póde supprir os rudimentos da sciencia,
e que me condemnou como ignorante por falar em
gravidade da historia em
relação, não ao estylo, mas sim
á materia, se ouvisse o venerando Mabillon falar na
gravidade
do historiador tambem em relação á
essencia e
não á forma, e isso duas vezes n'um unico
paragrapho!!
Chamava-lhe ignorantissimo. Oh clero português, clero
português!
[23]
«Elle
ne craint que
de n'être pas connue»: Fleury diz
que, não a igreja, mas o proprio christianismo
teme. Em
Portugal a theologia das tabernas entende-o d'outro modo.
É uma consolação ser impio e herege
com o virtuoso prior
de Argenteuil. Pobre igreja portuguesa.
[24]
Todas as pessoas mediocremente instruidas sabem o que
quer dizer
theocratico; mas o
demente que escreveu estas
blasphemias não sabe português, quanto mais grego.
Fez
uma phrase ridicula para introduzir ahi um vocabulo que
os ignorantes não entendessem e que portanto admirassem.
[25]
Accentuado por causa das freiras que dizem missa.
A ignorancia das freiras é a razão capital da
accentuação
nos livros rituaes, segundo o digno sacerdote que, por
vingança,
acceitou das
capellas o pio mister
de me injuriar e
calumniar sanctamente.
[26]
Nova Insistencia, etc., pag. 34.
[27]
Demonstração pag. 34.―Insistencia pag. 10.
[28]
Poucos annos antes, os embaixadores de D. Dinis tinham
offerecido inutilmente ao pontifice uns artigos com
o mesmo intuito, e contendo em substancia o mesmo que os
de Pedro Escacho. Ahi nem uma palavra se diz sobre a
acclamação em Ourique, em que tambem
não fala nenhum
dos chronicons coevos. Assim, a invenção da
historia da
acclamação póde fixar-se no principio
do seculo XIV, tendo
talvez em parte dado motivo a ella esta questão da
desmembração
da ordem de Sanctiago, negocio que foi assaz
rudioso e importante. Veja-se a Historia de Portugal, Vol. I,
pag. 489 (Nota XVIII).
[29]
Estes chronicons estão publicados nos
Portugaliae
Monumenta Historica, Vol. 1, p. 26.
[30]
Tanto este como os dez paragraphos precedentes foram
supprimidos nas edições avulsas das
Solemnia Verba.
Era uma digressão que pouco servia para rebater as
opiniões
adversas, e que entretanto affrouxava o cerrado da
argumentação.
[31]
Os Cuidados Litterarios de Cenaculo, a Memoria de
frei Joaquim de Sancto Agostinho sobre os codices
d'Alcobaça,
o Elucidario de Viterbo, as Observações de J. P.
Ribeiro publicaram-se proximamente pelo mesmo tempo.
Viterbo, frei Joaquim de Sancto Agostinho, Ribeiro eram
innovadores perigosos
então, como eu o sou hoje. Cenaculo
era um bispo erudito. Quantas palestras litterarias,
quantas contendas oraes precederiam a publicação
daquelles
escriptos oppostos!
[32]
«à l'heure que je commence a dicter ce
present escrit
je suis en la soixante sexieme année de ma vie.»
Petitot
fá-lo nascido em 1426. Falleceu no 1.º de fevereiro
de 1502, segundo se deprehende da sua inscripção
sepulchral,
com 76 annos d'idade.
[33]
D'aqui vinha por certo o titulo de
conde
palatino de
que usava Vasco de Lucena, titulo que tanto tem feito
scismar os nossos antiquarios.
[34]
Vejam-se as provas indisputaveis d'isto em Ribeiro,
Observações de Diplomatica, pag. 79 e seg.
[35]
Et cette opinion je tiens de plusieures notables gens
portugalois qui ont esté de ma congnoissance.
[36]
Pina, Chron. de D. João II, c. 15.
[37]
Bulla:
Ut saluti 5 febr. 13.º
Sixti IV.
[38]
Preafatae ecclesiae, a qua regiae dignitatis culmen
accepisti, cuique annuum censum debes: Ibid.
[39]
Bulla:
Venerabilis frater: 6
febr. 13.º Sixti IV.
[40]
Carta de D. Alvaro de Bragança escripta de Castella
a D. João II. (Ms. da Biblioth. R.)
[41]
Talvez seja gente de mais. Mas deixe v.. passar;
porque isto era já estylo peninsular naquella epocha.
[42]
Jorn. de Coimbra, 1813, Abril, p. 310.
[43]
Memor. do R. Archivo, pag. 59.
[44]
Chancell. d'Aff. II. (M. 12 de For. Ant. N.º 3).
[45]
Veja-se o alvará de D. Manuel, de 1502, no Liv. dos
Privileg. de Sancta Cruz fl. 2, o doc. de 1458 a fl. 157
do mesmo Liv., o do L. 5 da Estremadura fl. 116 v. no
Arch. Nac., etc.
[46]
Chron. dos Coneg. Regr., L. 9, c. 29.
[47]
Prodrom. ad refutat. Alcorani
passim.
[48]
Uber die Länderverwaltung unter dem Khalifate
(Berlim 1835) Schaefer, Gesch. Span. 3 Th. S. 145.
[49]
O
digno academico refere-se
evidentemente á traducção
de Moura; porque nem o commum dos leitores, que elle
convida para lerem esses capitulos, entendem o arabe, nem
o original tem capitulos, como se deprehende do prologo
de Moura, e se vê das citações do texto
arabe feitas pelo
sr. Gayangos nas suas notas á versão inglesa de
Al-Makkari.
[50]
Nesta classe, como em todas, ha excepções
respeitaveis:
falo em geral.
[51]
Dominac. de los Arab., P. 3 in fine.
[52]
Al-Khatib, Bibl. apud Casiri Bibl. Arab., T. 2, p. 216
e segg.
[53]
Abu-l-Feda, Annales Moslemici, T. 3, p. 359.
[54]
Al-Makkari (versão de Gayangos), Liv. 7 c. 5 e segg.
L. 8 c. 1 e 2. Veja-se tambem a taboa chronologica a p.
89 dos Append. do 2 vol., e os extractos no livro
Kitabu-l-iktifá
(Append. C. ad fin.). O reinado de Abu-Is'hák,
sitiado em Marrocos pelos almohades, foi apenas nominal.
[55]
Chron. Gothor. ad aer. 1125-1155.
[56]
Chron. Conimbric, ad aer. 1155.
[57]
Roder. Tolet. Histor. Arabum, cap. 49.
[58]
Assaleh, versão de Moura, c. 43, 44, 45.
[59]
Ibid. c. 40.
[60]
Conde, P. 3, c. 33.
[61]
Casiri, T. 2, p. 218, col. 2.
[62]
España Sagr., 21, 373.
[63]
O nome mais geral nos auctores arabes é
Lamtuna;
mas Ibn-Khaldun (Gayangos, vol. 1, p. 408 nota
a) chama-lhe
Lamtah e Leão Africano
(Casiri, vol. 2, p. 219)
Lemta.
[64]
A pag. 22 do opusculo diz-se que escrever
emir é
erro do vulgo dos traductores em vez de
amir (o caso é
serio), e a pag. 11 diz-se que em vez de
emir-el-muminin
eu deveria escrever
emir
el-muminina. Em que ficamos?
Em
emir ou em
amir? Quanto a
muminina, Gayangos,
Casiri, etc. escrevem sempre
muminin.
[65]
Gayang. vers. d'Al-Makkari, Vol. 2, p. 386
[66]
Abulfeda, Annal. Mosl., T. 2, p. 471.
[67]
Versão francesa de Pellissier et Rémusat p.
192. Ibn-Khalddun
denomina frequentemente khalifas os imperadores
almohades. (Gayangos, Vol. 2, App. D.)
[68]
Assaleh. c. 45. Neste capitulo fala-se muitas vezes no
califado e no
califa Abdelmumen.
[69]
Não é só a chronica de Affonso
VII que refere a
queda de Aurelia: os Annaes Toledanos referem-na igualmente.
[70]
O Karttás (titulo da historia d'Abdel-halim),
é propriamente,
segundo o testimunho de Haji-Khalfah, e conforme
o que se lê em diversos exemplares da obra,
escripto por Ibn-Abi-Zara, que viveu no seculo XIII. Ab-del-halim
parece ter sido um copista, ou talvez um abbreviador.
Veja-se a nota do sr. Gayangos ao L. 8, c. 2 de
Al-Makkari.
[71]
Assaleh―vers. de Moura, c. 40 p. 182.
[72]
Chronica Adef. Imper. Praef. et § 64.
[73]
Sigo a paginação do opusculo, tirado
á parte depois
d'impresso na
Revista de
Ambos-Mundos. Um exemplar
delle que possuo, devo-o á urbanidade e benevolencia do
sr. Muñoz, que teve a bondade de m'o remetter.
[74]
Em documentos do seculo XIII vemos ainda a
designação
de servos applicada aos escravos mouros. N'um
testamento de 1232 são legados ao mosteiro
d'Alcobaça
sarracenos et sarracenas servos et
servas. Doc. de Alcobaça
na Collecç. Especial, Gav. 81 na Torre do Tombo.
[75]
Hist. de Port., T. 3, p. 313 da 3.ª edic.
[76]
Hist. de Port., T. 3.º, p. 255 (nota 4) 274 &c.
[77]
Esp. Sagr., T. 40, Append. 19.
[78]
Doc. de Moreira na Torre do Tombo, Collecç. Especial,
G. 78.
[79]
Por exemplo, o 1.º bispo de Coimbra depois da
restauração,
Paterno, que, sendo bispo de Tortosa e vindo
por embaixador dos Beni-Huds de Saragoça a Fernando-magno,
foi alliciado pelo alvasir Sesnando para acceitar o
episcopado de Coimbra, o que fez alguns annos depois.
Qui suprafatus episcopus (diz o
documento do Livro Preto
da Sé de Coimbra que refere o facto)
eo
tempore Tortuosane
Urbis sedem tenebat, sed propter societatem paganorumofficium et
ordinem suum minimè adimplere valebat.
[80]
N'uma doação de 1083 á igreja de
Vouséla (Livro
Preto f. 144) mencionam-se entre outras alfaias
una
casula
tiraz et una dalmadiga tiraz. O
tiraz era um estofo
precioso de fabrica sarracena, de que usavam as pessoas
principaes entre os mussulmanos, onde se liam bordadas
orações do culto islamitico e
sentenças de koran. Quando
os sacerdotes da igreja de Arcozelo á qual tinham pertencido
aquelles paramentos, ou os da de Vouséla, á qual
se
doaram, celebrassem, revestidos com elles, os officios divinos,
os assistentes que não ignorassem a leitura do arabe
poderiam ir misturando as preces da igreja com as do
islamismo, e lendo as sentenças do koran, emquanto
os
celebrantes repetiam
os textos do evangelho.
[81]
Gothorum ordinem... tam in ecclesia... quam in
palatio... statuit: Chron. Albeld § 58.
[82]
Martim Moniz (genro do conde Sesnando e seu successor
no governo de Coimbra) doa perpetuamente a João
Gosendes os bens na villa de S. Martinho
que ibi
obtinuit
Cidel Pelagis in autondo de consule domno Sesnando.
(Livro
Preto da Sé de Coimbra f...) Aqui
atondo significa
serviço (
no serviço do conde
Sesnando) ou retribuição
por serviço, mas temporaria, por isso que os bens se
doam depois hereditariamente a outro.
Documento hoje publicado nos
Portugaliæ
Monumenta
Historica, Diplomata et Chartæ, Pars. 1.º
N.º 770.
[83]
Pag. 7.
[84]
Pag. 12 e 13.
[85]
surda aure cum inimicis summi Dei amicitias conligamus,
et placentes eis nostrae fidei derogamus―Quotidie
opprobriis et mille contumeliorum fascibus obrupti,
persecutionem nos dicimus non habere―Christianos contra
fidei suae socios, pro regis gratia et pro vendibilibus
muneribus et defensione gentilium praeliantes, non maledicimus
nec detestamus, sed religiosos pro vero Deo certantes
anathemate percutimus et infamamus―Nonne ipsi
qui videbantur columnae, qui putabantur ecclesiae petrae...
nullo cogente... Dei martyres infamaverunt? Nonne
pastores Christi, doctores ecclesiae, episcopi, abbates,
presbyteres, proceres et magnates haereticos eos esse
publicè
clamaverunt?―Dùm enim circumcisionem ob improperantium
ignominiam devitandam... cum dolore
etiam non medio corporis exercemus―Et dùm eorum versibus
et fabellis mille suis delectamus, eisque inservire,
vel ipsis nequissimis obsecundare etiam premio emimus...
ex inlicito servitio et execrando ministerio abundantiores
opes congregantes, fulgores, odores, vestimentorumque,
sive opum diversarum opulentiam, in longa tempora
nobis filiisque nostris atque nepotibus praevidentes,―ob
honores saeculi fratres cum crimine regibus impiis
accusamus,.. inimicis summi Dei ad occidendum gregem
Domini gladium revelationis porrigimus, ducatumque
eorum et ministerium ad ipsum facinus exercendum pecuniis
emimus.―Nonne omnes juvenes christiani, vultu
decori, linguae disserti, habitu gestuque conspicui, gentilitia
eruditione praeclari, arabico eloquio sublimati, volumina
chaldaeorum avidissimè tractant, intentissimè
legunt,
ardentissimè disserunt?―linguam suam nesciunt christiani,
et linguam propriam non advertunt latini, ita ut
omni Christi collegio vix inveniatur unus in milleno hominum
numero, qui salutatorias fratri possit rationabiliter
dirigere litteras, et reperitur absque numero multiplex
turba qui eruditè chaldaicas verborum explicet pompas.
Alvar. Cordub. Indicul. Lumin.
passim.
[86]
ille dixit quomodo fuit suo avolo Ezerag de Condeixa,
et quando filarunt mauros Colimbria fuit ille Ezerag
ad Farfon ibn Abdella et fecit se mauro et petibit XXX.ª
mauros de arragaza et metivit illos in matos et dixit ad
illos christianos de illas villas exite gente benedicta quia
jam pace filavi cum mauros et exibant de illos matos et
populabant illas villas et exiebant illos mauros de illos
matos et levarunt eos ad Sanctaren et venundabant eos et
fecerunt in illos VI haretas de argento et inderenzarunt
illos ad Cordova cum carta de Farfon et cum isto ganato,
et petivit illos molinos de Forma et alias villas multas et
donavit illos. Almanzor:
Lib. Testamentor. f. 76
v.
[87]
Na freguesia de S. Martinho, aldeia de Valloura, districto
de Aguiar de Pena, havia 3 casaes, cujos moradores,
além de outros onus, tinham o seguinte:
et
vadunt in
mandatum ad Legionem, ut sciatur per ipsos quid facit
rex legionensis: Inquirições de
1220: Liv. 5 de D. Diniz
f. 118 v.
[88]
Pag. 19 e 20.
[89]
Pag. 124 e 153.
[90]
Pag. 12.
[91]
La Russie, Lettre X.
[92]
Pag. 15.
[93]
Pag. 44 e segg.
[94]
Hist. de Port., T. 4, pag. 336 e 482.
[95]
Doação de Diogo Olidiz a Tructesindo
Gutierriz da
igreja de S. Marina: «damus ad vobis illa pro plagas et
feridas malas que cemus (
sic) ad
vestros malados, et non
abuimus unde illas pectare:» Doc. original do mosteiro
de Moreira de 1075 no Arch. Nacional.
[96]
Liv. 1, Tit. 7, l. 2.
[97]
Qui conductarium alienum occiderit dominus ejus
accipiat inde homicidium. Similiter de suo ortolano et
de suo quartario et de suo molendinario et de suo solarengo.
[98]
Et homo de Nomam qui suos homines habuerit in
suis hereditatibus, aut sui vassali fuerint, et aliquis illum
mactaverit, suus senior colligat inde homicidium: For.
de Numão de 1130.
[99]
...... peccato impediente battivimus vestro junior,
nomine Froila, cum alios meos galiasianes... et pervenit
ipse Froila de ipsa badtedura ad mortem, et pro ipso homicidium
abui vobis ad dare in judicato quinque boves,
et pro ipsis quinque boves incommunio vobis pro medio
&. Est. de las Person., pag. 15.
[100]
Collecc. de Fuer. Municip., pag. 130 e seg.
[101]
Hist. de Port., Vol. 3., Nota final XVI.
[102]
Collecc. de Fuer. Municip., pag. 126.
[103]
Pag. 2.
[104]
Liv. 5, tit. 4, l. 13.
[105]
Liv. 2, tit. 4, l. 5.
[106]
Pag. 160
[107]
A confusão, na phrase, entre o colono e o predio,
tomados
um pelo outro, confusão que sobretudo se deduz
claramente das singulares expressões
homem
inteiro,
meio
homem, etc. apparece ainda ás vezes nos
nossos monumentos
do seculo XIII. Nas Inquirições da terra de
Faria, feitas
naquella epocha, lê-se, por exemplo: «S. Leocadia
de Pedrafurada:
homines de ista collacione solebant pectare vocem
et calumniam, sed modo non pectant nisi quinque homines
et medium qui dant annuatim singulas gallinas, et
medius homo dat mediam gallinam: et
ista casalia... dant
vocem et calumniam et singulas gallinas et duos, duos solidos,
tribus vicibus in pedida, sed
medium
casale medium
forum facit. Inquir. d'Affons. III, L. 7, f. 14 v.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
* correcções feitas com base na errata do
próprio livro.
Aspas foram adicionadas nos locais onde deveriam existir
(
#pág. 50:
delles.»
Para)
O número da nota de rodapé
#55
(
#pág.
202) encontra-se omitido na obra, tendo sido acrescentado
neste e-book.
Variantes da palavra "mussulmano" foram mantidas de acordo com o
original.