The Project Gutenberg EBook of Fialho d'Almeida, by Visconde de Vila Moura This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Fialho d'Almeida Author: Visconde de Vila Moura Illustrator: António Carneiro Release Date: November 12, 2010 [EBook #34288] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FIALHO D'ALMEIDA *** Produced by Mike Silva
VISCONDE
DE
VILLA-MOURA
FIALHO D'ALMEIDA
(COM UM DESENHO DE ANTONIO CARNEIRO)
EDIÇÃO DA «RENASCENÇA PORTUGUESA»
Direitos reservados
FIALHO D'ALMEIDA
DO AUCTOR:
A Moral na Religião e na Arte, 1906.
A Vida Mental Portuguesa, 1909.
Vida Litteraria e Politica, 1911.
Nova Sapho (romance), 1912.
Camillo Inédito annotado, 1913.
CONTOS E NOVELLAS:
I—Doentes da Belleza, 1913.
II—Bohemios, 1914.
Antonio Nobre, 1915.
Grandes de Portugal (em collaboração com Antonio Carneiro), 1916.
Fialho d'Almeida, 1916.
VISCONDE DE VILLA-MOURA
Fialho d'Almeida
EDIÇÃO DA
«RENASCENÇA PORTUGUESA»
PORTO
Fui ali quando das minhas jornadas pelo Baixo Alemtejo, em excursão de curioso pelo mais da sua gente e paizagem.
A primeira vez que visitei a residencia de Fialho, que não é já hoje a casita de taipa que os seus construiram, mas uma das melhores da terriola,—foi por uma tarde de agosto, uma daquellas tardes de{10} rescaldo que erguem, á volta de nós, serpentes de fogo, e lhe ensinaram, a elle, a sua pintura deslumbrante, á maneira de Rubens, em que a propria côr queima!
Não foi sem um certo alvoroço, confesso, que bati ao portão da antiga casa do Escriptor.
Veio alguem abri-lo, deixando a descoberto, a meio de uma segunda porta fronteira, um homem alto, vestido de negro, de aspecto recolhido, quasi ecclesiastico, e que, num instante, me encarou e desappareceu, abandonando-me no jardim, ao sol, com o meu remorso de indiscreto.
Desapparecera tambem o creado, ou quem quer que fosse, que me tinha introduzido no pateo.
Esperei instantes, e, como não visse alguem, dirigi-me para a entrada da primeira casa, que logo vi ser a cozinha, encarando, pela segunda vez, aquella mesma{11} figura quasi sombra, que depois soube que era o irmão de Fialho.
Disse alto o que queria:—falar ao dono da casa e pedir-lhe o favor de me deixar ver a antiga residencia do Artista.
Sahiu a attender-me uma mulher nova, figura doente e franzina, que logo se deu a explicar-me que era ella a actual dona da antiga casa do Escriptor, de quem era parenta, vivendo ali com o marido e seu primo, o irmão de Fialho d'Almeida, que, já ao tempo, mais familiarizado comigo, me fitava serenamente.
Dei-me tambem a vê-lo melhor.
Não me lembro da edade que me disse ter; quarenta e sete annos podia talvez apparentar.
—Que era um temperamento impressionavel, a espaços dado a medos e hysterias, sempre melancholico, informou ainda a sua parenta.{12}
Deparou-me, pois, o acaso, nem mais nem menos, do que um novo documento a instruir a historia do genio do Artista, na pessoa do irmão, que me dei a ver como uma figura-symbolo de familia, em que, não sei porque, presenti a elegia viva da Arte mais exquisita e morbida de Fialho, qualquer coisa da neurilidade extravagante dos seus doridos, aquella que animou os seus personagens tão suavemente fataes e androgynos, toda a belleza maravilhosa, e não raro inconsequente, da sua obra de apontamentos, onde tão extranhamente exuberam os noctambulos e toda a sorte de mysteriosos!
Corrêra, de certo, enferma a adolescencia do irmão de Fialho, que viera até ali, aos quarenta e sete annos, ou mais que podia ter, porventura ainda innocente, como por milagre da sua mesma frouxidão de alma, a que, a cada momento,{13} sua prima alludia, ao referir-me, perto delle, as sinistras manhans das suas torturas de neuropatha.
Entretanto que a dona da Casa me convidava a passar á primeira sala, chegou o marido della, tambem primo de Fialho, que, a meu pedido, mandara chamar, e que logo se dispoz a acompanhar-me, apontando-me, por miudo, o mobiliario e antigos aposentos do Artista.
Fôra este seu parente a quem Fialho recorrera, quando, na vespera da morte, veio a Villa de Frades, ordenar os papeis do seu gabinete, como quem se decide a dispor tudo, antes de seguir...
—Quando chegou deu pela falta da chave do escriptorio, me explicou o snr. José Fialho. E apontando uma porta:—tentou ainda abri-lo, quebrando o vidro daquella bandeira; por fim, resolveu-se a chamar-me, e, como é cá da minha arte{14} este serviço, pois sou carpinteiro, immediatamente arranjei tudo; e, elle entrou, demorando-se aqui até á hora da partida.
Insisti na supposição, que mais se radicou em mim, depois da minha derradeira estada no Alemtejo, do provavel suicidio de Fialho, confirmando-me o seu parente que, de facto, se tinha aventurado tal suspeita, logo apoz a sua morte, mas que os medicos que, por ultimo, o haviam soccorrido, tinham negado o facto, e, elle, por si, coisa alguma sabia dizer a tal respeito...
Entretanto, encarou-me mysteriosamente, quando lhe disse que alguem da familia Carapeto, que lhe assistira á morte, na Cuba, tinha como certo o seu envenenamento; que, na vespera, elle tratara do arranjo definitivo de tudo, e nomeadamente do seu testamento, lavrado numa das dependencias da Tabacaria Fonseca, onde costumava passar parte das noites; que{15} soubera, ainda na Cuba, dos seus aborrecimentos de doente, afóra outras razões que a minha admiração tinha reunido para reconstituir o drama duvidoso do seu desenlace.
Mas deixêmos este caso ao tempo, que é quem definitivamente aclara tudo, e voltemos á sua casa de Villa de Frades.
Como acima informei, actualmente pouco deve ella ter da construcção primitivamente gizada pelo pae do Escriptor, antigo mestre regio da freguezia.
É sabido que Fialho casara com uma senhora de fortuna, de quem tambem ficou herdeiro, pelo que tanto aquella Casa, como a de Cuba, sua residencia predilecta, foram por elle reformadas, com todas as melhorias em uso nas boas construcções da região.
Mas não se infira dahi que se trate de{16} edificios luxuosos; são, pelo contrario, casas sem interesse, e, ainda, no ponto de vista artistico, valem tão sómente pelo caracter que lhes advém do facto de obedecerem ao desenho do mais das habitações daquellas paragens,—quasi todas ellas tijoladas, cozinhas brancas de telha van, eirados sobre a planicie, e os jardins tão intimos das casas e pateos, á maneira arabe, como que continuando-se das salas.
Villa de Frades, pequena povoação do concelho da Vidigueira, com um censo de dois mil habitantes proximamente, tem um certo relevo, em contraste com o resto da formidavel planura sul-alemtejana, e, o que é mais, foi uma das poucas terras, se não a unica do districto, que encontrei verde, no agosto em que a visitei. Tudo o mais, ao largo, era desolação e secca.
FIALHO D'ALMEIDA
(Desenho de Antonio Carneiro).
Para lá da matriz, logo ao sahir do povoado, corriam as obras das escolas que o{17} Escriptor garantira com o seu testamento, e que, confesso, pouco me detiveram, dado o meu aborrecimento por construcções do seu desenho, entre gaiolas e penitenciarias, com destino á futura infancia de Villa de Frades, de mais, ao tempo, sobremaneira antipathicas, como todos os edificios por concluir.
O que devéras me prendeu, foi a chamada antiga Casa da Aula, pela qual perguntei ao primo de Fialho e immediatamente saiu a apontar-me.
É fronteira á Egreja, e um edificio tosco, sobre o comprido, áquelle tempo escrupulosamente caiado, de aspecto simples e o ar abstracto de um templo abandonado.
Era quasi noite. A matriz bateu não sei que horas, com aquella solemnidade triste, que é do dobrar dos sinos de todas as villas...
Dei-me a imaginar a infancia de Fialho,{18} partilhando daquella melancholia, pelas grandes tardes morrinhentas de Villa de Frades, com todo o primeiro mundo da sua inicial e subconsciente comparticipação da Vida...
Ali, de facto, naquella humillissima escola, cursara elle as primeiras lettras, de par das primeiras contrariedades, ao lado do pae, o mestre escola da terra, «aquelle typo de santo austero, n'uma alma de sonhador, sempre calado», explica o Artista, annos depois.
E, em verdade, tanto como a casa onde nasceu, mais ainda, talvez, se me prendeu da alma aquella capellita das suas primeiras canseiras.
Ahi deveria, porventura, estabelecer-se o Museu-Fialho, uma vez que uma dezena de amigos, refiro-me sobretudo aos seus amigos de leitura, se concertasse para juntar em tal logar, com os seus livros, tudo o{19} que pudesse considerar-se como reliquia da sua obra ou memoria.
Da casa de Fialho, em Villa de Frades, hoje quasi vazia do peregrino espirito que a encheu, lembrarei especialmente o quarto do Artista, onde, por acaso, quedam algumas arcas com revistas que excluiu da sua livraria, destinada á Bibliotheca de Lisboa, legando-as a um amigo que ainda as não levantou, e, nas paredes, duas telas da sua auctoria.
Propositadamente trazemos a publico a noticia, que cremos em primeira hora, daquellas telas, ambas más, de figuras religiosas, de tintas empastadas e peior desenho, pelo interesse de documentar o seu esforço de plastico, que o fez pintor, em segredo, a elle, o critico impertinente dos maiores pintores do seu paiz!
Esta, porventura, tambem a nota mais interessante que me foi dado conhecer por{20} informação da Familia-Fialho, e me fez lembrar o caso de Hugo, identicamente desenhista e, mais ainda, entalhador, e cuja obra, no genero, decora, ao presente, a sua antiga residencia, hoje Museu, na Place des Vosges.
Finalmente, resta-me apontar, o trecho fronteiro á casa, systema absorto de outeiros verde-suaves, que se me depararam conhecidos, como se, de sempre, os houvesse visitado.
E, de facto, era quasi assim. Conhecia-os, havia muito, de algumas das paginas mais luxuriantes do Escriptor, onde elle, o magnifico colorista, a espaços se deu a pintá-los daquella tinta intima que lhe veio, pelo tempo fóra, das suas memorias e impressões de infante.
Despeço-me, á pressa, da sympathica terriola, como quem foge do tumulto de{21} lembranças que me vem da casa, daquelles outeiros, dos primos de Fialho, do Irmão, irreprehensivelmente estatual no seu papel de symbolo rigoroso; e parece-me receber das mãos deste fios da tragedia, ainda viva, das primeiras desfortunas do Artista, as que lhe advieram da quasi miseria da sua segunda infancia, e cuja recordação o obrigava talvez, mais tarde, a fugir dali, (onde viveu sempre o menos tempo) por morphinizar-se do aborrecimento em commum por terras de mais convivio.
A Casa da Cuba, que em geral preferia, quando estava no Alemtejo, é um edificio melhor que o de Villa de Frades, tambem terreo e de compartimentos amplos.
Nesta casa fui encontrar enferma, na mesma alcova em que o Artista agonisara, a sua antiga legataria,—uma senhora de{22} edade da Familia Carapeto, a quem devo o offerecimento dos retratos de Fialho que illustram a presente noticia e alguns dos seus esclarecimentos.
Pouco me detive nesta sua antiga morada, e o tempo que ali quedei foi no terraço, velho miradouro de gosto mourisco, donde se abrange, numa extensão de leguas, o mais das terras seccas que circumdam a Comarca.
Cuba é das povoações mais incaracteristicas e sem interesse que encontrei no Baixo Alemtejo. Lembra, pela monotonia do seu casario reverberante, certas povoações de Hespanha, da Mancha, sobretudo, e que, em vez de quebrarem a aridez das chans, servem como que a memorá-las, tão irmans da estepe parecem crescer da terra.
Avalio, com tristeza, do viver do Escriptor na villa, quando, obrigado pelas mil coisas desagradaveis da sua vida, em{23} que parece não ter figurado pouco a intriga politica da ultima hora,—se recolheu aos seus telheiros.
Fez o acaso que me defrontasse com o proprietario da Tabacaria, em que passava uma parte das noites, a conversar, por distrahir-se e illudir a monotonia que o cercava.
Deu-se-me logo o snr. Fonseca, não afianço o appellido, como tendo sido muito da intimidade de Fialho, propondo-se reproduzir factos e retalhos seus de conversa que, é claro, lhe sahiam pouco authenticos...
—Conheceu-o pessoalmente? me perguntou elle, a meio das suas tiradas.
E, á minha negativa:
—Pois olhe que era melhor ouvi-lo, do que lê-lo!
Os livros valem pouco, accrescentou, em comparação com o que elle aqui nos contava...{24}
E logo continuou a palavrear ácerca do Artista, emquanto eu me explicava a sua vida final, o suicidio provavel, os caixões de revistas que vira em Villa de Frades, e com as quaes elle, por ultimo, quasi obrigado a viver ali, bem por certo, de volta a casa, iria feriar-se daquellas noites mal conversadas com quem, por falta de ouvidos, não podia ouvi-lo,—a elle que fora em Lisboa, o primeiro de um cenáculo de que haviam feito parte, entre outros, artistas como Ramalho e Bordallo, ao lado de curiosos, ás vezes, valha a verdade, bem inferiores ao sympathico negociante, que, ao menos, herdara do seu convivio a devoção supersticiosa da sua memoria!
Como quer que seja, pois que Fialho passou em Cuba os ultimos annos da sua vida, importa-me naturalmente escrever da{25} pequena cabeça da comarca o pouco que della apontei de más lembranças.
Como acima referi, não tem ella, para mim, a bem dizer, outro interesse alem do que lhe advem do facto de ter sido o derradeiro exilio do Escriptor, que se dava a disfarçá-lo, administrando directamente as suas herdades.
Especie de villa improvisada, sem paizagem que pudesse entreter, por momentos, o espirito, aliaz exigentissimo do Artista; sem edificios de valor; com repartições inferiores; avenidas lugubres, no geito da Alameda, sobranceira ao Caminho de ferro, e sombria como uma rua de cemiterio; habitações mesquinhas, servidas de ruas mal calçadas; a Estação, a distancia, quasi que fugida da terra que a fizeram servir—tal é, de facto, Cuba, cujo casario abre sobre a campina formidavel do sul como uma aguarella infima!{26}
E, entretanto, foi ali que Fialho quiz ficar, e mandou que lhe erigissem o mausoleu, que visitei na ultima tarde da minha estada em Cuba, depois de dolorosos transes para arrancar duma adega o chaveiro do Cemiterio.
Ah! como Fialho tinha razão, ao informar-nos no conto—A Ruiva:—«Ha uma coisa peior que um cão damnado: é um coveiro bebado!»
Comtudo, ao lado dum tal coveiro segui eu até ao cemiterio de Cuba, em que, aliaz, coisa alguma de notavel fui encontrar.
Todos os cemiterios, a meu ver, se parecem; o da Cuba vale o Père-Lachaise, como o de Montmartre ou Montparnasse, por nomear os trez mais notaveis de França (onde os homens passam por mais reconhecidos)—como os de todas as terras, ainda os das muito civilizadas e extremas.
Imagine-se um cercado alto, com o ar{27} de casa, á qual o vento arrebatasse o telhado, arruamentos de capellas e arcas com lettras de pedra, uma especie de convento de ossos, onde todos os dias ha camas de terra revolvidas e cruzes novas;—a frieza dos brancos e solemnes livros de marmore, das flores, ali casuaes e tranzidas, dos esguios arvoredos, como de todo um pequeno mundo de symbolos;—uma lage-obstaculo em cada campa, e, como a fechar mais os que jazem, gradis, linhas de cimento juntando as cantarias, mais um complicado e diabolico systema de cremalheiras e cadeados!
Eis o cemiterio de Cuba, cujo desenho é, de facto, o de todas as grandes ou pequenas cidades de mortos, dos quaes os vivos se vão desquitando, mais ainda do que cobrindo-os daquelles obstaculos,—quasi esquecendo-os para ali, onde perpetuamente terão de ficar, afastados de tudo,{28} onde jámais chegará o proprio carinho selvagem dos temporaes, sós, entre os silencios negros da sua noite immensa, velados dos elementos, a par das esculpturas somnambulas dos tumulos, tambem de si indifferentes, abstractas, e, como por acaso, ali dispostas, ainda por erguerem (paredes-meias dos cinerarios) o formal e glacido tributo da sua agonia fria e lapidar!
Ora, isto me ia eu recordando, ao seguir, mais o coveiro, pelo cemiterio de Cuba, do mesmo passo que, sem querer, lembrava certas passagens da Obra de Fialho, que, de momento, quasi me falavam, e, eu sentia, como que batidas de vento, ao meu ouvido...
Como no caso das grandes paginas de presagio da sua monographia—Manuel, começára de anoitecer, e os sinos tocavam!
Ainda mais, lembro-me de ouvir, ao{29} longe, nitidamente, distinctamente, representando-se-me como um relampago vermelho á meia treva, o uivar daquelle cão, que, quando, em taes paginas, o Artista se dá a dialogar com o Coveiro a probabilidade de Manuel ser enterrado vivo, como toda a sua afflicção pela farça material dos tumulos—como que o chama á realidade desse mundo que fica para alem do proprio pezadelo hystero-epiletico da sua tortura de superemotivo, e lhe queda, a dobrar, na alma, o timbre vivo e sinistro da hora horrivel que já não conta, e, eu, de momento senti ali, perto delle, bater tragicamente, lugubremente, como um echo do seu sentido, ainda doloroso, embora já distante, vago, erradio...
Porque, para mim, esse typo de hysterico e fragmentado, contradictorio e presciente que figurou no Manuel, é fundamentalmente elle proprio, desdobrando-se{30} por escrever a sua mesma «duplicidade cerebral» e gritar contra a desgraça do outro, «o que morrera», e agora, eu sabia ali, sem que ao menos pudesse precisar onde!
Onde?
Eis o que o coveiro, depois que o instei, se deu a contar-me, moendo as palavras, que, aliaz, lhe sahiam cavas e aos gorgolões, como se me falasse ainda da adega á qual, minutos antes, o fôra arrancar.
Afinal pouco tem que ver a futura Casaforte dos ossos de Fialho,—no começo da primeira rua do cemiterio, e a poucos passos do portão, como do logar em que nos encontravamos.
Imagine-se uma especie de cofre em marmore branco, sem arestas, escrupulosamente polido e goivado á volta, quasi sem ornatos, uma porta grossa cruzada da fecharia,—todo elle de um desenho facil, e, por sobre a cupula, ainda de pedra, dois{31} gatos de bronze, dormindo abraçados o velho somno dos symbolos! Eis tudo...
Este, repetimos, o mausoleu que lhe servirá em breve.
Porque provisoriamente, e a avaliar das
informações que apontei, o Escriptor, descança
ainda, de momento, ao fim do cemiterio,
perto da ultima parede, num pedaço
de chão mal tijolado e de emprestimo,
em sepultura rasa...{32}
{33}
Assim, começaremos por esclarecer que Fialho d'Almeida era filho de um homem da Beira e de uma mulher do Alemtejo, por melhor caracterizar algumas das suas extranhezas e contrastes, como o seu conflicto em materia de assumptos e realizações artisticas, que, antes de tudo, parecia advir-lhe do ser encontro de duas raças.
Da mesma maneira que cumpre ter presente{36} a influencia da provincia em que nasceu, e que, na infancia, a edade impressionavel por excellencia, lhe deu aquelle amor pela tinta mais propria, ou seja a que os seus olhos receberam directamente da paizagem; como a sua grande intimidade com a natureza, com quem aprendeu a exprimir-se, e que tão fundamente foi penetrada pelo seu genio.
De facto, nenhum elemento mais cioso da transmissão do caracter do que a terra. O que Fialho prova, á saciedade, a par dos nossos maiores impressionistas.
Desenvolvemos noutro logar[1] a indole da zona mais meridional do Alemtejo, onde se incluem Cuba e a pequena villa em que nasceu Fialho.
Resulta daquelle estudo um campo ethnico á parte na geographia intima de{37} Portugal região embaraçada da herança arabe, que semelhantemente se vê na cultura, nos seus barros e azulejos, nas suas casas, como nas manifestações mais simples da vida vulgar dos seus habitantes.
Ora Fialho, que ali passou parte da infancia jámais destruirá a recordação do primeiro espectaculo natural que feriu a sua retina de colorista, e, depois, pela vida fóra, mais se lhe foi insinuando pela mesma fatalidade de sangue e nascimento que á sua terra o prendia. É isto, apesar da herança de tristeza que tambem desta lhe provinha, e a que se refere, ainda doridamente, annos depois da sua estada ali, no capitulo autobiographico do Á Esquina.
De facto, é sempre presente, na sua obra, aquelle primeiro campo de observações. Ahi ha a ver a intriga das passagens mais violentas das suas narrativas, as tintas das suas combinações de painelista, os{38} dialogos e personagens brutaes da sua tragedia mais popular; e, para alem, ainda, da paizagem, como das figuras, a razão culminante do seu genio de origem, em que migra o sonho luxurioso, mais que dum artista e dum povo,—duma civilização perdida!
Importa insistir: a herança arabe se não vingou entre nós, como em Hespanha, a ponto de que, ainda hoje, quasi tudo o que tem de grande se não foi della, nella se filia—nem por isso deixou de influir no genio de Portugal, onde logrou a sua invasão pelo Sul, e, onde, repetimos, se conserva evidente.
É ali viva, manifesta em todas as coisas, e, sobretudo, nos homens, a quem as mesmas condições da terra naturalmente defenderam das fusões com outras raças.
Ora, assentes estes factos, e tendo presente os ensinamentos que do seu conhecimento{39} derivam, chegamos logicamente a entender melhor o caso, na apparencia extranho, das manifestações, por vezes distantes e tão intensivamente artisticas do Sul, e mais, em especial, de certos capitulos da obra de Fialho d'Almeida.
Em verdade, eu não encontro para explicar-me o exuberante exquisito de algumas paginas do Artista, mais do que o segredo das colorações, como dos labyrinthicos e caprichosos desenhos de certos e admiraveis exemplares da civilização arabe na Peninsula, dentre os quaes me veem á lembrança, quasi sem o querer, os velhos monumentos da Andaluzia, tambem, porventura, da melhor intimidade de Fialho, e que o deviam ser de todos os artistas, muito particularmente dos de Portugal e Hespanha.
E, de facto, qual o artista, verdadeiramente curioso de civilizações mortas,{40} que não percorreu ainda Alhambra,—a Alhambra monumental dos grandes Paços de Luz, redosos e filigranados, cujos marchetes e esmaltes se nos defrontam, mais do que como obra paciente e custosissima, quasi dolorosos á nossa admiração, pela mesma regularidade do seu maravilhoso, tão distantemente extranho!
Pois paga a pena a sua visita, sobretudo á luz de certas horas, quando, pelo estio, a tarde transfigura os monumentos, quasi os move!—e Alhambra inteira exulta á claridade frouxa dos seus crepusculos.
Como, de egual sorte, surprehende o desenho interior dos phantasticos paços, ainda pelo que abrigam de inaudito, no espectaculo das suas casas-retabulos, aliaz tão intimamente caprichosas, como se fossem ampliações das covas naturaes que, no Monte Sacro, lhes são fronteiras.{41}
É que ninguem como o povo arabe teve o segredo dos recantos, soube estudar e praticar as sombras, quasi medir a penumbra das arcarias; da mesma forma que tambem ninguem mais, como elle, conseguiu dominar pontos de vista, aperceber horizontes, toda a natureza, moldurá-la dos seus monumentos, por vezes verdadeiros filtros de luz,—viver, sentir a côr, e, o que é mais, orchestrá-la na sua obra, de uma fina grandeza sem egual.
Dahi tambem o não se saber que mais admirar dos encantados paços, bem de molde a servirem a luxuria religiosa de tão lendario povo, se o labyrinthico desenho das suas paredes, como dos seus tectos e azulejos, se o mesmo diabolismo e imaginativa do seu alçado!
Ora, derivando dos monumentos attribuidos ao genio arabe, á razão de sangue{42} que flue na gente do sul da Peninsula, chegamos facilmente á averiguação do grande valor da tutela semita no nosso movimento tradicional, mercê daquella herança—tutela sobremaneira documentada, no mais do nosso lyrismo, como, em regra, em toda a nossa obra artistica.
E, assim, nos encontramos, muito naturalmente com o caso de Fialho d'Almeida.
De facto, dentre os grandes plasticos da Peninsula, quem mais que o grande Artista conseguiu ainda praticar um semelhante ou equivalente embrenhado de esmaltes e de linhas, o segredo da luz e da côr, identica riqueza no processo de exprimir Arte, toda aquella ancia de vida luxuriosa que ergue o mais da obra arabe, e, em que domina sempre, ao lado do culto do individuo, considerado na sua religiosidade como no seu luxo,—a preoccupação alacre do supremo culto da Natureza!{43}
E, entretanto, não foi, ainda, sob um tal ponto de vista que principalmente nos demos a estuda-lo.
A verdade é que fiamos pouco do rigorismo dos methodos geralmente considerados como mais logicos, por mais naturalistas, os que tudo explicam pela razão exclusiva da procedencia e do meio—quando se trata de comprehender emotivos da estatura de Fialho, cuja obra precisa, a nosso entender, principalmente ser considerada sem opinião previa, ou seja a toda a luz dos seus livros, e onde ha, a par das admiraveis fatalidades das suas taras de artista do Sul, o conhecimento, os commentarios, como a presença ou suggestões de tudo o que nesse rodopio de Arte, que foi a segunda metade do outro seculo, podia considerar-se de mais interessante ou notavel.
Mas caminhemos vagarosamente. Em{44} primeiro logar, convem ter presente que ha nos recursos de Fialho d'Almeida um grande numero de facetas e a tal ponto imprevistas e admiraveis, que, a elle proprio, o offuscaram, perturbando-o, e impedindo até que realizasse o que para todo o auctor deve ser o primeiro fim—a obra de conjuncto, que, exactamente, resulta do ajustamento ou systematização de todo o seu trabalho, de molde a levantar a figura do Artista se elle é um temperamento, ou o objectivo da sua Arte, quando elle tenha de desapparecer, em sacrificio á sua mais propria missão.
O tempo é ainda um material ao dispor dos artistas, embora, quanto a nós, o peior dos materiaes.
Fialho devotou-se-lhe, talvez, excessivamente. Pois que tinha auscultado a miseria do povo, no seu instincto, por desventura apurado nos primeiros annos da sua vida{45} de acaso, não raro deixou falar o coração, para alem da sua mesma canseira de Artista.
Quantas vezes elle, que foi um espirito alto e pairante, se deu a desmedir o grito dos que a propria miseria, confinada da cobardia congenita das desgraças populares, havia tornado quasi aphonos, e que ainda, por uma razão de indole, eternizou vivo e plebeu,—tal como lhe sahiu, ao primeiro golpe, nas paginas formidaveis dos Gatos!
Foi isto um delicto de Arte, seria um bem?
Foi um facto. E este facto vale o melhor da sua obra de pamphletario que, antes de qualquer outra, convem ter presente.
Ora, neste rumo de trabalhos, seguiu elle, naturalmente, o exemplo de todos os pamphletarios;—isto é, deu-se a compor paginas do material commum, o que vale{46} dizer de aspirações e casos, não raro menos claros de que vulgares!
Dahi partiu, e logicamente foi até ao fim: a servir a propria plebe politica—a peior das plebes!
Houve tempo em que não socegou. Numa canseira pertinaz, diaria, quasi tomou por seu dever perseguir a vida constituida, onde quer que ella surgisse ou se se lhe afigurasse.
Ora, este foi, tambem, porventura, o seu mal, assente como está que, em materia de vida conjuncta, peior do que qualquer instituição crapulosa ou gasta, é a sua substituição á doida, á sorte, como infelizmente, entre nós, elle a ajudou a preparar!
Acabo de percorrer os Gatos, onde reuniu o melhor da sua Arte de pamphletario.{47}
Do primeiro ao ultimo opusculo, que serie de estudos, de commentarios, de almas e acontecimentos tratados pelo seu riso!
Tudo o que elle tinha de imprevisto, como tudo o que da inferioridade de uns poude reunir e editar para servir a inferioridade dos outros, está ali, nos seis volumes que hoje formam a Obra, e ficará como documento dos seus violentos e extremadissimos recursos.
Pois que foi a civilização quem categorisou o riso, transfundindo-o, filtrando-o até á ironia, uma das grandes forças da demolição moderna,—importa ainda considerar o riso de Fialho.
A ironia de Fialho, se assim podemos escrever daquella sua indole—era ainda, como não podia deixar de ser, um caso mais do seu temperamento de violento, aggravado do tempo e meio em que, por acaso, reagiu.{48}
Assim, nada tem de commum, por exemplo, com Eça e Camillo, por falar dos humoristas mais discutidos da lida contemporanea.
Camillo era a graça a flux, com os seus laivos de razão intima, muito para alem dos castellos politico-litterarios de momento, golfando risos ao acaso da sua natural interpretação sinistra de Humanidade.
Eça deu-se scepticamente a lapidar costumes e figuras infimas, no geral de uma banalidade exhaustiva, á conta do prazer do seu riso frio, que logo se fez moda, como tudo o que nos vinha de fóra, por seu intermedio.
É ver o successo das Cartas de Fradique Mendes, «um Acacio a serio», informa Fialho, e cuja prosa relata o apontoado symetrico das notas dum civilizado, ali paciente e cuidadosamente estylizadas pelo seu sentido de mundano.{49}
FIALHO D'ALMEIDA
Ora, nada de premeditado encontramos em Fialho, e nomeadamente nas notações dos Gatos, por cujo entrecho natural é que comecemos o exame á sua obra.
A razão desta preferencia incide, é claro, na mesma indole dos folhetos que reuniu debaixo daquelle titulo, e, onde, de facto, encontramos, a despeito dos seus propositos, o Fialho definitivo, quer sob o ponto de vista do estylo e inauditismo de Arte, quer ainda pela acção demolidora que tanto foi de seu empenho e naquella obra rajou desesperadamente, a paginas plenas, como em nenhum outro dos seus trabalhos.{50}
[1] Terras do Sul.
O primeiro folheto da serie tem a data de Agosto de 1889, e inaugura por um capitulo, pleno de paixão artistica, com seus esmaltes de irreverencia, e a que elle chamou:—Bric-á-bracomania, como cultura e como doença.
No desenvolvimento da curiosa these encontra-se naturalmente com o caso do testamento de D. Fernando. Este caso foi um dos mais antipathicos e escandalosos do tempo, pois que accendeu nos Paços,{54} com o odio da rainha pela condessa d'Edla, uma questão de familia burgueza, em que se discutiu tudo, desde a imaginada loucura lucida do principe, ao tempo das suas ultimas disposições, até ao valor e direito dos bibelots e quadros do seu espolio!
Veio a questão para a rua, e, ainda dessa vez, rua e Paço se deram as mãos, na roda de insultos dirigidos á viuva de D. Fernando, sem attenção pela memoria deste principe, cuja probidade foi tratada sem sombra, não diremos já de justiça, mas de delicadeza.
Em nome dos republicanos dirigia, no Seculo, a campanha Rodrigues de Freitas, valha a verdade, serenamente. Por parte do Paço, e vestindo, mais uma vez, a innocente pelle do povo—. escrevia Emygdio Navarro, tratando cynicamente D. Fernando, em quem diagnosticara dois scirrhos—o da cara, que o levara á morte, e o do coração,{55} que elle, Emygdio Navarro, se propunha sarjar publicamente, fazendo-lhe a historia na praça das Novidades, e isto, affirmava, por dignificar a memoria do Rei!
Fialho que, de facto, era um delicado, e, por accidente, se fizera politico, e, bem por certo, lhe repugnava toda aquella griteira, tratou tambem do caso moderadamente, chegando a lembrar até a arbitragem para resolver os direitos do espolio controvertido.
Ainda, por egual forma, trata a figura de D. Fernando, cujo perfil surprehende, sobretudo, á luz da sua aventura de amoroso e homem de Arte.
Assim visto, não podia elle deixar de lhe ser sympathico, e dahi tambem o seu elogio, mal disfarçado, como as attitudes em que o focou, e donde mal sobresahe o vulto, ao tempo tão acintosamente discutido, do Rei!{56}
Quer dizer, em verdade, é ali presente a homenagem do Artista ao Artista, para lá de todo o convencionalismo critico, como de toda a exigencia publica.
Começa o segundo opusculo por um capitulo dedicado ao violoncellista Sergio, e que, neste proposito a que nos obrigamos, de mero indiciador das suas passagens de mais interesse e que melhor o mostram—mal podemos tratar condignamente.
Registe-se, no entretanto, o extremado capitulo, como um dos mais notaveis da sua obra, e, alem de tudo, a forma como elle, sempre tão presente nos seus livros, sabia, embora excepcionalmente, apagar-se, quando as circumstancias lhe conferiam Arte que um tal sacrificio valesse.
É o caso do violoncellista. Para no-lo descrever, Fialho quasi se apaga no café-concerto{57} da Mouraria, em que o apresenta, e, onde, de facto, elle costumava ir, ás noites, transfigurando-o da sua Arte, cuja referencia é, ainda, como que a sombra resoante da alma tão extranhamente regressiva do Musico.
Paginas adiante, é tambem com paixão e valor equivalentes que, a proposito das exequias de D. Luiz, trata a figura da Rainha.
D. Maria Pia resalta do seu exame como uma resurreição dos grandes dramas reaes de Shakespeare, ou seja como um verdadeiro prodigio de alma, genialmente estatuada da sua tristeza de soberana-viuva, equilibrando-se no orgulho profissional da sua creação de princeza de raça, acaso abordada ás praias portuguezas.
Inegualavelmente soberba, de facto, a{58} sua maneira de tratar a lendaria Rainha que surprehende nos funeraes do Rei como um alabastro solemne!
Assim a tinha sonhado, tanto como o Paço, a propria Rua que, entretanto, lhe perdoava tudo, ainda os mais custosos dispendios, tomando-a, mais do que como Rainha—como uma figura de luxo, especie de marmore vivo, por boa fatalidade, a soldo no Museu Real das Necessidades.
Tambem, por seu lado, ella cumpria escrupulosamente o papel a que, por sua mesma prosapia, se compromettera (fôra cheia de protocolo a sua escriptura de esponsaes)—e dahi o vê-la toda a gente mais do que cerimoniosa, theatral, quasi memoria, seguindo sempre, de par da sua lenda, de que ninguem, nem ainda os mais ousados, tentaram algum dia separá-la!
Quando endoideceu (a natureza é logica; que outra doença devia segui-la?){59} logo os jornaes vieram contar as parabolas da sua loucura, nos Paços de Cintra; corriam historias de toilettes que jámais usara; e, por fim, enterneceu a sua retirada de Portugal, quando, na Ericeira partiu, tão magestosa e alheadamente, como annos antes, tinha chegado...
A differença dos dois espectaculos, estava, unicamente, no tempo, que daquelle passo final da sua vida tinha urdido mais uma tragedia!
Chegara solemnissima, recebida por toda a ordem de festas e alegrias officiaes; retirou, á opportunidade da primeira revolução, como uma rainha usada, que já não serve, e segue, á pressa, devolvida, ao paiz de origem.
Despedimo-nos com pezar destas paginas, que tão fundamente, por si, bastariam{60} a vincar a alma do Artista, acaso nellas mal casada á sua preoccupação de pamphletario,—para derivar a outras que, na sua obra, dão o contraste da violencia, talvez, mais inopportuna e abrupta, que ainda instigou critica portugueza!
Reportamo-nos ao caso grosseiro das suas diatribes contra Guilherme de Azevedo que justiçou depois de morto, e declara analysar sobre uma pedra de autopsia, ainda sem piedade por si, como pelos leitores, e quando aquelle, já longe, havia ganho, ha muito, o esquecimento publico!
Na sua quasi diabolica sanha de deprimir vê-o primeiramente no seu logar de escrivão de fazenda em Santarem, onde o surprehende a passear os seus aleijões, de par das suas canseiras de lyrico e apaixonado ridiculo.
Depois examina-lhe, publicamente, os defeitos, as suas fraquezas e purgueiras de{61} estrumoso, como a sua obra, na parte mais rebuscada, indo até pracear-lhe os papeis unhados pela lida do chronista!
Por fim, como que convida o publico a assistir-lhe á morte, em Pariz, numa casa de saude!
E, para o caso de que o publico falte, redige elle mesmo a informação da agonia do Artista, passada, esclarece, entre sujidades!
Ora eu não sei de outra hora tão extranhamente infeliz para um escriptor!
Do mais dos artistas contemporaneos, e, especialmente, dos pintores, é sabido o que escreveu de desalentador para elles que já, contra si, tinham tudo:—a rua, o mundo politico, o meio pobre em que trabalhavam, o paiz de origem, e toda a serie{62} de prejuizos que, para mais, Fialho conhecia intimamente como ninguem!
Comtudo, nem Columbano escapou a esta sua impertinencia, por vezes de uma irritação doente, quasi atrabiliaria e descomposta, á conta da sua faina de exigir do mundo plastico, mais do que representações da natureza, verdadeiras telas vivas, porventura, a capricho, illuminadas das suas mesmas composições escriptas.
Dahi a sua injustiça para com o grande pintor que, no seu juizo facil da primeira hora, qualificou de mero artista hesitante, como que estagnado, «perdido, na monotonia cadaverica dos seus quadros de imitação!»
E, de identica maneira, tratava os outros.
Não lhe era facil fugir á fatalidade do seu genio, sempre em duvida, e que mascarava{63} de desdens; para mais acossado pela circumstancia de viver, o mais do tempo, em Lisboa, onde os Artistas teem ateliers paredes-meias, e a Arte anda sempre ao de cima das sympathias duma tal Cidade, ainda, como nenhuma outra, de entre as nossas, aberta a intimidades, mettediça, e pretenciosamente futil!
Dahi tambem a sua maneira, quasi mesquinha, de tratar a Politica e, em especial, os politicos.
A Carlos Lobo d'Avila, por exemplo, processa-o como degenerado.
Lopo Vaz é, para elle, um mero «preboste regio». A Barjona toma-o como um conselheiro de negocios, anecdotico e sujo. Hintze é uma especie de empresario de Portugal—feitoria-ingleza, figura dependente e quasi irresponsavel ás ordens da dynastia, e assim os outros.
A paixão do pamphletario céga-o a{64} qualquer vislumbre de justiça para com politicos e assim tambem para com o Rei, que, ainda á maneira popular, considerava como figura enkystada no corpo governativo da Nacionalidade.
Dahi tambem o atacá-lo systematicamente, afeiando-o de todos os delictos, em que não deixou de figurar a pecha das mais ruins ingratidões, as já classicas ingratidões dos reis!
Quer dizer, consciente ou inconscientemente, foi, como todos os pamphletarios, um Orpheu da Rua, pelo menos até se sentir sacudido por ella.
E fossem lá insinuar ao seu aferro pelas chamadas reivindicações democraticas, que atraz da ingratidão dos reis, está sempre a ingratidão dos povos; que a França, por exemplo, politicamente radical, no curso de dezenas de annos, conserva no Père Lachaise a ossada de Balzac, ao passo que{65} carreou, ha muito, para o Pantheon Carnot e outros menores!
De que lhe serviria, de momento, o aviso? O que sempre enche a obra do pamphletario é a philosophia facil do odio ao Constituido, onde quer que elle se encontre. Emquanto ha reis, a culpa de tudo o que existe de mau, ou por tal passa, é dos reis; como é dos padres emquanto ha padres; dos validos emquanto ha validos; em ultimo logar, dos parlamentos; de tudo, emfim, o que o povo, em nome dos seus direitos, nunca até hoje definidos, organiza e desorganiza, menos a seu talante, do que ao acaso de uma esperança ou das gerações por apparecer!
E, comtudo, não falta nunca quem se dê a orchestrar a sua voz, por mais vaga, ou dissonante que ella seja.
É preciso que o escriptor tenha, mais do que talento, uma sensibilidade propria{66} e escrupulosamente cerrada ao gosto publico, melhor ainda, religiosamente isenta, para que possa afastar, com desprezo, o applauso geral, repulsando, para longe, o titulo de dirigente, ou seja o de encantador das multidões, pelo qual, principalmente, o maior numero dos apostolos se bate.
E, em todo o caso, como aquella isenção é rara!
Ainda os de melhor fé e que se julgam de posse duma missão necessaria, raro chegam, por si, a conhecer do erro de excesso, em materia de reverencia e culto pelo publico!
O que, a miudo, se dá, é a inutilidade da sua faina, e isto pelo mesmo uso daquelle prestigio, ainda sujeito, como tudo, á acção do tempo que sómente, não consome as obras de sentido definitivo.
Este foi tambem o caso de Fialho que durante annos destruiu, sem treguas, confundindo,{67} propositadamente, os principios e os homens, batendo, de toda a maneira, um systema que, sobretudo, foi erro não termos reformado dentro das nossas melhores tradições; e que elle, Fialho, como os demais contemporaneos escriptores politicos, reputaram fóra de toda a razão nacional.
É claro que deste erro se confessou mais tarde repeso—ou tenha sido quando as suas palavras offereciam menor echo—ao ver que, para os logares mais responsaveis, quando o antigo regime cahiu, o paiz, democratizado á força, não encontrou, de momento, para substituir o corpo official expulso, mais do que gente ousada, que mental e moralmente valia menos do que a anterior, que de si já estava muito abaixo da geração que a havia antecedido, e cuja herança nem sequer soubera defender!{68}
É de justiça lembrar que tambem Fialho foi dos primeiros a corrigir os impetos dos pretendentes que, de todos os lados, surgiram com a sua conta de serviços; embora o facto valha unicamente a justificar a sua boa fé.
Era tarde. Á sombra das suas paginas, como das de Ramalho, Junqueiro, Eça e Bordallo, por lembrar os maiores, se tinham elles organizado de vez, entretanto que a alvorada do regime abria logicamente por um banquete!
Para mais, quasi todos os demolidores, companheiros de Fialho, tinham desapparecido. Ao acaso do tempo ficara, unicamente, Ramalho—velho, surdo a louvores como a insultos, fechado na sua cella de valetudinario, em Lisboa, de facto uma especie de santo de nicho do bairro alto, a quem já, a bem dizer, ninguem recorria, de cujos milagres ninguem mais queria saber...{69}
Bordallo morrera, providencialmente, antes do bôdo.
Alem de que, quem se atreveria a continuar-lhe a obra? Onde o artista da sua coragem, á altura de um jornal nos moldes do Antonio Maria? Onde o redactor graphico do seu estylo, e, mais ainda, onde as personalidades-motivos a enchê-lo?
Como quer que seja, Fialho, leal ao que, de começo, se impuzera, tentou ainda o ultimo esforço, contra o muito do que succedera e lhe repugnava tanto como á consciencia, á sua sensibilidade, acuradissima, de Artista.
Era tarde, repetimos. Já ninguem o ouvia, demais que elle proprio tinha perdido o vigor das suas primeiras investidas!
E, entretanto, o Artista crescera ainda, depois das novas provações, ou antes tinha-se{70} accrescentado daquella razão de amargura que a vida empresta sempre, cedo ou tarde, aos temperamentos da sua impressionabilidade, e que nelle deu a transfiguração notavel de um ousio artistico sem egual, e de que é, sobretudo, exemplo essa obra trasbordante da sua derradeira colheita—«Barbear e Pentear».
Este livro, sublinhado pela explicação amarga—Jornal dum vagabundo, que aliaz emprega noutras obras, attinge, effectivamente, o maximo da sua perfeição exquisita.
É ali que verdadeiramente elle trata a mulher-fada, tão de sua predilecção, e de quem se dá a referir a toilete, á luz dos móres recursos, escrevendo da sua razão de vestir, como arte maxima; das joias que{71} redundam do seu imaginar em preciosos esmaltes vivos, especie de insectos inertes, quasi pedras mornas por não arrepiarem a carne-seda das animadas estatuas que são chamadas a guarnecer;—de tudo, emfim, o que do abraço caprichoso da arte e da natureza elle poude aventurar de imprevisto na ideação dum espectaculo para embriagar sensibilidades!
E, de facto, chega ás maiores extranhezas de gosto na inventiva daquelle livro, e especialmente no seu capitulo:—Juizo do Anno, quer pelo turbilhão de côr que delle entorna, quer, sobretudo, pelo seu empenho de phantasia e nuance ali expressos, como ainda pela circumstancia de considerar a mulher o que, porventura, virá um dia a ser, um caso de perfeição sómente, quando a natureza mais accordada com o homem, sahir de sua attitude esphingica, e isto ainda por{72} viver com elle uma futura vida luxuriosa, sem medos e sem pecados...
As Pasquinadas e o Á Esquina subordinam-se á mesma rubrica:—Jornal dum vagabundo.
Nesta ultima obra ha de tudo:—paginas notaveis e criticas de menos folgo.
São do melhor interesse as que abrem o livro e titulou:—Autobiographia; e devem ter-se como supremas aquellas em que nos descreve os Ceifeiros, como as que referem as suas impressões da Atalaya e Exposição-Bordallo.
Tambem este livro inclue umas notas a que deu a epigraphe:—Problema taurino, e que, já agora, glosaremos, embora de fugida.
Neste capitulo lança o Escriptor á balha a idéa do toureio a serio nas praças{73} portuguezas, o que vale informar:—a opinião da morte do touro, com os demais episodios sangrentos dos curros hespanhoes.
Ora a proposta, se foi sincera, destoa, a nosso ver, da sagacidade do critico, acaso perturbada pela paixão do aficionado e homem do sul, paredes-meias da Hespanha e seus costumes.
O portuguez habituou-se facilmente á morte pela associação politica; aceita, como de direito, o assassinato por adulterio, e toda a ordem de morte por um delicto sectarista ou passional; o que elle jámais decretará é a morte por uma razão de Arte, e isto pelo mesmo facto de não comprehender outro sacrificio que não seja para sagrar ou colher interesse.
Ora, para elle, o toureio, ainda como exposição de vida e educação de raça, não tem interesse.{74}
As Pasquinadas reunem uma serie de artigos de impressão rapida—instantaneos dos acontecimentos e pessoas de occasião.
Entretanto, como se tenha dado o caso de ter sido obrigado a tratar de figuras da categoria de Camillo e Sarah Bernhardt, este livro inclue, a seu proposito, paginas que, bem por certo, ficarão ainda como documentos da sua desproporcionada maneira de considerar os grandes artistas!
Insurgia-se elle, a espaços, contra as lettras, friamente rigorosas, dos modelos mais classicos e academicos.
E, de facto, importava-lhe sahir não só das velhas disposições, como ainda dos recursos em uso, por inteiro alheios ao genio, mais que revolucionario, desmedido, daquelles dois vultos, que, por isso mesmo, tratou, não só fóra de todos os moldes, mas, mais ainda, fóra do tempo.{75}
A Lisboa Galante, outro livro de voga, comprehende, em geral, episodios e aspectos de cidade, por entre apontamentos de casos minimos, por communs, a todos os logares de accumulação.
Entretanto, ainda ahi Fialho incluiu phantasias e situações admiraveis, haja em vista o conto—Amor de velhos; e, sobretudo, a Chavena da China, porcellanas da sua maior delicadeza e inventiva.
Passaremos á pressa sobre o livro—Saibam quantos... não só porque literariamente o não accrescenta, como pela circumstancia de nelle ter reunido cartas e artigos politicos que valem, meramente, como actos de sua contrição.
Archivemos, no emtanto, do capitulo—A morte do Rei, o seu leal proposito de homenagem a D. Carlos, a cujo caracter,{76} por fim, concede as mais complexas facetas, e a impossibilidade de falar destas em paginas resumidas, como as que, de momento, lhe consagra; e, mais ainda, como fecho dellas, o seguinte:—«Pobre D. Carlos! quando se pensa que afinal era mais intelligente e teve talvez virtudes superiores ás dos seus adversarios, e por não dizer ás dos seus cumplices...»
Eis, finalmente, palavras suas, ácerca de D. Carlos, alinhadas, talvez, sobre a impressão da morte brutal do rei, á hora, quem sabe? em que o seu cadaver, abandonado de todos, presidente do Conselho incluso, lhe dava a lembrar a calumnia, tanta vez pelo pamphletario, contra elle, escripta, de primeiro responsavel da desordem a que o paiz descera!
É que talvez já ao tempo elle bem claramente visse que aquelle que tão violentamente responsabilizara como primeiro{77} culpado do desastre a que a nacionalidade havia chegado, era afinal um rei que consumira um reinado a procurar Alguem, no fundo, bem da alma, elle proprio, com a Rua, que era, de facto, quem mandava, sem que, ao menos, governasse, como ao presente, e que ora o applaudia, mais á rainha, ora o insultava, até que se decretou a montaria com que, por fim, deu fecho á Realeza.
Mas, deixemos o rumo de taes considerações que, indevidamente, é de uso considerar politicas, e que, ao acaso, nos occorreram, a proposito dalgumas paginas do Saibam quantos... ultimo passo na vida de Fialho, e ainda á conta da sua velha lida de pamphletario.
Finalmente, pois que, por esta obra, chegamos ao termo da sua jornada de agitador,{78} resta-nos, ao presente, e logicamente, insistir no mais da sua melhor canseira—isto a proposito, não só dalguns trechos já marcados, como ainda doutros, onde mais intencionalmente se deu a urdir obra de Arte pela Arte.
Assim visto, este será, em nosso entender, o Fialho definitivo, cujo elogio desde já promettemos levar a cabo quasi sem rasuras criticas, ou seja sem restricções, no capitulo a seguir...{79}
FIGURAS NOTAVEIS DA SUA GALERIA. INTUITOS E SUPERIORES FATALIDADES DO SEU TEMPERAMENTO. UMA GRANDE E ADMIRAVEL REVOLUÇÃO ESTHETICA. A SUA OBRA.
FIALHO D'ALMEIDA
Toda a obra de Arte tem a sua infancia que importa ver na prova-estreia do auctor, atravez dos seus defeitos, como das suas virtudes.
Ora essa difficuldade eu senti ao ler os Contos de Fialho, quer pela exuberancia de vida episodica de que esta obra se enreda, quer pelo tumulto dos recursos que já ali o auctor revela.
Exemplificando.
Abre elle este seu primeiro livro por uma historia, em parte de sua observação, e em parte de phantasia,—A Ruiva.{82}
Pela intriga deste seu trabalho, vê-se que elle não chegou a realizar uma novella, no rigor geralmente attribuido ás composições deste nome. Bem pelo contrario, o que conseguiu foi uma serie de biographias, ou, mais propriamente, de exquisitas telas.
Fialho, muito do Sul, é, como já vimos, um pintor; ou melhor, um painelista, no geito dos pintores da Hespanha meridional, logrando, pela penna, conforme o seu poder de descriptivo, dar a côr, tonalidades e almas tão distantes e irreaes e, no entretanto, tão signaladamente intimas e perfeitas, como só as encontramos nas prodigiosas collecções dalguns auctores da Andaluzia,—isto a averiguar da impressão das suas manchas, como das suas madonas e dos seus aleijados, ou seja de quasi toda a sua galeria de excelsas e de sinistros!{83}
Assim, a Ruiva, principal figura do conto em analyse, é uma especie de hyena de amor, transportando-se, quando os guardas do cemiterio saem, á casa do deposito, onde entra para escolher cadaveres!
É pela calma mysteriosa e calada que elle descreve a necrophila Carolina, misto de miseravel e viciosa, tacteando os mortos adolescentes, quasi possuindo-os.
Exquisita figura de virgem, a suave e brutal filha do coveiro, que Fialho trata com enthusiasmo, quasi carinhosamente, ainda na sua faina de amante de formas mortas!
A Marcellina é o typo vulgar da harpia, velha e sabia, que tendo aprendido da miseria tudo o que de mau ella ensina, volvera a sua experiencia num capital que lhe ia servindo para viver...
Para o caso, ella é a alcoveta que vende a Ruiva a um rapazola, o João,{84} um precoce torpe, typo de bambino operario, official de marceneiro e fadista, que um momento a possue e quasi logo a abandona.
É filho dum bebado e duma desgraçada que elle, ainda creança, vae encontrar, pela ultima vez, na morgue, depois que a acabaram os maus tratos do marido.
E, tambem, dahi a sua historia, que em si resume a vida natural de todos os tresnoitados pelos portaes e escadas.
Por fim, fecha o conto o relato da faina livre de Carolina (a Ruiva), primeiro assalariada numa fabrica, depois pelos quartos andares, vendendo-se a todos os vicios, até que, roida da tuberculose, chega ao hospital, donde sáe aos pedaços, como um gesso em cacos!
O seu enterro descreve-o o Artista no primeiro capitulo, como para impôr, logo de começo, o conto, de tal arte iniciado, á{85} maneira romantica, pelo seu episodio mais pio e sinistro.
É ahi que apparece a figura do coveiro, pae da Ruiva, uma especie de Antonio Pedro no Hamlet, acaso transportado á taberna do Pescada, onde o Contista o apresenta, bebado, a commentar a morte da filha!
Eis a noticia-summario do que temos pela estreia de Arte de Fialho, em 1878, ou tenha sido do tempo de quando elle, intencionalmente realista, com suas tintas de Hoffmann, se deu a iniciar a sua obra por uma figura, aliaz nada casual—a Ruiva, cuja caveira nos aponta, ao fim do livro, sobre a sua banca de contista-medico, não se sabe bem, se como um despojo de estudioso, se como um cofre de osso de que antes, por capricho, se dera a extrahir uma novella...{86}
Como quer que seja, esta realiza menos o que pretende ser—a biographia da filha do coveiro—do que a primeira galeria de figuras da sua maneira extranha de pintar, e onde a Ruiva acaso surge como que sombreada daquella maceração e tinta de luar que Zurbaran parece ter composto já da eternidade para espectrar as figuras tão suavemente doentes dos seus monges!
E, entretanto, como ali está, naquella simples novella todo o seu original processo, desde o poderosissimo descriptivo que lhe anima o melhor da obra, até á sua pintura, ainda narrativa, de costumes; a hesitação do Artista no papel violento ou declamatorio dos personagens; a sua maneira dispersa e fragmentaria; o dialogo; a imprecisão de traços; a preoccupação das grandes telas; a falta de peças no esqueleto do seu trabalho; a paixão de{87} certas figuras, como de certos logares; a sua dolorosa e sensual sanha de necrographo, de par dos seus carinhos, como dos seus sustos pela morte; o monstruoso dos typos, desgarrando, autónomos, um drama proprio; o sentido da vida no que ella tem de mais intimo, como no que pode suggerir de mais esparso; a falta de ajustamento e equilibrio no curso da acção; e, para alem destas qualidades e defeitos, dos typos, como das situações, o Auctor, exuberante da sua razão de belleza a esmo, desmedindo, revolucionando a Arte, por servir a Arte; no seu intimo medroso, e instinctivamente avesso, se não inimigo de todo o methodo;—e, entretanto, sempre elle, comsigo mesmo, fazendo valer o defeito pelo que nelle nos dá de grande e imprevisto; creando das suas desproporções, uma Arte propria; arruando de graça a cidade amoral dos seus viciosos; enscenando{88} a vida do verde-amarello da sua biliosa de pamphletario;—e tudo como quem empresta a sua fatalidade de exotico aos homens e coisas a tratar; e sempre para alem de todas as convenções, como de todos os moldes academicos!
Particularizemos, ainda um pouco, este seu processo, não tanto por firmar principios, como por tratar do seu ousio de Artista, ou seja das suas figuras de imaginação, visto que esta não é, nos emotivos do seu destino, mero delirio do sentido, mas, pelo contrario, uma força ainda a avaliar das suas creações.
Effectivamente, bem errada e mesquinhamente trabalham os que se dão a encaixar a vida num preceito!
Pois que esta é, de si, infinita, recurso{89} algum, por minimo, deve escapar ao seu apercebimento.
Ora este cuidado tinha Fialho bem affecto da sensibilidade, cuja ancia de representação, jámais deixou de archivar tudo quanto a vida real ou a phantazia lhe importavam, embora, ás vezes, á doida,—fosse numa pagina, ou numa simples linha.
Assim, naquelle mesmo volume—(Contos), ha um capitulo, Os dois Primos, em que apparece a sombra de Albertina, uma actriz, e que vale menos pela belleza real da sua figurinha de exigua, que pela sua presença artificializada de quasi-dahlia—ao acaso cahida num palco de Lisboa, onde elle, o Artista, a surprehende, á luz da sua toilette, á qual, por fim, de todo, attribue o successo feliz da sua linha de cocotte!
Este ainda um exemplo do seu occultismo{90} de Arte,—do seu segredo e poder de imprevisto.
Tambem a mesma graça quasi infantil, de tratar a phantasia a que deu o nome de Chavena da China, como todos os seus objectos e figurinhas do mais delicado relevo, usa elle já no conto—Os dois patifes, do mesmo volume, ao escrever ácerca de dois gatitos, verdadeiras porcellanas vivas e mexidas, e de cujas correrias elle logrou a deliciosa tragicomedia do arrasamento duma cidade de cartão, prenda de annos do pequeno Arthur.
Lê-se dum folgo a linda historia, como essa outra—Ninho d'Aguia, de que, por egual, o Artista tira o partido, já notavel, do seu engenho de considerar figuras suaves e innocentes, e em que, tambem, as pobres aves do conto são tratadas como{91} barros vivos, a que sempre alligou carinhos que jámais o vimos dispender no capitulo humano da sua Obra.
E propositadamente nos referimos a estas suas pequeninas obras primas, menos por feriar-nos da historia magoante dos seus nevroticos—figuras quasi-anjos, ao lado de mulheres e bambinos quasi-flores—do que por mostrar as delicadezas da sua Arte, tão sinceramente desegual, quanto, por vezes, exhaustiva, á conta de certas insistencias e mal escolhidos episodios.
Comtudo, verdadeiramente grande é só mais tarde, quando, muito para alem daquelle livro, sae a moldar do seu genio adulto, então notavel de extremos recursos, a vida monstruosa dos grandes e desafortunados typos do seu fabulario. Reportamo-nos ao tempo da Madona do Campo Santo,{92} do Anão, da monographia-Manuel e principalmente dos Pobres.
E, pois que mal poderiamos concluir do seu grande poder de plasticizar da Imaginação, sem nos referirmos a estas obras, tratemo-las, embora passageiramente, menos para as ver que para as apontar.
O Manuel é, sem contestação, a mais sincera figura da sua galeria de Nocturnos. É um ser que da sua propria alma o Escriptor edita; e, de si, nos dá como um ex-voto á sua tortura de humano quando, penitente da propria escravidão da sua Arte, della se entrega a versar o que de mais inquietante ella tem:—o indefinido da sua universalidade dolorosa e reveladora. Quer dizer, é ainda menos do que uma obra de Arte, um espelho doloroso, em que elle se transfigura dos seus{93} medos, como dos seus sonhos,—dando-se ahi, de facto, como melhor nos não podia surdir:—no espectaculo da sua figura de receio, ou seja no esgar caricatural e dramatico da sua afflicção de presciente.
Mas reconstruamos, tanto quanto possivel, por palavras suas, a sinistra figura de Manuel, ainda por melhor a esclarecer.
Primeiramente a creança:
—«Era aos nove annos como uma figurinha de aguarella, fina de carnes, os cabellos sem pigmento, as unhas longas, a voz avelludada e com demoras sentimentaes em certas inflexões—amando a solidão e as musicas plangentes, colleccionando estampas de castellos, terrivel no amor como no odio, e duma volubilidade tal na phantasia, que era impossivel prende-lo a uma lição por meia hora, sem elle cortar o assumpto com extravagancias de mimo e enfant gaté.»{94}
Mais:—«Tinha a feminilidade da igreja, o nervosismo do incenso, paixões quasi physicas por imagens, sentido este que nunca se lhe apagou de todo, e que a reclusão de Campolide exasperou a um mysticismo de fazer inquietações aos proprios padres.»
Quando já homem, «no typo de algarvio, branco de cera, idealmente puro como a afilada gravação dum camafeu, a sua belleza tinha transcendencias extaticas, uma pacificação de tinta lurenta, macerada, esfallecida de insomnia; e dava a impressão dum destes insexuaes no gosto da Seraphita, cujo mysterio desorienta,—por terem tudo o que faz sonhar, sublinhado por tudo o que faz soffrer.»
Esta a epoca em que o Escriptor melhor fixa o drama de Manuel, que já daquelles retratos, resulta menos uma figura autonoma do que uma imagem de{95} especial e entranha vocação, especie de seraphim de egreja, dahi fugido por viver a vida emprestada do Artista que o elegeu.
Mas sigamos, ainda mais vagarosamente, o graphico doloroso das suas grandes azas de anjo bohemio...
Manuel chega a Lisboa quando—diz o Artista—«a bem dizer já ninguem esperava por elle», isto é, «quando decrescia no Martinho a terrivel phalange dos revoltados á Byron, e entrava a achar-se um tic pulha nas attitudes procuradas, nas vozes de chibato, nos olhares revoltos, e mais artificios de que até ali os homens de lettras se revestiam em publico, por fugir ao molde burguez da outra gente.»
Era uma figura «toda nervos, altivo como se viesse de berço real», a preceito recortado pelo Artista, do seu album intimo,—o que lhe reproduzia as sombras carinhosas dos «bellos seres de excepção do{96} seu cyclo, os da extranha lumininosidade interior» que ante a sua «mysantropia moral» conseguiam impor-se, pela mesma razão do seu genio,—de que elle via chispar, a par de extravagantes «inauditismos» «maravilhas minusculas» da mais emotiva Arte.
Chegado a Lisboa, ei-lo, primeiramente perplexo, o pobre Manuel, no papel de anjo despregado, e, como que por acaso, transferido da Egreja da sua aldeia ao museu vivo duma cidade tão falha de interesse que nem sequer tem torpeza propria;—depois vivendo o expediente dos sem-recursos, longe dos seus, luctando entre o seu pudor de Artista e a intranquilidade do seu genio atrabiliario e dispersivo.
Esta inadaptação é a mesma que depois lhe dá a Tragedia—aquella «tragedia dum homem de genio obscuro», que Fialho extrae da sua caprichosa maneira de reagir,{97} tal como devia sahir-lhe, lavrada de ironias—como daquella philosophia e tristeza que enchem a obra a que o Artista dá o nome de—«Esculptura em fragmentos» pois que «dos seus avulsos bocados» ninguem poderia tirar mais do que «mutilações de uma grande estatua...»
Ora, dessa estatua nos apresenta elle, a par de bocados infimos, com extranhezas caricaturaes e laivos dum rir doente, boutades e dôr inferior, por demais fragmentada, quasi sem significação de Arte,—trechos formidaveis, como certas passagens da «Noite de Alcacer Kebir», aliaz tão lugubres e intensivamente trabalhadas como raro encontramos outras, ainda na obra de Fialho.
E, entretanto, não é a Arte de Manuel o que mais interessa da sua biographia.
O que melhor vale, e della resalta, é a sua mesma reacção, ainda mais que de encontro{98} ao meio alheio, quando do ruflar do seu genio no intimo de si proprio!
Esta lucta fóca-a o Artista da sua lente amarello-lugubre, desde a primeira infancia do bohemio até á edade da «fixação do seu typo de adolescente» que estatua da «hereditariedade», desenvolvendo-se, determinando-se, sobretudo, na vida de collegio—na sua reclusão de Campolide, onde toda a ordem de factores apropriados, ajustando-se-lhe «como serpes» se porfiam «a esfuriar nesse corpinho espurio» todos os instinctos do seu genio de tarado, e que de si erguem o perfeito modelo morbido que, effectivamente, chega a realizar.
Na sua vontade lassa nada mais governa que o proprio instincto do luxo, do inesperado, da extravagancia da sua ideação frouxa e admiravel,—como a inclinação bohemia da sua vida de acaso, á{99} qual se dá, sem que alguma vez se interrogue.
Ainda por dessedentar os nervos, logo de começo perros ás suas exigencias, entrega-se á embriaguez.
Tinha necessidade de excitar-se, de viver violentamente os seus delirios, ainda como por melhor escutar a sua nevrose, de tal arte mais nitida á sua sensacional expectação.
Intermittentemente cahia em marasmos; tinha «syncopes de intelligencia» que eram como que sombras daquella sobrexcitação e o derivavam do seu tumulto ao que Fialho chamou os seus «crepusculos intellectuaes com sobrelaivos de perseguição e delirio religioso.»
«De resto na sua esthetica, como na sua vida, sobresaltos de louco!»
Depois dum maior exgottamento de vida nervosa, adoeceu gravemente, e tão{100} gravemente, informa o Escriptor, que não era difficil «marcar na sua intelligencia o accesso vesperal da sua ennublação».
A partir deste momento deu-se a errar...
A sua enfermidade era como que uma obsessão de si proprio, sempre alerta contra o outro, isto é, contra aquelle que a sua duplicidade mental dava como presente aos seus menores actos—e lhe embaraçava tudo o que deliberasse!
Novos dias e elle cada vez mais doente, erratico, somnambulo, com a paixão do alcool e o susto de tudo.
Certa madrugada accordou horrorizado com a idéa de que o estavam a enterrar vivo e o desejo «de que o deixassem apodrecer fóra da cova»...
A partir deste dia a sua vida torna-se pavorosa; é a creatura sem rumo, equilibrando-se, ao justo, no acaso geral do arranjo commum.{101}
É, sobretudo, como expoente de vontade que o homem vale; ora elle perdera absolutamente a vontade, mantendo-se como que, provisoriamente, a dentro do seu corpo, ao tempo já desconjunctado de fantochino, e que lhe sobrevivia por milagre, como num assomo de quasi extravagante apego pelo que fôra...
O resto adivinha-se:—é a convulsão das ultimas horas; são restos de sonho; os derradeiros phantasmas, nos seus derradeiros dias; é elle gritando a sua agonia doida, numa casa de saude, a pelejar a morte, como se, de minuto a minuto, lhe rompessem cordões nervosos; finalmente elle ainda, mas com a vida a fugir-lhe e como que afilando-se-lhe até perder-se na noite rehabilitante da sua podridão...
E, entretanto, a sua historia não acaba ahi!
Como noutro logar affirmamos, ha, para{102} alem da sua vida de symbolo, o caso vivo, em aberto, duma real figura da qual o bohemio «um duplo», se accrescenta e desdobra, e que, a nosso ver, é, nem mais nem menos, do que o seu proprio revelador,—o Artista que, na alludida monographia, sinceramente, lugubremente, trata o caso da morte de Manuel como se a espreitasse em si proprio!
Passaremos adiante a miuda informação daquelle desenlace, ainda logico dentro da extravagante «Tragedia de um homem de genio obscuro», por ver, de relance, o Artista, ao pretexto do admiravel estudo em analyse.
De facto, qual a figura que surde para alem da mascara de Manuel?
É, affirma-lo-emos ainda uma vez, nem mais nem menos do que o Auctor, embora transfigurado da sua Arte:—isto é o artista «violento e contradictorio» que{103} dahi resulta; ou seja o escriptor atavicamente «presciente do raro em arte», com o mais extranho «senso pictoral de certos aspectos sociaes», de par do maior «poder amplificador dos grotescos»; o artista, a um tempo «fragmentario e dispersivo»; o transfigurador; a creatura perdida «em assumpções de genio» e logo baixada dos «fulgurantes cimos da intelligencia», como que distrahido por casos minimos; o «de filiação hysteriça e infancia convulsiva, terrivel no amor como no odio», o «mystico» e necrographo, de «vontade frouxa, com antipathias invenciveis pelos grandes fanfarrões da sociedade e escriptores lançados»—o emotivo, emfim, que no Manuel não faz mais do que esmaltar de picaresco e lugubre a sua propria figura, errando nelle o seu drama de morbido, e parabolando-lhe, nas attitudes, como na desgraça, os seus grandes pavores{104} da morte, de par da duvida que lhe advinha da sua mesma Obra, que, no fundo, julgava irremediavelmente episodica e fragmentaria![2]
Por isso, tambem, ao deixar o quarto, do outro, agonisante, elle põe na boca do indio, o Pratas, velho confidente dos dois, como que o echo do seu pensamento intimo:—«O ideal seria que a alma delle não morresse, e nós ainda a encontrassemos, intacta e genial, num outro mundo insubmisso»!
Ainda uma vez mais, elle formula o seu velho sonho:—não acabar! Em ultima analyse:—o seu drama em duas palavras[3].{105}
Finalmente nada mais haveria a escrever de commentario ao extraordinario capitulo da obra de Fialho que principalmente nos demos a desarticular ainda por compor a figura que nelle foi—se não tivessemos de incluir um tal trabalho na parte que reservamos das suas melhores provas.
Como demonstração de Arte, mal poderiamos deixar de alludir ás paginas que fecham a tragedia, em parte verdadeira, de Manuel—e que tambem, de si, são, ainda de uma precisão e valor notaveis.
De facto, velou elle o doente de duas figuras que mal apparecem no curso da acção e, no quarto do moribundo, apresenta{106} silenciosas,—duas esphinges de odio que o encaram e ao Pratas, o segundo companheiro de Manuel, como se fossem elles os verdadeiros culpados da sua desgraça!
A primeira é um velho, o pae do doente que, depois de lhe ter negado os recursos, tomando á conta de extravagancia todos os seus dispendios, como o seu irremissivel alcance de saude, vem assistir-lhe á morte.
A segunda, e mais notavel das duas figuras, é aquella que o Artista designa na folha-cartaz da monographia por—essa mulher de negro!
«É, segundo informa, quasi velha, com um vestido negro e uma gollilha bordada, em grandes bicos. Sobre as orelhas ha já cabellos brancos, tem a pallidez macerada duma santa, as mãos reaes, queixo voluntario... Emtanto essa rigidez guarda uma{107} boca pura de creança, e sae dessa magua, uma obra prima de martyrio.»
«Tóco, narra, por fim, as mãos do agonisante, um marmore molhado. Está a amanhecer lá fóra, e os cinzentos azues dessa madrugada de inverno entram no quarto, com albescencias funeraes que me espantam. Pelas quatro horas Pratas que lhe sustinha o pulso, dá de repente um grito: é o momento: e o velho erguendo-se, em vez de correr ao filho morto, é contra nós que parece crescer, rigidamente...»
Eis o final do drama!
Mas quem é aquella mulher de negro?
Eis o que mal nos diz. O que della se sabe é unicamente que fôra uma rara figura de dedicação, envelhecendo no sonho de ser noiva do bohemio, que lhe escrevia, e elle amara vagamente...
De momento, aponta-a o Artista como um regelo de amor, acaso um symbolo{108} assomado ali ainda por enscenar as ultimas horas do bohemio.
Derivando, no exame das suas obras primas, ás paginas que, dentre as citadas, maior contraste offerecem com aquella monographia, encontramo-nos com o seu admiravel conto,—o Anão.
Este demonstra, alem de tudo, de par da mais frisante extravagancia imaginativa, o seu grande poder caricatural.
Trata-se duma ligeira farça que o auctor compõe, mais que dos personagens, das suas situações.
Por outro lado, o drama é um jogo de riso, em cujo taboleiro Fialho incluiu uma pedra dolorosa—o Carrasquinho, o Anão...
Este é uma figura minima, minuscula{109} a ponto de se perder na copa dum chapeo de pello, e no bolso da madrinha quando do seu casamento; é um quasi monstro de fabula, entre humano e herbivoro, de «focinho aguçado e movel, mascando sempre, com as bosseladuras da testa de tendencias conicas para chibato, sensivel e espantadiço aos rumores dispersos do campo, a quem os bodes reconheciam um ar de familia, e por quem as cabrinhas amorosamente se roçavam» quando elle, o pobre cabreiro, se misturava com ellas no redil.
Casou com a Rosa «um cavallão da mais desmedida estatura, que a mãe trouxera vinte e sete mezes no ventre e levára seis dias a expulsar!»
O Anão dansava o fandango e era videiro. De principio tudo lhe foi bem; a boda correra-lhe alegre, bem folgada, depois da qual o manageiro de Torres, o{110} Jacinthinho, se installou por metade de cada dia em casa da Rosa.
Esta a desgraça! Quando o Anão chega a mulher bate-lhe e o manageiro obriga-o a dansar...
A seis mezes do casamento a Rosa dá-lhe um rapagão, forte como «um boi bravo».
Tudo no conto são confrontos e confusões de animaes armados...
O Anão, cada vez mais chibato, lá vae vivendo, ora em casa, ora entre os sementões, sempre lamentando-se, na sua «voz balada», até que um dia, tendo-o a mulher enfaixado (por confusão com o filho) e conduzido á missa, lá o povileo toma-o pelo proprio diabo, e logo um devoto bebado o arremessa da torre abaixo, e era uma vez o pobre Carrasquinho, esborrachado contra as lages sepulcraes do adro!...
Tal o esqueleto da historia que o genio{111} do humorista vae depois folhando das situações mais ridiculas, e que, de tal arte, lhe decorre viva, hilariante pelo imprevisto e desproporcionado dos personagens, e em que o pobre «grão de milho», mal sobresae como uma figurinha de amuleto, errando ao acaso vida emprestada.
E, entretanto, é num tão exiguo personagem que, principalmente, o Auctor se dá a desenrolar aquella aventura, toda ella uma farça de dolorosa escravidão!
O mesmo sestro que levara Fialho a apolegar a gente miuda, por attingir a expansão maxima do seu inegualavel empirismo de Arte, de semelhante forma lhe pautou a solução da vida em riso, que a breve trecho e involuntariamente derivava em farça. Ainda mais, deliciou-se da união dos elementos mais difficeis, como impossiveis até, quando, pelo drama convulso da sua polypersonalidade, se deu a parabolar{112} da vida real o mundo imaginativo das suas extravagantes suggestões de artista.
Dahi as phantasias, no genero daquellas, ao lado de outras em que sobresaem mulheres como a Madona do Campo Santo, a quem dota da galantaria e gestos nobres dos cysnes, figurinha de suave illuminura, e que, mais ainda que do seu vicio de comer flores, elle parece alimentar do pão azymo da sua Arte!
Mas não nos antecipemos á referencia que della nos deixou.
Reunamos os fragmentos da estatua da Madona:—«restos, diz o Escriptor, da mais assombrosa esculptura que tem visto o mundo, e que, soldados por agulhas de ferro, ornam hoje o tumulo de Judith.»{113}
Ora a Madona do Campo Santo, foi tambem uma das creações mais tratadas pela suave idolatria de Fialho, e que elle, antes do apaixonado Albano, se deu a estatuar numa hora de quasi divina loucura!
E não é ainda casualmente que escrevemos da sua idolatria.
A verdade é que o grande Artista foi, alem de tudo, um pagão, embora por fatalidade da sua arte de Extranho, por amor daquella Arte que ainda, de egual maneira, o fez religioso ou, melhor, sectario de toda a Belleza, como jámais conhecemos outro.
É ver as paginas que dedica á Madona do Campo Santo, ao lado de outras, como as que abrem o Paiz das Uvas, e a admiravel Symphonia da Cidade do Vicio!
Em todas ellas, que de adoraveis espectros de faunos e de sylphos:—creações phantasticas{114} do genio mysterioso da grande jornada humana immemoravel; e que a elle, ao Poeta, o levam a cantar (a sua obra é ali um hymno)—um quasi amor contra a natureza, de tão extravagante e brutal!
E, entretanto, é ainda á «vibratilidade dolorosa do sol» que elle escreve e nos diz da «vida allucinada» que lhe vae em roda.
Dahi, tambem, a sua litteratura, na apparencia difficil e desajustada, como um romance da Mythologia, gritada de Evohés, com palmas á belleza e á ebriedade, pompas sem rito, casos de flora animada e fauna monstruosa, com a sua multidão de satyros e dryades, formando junto a Baccho—o Deus da boca fogueirada de risos, acaso os mesmos que, por vezes, parecem tingir da sua cambiante algumas das paginas mais notaveis, ainda por menos verosimeis, do transfigurador!
É dum folgo que se leem estas passagens{115} que quasi nos suggerem a esperança dum suave mundo de deuses reaes, pleno de sentido novo, e em que exuberem, a esmo, os fructos, e cresçam divinamente os marmores!
Ora, dum tal poder de imaginação, e influencia de tudo, facil nos é derivar ao mais do seu atelier de estatuario do Exquisito; e, mais propriamente, ao caso da Madona do Campo Santo, a cujo proposito trouxemos aquelles recursos.
A Madona é, na verdade, uma das suas obras primas de mais justificado renome:—typo de mulher-insecto, dentando flores, amando por instincto, comendo com dôr, tocada, ainda por uma razão de belleza, do susto humano de morrer, gracil como uma ave, de resto frouxa e luarada como convinha a uma creatura do outro mundo...{116}
E tão deslocada fôra, tão doutro mundo ella era, que Fialho, querendo apontar-nos, no final da novella, a estatua que da sua memoria desbastou Albano, é assim que a descreve:
«Era uma maravilha unica de genio! Desabrochava completa, estendendo os braços para invocar Deus, por um assombro de equilibrio lançada na attitude de quem desprende vôos, desennovelando-se da base como uma labareda de sarça, em zig-zags aéreos. Esse phenomeno de extranha belleza, era ao mesmo tempo um prodigio de audacia, palpitava, falava, sentia-se soffrer e respirar, como uma creatura.»
Notavel trecho, de si eloquente até ao excesso, e bem de molde a resuscitar a pobre Judith!
Entretanto, permitta-se-nos, ainda a tal proposito, um breve parentheses, ou seja o{117} glossario de faceis considerações, á conta da sua esculptura.
É tão somente para frisar que, ainda em Fialho, como para o mais dos plasticos portuguezes, a estatuaria é sobretudo narrativa.
O marmore da Madona não é, effectivamente, um mero acaso da imaginação do contista; bem pelo contrario, estava na logica da sua educação, pois que lhe proveio directamente da mesma causa romantica, que ainda, ao presente, determina o grande numero dos nossos estatuarios.
Ainda mais, o movimento liberal, que, entre nós, começou em 1820, deu á Arte portugueza um motivo de ornamentação tão extranho como detestavel,—a estatuaria rhetorica, se assim podemos defini-la e que, de logo, começou a animar{118} os nossos terreiros publicos, onde mais ou menos todas as memorias discursam!
E, a tal ponto a nossa exuberancia de latinos, ligou ao gesto o seu sentido de eternidade que, ainda hoje, reputariamos inverosimil, entre nós, a estatua, á maneira ingleza, como significado de mera presença,—a figura-marco, tal como surde, nas praças de Londres, menos como ficção de vida, do que, pelo contrario, como uma forma abstracta, e a que o Artista procura dar sempre aquella attitude quasi sagrada que, definitivamente, volve em symbolos as memorias!
Comtudo, dado o facto do supremo poder de Fialho, como plastico, força é admittir que bem foi para a memoria de Judith a sua estatua, tal qual elle a trabalhou, como todo o drama de que circumscreveu a sua prodigiosa e raphaelesca figura,{119} a cuja decomposição, por fim, assiste, indifferente, depois que ella, já morta, de «face marbreada de roxo» e a «expressão carrancuda» por lhe terem arrancado a mascara,—começa a abater, da sua gracil e suave forma de noiva dos «esponsaes da eternidade...»
Finalmente, o ultimo conto das suas apontadas obras—Os Pobres, comprehende um trecho curto, e, no entretanto, ainda mais notavel que os anteriores.
E tão notavel que só a custo poderemos desarticular essa singularissima peça de Arte, tal a selvageria que dá cohesão á novella, concebida para alem de todas as ficções litterarias!
Trata-se dum casamento de monstros numas ruinas, de «duas virgindades adormecidas»,{120} informa o narrador, que num momento vingam o amor abstemio de tantos annos, e celebram, á cumplicidade de uma noite tenebrosa, o seu brutal noivado.
Elle, o macho, é um ser desprezivel, vivendo de restos, especie de cyphotico, aleijado pelo lapis de Velasquez; valente pela sua vida de carreira, ao ar livre; humilde; torto e forte como um azinho; animal corrido de todas as mesas, piolhento que as raparigas enjeitam e escarnecem nos serões:—figura, emfim, perdida no «immenso irradouro» que é, para elle, o mundo.
Segue da Vidigueira para Pedrogão ao acaso do vento, que o esfarrapa, confundindo-o com a urze.
Leva-o o mesmo fim de sempre:—pedir, errar...
Vae por entre a esteva que o açouta; «o vento fala-lhe»; e, no emtanto, elle nada{121} ouve, caminhando á ventura, como um elemento deslocado da mesma noite sinistra que o persegue...
Entra, por acaso, numa ruina, onde o guia primeiramente um resto de brazido, depois um farrapo de oração, que sae dum canto, por fim o cheiro da femea, uma sombra que escabuja a seu lado, e, num momento, desdobra para elle fios occultos de uma voluptuosidade instinctiva, toda animal.
Elle presente-a; e ella fala-lhe, numa voz que é um rôgo, de que elle não sabe deslindar-se, até que começam de tecer-se novos fios do desejo dos dois, do impulso mutuo que subito os impelle um para o outro, como duas forças dum mesmo systema que a luxuria move e dão de si o ruido de corpos escamosos, «rimando urros», diz o Artista, numa especie de noivado de potestades, com ferezas e grunhidos de varrascos!{122}
Tal o relato-impressão que do estupendo conto nos ficou, e pelo qual chegamos, naturalmente, e, por ultimo, ao fim dos maiores recursos de Fialho; e que, a partir deste momento, nos permittem averiguar da sua obra em conjuncto, atravez das paginas exemplificadas, como daquelles seus mais caracteristicos personagens.
Ora, o que, dumas e doutros, de logo se nota é que o mesmo titulo de Doentios, que indica o seu primeiro livro, inculca tambem o grande numero das suas figuras-motivos.
Entretanto, o que mal pode explicar-se, fóra do seu caso de raça, é o segredo da sua forma, ainda tão exoticamente plastica,—como o seu grande conhecimento da Arte pairante alem-fronteiras, e que, cumulativamente, exerceu de par dos móres diabolismos, ainda e sobretudo ao pretexto da nossa comedia publica.{123} Como quer que seja, propositadamente guardamos, para final do presente estudo, a analyse generica destes recursos, de que, já agora, partiremos para a revolução artistica que da sua penna levantou, sobretudo contra o pantano classico, e rhetorica do momento.
A todos os formalismos, de facto, elle deu batalha, não só vencendo, mas, mais ainda, trazendo á Arte novas intenções, de par de melhores impulsos e novos rumos.
Houve contemporaneos, como João de Deus e Bordallo, cujo inauditismo é tanto mais para admirar, quanto mais occulta nos deixaram a sua razão de Arte.
Não é este o caso de Fialho, cujo genio reagiu sobre uma cultura intensa, procurada como num anceio de quasi exhaustação.{124}
Desde Balzac, o mais notavel dos mestres do pensamento novo, até aos exquisitos Goncourts, lavrantes quasi diabolicos dos mil nadas mundanos, apostolos da graça, como do mais extravagante japonesismo litterario, todos os grandes contemporaneos elle conheceu e estudou; do mesmo passo que o seu espirito, com escala por todas as representações de Arte:—museus, revistas, theatros, escolas, industrias de luxo, por todo o espectaculo, emfim, onde houvesse que aprender,—se repartiu, talvez menos por enriquecer-se dos seus ensinamentos, que por colher as suggestões que do seu interesse mais tarde desenvolveu.
Ora duma curiosidade de tal forma animada foi que, naturalmente, sahiu a editar o melhor da sua obra, como tudo o que da sua sympathia pelo raro elle poude discorrer atravez da sua dolorosa fadiga de supersensibilizado!{125}
Assim, tambem, talvez nenhum dos escriptores do seu tempo conseguisse surprehender a Arte dos etherisados e extranhos cumes donde elle se deu a vertiginá-la.
É ver as paizagens, quasi irreaes do seu lapis de crayonista; as suas figurinhas hystericas de branda genealogia biblica; os seus aleijados; as suas porcellanas, como todo o mundo phantastico da sua inegualavel Arte!
Tambem é de costume, tratando-se de Fialho, escrever do que vulgarmente se considera a sua obra critica.
Não o faremos nós, ainda em attenção ao criterio proprio de que Fialho não foi um critico, mas um impressionista.
E, a proposito, vem recordar o caso de Ramalho que, depois de uma vida longa,{126} perscrutando a canseira extranha, talvez menos pelo trabalho de a corrigir que pelo vicio de a desfiar; depois duma fadiga insana por ver do trabalho alheio, no proposito de deixar definitivas as suas notações de pedagogo, sáe, por fim, a desculpar-se, na pagina derradeira do seu papel de critico, denunciando a publico a sua aspiração até ahi occulta,—imagina-se lá de que!—nem mais nem menos do que de poeta lyrico...
E, comtudo, como é de estimar, a nova triste daquelle velho, figura rigida de portuense, com suas tintas de trato inglez, escrevendo á garrocha no couro endurecido de Portugal do tempo, afinal sobre o motivo constante e commum a todos os criticos,—ácerca dos mais versateis casos de gosto burguez!
Porque, fundamentalmente, foi o gosto burguez que elle tratou, embora como uma{127} especie de jogador de penna contra os cenaculos havidos então como tradicionaes, e de que um acaso de civilização o fizera transfuga.
Entretanto, é bem de archivar aquella sua pagina de contrição, ainda como desfecho do seu ingrato mister. É que, de facto, elle era um artista, e dahi o ter vindo a publico indultar-se, como em final provação, dos seus cançados propositos criticos, se não legar-nos, á hora da sua agonia litteraria, uma derradeira ironia...
Contrariamente outros dos seus melhores contemporaneos, e entre todos:—Fialho, Eça, Bordallo e ainda Junqueiro (a despeito da sua escravidão politica)—haviam sido mais do que reformadores da Arte,—seus verdadeiros revolucionarios, isto no melhor sentido da desacreditada palavra.
Vejamos, a traços rapidos, a acção que de um tal confronto advem, pois que{128} obteremos, assim, a par da divergencia dos temperamentos de maior interesse na vida artistica do tempo,—a sua systematização e um fim commum, ou tenha sido a notavel revolução litteraria que das suas provas resultou.
Comecemos por Bordallo, bem por certo, ainda hoje, o menos estudado.
Raphael Bordallo, que conseguiu tornar poderosa uma arte, entre nós desacreditadissima, mercê da chusma dos habilidosos:—a Caricatura, foi, de facto, o genio em bruto, um oleiro de amalgama, misturando, na sua masseira de Jove do tempo, toda a sorte de civilização, por mais desencontrada; trabalhando, ora de phantasia, ora dos seus apontamentos de rua; e, finalmente, editando-se, tal como Fialho, ainda por seu innato valor.
Eça, talvez o de menos influencia, se{129} bem que tambem o unico que logrou admirações incondicionaes, foi, de facto, dentre todos, o menos original, que não o menos brilhante.
No seu atelier não faltou petrecho algum dos mais necessarios ao arranjo dos seus livros de Arte, aliaz sempre duma belleza meditada, a bem dizer medida, e em que perpassa todo um methodo opiado de ironias, por entre as suas demais preoccupações de consciente marmorista e penitenciario da prosa.
Finalmente, Junqueiro foi dentre as figuras litterarias do momento o mais sagaz e ajustavel á sua extranha confusão.
Por isso tambem, logo que appareceu, se fez mister consagrá-lo, de par dos seus alexandrinos, ainda undisonos e revoados, á Hugo, e que os do tempo immediatamente se deram a ouvir, mais do que com attenção devida a uma obra de Arte, religiosamente,{130} como se nas suas rolantes e evocativas estrophes o Poeta orchestrasse a propria musica do mar...
Mas deixemos propriamente o caso da acção politica por parte da geração a que pertenceu Fialho para o vermos, a elle, tal como tem de ficar, nessa outra revolução litteraria que sobreleva aquella, e á qual devemos mais attento exame.
Fialho foi, bem por certo, sob tal ponto de vista, o maior do seu tempo, pois que realizou um verdadeiro revolucionario da Arte, que, partindo da admiração dos typos classicos, das paginas mais academicas, seguiu directamente o filão popular, colhendo e escrevendo, sem o corromper, o sentimento plebeu, sempre que este sentimento lhe poude expressar uma verdade, ou refundir{131} da phantasia situações e estados litterarios novos.
E não se imagine que, ainda no capitulo menos original e mais facil da sua obra, como pamphetario, elle deixasse de mostrar os melhores ensinamentos e boa fé.
É ver o que nos diz duma possivel Lisboa monumental, á sua maneira; dos seus propositos de substituição duma cidade á moderna, como a fizeram,—facil e incaracteristica,—por uma cidade-memoria!
Ainda mais:—antes delle creara-se uma especie de constitucionalismo das Lettras, aliaz sempre, mais ou menos regradas ao gosto classico, o que, de egual maneira, satisfazia leitores e auctores...
Ora Fialho foi um dos raros que, entre nós, com melhor ousio praticou o direito da escripta a flux, sem medos, como sem os{132} bardos aramados da covencional Litteratura anterior.
Muito justas as suas paginas de theatro onde versou a nossa miserabilissima flora dramatica, e onde nem sequer teve a descontar á auctoridade com que a viu a pecha dalguma vez a ter tentado. O que elle nos diz dessas peçasinhas de acaso, que lá fóra seriam inverosimeis num theatro de suburbio, e que, entre nós, tão facilmente são alçadas, segundo a categoria jornalistica ou politica dos auctores, a peças de grande effeito, por um publico, ás vezes educado, mas sem coragem para patear ou sahir a meio da semsaboria em que, por via de regra, nos nossos palcos, as peças decaem!{133}
Da Hespanha do Sul, sua visinha, vimos como soube orchestrar a luz, tanto do seu pincel, de par do mais da vida natural que, como ninguem, teve o poder de aperceber.
Tambem elle, se vivesse em Hespanha, onde a sua intenção revolucionaria seria inopportuna, teria completado, talvez, o capitulo mais desfalcado de quanto escreveu:—referimo-nos, sobretudo, á sua maneira de tratar figuras e seus demais esboços de novellista.
Entre nós, dados os multiplices acasos da mesquinhez publica, que affecta a nossa vida de livraria, e onde a maior parte dos auctores, de olhos fitos na coterie, raro sabe trabalhar independentemente,—elle que começou por demolir, e demolir à outrance, gastando, a paginas plenas, talento e nervos, deixou-se, talvez, desviar, demasiadamente, pelas reclamações que do seu{134} valor o publico exigia; e dahi aquellas faltas, de que, por fim, a visão clara da derradeira hora lhe deu os mais angustiosos clarões!
E, entretanto, se onde quer que está, chega a memoria do que vae passando,—com que surpresa ha de sentir (se lá ha surpresas) tudo isso que para ahi ficou após de si!
É que, bem péor do que no seu tempo, os Artistas são hoje, para o grande numero dos mentores officiaes, meras figuras de acaso, cujos agoiros elles, os revolucionarios de hontem, por cautela, se dão a amordaçar; e, isto sómente, porque se não perturbe a troça a que a Nacionalidade desceu,—ou seja uma ceia de politicos, pela cerrada noite fóra, que vem de longe, e onde um teclado de dentes, instrumentando o desforço de fomes velhas, nem sequer deixa ouvir, por attenuar, a voz dos baccarats...{135}
Mas abandonemos, por uma razão de sensibilidade, a noticia do inopportuno festim.
E pois que, sobre uma tal noite, acertou de baixar escuridão mais tragica, a que ameaça de subverter a raça, que, ainda por sua admiravel fatalidade, terá de triumphar,—vamos nós inventariando tudo o que ao presente de grande existe e futuramente possa servir-nos.
Ora, no extranho conjuncto da nossa obra escripta, já hoje extrema,—têem, como acabamos de ver, o maior interesse, as paginas de Fialho, quer no seu valor intrinseco, quer pelo que representam em confronto com os demais e alheios padrões de Arte.
Uma obra, unicamente, elle não teve de seu intento; e, conseguintemente, não logrou escrever, como a não escreveram, talvez, por a supporem então menos necessaria,{136} os que o precederam, e que, no entretanto, de momento, se torna preciso, quanto antes, compor, ainda por servir aquelle resurgimento.
Reportamo-nos, (quem ainda o não sentiu?) á falta de um Manual de Sensibilidade, o que equivale a informar—duma nova Cartilha, com destino á futura mocidade portugueza, e onde caibam as delicadezas porque sempre nos affirmamos, ainda atravez do mais accidentado da nossa jornada historica; e que hoje, mais do que nunca de opportunidade é que desde já occupem quem, para alem de todos os sectarismos—sinta, mais do que por si, pela Nacionalidade, a carinhosa obrigação de as versar!
Trata-se, de resto, dum livro facil, pois que nos não é preciso mais do que editá-lo dum bem orientado sentido popular, ou seja do nosso velho espirito de generosidade{137} e isenção, aliaz, de si, ainda latente, quando não expresso, na obra dos nossos maiores auctores,—tambem, quanto a nós, os melhores, se não, até hoje, os unicos interpretes da verdadeira alma de Portugal.
Ancede, novembro de 1916.
[2] Propositadamente, e á sua maneira, pelas suas proprias palavras, e tambem «como quem junta uma esculptura de bocados», entendemos dever reunir, ainda por melhor o revelar, aquellas suas mais entranhas e quasi confessadas caracteristicas.
[3] E não se infira destes seus receios o argumento simplista da improbabilidade do seu suicidio, pois que, muito ao contrario, aquella versão pode denotar, quem o sabe? como que o seu aprestamento, com as costumadas alternações de desespero e intimidades com a Morte, de facto habituaes á maior parte dos que voluntariamente a provocam.
I | |
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Pag. | |
Cuba e Villa de Frades | 7 |
II | |
A indole de Fialho | 33 |
III | |
O Pamphletario | 51 |
IV | |
O Artista | 79 |
ACABOU DE SE IMPRIMIR
NA TIPOGRAFIA DA «RENASCENÇA PORTUGUESA»,
RUA DOS MÁRTIRES DA LIBERDADE, 178,
AOS 14 DE FEVEREIRO DE 1917.
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