The Project Gutenberg EBook of A correspondência de Fradique Mendes, by 
José Maria Eça de Queirós

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Title: A correspondência de Fradique Mendes
       memórias e notas

Author: José Maria Eça de Queirós

Release Date: December 27, 2008 [EBook #27637]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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A CORRESPONDENCIA


DE

Fradique Mendes





Obras do mesmo auctor:


Revista de Portugal. 4 grossos volumes 12$000
As Minas de Salomão. 1 volume 600
Os Maias. 2 grossos volumes 2$000
O Crime do Padre Amaro. Terceira edição inteiramente refundida, recomposta e differente na fórma e na acção da edição primitiva. 1 grosso volume 1$200
O Primo Bazilio. Terceira edição. 1 grosso volume 1$000
A Reliquia. 1 grosso volume 1$000
O Mandarim. Quarta edição. 1 volume 500
A Illustre Casa de Ramires. 1 volume 1$000
No prelo:
A Cidade e as Serras.





Eça de Queiroz

A CORRESPONDENCIA

DE

FRADIQUE MENDES

(MEMORIAS E NOTAS)


PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1900






Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao cidadão Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que para a garantia que lhe offerece a lei n.º 496 de 1 d'Agosto de 1898, fez o competente deposito na Bibliotheca nacional, segundo a determinação do art. 13.º da mesma Lei.




Porto―Imprensa Moderna




A CORRESPONDENCIA DE FRADIQUE MENDES




FRADIQUE MENDES

(MEMORIAS E NOTAS)





I


A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Paschoa,―justamente na semana em que elle regressára da sua viagem á Africa Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admiravel datava de Lisboa, do anno remoto de 1867. Foi no verão d'esse anno, uma tarde, no café Martinho, que encontrei, n'um numero já amarrotado da Revolução de Setembro, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam.

Os themas («os motivos emocionaes», como nós diziamos em 1867) d'essas cinco ou seis poesias, reunidas em folhetim sob o titulo de Lapidarias, tinham logo para mim uma originalidade captivante e bemvinda. Era o tempo em que eu e os [2] meus camaradas de Cenaculo, deslumbrados pelo Lyrismo Epico da Légende des Siècles, «o livro que um grande vento nos trouxera de Guernesey»―decidiramos abominar e combater a rijos brados o Lyrismo Intimo, que, enclausurado nas duas pollegadas do coração, não comprehendendo d'entre todos os rumores do Universo senão o rumor das saias d'Elvira, tornava a Poesia, sobretudo em Portugal, uma monotona e interminavel confidencia de glorias e martyrios de amor. Ora Fradique Mendes pertencia evidentemente aos poetas novos que, seguindo o Mestre sem-igual da Légende des Siècles, iam, n'uma universal sympathia buscar motivos emocionaes fóra das limitadas palpitações do coração―á Historia, á Lenda, aos Costumes, ás Religiões, a tudo que através das idades, diversamente e unamente, revela e define o Homem. Mas além d'isso Fradique Mendes trabalhava um outro filão poetico que me seduzia―o da Modernidade, a notação fina e sobria das graças e dos horrores da Vida, da Vida ambiente e costumada, tal como a podemos testemunhar ou presentir nas ruas que todos trilhamos nas moradas visinhas das nossas, nos humildes destinos deslizando em torno de nós por penumbras humildes.

Esses poemetos das Lapidarias desenrolavam com effeito themas magnificamente novos. Ahi um Santo allegorico, um Solitario do seculo VI, morria uma tarde sobre as neves da Silesia, assaltado e [3] domado por uma tão inesperada e bestial rebellião da Carne, que, á beira da Bemaventurança, subitamente a perdia, e com ella o fructo divino e custoso de cincoenta annos de penitencia e d'ermo: um corvo, facundo e velho além de toda a velhice, contava façanhas do tempo em que seguira pelas Gallias, n'um bando alegre, as legiões de Cesar, depois as hordas de Alarico rolando para a Italia, branca e toda de marmores sob o azul: o bom cavalleiro Percival, espelho e flôr d'Idealistas, deixava por cidades e campos o sulco silencioso da sua armadura d'ouro, correndo o mundo, desde longas éras, á busca do San-Gral, o mystico vaso cheio de sangue de Christo, que, n'uma manhã de Natal, elle vira passar e lampejar entre nuvens por sobre as torres de Camerlon: um Satanaz de feitio germanico, lido em Spinosa e Leibnitz, dava n'uma viella de cidade medieval uma serenada ironica aos astros, «gottas de luz no frio ar geladas»... E, entre estes motivos de esplendido symbolismo, lá vinha o quadro de singela modernidade, as Velhinhas, cinco velhinhas, com chales de ramagens pelos hombros, um lenço ou um cabaz na mão, sentadas sobre um banco de pedra, n'um longo silencio de saudade, a uma restea de sol d'outono.

Não asseguro todavia a nitidez d'estas bellas reminiscencias. Desde essa sésta de agosto, no Martinho, não encontrei mais as Lapidarias: e, de resto, o que n'ellas então me prendeu, não foi a Idéa, mas a Fórma―uma fórma soberba de plasticidade [4] e de vida, que ao mesmo tempo me lembrava o verso marmoreo de Lecomte de Lisle com um sangue mais quente nas veias do marmore, e a nervosidade intensa de Baudelaire vibrando com mais norma e cadencia. Ora precisamente, n'esse anno de 1867, eu, J. Teixeira de Azevedo e outros camaradas tinhamos descoberto no céo da Poesia Franceza (unico para que nossos olhos se erguiam) toda uma pleiade d'estrellas novas onde sobresahiam, pela sua refulgencia superior e especial, esses dois sóes―Baudelaire e Lecomte de Lisle. Victor Hugo, a quem chamavamos já «papá Hugo» ou «Senhor Hugo-Todo-Poderoso», não era para nós um astro―mas o Deus mesmo, inicial e immanente, de quem os astros recebiam a luz, o movimento e o rythmo. Aos seus pés Lecomte de Lisle e Baudelaire faziam duas constellações de adoravel brilho: e o seu encontro fôra para nós um deslumbramento e um amor! A mocidade d'hoje, positiva e estreita, que pratíca a Politica, estuda as cotações da Bolsa e lê George Ohnet, mal póde comprehender os santos enthusiasmos com que nós recebiamos a iniciação d'essa Arte Nova, que em França, nos começos do Segundo Imperio, surgira das ruinas do Romantismo como sua derradeira encarnação, e que nos era trazida em Poesia pelos versos de Lecomte de Lisle, de Baudelaire, de Coppée, de Dierx, de Mallarmé, e d'outros menores: e menos talvez póde comprehender taes fervores essa parte da mocidade culta que logo desde as escolas [5] se nutre de Spencer e de Taine, e que procura com ancia e agudeza exercer a critica, onde nós outr'ora, mais ingenuos e ardentes, nos abandonavamos á emoção. Eu mesmo sorrio hoje ao pensar n'essas noites em que, no quarto de J. Teixeira d'Azevedo, enchia de sobresalto e duvida dois conegos que ao lado moravam, rompendo por horas mortas a clamar a Charogne de Baudelaire, tremulo e pallido de paixão:


Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!


Do outro lado do tabique sentiamos ranger as camas dos ecclesiasticos, o raspar espavorido de phosphoros. E eu, mais pallido, n'um extase tremente:


Alors, oh ma beauté, dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!


Certamente Baudelaire não valia este tremor e esta pallidez. Todo o culto sincero, porém, tem uma belleza essencial, independente dos merecimentos do Deus para quem se evola. Duas mãos postas com legitima fé serão sempre tocantes―mesmo quando se ergam para um Santo tão affectado e postiço como S. Simeão Stylita. E o nosso [6] transporte era candido, genuinamente nascido do Ideal satisfeito, só comparavel áquelle que outr'ora invadia os navegadores peninsulares ao pisarem as terras nunca d'antes pisadas, Eldorados maravilhosos, ferteis em delicias e thesouros, onde os seixos das praias lhes pareciam logo diamantes a reluzir.

Li algures que Juan Ponce de Leon, enfastiado das cinzentas planicies de Castella-a-Velha, não encontrando tambem já encanto nos pomares verde-negros da Andaluzia―se fizera ao mar, para buscar outras terras, e mirar algo nuevo. Tres annos sulcou incertamente a melancolia das aguas atlanticas: mezes tristes errou perdido nos nevoeiros das Bermudas: toda a esperança findára, já as prôas gastas se voltavam para os lados onde ficára a Hespanha. E eis que n'uma manhã de grande sol, em dia de S. João, surgem ante a armada extatica os esplendores da Florida! «Gracias te sean, mi S. Juan bendito, que he mirado algo nuevo!» As lagrimas corriam-lhe pelas barbas brancas―e Juan Ponce de Leon morreu de emoção. Nós não morremos: mas lagrimas congeneres com as do velho mareante saltaram-me dos olhos, quando pela primeira vez penetrei por entre o brilho sombrio e os perfumes acres das Flôres do Mal. Eramos assim absurdos em 1867!

De resto, exactamente como Ponce de Leon, eu só procurava em Litteratura e Poesia algo nuevo que mirar. E para um meridional de vinte annos, [7] amando sobretudo a Côr e o Som na plenitude da sua riqueza, que poderia ser esse algo nuevo senão o luxo novo das fórmas novas? A Fórma, a belleza inedita e rara da Fórma, eis realmente, n'esses tempos de delicado sensualismo, todo o meu interesse e todo o meu cuidado! Decerto eu adorava a Idéa na sua essencia;―mas quanto mais o Verbo que a encarnava! Baudelaire, mostrando á sua amante na Charogne a carcassa pôdre do cão e equiparando em ambas as miserias da carne, era para mim de magnifica surpreza e enlevo: e diante d'esta crespa e atormentada subtilisação do sentir, que podia valer o facil e velho Lamartine no Lago, mostrando a Elvira a cansada lua, e comparando em ambas a pallidez e a graça meiga? Mas se este aspero e funebre espiritualismo de Baudelaire me chegasse expresso na lingua lassa e molle de Casimir Delavigne―eu não lhe teria dado mais apreço do que a versos vis do Almanach de Lembranças.

Foi sensualmente enterrado n'esta idolatria da Fórma, que deparei com essas Lapidarias de Fradique Mendes, onde julguei vêr reunidas e fundidas as qualidades discordantes de magestade e de nervosidade que constituiam, ou me pareciam constituir, a grandeza dos meus dois idolos―o auctor das Flôres do Mal e o auctor dos Poemas Barbaros. A isto accrescia, para me fascinar, que este poeta era portuguez, cinzelava assim preciosamente a lingua que até ahi tivera como joias acclamadas o Noivado do Sepulchro e o Avè Cesar!, habitava [8] Lisboa, pertencia aos Novos, possuia decerto na alma, talvez no viver, tanta originalidade poetica como nos seus poemas! E esse folhetim amarrotado da Revolução de Setembro tomava assim a importancia d'uma revelação d'Arte, uma aurora de Poesia, nascendo para banhar as almas moças na luz e no calor especial a que ellas aspiravam, meio adormecidas, quasi regeladas sob o algido luar do Romantismo. Graças te sejam dadas, meu Fradique bemdito, que na minha velha lingua hé mirado algo nuevo! Creio que murmurei isto, banhado em gratidão. E, com o numero da Revolução de Setembro, corri a casa de J. Teixeira de Azevedo, á travessa do Guarda-Mór, a annunciar o advento esplendido!

Encontrei-o, como de costume, nos silenciosos vagares das tardes de verão, em mangas de camisa, diante de uma bacia que trasbordava de morangos e de vinho de Torres. Com vozes clamorosas, atirando gestos até ao tecto, declamei-lhe a Morte do Santo. Se bem recordo, este asceta, ao findar sobre as neves da Silesia, era miserrimamente trahido pela desleal Natureza! Todos os appetites da paixão e do corpo, tão laboriosamente recalcados por elle durante meio seculo d'ermo, irrompiam de repente, á beira da eternidade, n'um tumulto bestial, não querendo para sempre findar com a carne que ia findar―antes de serem uma vez satisfeitos! E os anjos que, para o receber, desciam d'aza serena, sobraçando mólhos de Palmas [9] e cantando os Epithalamios, encontravam, em vez d'um Santo, um Satyro, senil e grotesco―que de rojos, entre bramidos sordidos, mordia com beijos vorazes a neve, a macia alvura da neve, onde o seu delirio furiosamente imaginava nudezes de cortezãs!... Tudo isto era tratado com uma grandeza sobria e rude que me parecia sublime. J. Teixeira d'Azevedo achou tambem «sublime―mas bréjeiro». E concordou que convinha desentulhar Fradique Mendes da obscuridade, e erguel-o no alto do escudo como o radiante mestre dos Novos.

Fui logo n'essa noite á Revolução de Setembro, procurar um companheiro meu de Coimbra, Marcos Vidigal, que, nos nossos alegres tempos de Direito Romano e Canonico, ganhára, por tocar concertina, lêr a Historia da Musica de Scudo, e lançar através da Academia os nomes de Mozart e de Beethoven, uma soberba auctoridade sobre Musica classica. Agora, vadiando em Lisboa, escrevia na Revolução, aos domingos, uma «Chronica lyrica»―para gozar gratuitamente o bilhete de S. Carlos.

Era um moço com cabellos ralos e côr de manteiga, sardento, apagado de idéas e de modos―mas que despertava e se illuminava todo quando lograva «a chance (como elle dizia) de roçar por um homem celebre, ou de arranchar n'uma coisa original»; e isto tornára-o a elle, pouco a pouco, quasi original e quasi celebre. N'essa noite, que era sabbado e de pesado calor, lá estava á banca, com uma quinzena d'alpaca, suando, bufando, a espremer [10] do seu pobre craneo, como d'um limão meio sêcco, gottas d'uma Chronica sobre a Volpini. Apenas eu alludi a Fradique Mendes, áquelles versos que me tinham maravilhado―Vidigal arrojou a penna, já risonho, com um clarão alvoroçado na face molle:

―Fradique? Se conheço o grande Fradique? É meu parente! É meu patricio! É meu parceiro!

―Ainda bem, Vidigal, ainda bem!

Fomos ao Passeio Publico (onde Marcos se ia encontrar com um agiota). Tomámos sorvetes debaixo das acacias: e pelo chronista da Revolução conheci a origem, a mocidade, os feitos do poeta das Lapidarias.



Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha e rica familia dos Açores; e descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes, filho segundo da casa da Troba, e donatario d'uma das primeiras capitanias creadas nas Ilhas por começos do seculo XVI. Seu pai, homem magnificamente bello, mas de gostos rudes, morrera (quando Carlos ainda gatinhava) d'um desastre, na caça. Seis annos depois sua mãi, senhora tão airosa, pensativa e loura que merecera d'um poeta da Terceira o nome de Virgem d'Ossian, morria tambem d'uma febre trazida dos campos, onde andára bucolicamente, n'um dia de sol forte, cantando e ceifando feno. Carlos ficou em companhia e sob a tutela de sua avó materna, D. Angelina Fradique, velha estouvada, erudita e [11] exotica que colleccionava aves empalhadas, traduzia Klopstock, e perpetuamente soffria dos «dardos d'Amor». A sua primeira educação fôra singularmente emmaranhada: o capellão de D. Angelina, antigo frade benedictino, ensinou-lhe o latim, a doutrina, o horror á maçonaria, e outros principios solidos; depois um coronel francez, duro jacobino que se batera em 1830 na barricada de St-Merry, veio abalar estes alicerces espirituaes fazendo traduzir ao rapaz a Pucelle de Voltaire e a Declaração dos direitos do homem; e finalmente um allemão, que ajudava D. Angelina a enfardelar Klopstock na vernaculidade de Filinto Elysio, e se dizia parente de Emmanuel Kant, completou a confusão iniciando Carlos, ainda antes de lhe nascer o buço, na Critica da Razão pura e na heterodoxia metaphysica dos professores de Tubinguen. Felizmente Carlos já então gastava longos dias a cavallo pelos campos, com a sua matilha de galgos:―e da anemia que lhe teriam causado as abstracções do raciocinio, salvou-o o sôpro fresco dos montados e a natural pureza dos regatos em que bebia.

A avó, tendo imparcialmente approvado estas embrulhadas linhas d'educacão, decidiu de repente, quando Carlos completou dezeseis annos, mandal-o para Coimbra que ella considerava um nobre centro d'estudos classicos e o derradeiro refugio das Humanidades. Corria porém na Ilha que a traductora de Klopstock, apesar dos sessenta annos que lhe revestiam a face d'um pêllo mais denso que a hera [12] d'uma ruina, decidira afastar o neto―para casar com o bolieiro.

Durante tres annos Carlos tocou guitarra pelo Penedo da Saudade, encharcou-se de carrascão na tasca das Camêlas, publicou na Idéa sonetos asceticos, e amou desesperadamente a filha d'um ferrador de Lorvão. Acabava de ser reprovado em Geometria quando a avó morreu subitamente, na sua quinta das Tornas, n'um caramanchão de rosas, onde se esquecera toda uma sésta de junho, tomando café, e escutando a viola que o cocheiro repicava com os dedos carregados d'anneis.

Restava a Carlos um tio, Thadeu Mendes, homem de luxo e de boa mesa, que vivia em Paris preparando a salvação da Sociedade com Persigny, com Morny, e com o principe Luiz Napoleão de quem era devoto e crédor. E Carlos foi para Paris estudar Direito nas cervejarias que cercam a Sorbonne, á espera da maioridade que lhe devia trazer as heranças accumuladas do pai e da avó―calculadas por Vidigal n'um farto milhão de cruzados. Vidigal, filho d'uma sobrinha de D. Angelina, nascido na Terceira, possuia por legado, conjuntamente com Carlos, uma quinta chamada o Corvovello. D'ahi lhe vinha ser «parente, patricio e parceiro» do homem das Lapidarias .

Depois d'isto Vidigal sabia apenas que Fradique, livre e rico, sahira do Quartier-Latin a começar uma existencia soberba e fogosa. Com um impeto de ave solta, viajára logo por todo o mundo, a [13]todos os sopros do vento, desde Chicago até Jerusalem, desde a Islandia até ao Sahará. N'estas jornadas, sempre emprehendidas por uma solicitação da intelligencia ou por ancia d'emoções, achára-se envolvido em feitos historicos e tratára altas personalidades do seculo. Vestido com a camisa escarlate, acompanhára Garibaldi na conquista das Duas-Sicilias. Encorporado no Estado-Maior do velho Napier, que lhe chamava the Portuguese Lion (o Leão Portuguez), fizera toda a campanha da Abyssinia. Recebia cartas de Mazzini. Havia apenas mezes que visitára Hugo no seu rochedo de Guernesey...

Aqui recuei, com os olhos esbugalhados! Victor Hugo (todos ainda se lembram), desterrado então em Guernesey, tinha para nós, idealistas e democratas de 1867, as proporções sublimes e lendarias d'um S. João em Pathmos. E recuei protestando, com os olhos esbugalhados, tanto se me afigurava fóra das possibilidades que um portuguez, um Mendes tivesse apertado nas suas a mão augusta que escrevera a Lenda dos Seculos! Correspondencia com Mazzini, camaradagem com Garibaldi, vá! Mas na ilha sagrada, ao rumor das ondas da Mancha, passear, conversar, scismar com o vidente dos Miseraveis―parecia-me a impudente exaggeração d'um ilhéo que me queria intrujar...

―Juro! gritou Vidigal, levantando a mão veridica ás acacias que nos cobriam.

E immediatamente, para demonstrar a verosimilhança d'aquella gloria, já altissima para Fradique, [14] contou-me outra, bem superior, e que cercava o estranho homem d'uma aureola mais refulgente. Não se tratava já de ser estimado por um homem excelso―mas, coisa preciosa entre todas, de ser amado por uma excelsa mulher. Pois bem! Durante dois annos, em Paris, Fradique fôra o eleito de Anna de Léon, a gloriosa Anna de Léon, a mais culta e bella cortezã (Vidigal dizia «o melhor bocado») do Segundo Imperio, de que ella, pela graça especial da sua voluptuosidade intelligente, como Aspasia no seculo de Pericles, fôra a expressão e a flôr!

Muitas vezes eu lêra no Figaro os louvores de Anna de Léon, e sabia que poetas a tinham celebrado sob o nome de Venus Victoriosa. Os amores com a cortezã não me impressionaram decerto tanto como a intimidade com o homem das Contemplações: mas a minha incredulidade cessou―e Fradique assumiu para mim a estatura d'um d'esses sêres que, pela seducção ou pelo genio, como Alcibiades ou como Goethe, dominam uma civilisação, e d'ella colhem deliciosamente tudo o que ella póde dar em gostos e em triumphos.

Foi por isso talvez que córei, intimidado, quando Vidigal, reclamando outro sorvete de leite, se offereceu para me levar ao surprehendente Fradique. Sem me decidir, pensando em Novalis que tambem assim hesitava, enleado, ao subir uma manhã em Berlim as escadas d'Hegel―perguntei a Vidigal se o poeta das Lapidarias residia em Lisboa... [15] Não! Fradique viera de Inglaterra visitar Cintra, que adorava, e onde comprára a quinta da Saragoça, no caminho dos Capuchos, para ter de verão em Portugal um repouso fidalgo. Estivera lá desde o dia de Santo Antonio:―e agora parára em Lisboa, no Hotel Central, antes de recolher a Paris, seu centro e seu lar. De resto, accrescentou Marcos, não havia como Fradique ninguem tão simples, tão alegre, tão facil. E, se eu desejava conhecer um homem genial, que esperasse ao outro dia, domingo, ás duas, depois da missa do Loreto, á porta da Casa Havaneza.

―Valeu? Ás duas, religiosamente, depois da missa!

Bateu-me o coração. Por fim, com um esforço, como Novalis no patamar d'Hegel, afiancei, pagando os sorvetes, que ao outro dia, ás duas, religiosamente, mas sem missa, estaria no portal da Havaneza!



II


Gastei a noite preparando phrases, cheias de profundidade e belleza, para lançar a Fradique Mendes! Tendiam todas á glorificação das Lapidarias. E lembro-me de ter, com amoroso cuidado, burilado [16] e repolido esta:―«A fórma de v. exc.a é um marmore divino com estremecimentos humanos!»

De manhã apurei requintadamente a minha toilette como se, em vez de Fradique, fosse encontrar Anna de Léon―com quem já n'essa madrugada, n'um sonho repassado de erudição e sensibilidade, eu passeára na Via Sagrada que vai de Athenas a Eleusis, conversando, por entre os lyrios que desfolhavamos, sobre o ensino de Platão e a versificação das Lapidarias. E ás duas horas, dentro de uma tipoia, para que o macadam regado me não maculasse o verniz dos sapatos, parava na Havaneza, pallido, perfumado, commovido, com uma tremenda rosa de chá na lapella. Eramos assim em 1867!

Marcos Vidigal já me esperava, impaciente, roendo o charuto. Saltou para a tipoia; e batemos através do Loreto, que escaldava ao sol do agosto.

Na rua do Alecrim (para combater a pueril emoção que me enleava) perguntei ao meu companheiro quando publicaria Fradique as Lapidarias. Por entre o barulho das rodas Vidigal gritou:

―Nunca!

E contou que a publicação d'aquelles trechos na Revolução de Setembro quasi occasionára, entre Fradique e elle, «uma pega intellectual». Um dia, depois de almoço, em Cintra, emquanto Fradique fumava o seu chibouk persa, Vidigal, na sua familiaridade, como patricio e como parente, abrira sobre [17] a mesa uma pasta de velludo negro. Descobrira, surprehendido, largas folhas de versos, n'uma tinta já amarellada. Eram as Lapidarias. Lêra a primeira, a Serenada de Satan aos astros. E, maravilhado, pedira a Fradique para publicar na Revolução algumas d'essas estrophes divinas. O primo sorrira, consentira―com a rigida condição de serem firmadas por um pseudonymo. Qual?... Fradique abandonava a escolha á phantasia de Vidigal. Na redacção, porém, ao revêr as provas, só lhe acudiram pseudonymos decrepitos e safados, o Independente, o Amigo da Verdade, o Observador―nenhum bastante novo para dignamente firmar poesia tão nova. Disse comsigo:―«Acabou-se! Sublimidade não é vergonha. Ponho-lhe o nome!» Mas quando Fradique viu a Revolução de Setembro ficou livido, e chamou regeladamente a Vidigal «indiscreto, burguez e philisteu»!―E aqui Vidigal parou para me pedir a significação de philisteu. Eu não sabia; mas archivei gulosamente o termo, como amargo. Recordo até que logo n'essa tarde, no Martinho, tratei de philisteu o auctor consideravel do Avè César!

―De modo que, rematou Vidigal, é melhor não lhe fallares nas Lapidarias!

Sim! pensava eu. Talvez Fradique, á maneira do chanceller Bacon e d'outros homens grandes pela acção, deseje esconder d'este mundo de materialidade e de força o seu fino genio poetico! Ou talvez essa ira, ao vêr o seu nome impresso debaixo [18] de versos com que se orgulharia Lecomte de Lisle, seja a do artista nobremente e perpetuamente insatisfeito que não aceita ante os homens como sua a obra onde sente imperfeições! Estes modos de ser, tão superiores e novos, cahiam na minha admiração como oleo n'uma fogueira. Ao pararmos no Central tremia d'acanhamento.

Senti um allivio quando o porteiro annunciou que o snr. Fradique Mendes, n'essa manhã, cedo, tomára uma caleche para Belem. Vidigal empallideceu, de desespero:

―Uma caleche! Para Belem!... Ha alguma coisa em Belem?

Murmurei, n'uma idéa d'Arte, que havia os Jeronymos. N'esse instante uma tipoia, lançada a trote, estacou na rua, com as pilecas fumegando. Um homem desceu, ligeiro e forte. Era Fradique Mendes.

Vidigal, alvoroçado, apresentou-me como um «poeta seu amigo». Elle adiantou a mão sorrindo―mão delicada e branca onde vermelhejava um rubi. Depois, acariciando o hombro do primo Marcos, abriu uma carta que lhe estendia o porteiro.

Pude então, á vontade, contemplar o cinzelador das Lapidarias, o familiar de Mazzini, o conquistador das Duas-Sicilias, o bem-adorado de Anna de Léon! O que me seduziu logo foi a sua esplendida solidez, a sã e viril proporção dos membros rijos, o aspecto calmo de poderosa estabilidade com que parecia assentar na vida, tão livremente e tão firmemente como sobre aquelle chão de ladrilhos [19] onde pousavam os seus largos sapatos de verniz resplandecendo sob polainas de linho. A face era do feitio aquilino e grave que se chama cesareano, mas sem as linhas empastadas e a espessura flaccida que a tradição das Escólas invariavelmente attribue aos Cesares, na tela ou no gesso, para os revestir de magestade; antes pura e fina como a d'um Lucrecio moço, em plena gloria, todo nos sonhos da Virtude e da Arte. Na pelle, d'uma brancura lactea e fresca, a barba, por ser pouca decerto, não deixava depois de escanhoada nem aspereza nem sombra; apenas um buço crespo e leve lhe orlava os labios que, pela vermelhidão humida e pela sinuosidade subtil, pareciam igual e superiormente talhados para a Ironia e para o Amor. E toda a sua finura, misturada de energia, estava nos olhos―olhos pequenos e negros, brilhantes como contas de onyx, d'uma penetração aguda, talvez insistente de mais, que perfurava, se enterrava sem esforço, como uma verruma d'aço em madeira molle.

Trazia uma quinzena solta, d'uma fazenda preta e macia, igual á das calças que cahiam sem um vinco: o collete de linho branco fechava por botões de coral pallido: e o laço da gravata de setim negro, dando relevo á alvura espelhada dos collarinhos quebrados, offerecia a perfeição concisa que já me encantára no seu verso.

Não sei se as mulheres o considerariam bello. Eu achei-o um varão magnifico―dominando sobretudo por uma graça clara que sahia de toda a [20] sua força mascula. Era o seu viço que deslumbrava. A vida de tão varias e trabalhosas actividades não lhe cavára uma prega de fadiga. Parecia ter emergido, havia momentos, assim de quinzena preta e barbeado, do fundo vivo da Natureza. E apesar de Vidigal me ter contado que Fradique festejára os «trinta e tres» em Cintra, pela festa de S. Pedro, eu sentia n'aquelle corpo a robustez tenra e agil de um ephebo, na infancia do mundo grego. Só quando sorria ou quando olhava se surprehendiam immediatamente n'elle vinte seculos de litteratura.

Depois de lêr a carta, Fradique Mendes abriu os braços, n'um gesto desolado e risonho, implorando a misericordia de Vidigal. Tratava-se, como sempre, da Alfandega, fonte perenne das suas amarguras! Agora tinha lá encalhado um caixote, contendo uma mumia egypcia...

―Uma mumia...?

Sim, perfeitamente, uma mumia historica, o corpo veridico e veneravel de Pentaour, escriba ritual do Templo de Amnon em Thebas, e chronista de Ramèzes II. Mandára-o vir de Paris para dar a uma senhora da Legação d'Inglaterra, Lady Ross, sua amiga d'Athenas, que em plena frescura e plena ventura, colleccionava antiguidades funerarias do Egypto e da Assyria... Mas, apesar d'esforços sagazes, não conseguia arrancar o defunto letrado aos armazens da Alfandega―que elle enchera de confusão e de horror. Logo na primeira [21] tarde, quando Pentaour desembarcára, enfaixado dentro do seu caixão, a Alfandega aterrada avisou a policia. Depois, calmadas as desconfianças d'um crime, surgira uma insuperavel difficuldade:―que artigo da pauta se poderia applicar ao cadaver d'um hierogrammata do tempo de Ramèzes? Elle Fradique suggerira o artigo que taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que é um arenque defumado senão a mumia, sem ligaduras e sem inscripções, d'um arenque que viveu? Ter sido peixe ou escriba nada importava para os effeitos fiscaes. O que a Alfandega via diante de si era o corpo d'uma creatura, outr'ora palpitante, hoje seccada ao fumeiro. Se ella em vida nadava n'um cardume nas ondas do mar do Norte, ou se, nas margens do Nilo, ha quatro mil annos, arrolava as rezes de Amnon e commentava os capitulos de fim de dia―não era certamente da conta dos Poderes Publicos. Isto parecia-lhe logico. Todavia as auctoridades da Alfandega continuavam a hesitar, coçando o queixo, diante do cofre sarapintado que encerrava tanto saber e tanta piedade! E agora n'aquella carta os amigos Pintos Bastos aconselhavam, como mais nacional e mais rapido, que se arrancasse um empenho do Ministro da Fazenda para fazer sahir sem direitos o corpo augusto do escriba de Ramèzes. Ora este empenho, quem melhor para o alcançar que Marcos―esteio da Regeneração e seu Chronista musical?

Vidigal esfregava as mãos, illluminado. Ahi estava [22] uma coisa bem digna d'elle, «bem catita»―salvar do fisco a mumia «d'um figurão pharaonico»! E arrebatou a carta dos Pintos Bastos, enfiou para a tipoia, gritou ao cocheiro a morada do Ministro, seu collega na Revolução de Setembro. Assim fiquei só com Fradique―que me convidou a subir aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma «soda e limão».

Pela escada, o poeta das Lapidarias alludiu ao torrido calor d'agosto. E eu que n'esse instante, defronte do espelho no patamar, revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a frescura da minha rosa―deixei estouvadamente escapar esta coisa hedionda:

―Sim, está d'escachar!

E ainda o torpe som não morrera, já uma afflicção me lacerava, por esta «chulice» de esquina de tabacaria assim atabalhoadamente lançada como um pingo de sêbo sobre o supremo artista das Lapidarias, o homem que conversára com Hugo á beira-mar!... Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra phrase sobre o calor, bem trabalhada, toda scintillante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezes parallelas, em calão teimoso:―«é de rachar»! «está de ananazes»! «derrete os untos»!... Atravessei alli uma d'essas angustias atrozes e grotescas, que, aos vinte annos, quando se começa a vida e a litteratura, vincam a alma―e jámais esquecem.

[23] Felizmente Fradique desapparecera por traz d'um reposteiro de alcova. Só, limpando o suor, considerando que altos pensadores se exprimem assim, com uma simplicidade rude,―serenei. E á perturbação succedeu a curiosidade de descobrir em torno, pelo aposento, algum vestigio da originalidade intensa do homem que o habitava. Vi apenas cançadas cadeiras de reps azul-ferrete, um lustre embuçado em tulle, e uma console, de altos pés dourados, entre as duas janellas que respiravam para o rio. Sómente, sobre o marmore da console, e por meio dos livros que atulhavam uma velha mesa de pau preto, pousavam soberbos ramos de flôres: e a um canto afofava-se um espaçoso divan, installado decerto por Fradique com colchões sobrepostos, que dois cobrejões orientaes revestiam de côres estridentes. Errava além d'isso em toda a sala um aroma desconhecido, que tambem me pareceu oriental, como feito de rosas de Smyrna, mescladas a um fio de canella e mangerona.

Fradique Mendes voltára de dentro, vestido com uma cabaia chineza! Cabaia de mandarim, de sêda verde, bordada a flôres de amendoeira―que me maravilhou e que me intimidou. Vi então que tinha o cabello castanho-escuro, fino e levemente ondeado sobre a testa, mais polida e branca que os marfins de Normandia. E os olhos, banhados agora n'uma luz franca, não apresentavam aquella negrura profunda que eu comparára ao onyx, mas uma côr quente de tabaco escuro da Havana. Accendeu [24] uma cigarrette e ordenou a «soda e limão» a um creado surprehendente, muito louro, muito grave, com uma perola espetada na gravata, largas calças de xadrez verde e preto, e o peito florido por tres cravos amarellos! (Percebi que este servo magnifico se chamava Smith). O meu enleio crescia. Por fim Fradique murmurou, sorrindo, com sincera sympathia:

―Aquelle Marcos é uma flôr!

Concordei, contei a velha estima que me prendia a Vidigal, desde o primeiro anno de Coimbra, dos nossos tempos estouvados de Concertina e Sebenta. Então, alegremente, recordando Coimbra, Fradique perguntou-me pelo Pedro Penedo, pelo Paes, por outros lentes ainda, do antigo typo fradesco e bruto; depois pelas tias Camêlas, essas encantadoras velhas, que escrupulosamente, através de lascivas gerações d'estudantes, tinham permanecido virgens, para poderem no céo, ao lado de Santa Cecilia, passar toda uma eternidade a tocar harpa... Era uma das suas memorias melhores de Coimbra essa taverna das tias Camêlas, e as ceias desabaladas que custavam setenta reis, comidas ruidosamente na penumbra fumarenta das pipas, com o prato de sardinhas em cima dos joelhos, por entre temerosas contendas de Metaphysica e d'Arte. E que sardinhas! Que arte divina em frigir o peixe! Muitas vezes em Paris se lembrára das risadas, das illusões e dos piteus d'então!...

Tudo isto vinha n'um tom muito moço, sincero, [25] singelo―que eu mentalmente classificava de crystallino. Elle estirára-se no divan; eu ficára rente da mesa, onde um ramo de rosas se desfolhava ao calor sobre volumes de Darwin e do Padre Manoel Bernardes. E então, dissipado o acanhamento, todo no appetite de revolver com aquelle homem genial idéas de Litteratura, sem me lembrar que, como Bacon, elle desejava esconder o seu genio poetico, ou artista insatisfeito nunca reconheceria a obra imperfeita,―alludi ás Lapidarias.

Fradique Mendes tirou a cigarette dos labios para rir―com um riso que seria genuinamente galhofeiro, se de certo modo o não contradissesse um laivo de vermelhidão que lhe subira á face côr de leite. Depois declarou que a publicação d'esses versos, com a sua assignatura, fôra uma perfidia do leviano Marcos. Elle não considerava assignaveis esses pedaços de prosa rimada, que decalcára, havia quinze annos, na idade em que se imita, sobre versos de Lecomte de Lisle, durante um verão de trabalho e de fé, n'uma trapeira do Luxemburgo, julgando-se a cada rima um innovador genial...

Eu acudi affirmando, todo em chamma, que depois da obra de Baudelaire nada em Arte me impressionára como as Lapidarias! E ia lançar a minha esplendida phrase, burilada n'essa noite com paciente cuidado:―«A fórma de v. exc.a é um marmore divino...» Mas Fradique deixára o divan [26] e pousava em mim os olhos finos de onix, com uma curiosidade que me verrumava:

―Vejo então, disse elle, que é um devoto do maganão das Flôres do Mal!

Córei, áquelle espantoso termo de maganão. E, muito grave, confessei que para mim Baudelaire dominava, á maneira d'um grande astro, logo abaixo d'Hugo, na moderna Poesia. Então Fradique, sorrindo paternalmente, afiançou que bem cedo eu perderia essa illusão! Baudelaire (que elle conhecera) não era verdadeiramente um poeta. Poesia subentendia emoção: e Baudelaire, todo intellectual, não passava d'um psychologo, d'um analysta―um dissecador subtil d'estados morbidos. As Flôres do Mal continham apenas resumos criticos de torturas moraes que Baudelaire muito finamente comprehendera, mas nunca pessoalmente sentira. A sua obra era como a d'um pathologista, cujo coração bate normal e serenamente, emquanto descreve, á banca, n'uma folha de papel, pela erudição e observação accumuladas, as perturbações temerosas d'uma lesão cardiaca. Tanto assim que Baudelaire compuzera primeiro em prosa as Flôres do Mal―e só mais tarde, depois de rectificar a justeza das analyses, as passára a verso, laboriosamente, com um diccionario de rimas!... De resto em França (accrescentou o estranho homem) não havia poetas. A genuina expressão da clara intelligencia franceza era a prosa. Os seus mais finos conhecedores prefeririam sempre os poetas cuja poesia se caracterisasse [27] pela precisão, lucidez, sobriedade―que são qualidades de prosa; e um poeta tornava-se tanto mais popular quanto mais visivelmente possuia o genio de prosador. Boileau continuaria a ser um classico e um immortal, quando já ninguem se lembrasse em França do tumultuoso lyrismo de Hugo...

Dizia estas coisas enormes n'uma voz lenta, penetrante―que ia recortando os termos com a certeza e a perfeição d'um buril. E eu escutava, varado! Que um Boileau, um pedagogo, um lambão de côrte, permanecesse nos cimos da Poesia Franceza, com a sua Ode á tomada de Namur, a sua cabelleira e a sua ferula, quando o nome do poeta da Lenda dos Seculos fosse como um suspiro do vento que passou―parecia-me uma d'essas affirmações, de rebuscada originalidade, com que se procura assombrar os simples, e que eu mentalmente classificava de insolente. Tinha mil coisas, abundantes e esmagadoras, a contestar: mas não ousava, por não poder apresental-as n'aquella fórma translucida e geometrica do poeta das Lapidarias. Essa cobardia, porém, e o esforço para reter os protestos do meu enthusiasmo pelos Mestres da minha mocidade, suffocava-me, enchia-me de mal-estar: e anciava só por abalar d'aquella sala onde, com tão bolorentas opiniões classicas, tanta rosa nas jarras e todas as molles exhalações de canella e mangerona,―se respirava conjuntamente um ar abafadiço de Serralho e de Academia.

[28] Ao mesmo tempo julgava humilhante ter soltado apenas, n'aquella conversação com o familiar de Mazzini e d'Hugo, miudos reparos sobre o Pedro Penedo e o carrascão das Camêlas. E na justa ambição de deslumbrar Fradique com um resumo critico, provando as minhas finas letras, recorri á phrase, á lapidada phrase, sobre a fórma do seu verso. Sorrindo, retorcendo o buço, murmurei:―«Em todo o caso a fórma de v. exc.a é um marmore...» Subitamente, á porta que se abrira com estrondo, surgiu Vidigal:

―Tudo prompto! gritou. Despachei o defunto!

O ministro, homem de poesia, e de eloquencia, interessára-se francamente por aquella mumia d'um «collega», e jurára logo poupar-lhe o opprobrio de ser tarifada como peixe salgado. S. exc.a tinha mesmo ajuntado:―«Não, senhor! não, senhor! Ha de entrar livremente, com todas as honras devidas a um classico!» E logo de manhã Pentaour deixaria a Alfandega, de tipoia!

Fradique riu d'aquella designação de classico dada a um hierogrammata do tempo de Ramèzes―e Vidigal, triumphante, abancando ao piano, entoou com ardor a Grã-Duqueza. Então eu, tomado estranhamente, sem razão, por um sentimento de inferioridade e de melancolia, estendi a mão para o chapéo. Fradique não me reteve; mas os dois passos com que me acompanhou no corredor, o seu sorriso e o seu shake-hands, foram perfeitos. Apenas na rua, desabafei:―, foram perfeitos. Apenas na rua, desabafei:―«Que pedante!»

[29] Sim, mas inteiramente novo, dessemelhante de todos os homens que eu até ahi conhecera! E á noite, na travessa do Guarda-Mór (occultando a escandalosa apologia de Boileau, para nada d'elle mostrar imperfeito), espantei J. Teixeira d'Azevedo com um Fradique idealisado, em que tudo era irresistivel, as idéas, o verbo, a cabaia de sêda, a face marmorea de Lucrecio moço, o perfume que esparzia, a graça, a erudição e o gosto!

J. Teixeira d'Azevedo tinha o enthusiasmo difficil e lento em fumegar. O homem deu-lhe apenas a impressão de ser postiço e theatral. Concordou no emtanto que convinha ir estudar «um machinismo de pose montado com tanto luxo»!

Fomos ambos ao Central, dias depois, no fundo d'uma tipoia. Eu, engravatado em setim, de gardenia ao peito. J. Teixeira d'Azevedo, caracterisado de «Diogenes do seculo XIX», com um pavoroso cacete ponteado de ferro, chapéo braguez orlado de sêbo, jaquetão encardido e remendado que lhe emprestára o creado, e grossos tamancos ruraes!... Tudo isto arranjado com trabalho, com despeza, com intenso nojo, só para horrorisar Fradique―e diante d'esse homem de sceptismo e de luxo, altivamente affirmar, como democrata e como idealista, a grandeza moral do remendo e a philosophica austeridade da nodoa! Eramos assim em 1867!

Tudo perdido! Perdida a minha gardenia, perdida a immundicie estoica do meu camarada! O [30] snr. Fradique Mendes (disse o porteiro) partira na vespera n'um vapor que ia buscar bois a Marrocos.



III


Alguns annos passaram. Trabalhei, viajei. Melhor fui conhecendo os homens e a realidade das coisas, perdi a idolatria da Fórma, não tornei a lêr Baudelaire. Marcos Vidigal, que, através da Revolução de Setembro, trepára da Chronica Musical á Administração Civil, governava a India como Secretario Geral, de novo entregue, n'esses ocios asiaticos que lhe fazia o Estado, á Historia da Musica e á concertina: e levado assim esse grato amigo do Tejo para o Mandovi eu não soubera mais do poeta das Lapidarias. Nunca porém se me apagára a lembrança do homem singular. Antes por vezes me succedia de repente vêr, claramente vêr, n'um relevo quasi tangivel―a face eburnea e fresca, os olhos côr de tabaco insistentes e verrumando, o sorriso sinuoso e sceptico onde viviam vinte seculos de litteratura.

Em 1871 percorri o Egypto. Uma occasião, em Memphis, ou no sitio em que foi Memphis, navegava nas margens inundadas do Nilo, por entre [31] palmeiraes que emergiam da agua, e reproduziam sobre um fundo radiante de luar oriental, o recolhimento e a solemnidade triste de longas arcarias de claustros. Era uma solidão, um vasto silencio de terra morta, apenas dôcemente quebrado pela cadencia dos remos e pelo canto dolente do arraes... E eis que subitamente (sem que recordação alguma evocasse até esta imagem)―vejo, nitidamente vejo, avançando com o barco, e com elle cortando as faxas de luz e sombra, o quarto do Hotel Central, o grande divan de côres estridentes, e Fradique, na sua cabaia de sêda, celebrando por entre o fumo da cigarette a immortalidade de Boileau! E eu mesmo já não estava no Oriente, nem em Memphis, sobre as immoveis aguas do Nilo; mas lá, entre o reps azul, sob o lustre embuçado em tulle, diante das duas janellas que miravam o Tejo, sentindo em baixo as carroças de ferragens rolarem para o Arsenal. Perdera porém o acanhamento que então me enleava. E, durante o tempo que assim remámos n'esta decoração pharaonica para a morada do Sheik de Abou-Kair, fui argumentando com o poeta das Lapidarias, e enunciando emfim, na defeza de Hugo e Baudelaire, as coisas finas e tremendas com que o devia ter emmudecido n'aquella tarde de agosto! O arraes cantava os vergeis de Damasco. Eu berrava mentalmente:―«Mas veja v. exc.a nos Miseraveis a alta lição moral...»

Ao outro dia, que era o da festa do Beiram, recolhi ao Cairo pela hora mais quente; quando os [32] muezzins cantam a terceira oração. E ao apear do meu burro, diante do Hotel Sheperd, nos jardins do Ezbekieh, quem hei de eu avistar? Que homem, d'entre todos os homens, avistei eu no terraço, estendido n'uma comprida cadeira de vime, com as mãos cruzadas por traz da nuca, o Times esquecido sobre os joelhos, embebendo-se todo de calor e de luz? Fradique Mendes.

Galguei os degraus do terraço, lançando o nome de Fradique, por entre um riso de transbordante prazer. Sem desarranjar a sua beatitude, elle descruzou apenas um braço que me estendeu com lentidão. O encanto do seu acolhimento esteve na facilidade com que me reconheceu, sob as minhas lunetas azues, e o meu vasto chapéo panamá:

―«Então como vai desde o Hotel Central?... Ha quanto tempo pelo Cairo?»

Teve ainda outras palavras indolentes e affaveis. N'um banco ao seu lado, todo eu sorria, limpando o pó que me empastára a face com uma espessura de mascara. Durante o curto e dôce momento que alli conversámos, soube que Fradique chegára havia uma semana de Suez, vindo das margens do Euphrates e da Persia, por onde errára, como nos contos de fadas, um anno inteiro e um dia; que tinha um debarieh, com o lindo nome de Rosa das Aguas, já tripulado e amarrado á sua espera no caes de Boulak; e que ia n'elle subir o Nilo até ao Alto Egypto, até á Nubia, ainda para além de Ibsambul...

[33] Todo o sol do Mar Vermelho e das planicies do Euphrates não lhe tostára a pelle lactea. Trazia, exactamente como no Hotel Central, uma larga quinzena preta e um collete branco fechado por botões de coral. E o laço da gravata de setim negro representava bem, n'aquella terra de roupagens soltas e rutilantes, a precisão formalista das idéas occidentaes.

Perguntou-me pela pachorrenta Lisboa, por Vidigal que burocratisava entre os palmares brahmanicos... Depois, como eu continuava a esfregar o suor e o pó, aconselhou que me purificasse n'um banho turco, na piscina que fica ao pé da Mesquita de El-Monyed, e que repousasse toda a tarde, para percorrermos á noite as illuminações do Beiram.

Mas em logar de descançar, depois do banho lustral, tentei ainda, ao trote dôce de um burro, através da poeira quente do deserto libyco, visitar fóra do Cairo as sepulturas dos Kalifas. Quando á noite, na sala do Sheperd, me sentei diante da sopa de «rabo de boi», a fadiga tirára-me o animo de pasmar para outras maravilhas musulmanas. O que me appetecia era o leito fresco, no meu quarto forrado de esteiras, onde tão romanticamente se ouviam cantar no jardim as fontes entre os rosaes.

Fradique Mendes já estava jantando, n'uma mesa onde flammejava, entre as luzes, um ramo enorme de cactos. Ao seu lado pousava de leve, sobre um escabello mourisco, uma senhora, vestida de branco, a quem eu só via a massa esplendida dos cabellos [34] louros, e as costas, perfeitas e graciosas, como as d'uma estatua de Praxiteles que usasse um collete de Madame Marcel; defronte, n'uma cadeira de braços, alastrava-se um homem gordo e molle, cuja vasta face, de barbas encaracoladas, cheia de força tranquilla como a de um Jupiter, eu já decerto encontrára algures, ou viva ou em marmore. E cahi logo n'esta preoccupação. Em que rua, em que museu admirára eu já aquelle rosto olympico, onde apenas a fadiga do olhar, sob as palpebras pesadas, trahia a argilla mortal?

Terminei por perguntar ao negro de Seneh que servia o macarrão. O selvagem escancarou um riso de faiscante alvura no ebano do carão redondo, e, através da mesa, grunhiu com respeito:―Cé-le-diêu... Justos céos! Le Dieu! Intentaria o negro affirmar que aquelle homem de barbas encaracoladas era um Deuso Deus especial e conhecido que habitava o Sheperd! Fôra pois n'um altar, n'uma téla devota, que eu vira essa face, dilatada em magestade pela absorpção perenne do incenso e da prece? De novo interroguei o Nubio quando elle voltou erguendo nas mãos espalmadas uma travessa que fumegava. De novo o Nubio me atirou, em syllabas claras, bem feridas, dissipando toda a incerteza―C'est le Dieu!

Era um Deus! Sorri a esta idéa de litteratura―um Deus de rabona, jantando á mesa do Hotel Sheperd. E, pouco a pouco, da minha imaginação esfalfada foi-se evolando não sei que sonho, esparso [35] e tenue, como o fumo que se eleva de uma brazeira meio apagada. Era sobre o Olympo, e os velhos Deuses, e aquelle amigo de Fradique que se parecia com Jupiter. Os Deuses (scismava eu, colhendo garfadas lentas da salada de tomates) não tinham talvez morrido: e desde a chegada de S. Paulo á Grecia, viviam refugiados n'um valle da Laconia, outra vez entregues, nos ocios que lhes impozera o Deus novo, ás suas occupações primordiaes de lavradores e pastores. Sómente, já pelo habito que os Deuses nunca perderam de imitar os homens, já para escapar aos ultrajes d'uma Christandade pudibunda, os olympicos abafavam sob saias e jaquetões o esplendor das nudezas que a Antiguidade adorára: e como tomavam outros costumes humanos, ora por necessidade (cada dia se torna mais difficil ser Deus), ora por curiosidade (cada dia se torna mais divertido ser Homem), os Deuses iam lentamente consummando a sua humanisação. Já por vezes deixavam a doçura do seu valle bucolico; e com bahús, com saccos de tapete, viajavam por distracção ou negocios, folheando os Guias Bedecker. Uns iam estudar nas cidades, entre a Civilisação, as maravilhas da Imprensa, do Parlamentarismo e do Gaz; outros, aconselhados pelo erudito Hermes, cortavam a monotonia dos longos estios da Attica bebendo as aguas em Vichy ou em Carlsbad: outros ainda, na saudade imperecivel das omnipotencias passadas, peregrinavam até ás ruinas dos templos onde outr'ora lhes era [36] offertado o mel e o sangue das rezes. Assim se tornava verosimil que aquelle homem, cuja face cheia de magestade e força serena reproduzia as feições com que Jupiter se revelou á Escóla d'Athenas―fosse na realidade Jupiter, o Tonante, o Fecundador, pai inesgotavel dos Deuses, creador da Regra e da Ordem. Mas que motivo o traria alli, vestido de flanella azul, pelo Cairo, pelo Hotel Sheperd, comendo um macarrão que profanadoramente se prendia ás barbas divinas por onde a ambrosia escorrera? Certamente o dôce motivo que através da Antiguidade, em Céo e Terra, sempre inspirára os actos de Jupiter―do frascario e femeeiro Jupiter. O que o podia arrastar ao Cairo senão alguma saia, esse desejo esplendidamente insaciavel de deusas e de mulheres que outr'ora tornava pensativas as donzellas da Hellenia ao decorarem na Cartilha Pagã as datas em que elle batera as azas de Cysne entre os joelhos de Leda, sacudira as pontas de touro entre os braços d'Europa, gottejára em pingos d'ouro sobre o seio de Danae, pulára em linguas de fogo até aos labios d'Egina, e mesmo um dia, enojando Minerva e as damas sérias do Olympo, atravessára toda a Macedonia com uma escada ao hombro para trepar ao alto eirado da morena Seméle? Agora, evidentemente, viera ao Cairo passar umas férias sentimentaes, longe da Juno molle e conjugal, com aquella viçosa mulher, cujo busto irresistivel provinha das artes conjuntas de Praxiteles e de Madame Marcel. E ella, quem seria ella? A côr das suas [37] tranças, a suave ondulação dos seus hombros, tudo indicava claramente uma d'essas deliciosas Nymphas das Ilhas da Ionia, que outr'ora os Diaconos Christãos expulsavam dos seus frescos regatos, para n'elles baptisar centuriões cacheticos e comidos de dividas, ou velhas matronas com pêllo no queixo, tropegas do incessante peregrinar aos altares de Aphrodite. Nem elle nem ella porém podiam esconder a sua origem divina: através do vestido de cassa o corpo da Nympha irradiava uma claridade; e, attendendo bem, vêr-se-hia a fronte marmorea de Jupiter arfar em cadencia, no calmo esforço de perpetuamente conceber a Regra e a Ordem.

Mas Fradique? Como se achava alli Fradique, na intimidade dos Immortaes, bebendo com elles champagne Clicquot, ouvindo de perto a harmonia ineffavel da palavra de Jove? Fradique era um dos derradeiros crentes do Olympo, devotamente prostrado diante da Fórma, e transbordando de alegria pagã. Visitára a Laconia; fallava a lingua dos Deuses; recebia d'elles a inspiração. Nada mais consequente do que descobrir Jupiter no Cairo, e prender-se logo ao seu serviço, como cicerone, nas terras barbaras de Allah. E certamente com elle e com a Nympha da Ionia ia Fradique subir o Nilo, na Rosa das Aguas, até aos derrocados templos onde Jupiter poderia murmurar, pensativo, e indicando minas d'aras com a ponta do guarda-sol:―«Abichei aqui muito incenso!»

Assim, através da salada de tomates, eu desenvolvia [38] e coordenava estas imaginações―decidido a convertel-as n'um Conto para publicar em Lisboa na Gazeta de Portugal. Devia chamar-se A derradeira campanha de Jupiter:―e n'elle obtinha o fundo erudito e phantasista para incrustar todas as notas de costumes e de paizagens colhidas na minha viagem do Egypto. Sómente, para dar ao conto um relevo de modernidade e de realismo picante, levaria a Nympha das aguas, durante a jornada do Nilo, a enamorar-se de Fradique e a trahir Jupiter! E eil-a aproveitando cada recanto de palmeiral e cada sombra lançada pelos velhos pilones d'Osiris para se pendurar do pescoço do poeta das Lapidarias, murmurar-lhe coisas em grego mais dôces que os versos de Hesiodo, deixar-lhe nas flanellas o seu aroma de ambrosia, e ser por todo esse valle do Nilo immensamente cochonne―emquanto o Pai dos Deuses, cofiando as barbas encaracoladas, continuaria imperturbavelmente a conceber a Ordem, supremo, augusto, perfeito, ancestral e cornudo!

Enthusiasmado, já construia a primeira linha do Conto: «Era no Cairo, nos jardins de Choubra, depois do jejum do Ramadan...»―quando vi Fradique adiantar-se para mim, com a sua chavena de café na mão. Jupiter tambem se erguera, cançadamente. Pareceu-me um Deus pesado e molle, com um principio de obesidade, arrastando a perna tarda, bem proprio para o ultrage que eu lhe preparava na Gazeta de Portugal. Ella porém tinha a harmonia, [39] o aroma, o andar, a irradiação d'uma Deusa!... Tão realmente divina que resolvi logo substituir-me a Fradique no Conto, ser eu o cicerone, e com os Immortaes vogar á véla e á sirga sobre o rio de immortalidade! Junto á minha face, não á de Fradique, balbuciaria ella, desfallecendo de paixão entre os granitos sacerdotaes de Medinet-Abou, as coisas mais dôces da Anthologia! Ao menos, em sonho, realisava uma triumphal viagem a Thebas. E faria pensar aos assignantes da Gazeta de Portugal:―«O que elle por lá gozou!»

Fradique sentára-se, recebendo, de Jove e da Nympha que passavam, um sorriso cuja doçura tambem me envolveu. Vivamente puxei a cadeira para o poeta das Lapidarias:

―Quem é este homem? Conheço-lhe a cara...

―Naturalmente, de gravuras... É Gautier!

Gautier! Theophilo Gautier! O grande Theo! O mestre impeccavel! Outro ardente enlevo da minha mocidade! Não me enganára pois inteiramente. Se não era um Olympico―era pelo menos o derradeiro Pagão, conservando, n'estes tempos de abstracta e cinzenta intellectualidade, a religião verdadeira da Linha e da Côr! E esta intimidade de Fradique com o auctor de Mademoiselle de Maupin, com o velho paladino de Hernani, tornou-me logo mais precioso este compatriota que dava á nossa gasta Patria um lustre tão original! Para saber se elle preferia aniz ou genebra acariciei-lhe a manga com meiguice. E foi em mim um extase [40] ruidoso, diante da sua agudeza, quando elle me aclarou o grunhir do negro de Seneh. O que eu tomára pelo annuncio d'uma presença divina significava apenas―c'est le deux! Gautier no hotel occupava o quarto numero dois. E, para o barbaro, o plastico mestre do Romantismo era apenas―o dois!

Contei-lhe então a minha phantasia pagã, o Conto que ia trabalhar, os perfeitos dias de paixão que lhe destinava na viagem para a Nubia. Pedi mesmo permissão para lhe dedicar a Derradeira Campanha de Jupiter. Fradique sorriu, agradeceu. Desejaria bem (confessou elle) que essa fosse a realidade, porque não se podia encontrar mulher de mais genuina belleza e de mais aguda seducção do que essa Nympha das aguas, que se chamava Jeanne Morlaix, e era comparsa dos Delassements-Comiques. Mas, para seu mal, a radiosa creatura estava caninamente namorada de um Sicard, corretor de fundos, que a trouxera ao Cairo, e que fôra n'essa tarde, com banqueiros gregos, jantar aos jardins de Choubra...

―Em todo o caso, accrescentou o originalissimo homem, nunca esquecerei, meu caro patricio, a sua encantadora intenção!

Descartes, zombando, creio eu, da physica Epicuriana ou atomista, falla algures das affeiçoes produzidas pelos Atomes crochus, atomos recurvos, em fórma de colchete ou d'anzol, que se engancham invisivelmente de coração a coração, e formam essas cadeias, resistentes como o bronze de Samothracia, [41] que para sempre ligam e fundem dois sêres, n'uma constancia vencedora da Sorte e sobrevivente á Vida. Um qualquer nada provoca esse fatal ou providencial enlaçamento d'atomos. Por vezes um olhar, como desastradamente em Verona succedeu a Romeu e Julieta: por vezes o impulso de duas creanças para o mesmo fructo, n'um vergel real, como na amizade classica de Orestes e Pylades. Ora, por esta theoria (tão satisfatoria como qualquer outra em Psychologia affectiva), a esplendida aventura de amor, que eu tão generosamente reservára a Fradique na Ultima campanha de Jupiter, seria a causa mysteriosa e inconsciente, o nada que determinou a sua primeira sympathia para commigo, desenvolvida, solidificada depois em seis annos de intimidade intellectual.

Muitas vezes, no decurso da nossa convivencia, Fradique alludiu gratamente a essa minha encantadora intenção de lhe atar em torno do pescoço os braços de Jeanne Morlaix. Fôra elle captivado pela sinuosa e poetica homenagem que eu assim prestava ás suas seducções de homem? Não sei.―Mas, quando nos erguemos para ir vêr as illuminações do Beiram, Fradique Mendes, com um modo novo, aberto, quente, quasi intimo, já me tratava por vossê.



As illuminações no Oriente consistem, como as do Minho, de tigellinhas de barro e de vidro onde [42] arde um pavio ou uma mecha d'estopa. Mas a descomedida profusão com que se prodigalisam as tigellinhas (quando as paga o Pachá) torna as velhas cidades meio arruinadas, que assim se enfeitam em louvor de Allah, realmente deslumbrantes―sobretudo para um occidental besuntado de litteratura, e inclinado a vêr por toda a parte, reproduzidas no moderno Oriente, as muito lidas maravilhas d'essas Mil e uma noites que ninguem jámais leu.

Na celebração do Beiram (custeada pelo Khediva), as tigellinhas eram incontaveis―e todas as linhas do Cairo, as mais quebradas e as mais fugidias, resaltavam na escuridão, esplendidamente sublinhadas por um risco de luz. Longas fieiras de pontos refulgentes marcavam a borda dos eirados; as portas abriam sob ferraduras de lumes; dos toldos pendia uma franja que faiscava; um brilho tremia, com a aragem, sobre cada folha d'arvore; e os minaretes, que a Poesia Oriental classicamente compara desde seculos aos braços da Terra levantados para o Céo, ostentavam, como braços em noite de festa, um luxo de braceletes fulgindo na treva serena. Era (lembrei eu a Fradique) como se durante todo o dia tivesse cahido sobre a sordida cidade uma grossa poeirada d'ouro, pousando em cada friso de moucharabieh e em cada grade de varandim, e agora rebrilhasse, com radiosa saliencia, na negrura da noite calma.

Mas, para mim, a belleza especial e nova estava [43] na multidão festiva que atulhava as praças e os bazares―e que Fradique, através do rumor e da poeira, me explicava como um livro de estampas. Com quanta profundidade e miudeza conhecia o Oriente este patricio admiravel! De todas aquellas gentes, intensamente diversas desde a côr até ao traje―elle sabia a raça, a historia, os costumes, o logar proprio na civilisação musalmana. Devagar, abotoado n'um paletot de flanella, com um chicote de nervo (que é no Egypto o emblema de Auctoridade) entalado debaixo do braço, ia apontando, nomeando á minha curiosidade flammejante essas estranhas figuras, que eu comparava, rindo, ás d'uma mascarada fabulosa, arranjada por um archeologo em noite de folia erudita para reproduzir as «modas» dos Semitas e os seus «typos» através das idades:―aqui Fellahs, ridentes e ageis na sua longa camisa de algodão azul; além Beduinos sombrios, movendo gravemente os pés entrapados em ligaduras, com o pesado alfange de bainha escarlate pendurado no peito; mais longe Abadiehs, de grenha em fórma de mêda, eriçada de longas cerdas de porco-espinho que os corôam d'uma aureola negra... Estes, de porte insolente; com compridos bigodes esvoaçando ao vento, armas ricas reluzindo nas cintas de sêda, e curtos saiotes tufados e encanudados, eram Arnautas da Macedonia; aquelles, bellas estatuas gregas esculpidas em ebano, eram homens do Sennar; os outros, com a cabeça envolta n'um lenço amarello cujas franjas immensas lhes faziam [44] uma romeira de fios d'ouro, eram cavalleiros do Hedjaz... E quantos ainda elle me fazia distinguir e comprehender! Judeus immundos, de caracoes frisados; Coptas togados á maneira de senadores; soldados pretos do Darfour, com fardetas de linho ennodoadas de poeira e sangue; Ulemas de turbante verde; Persas de mitra de feltro; mendigos de mesquita, cobertos de chagas; amanuenses turcos, pomposos e anafados, de collete bordado a ouro... Que sei eu! Um Carnaval rutilante, onde a cada momento passavam, sacudidos pelo trote dos burros sobre albardas vermelhas, enormes saccos enfunados―que eram mulheres. E toda esta turba magnifica e ruidosa se movia entre invocações a Allah, repiques de pandeiretas, gemidos estridentes partindo das cordas das dourbakas, e cantos lentos―esses cantos arabes, d'uma voluptuosidade tão dolente e tão aspera, que Fradique dizia passarem n'alma com uma «caricia rascante». Mas por vezes, entre o casario decrepito e rendilhado, surgia uma frontaria branca, casa rica de Sheik ou de Pachá, com a varanda em arcarias, por onde se avistavam lá dentro, n'um silencio de harem, sêdas colgantes, recamos d'ouro, um tremor de lumes no crystral dos lustres, fórmas airosas sob véos claros... Então a multidão parava, emmudecia, e de todos os labios sahia um grande ah! languido e maravilhado.

Assim caminhavamos, quando, ao sahir do Moujik, Fradique Mendes parou, e, muito gravemente, [45] trocou com um moço pallido, de esplendidos olhos, o salam―essa saudação oriental em que os dedos tres vezes batem a testa, a bôca e o coração. E como eu, rindo, lhe invejava aquella intimidade com um «homem de tunica verde e de mitra persa»:

―É um Ulema de Bagdad, disse Fradique, d'uma casta antiga, superiormente intelligente... Uma das personalidades mais finas e mais seductoras que encontrei na Persia!

Então, com a familiaridade que se ia entre nós accentuando, perguntei a Fradique o que o detivera assim na Persia um anno inteiro e um dia como nos contos de fadas. E Fradique, com toda a singeleza, confessou que se demorára tanto nas margens do Euphrates por se achar casualmente ligado a um movimento religioso que, desde 1849, tomava na Persia um desenvolvimento quasi triumphal, e que se chamava o Babismo. Attrahido para essa nova seita por curiosidade critica, para observar como nasce e se funda uma Religião, chegára pouco a pouco a ganhar pelo Babismo um interesse militante―não por admiração da doutrina, mas por veneração dos apostolos. O Babismo (contou-me elle, seguindo por uma viella mais solitaria e favoravel ás confidencias) tivera por iniciador certo Mirza-Mohamed, um d'esses Messias que cada dia surgem na incessante fermentação religiosa do Oriente, onde a religião é a occupação suprema e querida da vida. Tendo [46] conhecido os Evangelhos Christãos por contacto com os Missionarios; iniciado na pura tradição mosaista pelos judeus do Hiraz; sabedor profundo do Guebrismo, a velha religião nacional da Persia―Mirza-Mohamed amalgamára estas doutrinas com uma concepção mais abstracta e pura do Mahometismo, e declarára-se Bab. Em persa Bab quer dizer Porta. Elle era, pois, a porta―a unica porta através da qual os homens poderiam jámais penetrar na absoluta Verdade. Mais litteralmente, Mirza-Mohamed apresentava-se como o grande porteiro, o homem eleito entre todos pelo Senhor para abrir aos crentes a porta da Verdade―e portanto do Paraiso. Em resumo era um Messias, um Christo. Como tal atravessou a classica evolução dos Messias: teve por primeiros discipulos, n'uma aldeia obscura, pastores e mulheres: soffreu a sua tentação na montanha: cumpriu as penitencias expiadoras: prégou parabolas: escandalisou em Méca os doutores: e padeceu a sua Paixão, morrendo, não me lembro se degolado, se fuzilado, depois do jejum do Rhamadan, em Tabriz.

Ora, dizia Fradique, no mundo musulmano ha duas divisões religiosas―os Sieds e os Sunis. Os Persas são Sieds, como os Turcos são Sunis. Estas differenças porém, no fundo, têm um caracter mais politico e de raça, do que theologico e de dogma; ainda que um fellah do Nilo desprezará sempre um persa do Euphrates como heretico e sujo. A discordancia resalta, mais viva e teimosa, [47] logo que Sieds ou Sunis necessitem pronunciar-se perante uma nova interpretação de doutrina ou uma nova apparição de propheta. Assim o Babismo entre os Sieds, topára com uma hostilidade que se avivou até á perseguição:―a isto desde logo indicava que seria acolhido pelos Sunis com deferencia e sympathia.

Partindo d'esta idéa, Fradique, que em Bagdad se ligára familiarmente com um dos mais vigorosos e auctorisados apostolos do Babismo, Said-El-Souriz (a quem salvára o filho d'uma febre paludosa com applicações de Fruit-salt), suggerira-lhe um dia, conversando ambos no eirado sobre estes altos interesses espirituaes, a idéa de apoiar o Babismo nas raças agricolas do valle do Nilo e nas raças nómadas da Libya. Entre homens de seita Suni, o Babismo encontraria um campo facil ás conversões; e, pela tradicional marcha dos movimentos sectarios, que no Oriente, como em toda a parte, sobem das massas sinceras do povo até ás classes cultas, talvez essa nova onda de emoção religiosa, partindo dos Fellahs e dos Beduinos, chegasse a penetrar no ensino de alguma das mesquitas do Cairo, sobretudo na mesquita de El-Azhar, a grande Universidade do Oriente, onde os ulemas mais moços formam uma cohorte de enthusiastas sempre disposta ás innovações e aos apostolados combattentes. Ganhando ahi auctoridade theologica, e litterariamente polido, o Babismo poderia então atacar com vantagem as velhas fortalezas do Musulmanismo [48] dogmatico. Esta idéa penetrára profundamente em Said-El-Souriz. Aquelle moço pallido, com quem elle trocára o salam, fôra logo mandado como emissario babista a Medinet-Abou (a antiga Thebas), para sondar o Sheik Ali-Hussein, homem de decisiva influencia em todo o valle do Nilo pelo seu saber e pela sua virtude: e elle, Fradique, não tendo agora no Occidente occupações attractivas, cheio de curiosidade por este pittoresco Advento, partia tambem para Thebas, devendo encontrar-se com o babista, á lua mingoante, em Beni-Soueff, no Nilo...

Não recordo, depois de tantos annos, se estes eram os factos certos. Só sei que as revelações de Fradique, lançadas assim através do Cairo em festa, me impressionaram indizivelmente. Á medida que elle fallava do Bab, d'essa missão apostolica ao velho Sheik de Thebas, de uma outra fé surgindo no mundo musulmano com o seu cortejo de martyrios e d'extasis, da possivel fundação de um imperio Babista―o homem tomava aos meus olhos proporções grandiosas. Não conhecera jámais ninguem envolvido em coisas tão altas: e sentia-me ao mesmo tempo orgulhoso e aterrado de receber este segredo sublime. Outra não seria minha commoção, se, nas vesperas de S. Paulo embarcar para a Grecia, a levar a Palavra aos gentilicos, eu tivesse com elle passeado pelas ruas estreitas de Seleucia, ouvindo-lhe as esperanças e os sonhos!

Assim conversando, penetrámos no adro da [49] mesquita de El-Azhar onde mais fulgurante e estridente tumultuava a festa do Beiram. Mas já não me prendiam as surprezas d'aquelle arraial musulmano―nem almées dançando entre brilhos de vermelho e d'ouro; nem poetas do deserto recitando as façanhas d'Antar; nem Derviches, sob as suas tendas de linho, uivando em cadencia os louvores d'Allah... Calado, invadido pelo pensamento do Bab, revolvia commigo o confuso desejo de me aventurar n'essa campanha espiritual! Se eu partisse para Thebas com Fradique?... Porque não? Tinha a mocidade, tinha o enthusiasmo. Mais viril e nobre seria encetar no Oriente uma carreira de evangelista, que banalmente recolher á banal Lisboa, a escrevinhar tiras de papel, sob um bico de gaz, na Gazeta de Portugal! E pouco a pouco d'este desejo, como d'uma agua que ferve, ia subindo o vapor lento d'uma visão. Via-me discipulo do Bab―recebendo n'essa noite, do ulema de Bagdad, a iniciação da Verdade. E partia logo a prégar, a espalhar o verbo babista. Onde iria? A Portugal certamente, levando de preferencia a salvação ás almas que me eram mais caras. Como S. Paulo, embarcava n'uma galera: as tormentas assaltavam a minha prôa apostolica: a imagem do Bab apparecia-me sobre as aguas, e o seu sereno olhar enchia minha alma de fortaleza indomavel. Um dia, por fim, avistava terra, e na manhã clara sulcava o claro Tejo, onde ha tantos seculos não entra um enviado de Deus. Logo de longe lançava uma injuria ás igrejas [50] de Lisboa, construcções d'uma Fé vetusta e menos pura. Desembarcava. E, abandonando as minhas bagagens, n'um desprendimento já divino de bens ainda terrestres, galgava aquella bemdita rua do Alecrim, e em meio do Loreto, á hora em que os Directores Geraes sobem devagar da Arcada, abria os braços e bradava:―«Eu sou a Porta

Não mergulhei no Apostolado babista―mas succedeu que, enlevado n'estas phantasmagorias, me perdi de Fradique. E não sabia o caminho do Hotel Sheperd,―nem, para d'elle me informar, outros termos uteis, em arabe, além de agua e amor! Foram angustiosos momentos em que farejei estonteado pelo largo de El-Azhar, tropeçando nos fogareiros onde fervia o café, esbarrando inconsideradamente contra rudes beduinos armados. Já por sobre a turba atirava, aos brados, o nome de Fradique―quando topei com elle olhando placidamente uma almée que dançava...

Mas seguiu logo, encolhendo os hombros. Nem me permittiu adiante admirar um poeta, que, em meio de fellahs pasmados e de Moghrebinos arrimados ás lanças, lia, n'uma toada langorosa e triste, tiras de papel ensebado. A Dança e a Poesia, affirmava Fradique, as duas grandes artes orientaes, iam em miserrima decadencia. N'uma e outra se tinham perdido as tradições do estylo puro. As almées, pervertidas pela influencia dos casinos do Ezbequieh onde se perneia o can-can―já polluiam a graça das velhas danças arabes, atirando [51] a perna pelos ares á moda vil de Marselha! E na Poesia triumphava a mesma banalidade, mesclada de extravagancia. As fórmas delicadas do classicismo persa nem se respeitavam, nem quasi se conheciam; a fonte da imaginação seccava entre os musulmanos; e a pobre Poesia Oriental, tratando themas vetustos com uma emphase preciosa, descambára, como a nossa, n'um Parnasianismo barbaro...

―De sorte, murmurei, que o Oriente...

―Está tão mediocre como o Occidente.

E recolhemos ao hotel, devagar, emquanto Fradique, findando o charuto, me contava que o espirito oriental, hoje, vive só da actividade philosophica, agitado cada manhã por uma nova e complicada concepção da Moral, que lhe offerecem os Logicos dos bazares e os Metaphysicos do deserto...

Ao outro dia acompanhei Fradique a Boulak, onde elle ia embarcar para o Alto Egypto. O seu debarieh esperava, amarrado á estacaria, rente das casas do Velho Cairo, entre barcas d'Assouan, carregadas de lentilha e de cana dôce. O sol mergulhava nas areias libycas: e ao alto, o céo adormecia, sem uma sombra, sem uma nuvem, puro em toda a sua profundidade como a alma d'um justo. Uma fila de mulheres coptas, com o cantaro amarello pousado no hombro, descia cantando para a agua do Nilo, bemdita entre todas as aguas. E os ibis, antes de recolher aos ninhos, vinham, como no tempo em que eram Deuses, lançar por sobre os eira esperava, amarrado á estacaria, rente das casas do Velho Cairo, entre barcas d'Assouan, carregadas de lentilha e de cana dôce. O sol mergulhava nas areias libycas: e ao alto, o céo adormecia, sem uma sombra, sem uma nuvem, puro em toda a sua profundidade como a alma d'um justo. Uma fila de mulheres coptas, com o cantaro amarello pousado no hombro, descia cantando para a agua do Nilo, bemdita entre todas as aguas. E os ibis, antes de recolher aos ninhos, vinham, como no tempo em que eram Deuses, lançar por sobre os eirados, com um bater d'azas contentes, a benção crepuscular.

[52] Baixei, atraz de Fradique, ao salão do debarieh, envidraçado, estofado, com armas penduradas para as manhãs de caça, e rumas de livros para as séstas de estudo e de calma quando lentamente se navega á sirga. Depois, durante momentos, no convés, contemplámos silenciosamente aquellas margens que, através das compridas idades, têm feito o enlevo de todos os homens, por todos sentirem que n'ellas a vida é cheia de bens maiores e de doçura suprema. Quantos, desde os rudes Pastores que arrazaram Thanis, aqui pararam como nós, alongando para estas aguas, para estes céos, olhos cobiçosos, extaticos ou saudosos: Reis de Judá, Reis de Assyria, Reis da Persia; os Ptolomeus magnificos; Prefeitos de Roma e Prefeitos de Byzancio; Amrou enviado de Mahomet, S. Luiz enviado de Christo; Alexandre-o-Grande sonhando o imperio do Oriente, Bonaparte retomando o immenso sonho; e ainda os que vieram só para contar da terra adoravel, desde o loquaz Herodoto até ao primeiro Romantico, o homem pallido de grande pose que disse as dôres de «Réné»! Bem conhecida é ella, a paizagem divina e sem igual. O Nilo corre, paternal e fecundo. Para além verdejam, sob o vôo das pombas, os jardins e os pomares de Rhodah. Mais longe as palmeiras de Giseh, finas e como de bronze sobre o ouro da tarde, abrigam aldeias que têm a simplicidade de ninhos. Á orla do deserto, erguem-se, no orgulho da sua eternidade, as tres Pyramides. Apenas isto―e para sempre a alma [53] fica presa e lembrando, e para viver n'esta suavidade e n'esta belleza os povos travam entre si longas guerras.

Mas a hora chegára: abracei Fradique com singular emoção. A vela fôra içada á briza suave que arripiava a folhagem das mimosas. Á prôa o arraes, espalmando as mãos para o céo, clamou:―«Em nome de Allah que nos leve, clemente e misericordioso!» Ao redor, d'outras barcas, vozes lentas murmuraram:―«Em nome de Allah que vos leve!» Um dos remadores, sentado á borda, feriu as cordas da dourbaka, outro tomou uma flauta de barro. E entre bençãos e cantos a vasta barca fendeu as aguas sagradas, levando para Thebas o meu incomparavel amigo.



III


Durante annos não tornei a encontrar Fradique Mendes, que concentrára as suas jornadas dentro da Europa Occidental―emquanto eu errava pela America, pelas Antilhas, pelas republicas do golfo do Mexico. E quando a minha vida emfim se aquietou n'um velho condado rural de Inglaterra, Fradique, retomado por essa «bisbilhotice [54] ethnographica» a que elle allude n'uma carta a Oliveira Martins, começava a sua longa viagem ao Brazil, aos Pampas, ao Chili e á Patagonia.

Mas o fio de sympathia, que nos unira no Cairo, não se partiu; nem nós, apesar de tão tenue, o deixámos perder por entre os interesses mais fortes das nossas fortunas desencontradas. Quasi todos os tres mezes trocavamos uma carta―cinco ou seis folhas de papel que eu tumultuosamente atulhava de imagens e impressões, e que Fradique miudamente enchia de idéas e de factos. Além d'isto, eu sabia de Fradique por alguns dos meus camaradas, com quem, durante uma residencia mais intima em Lisboa, do outono de 1875 ao verão de 1876, elle creára amizades onde todos encontraram proveito intellectual e encanto.

Todos, apesar das dissimilhanças de temperamentos ou das maneiras differentes de conceber a vida―tinham como eu sentido a seducção d'aquelle homem adoravel. D'elle me escrevia em novembro de 1877 o auctor do Portugal Contemporaneo:―«Cá encontrei o teu Fradique, que considero o portuguez mais interessante do seculo XIX. Tem curiosas parecenças com Descartes! É a mesma paixão das viagens, que levava o philosopho a fechar os livros «para estudar o grande livro do Mundo»; a mesma attracção pelo luxo e pelo ruido, que em Descartes se traduzia pelo gosto de frequentar as «côrtes e os exercitos»; o mesmo amor do mysterio, e das subitas [55] desapparições; a mesma vaidade, nunca confessada, mas intensa, do nascimento e da fidalguia; a mesma coragem serena; a mesma singular mistura de instinctos romanescos e de razão exacta, de phantasia e de geometria. Com tudo isto falta-lhe na vida um fim sério e supremo, que estas qualidades, em si excellentes concorressem a realisar. E receio que em logar do Discurso sobre o Methodo venha só a deixar um vaudeville». Ramalho Ortigão, pouco tempo depois, dizia d'elle n'uma carta carinhosa:―«Fradique Mendes é o mais completo, mais acabado producto da civilisação em que me tem sido dado embeber os olhos. Ninguem está mais superiormente apetrechado para triumphar na Arte e na Vida. A rosa da sua botoeira é sempre a mais fresca, como a idéa do seu espirito é sempre a mais original. Marcha cinco leguas sem parar, bate ao remo os melhores remadores de Oxford, mette-se sósinho ao deserto a caçar o tigre, arremette com um chicote na mão contra um troço de lanças abyssinias:―e á noite n'uma sala, com a sua casaca do Cook, uma perola negra no esplendor do peitilho, sorri ás mulheres com o encanto e o prestigio com que sorrira á fadiga, ao perigo e á morte. Faz armas como o cavalleiro de Saint-Georges, e possue as noções mais novas e as mais certas sobre Physica, sobre Astronomia, sobre Philologia e sobre Metaphysica. É um ensino, uma lição de alto gosto, vêl-o [56] no seu quarto, na vida intima de gentleman em viagem, entre as suas malas de couro da Russia, as grandes escovas de prata lavrada, as cabaias de sêda, as carabinas de Winchester, preparando-se, escolhendo um perfume, bebendo golos de chá que lhe manda o Gran-Duque Vladimir, e dictando a um creado de calção, mais veneravelmente correcto que um mordomo de Luiz XIV, telegrammas que vão levar noticias suas aos boudoirs de Paris e de Londres. E depois de tudo isto fecha a sua porta ao mundo―e lê Sophocles no original».

O poeta da Morte de D. João e da Musa em Ferias chamava-lhe «um Sainte-Beuve encadernado em Alcides». E explicava assim, n'uma carta d'esse tempo que conservo, a sua apparição no mundo: «Deus um dia agarrou n'um bocado de Henri Heine, n'outro de Chateaubriand, n'outro de Brummel, em pedaços ardentes d'aventureiros da Renascença, e em fragmentos resequidos de sabios do Instituto de França, entornou-lhe por cima champagne e tinta de imprensa, amassou tudo nas suas mãos omnipotentes, modelou á pressa Fradique, e arrojando-o á Terra disse: Vai, e veste-te no Poole!» Emfim Carlos Mayer, lamentando como Oliveira Martins que ás multiplas e fortes aptidões de Fradique faltasse coordenação e convergencia para um fim superior, deu um dia sobre a personalidade do meu amigo um resumo sagaz e profundo: «O cerebro de Fradique [57] está admiravelmente construido e mobilado. Só lhe falta uma idéa que o alugue, para vivar e governar lá dentro. Fradique é um genio com escriptos!»

Tambem Fradique, n'esse inverno, conheceu o pensador das Odes Modernas, de quem, n'uma das suas cartas a Oliveira Martins, falla com tanta elevação e carinho. E o ultimo companheiro da minha mocidade que se relacionou com o antigo poeta das Lapidarias foi J. Teixeira d'Azevedo, no verão de 1877, em Cintra, na quinta da Saragoça, onde Fradique viera repousar da sua jornada ao Brazil e ás republicas do Pacifico. Tinham ahi conversado muito, e divergido sempre. J. Teixeira d'Azevedo, sendo um nervoso e um apaixonado, sentia uma insuperavel antipathia pelo que elle chamava o lymphatismo critico de Fradique. Homem todo de emoção não se podia fundir intellectualmenle com aquelle homem todo de analyse. O extenso saber de Fradique tambem não o impressionava. «As noções d'esse guapo erudito (escrevia elle em 1879) são bocados do Larousse diluidos em agua de Colonia». E emfim certos requintes de Fradique (escovas de prata e camisas de sêda), a sua voz mordente recortando o verbo com perfeição e preciosidade, o seu habito de beber champagne com soda-water, outros traços ainda, causavam uma irritação quasi physica ao meu velho camarada da Travessa do Guarda-Mór. Confessava porém, como Oliveira Martins, que Fradique era o portuguez mais interessante [58] e mais suggestivo do seculo XIX. E correspondia-se regularmente com elle―mas para o contradizer com acrimonia.

Em 1880 (nove annos depois da minha peregrinação no Oriente), passei em Paris a semana da Paschoa. Uma noite, depois da Opera, fui cear solitariamente ao Bignon. Tinha encetado as ostras e uma chronica do Temps, quando por traz do jornal que eu encostára á garrafa assomou uma larga mancha clara, que era um collete, um peitilho, uma gravata, uma face, tudo de incomparavel brancura. E uma voz muito serena murmurou: «Separámo-nos ha annos no caes de Boulak...» Ergui-me com um grito, Fradique com um sorriso;―e o maitre-d'hotel recuou assombrado diante da meridional e ruidosa effusão do meu abraço. D'essa noite em Paris datou verdadeiramente a nossa intimidade intellectual―que em oito annos, sempre igual e sempre certa, não teve uma intermissão, nem uma sombra que lhe toldasse a pureza.

Determinadamente lhe chamo intellectual, porque esta intimidade nunca passou além das coisas do espirito. Nas alegres temporadas que com elle convivi em Paris, em Londres e em Lisboa, de 1880 a 1887, na nossa copiosa correspondencia d'esses annos privei sempre, sem reserva, com a intelligencia de Fradique―e interrompidamente assisti e me misturei á sua vida pensante: nunca porém penetrei na sua vida affectiva de sentimento e de coração. Nem, na verdade, me atormentou a [59] curiosidade de a conhecer―talvez por sentir que a rara originalidade de Fradique se concentrava toda no sêr pensante, e que o outro, o sêr sensivel, feito da banal argilla humana, repetia sem especial relevo as costumadas fragilidades da argilla. De resto, desde essa noite de Paschoa em Paris que iniciou as nossas relações, nós conservámos sempre o habito especial, um pouco altivo, talvez estreito, de nos considerarmos dois puros espiritos. Se eu então concebesse uma Philosophia original, ou preparasse os mandamentos d'uma nova Religião, ou surripiasse á Natureza distrahida uma das suas secretas Leis―de preferencia escolheria Fradique como confidente d'esta actividade espiritual; mas nunca, na ordem do Sentimento, iria a elle com a confidencia d'uma esperança ou d'uma desillusão. E Fradique igualmente manteve commigo esta attitude de inaccessivel recato―não se manifestando nunca aos meus olhos senão na sua funcção intellectual.

Muito bem me lembro eu d'uma resplandecente manhã de maio em que atravessavamos, conversando por sob os castanheiros em flôr, o jardim das Tulherias. Fradique, que se encostára ao meu braço, vinha vagarosamente desenvolvendo a idéa de que a extrema democratisação da Sciencia, o seu universal e illimitado derramamento através das plebes, era o grande erro da nossa civilisação, que com elle preparava para bem cedo a sua catastrophe moral... De repente, ao transpôrmos a grade [60] para a praça da Concordia, o Philosopho que assim lançava, por entre as tenras verduras de maio, estas predicções de desastre e de fim―estaca, emmudece! Diante de nós, ao trote fino d'uma egoa de luxo, passára vivamente, para os lados da rua Royale, um coupé onde entrevi, na penumbra dos setins que o forravam, uns cabellos côr de mel. Vivamente tambem, Fradique sacode o meu braço, balbucia um «adeus!», acena a um fiacre, e desapparece ao galope arquejante da pileca para os lados do cães d'Orsay. «Mulher!», pensei eu. Era, com effeito, a mulher e o seu tormento; e como se deprehende d'uma carta a Madame de Jouarre (datada de «Maio, sabbado», e começando: «Hontem philosophava com um amigo no jardim das Tulherias...») Fradique corria n'esse fiacre a uma desillusão bem rude e mortificante. Ora n'essa tarde, ao crepusculo, fui (como combinára) buscar Fradique á rua de Varennes, ao velho palacio dos Tredennes, onde elle installára desde o Natal os seus aposentos com um luxo tão nobre e tão sobrio. Apenas entrei na sala que denominavamos a «Heroica», porque a revestiam quatro tapeçarias de Luca Cornelio contando os Trabalhos de Hercules, Fradique deixa a janella d'onde olhava o jardim já esbatido em sombra, vem para mim serenamente, com as mãos enterradas nos bolsos d'uma quinzena de sêda. E, como se desde essa manhã nenhum outro cuidado o absorvesse senão o seu th cuidado o absorvesse senão o seu thema do jardim das Tulherias:

[61] ―Não lhe acabei de dizer ha pouco... A Sciencia, meu caro, tem de ser recolhida como outr'ora aos Santuarios. Não ha outro meio de nos salvar da anarchia moral. Tem de ser recolhida aos Santuarios, e entregue a um sacro collegio intellectual que a guarde, que a defenda contra as curiosidades das plebes... Ha a fazer com esta idéa um programma para as gerações novas!

Talvez na face, se eu tivesse reparado, encontrasse restos de pallidez e de emoção: mas o tom era simples, firme, d'um critico genuinamente occupado na deducção do seu conceito. Outro homem que, como aquelle, tivesse soffrido horas antes uma desillusão tão mortificante e rude, murmuraria ao menos, n'um desafogo generico e impessoal:―«Ah, amigo, que estupida é a vida!» Elle fallou da Sciencia e das Plebes,―desenrolando determinadamente diante de mim, ou impondo talvez a si mesmo, os raciocinios do seu cerebro, para que os meus olhos não penetrassem de leve, ou os seus não se detivessem demais, nas amarguras do seu coração.

N'uma carta a Oliveira Martins, de 1883, Fradique diz:―«O homem, como os antigos reis do Oriente, não se deve mostrar aos seus semelhantes senão unica e serenamente occupado no officio de reinar―isto é, de pensar». Esta regra, d'um orgulho apenas permissivel a um Spinosa ou a um Kant, dirigia severamente a sua conducta. Pelo menos commigo assim se comportou immutavelmente, [62] através da nossa activa convivencia, não se abrindo, não se offerecendo todo, senão nas funcções da Intelligencia. Por isso talvez, mais que nenhum outro homem, elle exerceu sobre mim imperio e seducção.


IV


O que impressionava logo na Intelligencia de Fradique, ou antes na sua maneira de se exercer, era a suprema liberdade junta á suprema audacia. Não conheci jámais espirito tão impermeavel á tyrannia ou á insinuação das «idéas feitas»: e decerto nunca um homem traduziu o seu pensar original e proprio com mais calmo e soberbo desassombro. «Apesar de trinta seculos de geometria me affirmarem (diz elle n'uma carta a J. Teixeira d'Azevedo) que a linha recta é a mais curta distancia entre dois pontos, se eu achasse que, para subir da porta do Hotel Universal á porta da Casa Havaneza, me sahia mais directo e breve rodear pelo bairro de S. Martinho e pelos altos da Graça, declararia logo á secular geometria―que a distancia mais curta entre dois pontos é uma curva vadia e delirante!». Esta independencia da Razão, que Fradique assim apregôa com desordenada Phantasia, [63] constitue uma qualidade rara:―mas o animo de a affirmar intemeratamente diante da magestosa Tradição, da Regra, e das conclusões oraculares dos Mestres, é já uma virtude, e rarissima, de radiosa excepção!

Fradique (n'outra carta a J. Teixeira d'Azevedo) falla d'um polaco, G. Cornuski, professor e critico, que escrevia na Revista Suissa, e que (diz Fradique) «constantemente sentia o seu gosto, muito pessoal e muito decidido, rebellar-se contra obras de Litteratura e de Arte que a unanimidade critica, desde seculos, tem consagrado como magistraes―a Gerusalemme Liberata do Tasso, as telas do Ticiano, as tragedias de Racine, as orações de Bossuet, os nossos Lusiadas, e outros monumentos canonizados. Mas, sempre que a sua probidade de Professor e de Critico lhe impunha a proclamação da verdade, este homem robusto, sanguineo, que heroicamente se batera em duas insurreições, tremia, pensava:―«Não! Porque será o meu criterio mais seguro que o de tão finos entendimentos através dos tempos? Quem sabe? Talvez n'essas obras exista a sublimidade―e só no meu espirito a impotencia de a comprehender». E o desgraçado Cornuski, com a alma mais triste que um crepusculo d'outono, continuava, diante dos córos da Athalie e das nudezes do Ticiano, a murmurar desconsoladamente:―«Como é bello!»

Raros soffrem estas angustias criticas do desditoso [64] Cornuski. Todos porém, com risonha inconsciencia, praticam o seu servilismo intellectual. Já, com effeito, porque o nosso espirito não possua a viril coragem de affrontar a auctoridade d'aquelles a quem tradicionalmente attribue um criterio mais firme e um saber mais alto; já porque as idéas estabelecidas, fluctuando diffusamente na nossa memoria, depois de leituras e conversas, nos pareçam ser as nossas proprias; já porque a suggestão d'esses conceitos se imponha e nos leve subtilmente a concluir em concordancia com elles―a lamentavel verdade é que hoje todos nós servilmente tendemos a pensar e sentir como antes de nós e em torno de nós já se sentiu ou pensou.

«O homem do seculo XIX, o Europeu, porque só elle é essencialmente do seculo XIX (diz Fradique n'uma carta a Carlos Mayer), vive dentro d'uma pallida e morna infecção de banalidade, causada pelos quarenta mil volumes que todos os annos, suando e gemendo, a Inglaterra, a França e a Allemanha depositam ás esquinas, e em que interminavelmente e monotonamente reproduzem, com um ou outro arrebique sobreposto, as quatro idéas e as quatro impressões legadas pela Antiguidade e pela Renascença. O Estado por meio das suas escólas canalisa esta infecção. A isto, oh Carolus, se chama educar! A creança, desde a sua primeira «Selecta de Leitura» ainda mal soletrada, começa a absorver esta camada do Logar-Commum―camada que depois todos os [65] dias, através da vida, o Jornal, a Revista, o Folheto, o Livro lhe vão atochando no espirito até lh'o empastarem todo em banalidade, e lh'o tornarem tão inutil para a producção como um sólo cuja fertilidade nativa morreu sob a areia e pedregulho de que foi barbaramente alastrado. Para que um Europeu lograsse ainda hoje ter algumas idéas novas, de viçosa originalidade, seria necessario que se internasse no Deserto ou nos Pampas; e ahi esperasse pacientemente que os sopros vivos da Natureza, batendo-lhe a Intelligencia e d'ella pouco a pouco varrendo os detritos de vinte seculos de Litteratura, lhe refizessem uma virgindade. Por isso eu te affirmo, oh Carolus Mayerensis, que a Intelligencia, que altivamente pretenda readquirir a divina potencia de gerar, deve ir curar-se da Civilisacão litteraria por meio d'uma residencia tonica, durante dois annos, entre os Hottentotes e os Patagonios. A Patagonia opéra sobre o Intellecto como Vichy sobre o figado―desobstruindo-o, e permittindo-lhe o são exercicio da funcção natural. Depois de dois annos de vida selvagem, entre o Hottentote nú movendo-se na plenitude logica do Instincto,―que restará ao civilisado de todas as suas idéas sobre o Progresso, a Moral, a Religião, a Industria, a Economia Politica, a Sociedade e a Arte? Farrapos. Os pendentes farrapos que lhe restarão das pantalonas e da quinzena que trouxe da Europa, depois de vinte mezes [66] de matagal e de brejo. E não possuindo em torno de si Livros e Revistas que lhe renovem uma provisão de «idéas feitas», nem um benefico Nunes Algibebe que lhe forneça uma outra andaina de «fato feito»―o Europeu irá insensivelmente regressando á nobreza do estado primitivo, nudez do corpo e originalidade da alma. Quando de lá voltar é um Adão forte e puro, virgem de litteratura, com o craneo limpo de todos os conceitos e todas as noções amontoadas desde Aristoteles podendo proceder soberbamente a um exame inedito das coisas humanas. Carlos, espirito que distillas espiritos, queres remergulhar nas Origens e vir commigo á inspiradora Hottentocia? Lá, livres e nús, estirados ao sol entre a palmeira e o regato que tutelarmente nos darão o sustento do corpo, com a nossa lança forte cravada na relva, e mulheres ao lado vertendo-nos n'um canto dôce a porção de poesia e de sonho que a alma precisa―deixaremos livremente as ilhargas crestadas estalarem-nos de riso á idéa das grandes Philosophias, e das grandes Moraes, e das grandes Economias, e das grandes Criticas, e das grandes Pilherias que vão por essa Europa, onde densos formigueiros de chapéos altos se atropellam, estonteados pelas superstições da civilisação, pela illusão do ouro, pelo pedantismo das sciencias, pelas mistificações dos reformadores pela escravidão da rotina, e pela estupida admiração de si mesmos!...»

[67] Assim diz Fradique. Ora este «exame inedito das coisas humanas», só possivel, segundo o poeta das Lapidarias, ao Adão renovado que regressasse da Patagonia com o espirito escarolado do pó e do lixo de longos annos de Litteratura―tentou-o elle, sem deixar os muros classicos da rua de Varennes, com incomparavel vigor e sinceridade. E n'isto mostrava intrepidez moral. No mundo a que irresistivelmente o prendiam os seus gostos e os seus habitos―mundo mediano e regrado, sem invenção e sem iniciativa intellectual, onde as Idéas, para agradar, devem ser como as Maneiras, «geralmente adoptadas» e não individualmente creadas―Fradique, com a sua indocil e brusca liberdade de Juizos, affrontava o perigo de passar por um petulante rebuscador de originalidade, avido de gloriola e de excessivo destaque. Um espirito inventivo e novo, com uma força de pensar muito propria, deixando transbordar a vida abundante e multipla que o anima e enche―é mais desagradavel a esse mundo do que o homem rudemente natural que não regre e limite dentro das «Conveniencias» a espessura da cabelleira, o estridor das risadas, e o franco mover dos membros grossos. D'esse espirito indisciplinado e creador, logo se murmura com desconfiança: «Pretencioso! busca o effeito e o destaque!» Ora Fradique nada detestava mais intensamente do que o effeito e o destaque excessivo. Nunca lhe conheci senão gravatas escuras. E tudo preferiria a ser apontado [68] como um d'esses homens, que, sem odio sincero a Diana e ao seu culto e só para que d'elles se falle com espanto nas praças, vão, em plena festa, agitando um grande facho, incendiar-lhe o templo em Epheso. Tudo preferiria―menos (como elle diz n'uma carta a Madame de Jouarre) «ter de vestir a Verdade nos armazens do Louvre para poder entrar com ella em casa de Anna de Varle, duqueza de Varle e d'Orgemont. A entrar hei de levar a minha amiga núa, toda núa, pisando os tapetes com os seus pés nús, enristando para os homens as pontas fecundas dos seus nobres seios nús. Amicus Mundus, sed magis amica Veritas! Este bello latim significa, minha madrinha, que eu, no fundo, julgo que a originalidade é agradavel ás mulheres e só desagradavel aos homens―o que duplamente me leva a amal-a com pertinacia».

Esta independencia, esta livre elasticidade de espirito e intensa sinceridade―impedindo que por seducção elle se désse todo a um Systema, onde para sempre permanecesse por inercia―eram de resto as qualidades que melhor convinham á funcção intellectual que para Fradique se tornára a mais continua e preferida. «Não ha em mim infelizmente (escrevia elle a Oliveira Martins, em 1882) nem um sabio, nem um philosopho. Quero dizer, não sou um d'esses homens seguros e uteis, destinados por temperamento ás analyses secundarias que se chamam Sciencias, e que consistem [69] em reduzir uma multidão de factos esparsos a Typos e Leis particulares por onde se explicam modalidades do Universo; nem sou tambem um d'esses homens, fascinantes e pouco seguros, destinados por genio ás analyses superiores que se chamam Philosophias, e que consistem em reduzir essas Leis e esses Typos a uma formula geral por onde se explica a essencia mesma do inteiro Universo. Não sendo pois um sabio, nem um philosopho, não posso concorrer para o melhoramento dos meus semelhantes―nem accrescendo-lhes o bem-estar por meio da Sciencia que é uma productora de riqueza, nem elevando-lhes o bem-sentir por meio da Metaphysica que é uma inspiradora de poesia. A entrada na Historia tambem se me conserva vedada:―porque, se, para se produzir Litteratura basta possuir talentos, para tentar a Historia convém possuir virtudes. E eu!... Só portanto me resta ser, através das idéas e dos factos, um homem que passa, infinitamente curioso e attento. A egoista occupação do meu espirito hoje, caro historiador, consiste em me acercar d'uma idéa ou d'um facto, deslizar suavemente para dentro, percorrel-o miudamente, explorar-lhe o inedito, gozar todas as surprezas e emoções intellectuaes que elle possa dar, recolher com cuidado o ensino ou a parcella de verdade que exista nos seus refolhos―e sahir, passar a outro facto ou a outra idéa, com vagar e com paz, como se percorresse uma a uma as cidades [70] d'um paiz d'arte e luxo. Assim visitei outr'ora a Italia, enlevado no esplendor das côres e das fórmas. Temporal e espiritualmente fiquei simplesmente um touriste».

Estes touristes da intelligencia abundam em França e em Inglaterra. Sómente Fradique não se limitava, como esses, a exames exteriores e impessoaes, á maneira de quem n'uma cidade d'Oriente, retendo as noções e os gostos de Europeu, estuda apenas o aéreo relevo dos monumentos e a roupagem das multidões. Fradique (para continuar a sua imagem) transformava-se em «cidadão das cidades que visitava». Mantinha por principio que se devia momentaneamente crêr para bem comprehender uma crença. Assim se fizera babista, para penetrar e desvendar o Babismo. Assim se afiliára em Paris a um club revolucionario, As Pantheras de Batignolles, e frequentára as suas sessões, encolhido n'uma quinzena sordida pregada com alfinetes, com a esperança de lá colher «a flôr de alguma extravagancia instructiva». Assim se incorporava em Londres aos Positivistas rituaes, que, nos dias festivos do Calendario Comtista, vão queimar o incenso e a myrrha na ara da Humanidade e enfeitar de rosas a Imagem de Augusto Comte. Assim se ligára com os Theosophistas, concorrera prodigamente para a fundação da Revista Espiritista, e presidia as Evocações da rua Cardinet, envolto na tunica de linho, entre os dois mediums supremos, Patoff e Lady Thorgan. Assim [71] habitára durante um longo verão Seo-d'Urgel, a catholica cidadella do Carlismo, «para destrinçar bem (diz elle) quaes são os motivos e as formulas que fazem um Carlista―porque todo o sectario obedece á realidade d'um motivo e á illusão d'uma formula». Assim se tornára o confidente do veneravel Principe Koblaskini, para «poder desmontar e estudar peça a peça o mecanismo d'um cerebro de Nihilista». Assim se preparava (quando a morte o surprehendeu) a voltar á India, para se tornar budhista praticante, e penetrar cabalmente o Budhismo, em que fixára a curiosidade e actividade critica dos seus derradeiros annos. De sorte que d'elle bem se póde dizer que foi o devoto de todas as Religiões, o partidario de todos os Partidos, o discipulo de todas as Philosophias―cometa errando através das idéas, embebendo-se convictamente n'ellas, de cada uma recebendo um accrescimo de substancia, mas em cada uma deixando alguma coisa do calor e da energia do seu movimento pensante. Aquelles que imperfeitamente o conheciam classificavam Fradique como um dilettante. Não! essa séria convicção (a que os inglezes chamam earnestness), com que Fradique se arremessava ao fundo real das coisas, communicava á sua vida uma valia e efficacia muito superiores ás que o dilettantismo, a diversão sceptica que tantas injurias arrancou a Carlyle, communica ás naturezas que a elle deliciosamente se abandonam. O dilettante, com effeito, corre entre as idéas e os factos como [72] as borboletas (a quem é desde seculos comparado) correm entre as flôres, para pousar, retomar logo o vôo estouvado, encontrando n'essa fugidia mutabilidade o deleite supremo. Fradique, porém, ia como a abelha, de cada planta pacientemente extrahindo o seu mel:―quero dizer, de cada opinião recolhendo essa «parcella de verdade» que cada uma invariavelmente contém, desde que homens, depois de outros homens, a tenham fomentado com interesse ou paixão.

Assim se exercia esta diligente e alta Intelligencia. Qual era porém a sua qualidade essencial e intrinseca? Tanto quanto pude discernir, a suprema qualidade intellectual de Fradique pareceu-me sempre ser―uma percepção extraordinaria da Realidade. «Todo o phenomeno (diz elle n'uma carta a Anthero de Quental, suggestiva através de certa obscuridade que a envolve) tem uma Realidade. A expressão de Realidade não é philosophica; mas eu emprego-a, lanço-a ao acaso e tenteando, para apanhar dentro d'ella o mais possivel d'um conceito pouco coercivel, quasi irreductivel ao verbo. Todo o phenomeno, pois, tem relativamente ao nosso entendimento e á sua potencia de discriminar, uma Realidade―quero dizer certos caracteres, ou (para me exprimir por uma imagem, como recommenda Buffon) certos contornos que o limitam, o definem, lhe dão feição propria no esparso e universal conjunto, e constituem o seu exacto, real e unico modo de [73] ser. Sómente o erro, a ignorancia, os preconceitos, a tradição, a rotina e sobretudo a illusão, formam em torno de cada phenomeno uma nevoa que esbate e deforma os seus contornos, e impede que a visão intellectual o divise no seu exacto, real e unico modo de ser. É justamente o que succede aos monumentos de Londres mergulhados no nevoeiro... Tudo isto vai expresso d'um modo bem hesitante e incompleto! Lá fóra o sol está cahindo d'um céo fino e nitido sobre o meu quintal de convento coberto de neve dura: n'este ar tão puro e claro, em que as coisas tomam um relevo rigido, perdi toda a flexibilidade e fluidez da technologia philosophica: só me poderia exprimir por imagens recortadas á tesoura. Mas vossê decerto comprehenderá, Anthero excellente e subtil! Já esteve em Londres, no outono, em novembro? Nas manhãs de nevoeiro, n'uma rua de Londres, ha difficuldade em distinguir se a sombra densa que ao longe se empasta é a estatua d'um heroe ou o fragmento d'um tapume. Uma pardacenta illusão submerge toda a cidade―e com espanto se encontra n'uma taverna quem julgára penetrar n'um templo. Ora para a maioria dos espiritos uma nevoa igual fluctua sobre as realidades da vida e do mundo. D'ahi vem que quasi todos os seus passos são transvios, quasi todos os seus juizos são enganos; e estes constantemente estão trocando o Templo e a Taberna. Raras são as visões intellectuaes bastante agudas [74] e poderosas para romper através da neblina e surprehender as linhas exactas, o verdadeiro contorno da Realidade. Eis o que eu queria tartamudear».

Pois bem! Fradique dispunha de uma d'essas visões privilegiadas. O proprio modo que tinha de pousar lentamente os olhos e detalhar em silencio―como dizia Oliveira Martins―revelava logo o seu processo interior de concentrar e applicar a Razão, á maneira de um longo e pertinaz dardo de luz, até que, desfeitas as nevoas, a Realidade pouco a pouco lhe surgisse na sua rigorosa e unica fórma.

A manifestação d'esta magnifica força que mais impressionava―era o seu poder de definir. Possuindo um espirito que via com a maxima exactidão; possuindo um verbo que traduzia com a maxima concisão―elle podia assim dar resumos absolutamente profundos e perfeitos. Lembro que uma noite, na sua casa da rua de Varennes, em Paris, se discutia com ardor a natureza da Arte. Repetiram-se todas as definições de Arte, enunciadas desde Platão: inventaram-se outras, que eram, como sempre, o phenomeno visto limitadamente através d'um temperamento. Fradique conservou-se algum tempo mudo, dardejando os olhos para o vago. Por fim, com essa maneira lenta (que para os que incompletamente o conheciam parecia professoral) murmurou, no silencio deferente que se alargára:―«A Arte é um resumo da Natureza feito pel com a maxima concisão―elle podia assim dar resumos absolutamente profundos e perfeitos. Lembro que uma noite, na sua casa da rua de Varennes, em Paris, se discutia com ardor a natureza da Arte. Repetiram-se todas as definições de Arte, enunciadas desde Platão: inventaram-se outras, que eram, como sempre, o phenomeno visto limitadamente através d'um temperamento. Fradique conservou-se algum tempo mudo, dardejando os olhos para o vago. Por fim, com essa maneira lenta (que para os que incompletamente o conheciam parecia professoral) murmurou, no silencio deferente que se alargára:―«A Arte é um resumo da Natureza feito pela imaginação».

[75] Certamente, não conheço mais completa definição d'Arte! E com razão affirmava um amigo nosso, homem de excellente phantasia, que «se o bom Deus, um dia, compadecido das nossas hesitações, nos atirasse lá de cima, do seu divino ermo, a final explicação da Arte, nós ouviriamos resoar entre as nuvens, soberba como o rolar de cem carros de guerra, a definição de Fradique!»



A superior intelligencia de Fradique tinha o apoio de uma cultura forte e rica. Já os seus instrumentos de saber eram consideraveis. Além d'um solido conhecimento das linguas classicas (que, na sua idade de Poesia e de Litteratura decorativa, o habilitára a crear em latim barbaro poemetos tão bellos como o Laus Veneris tenebros[ae])―possuia profundamente os idiomas das tres grandes nações pensantes, a França, a Inglaterra e a Allemanha. Conhecia tambem o arabe, que (segundo me affirmou Riaz-Effendi, chronista do sultão Abdul-Aziz) fallava com abundancia e gosto.

As sciencias naturaes eram-lhe queridas e familiares; e uma insaciavel e religiosa curiosidade do Universo impellira-o a estudar tudo o que divinamente o compõe, desde os insectos até aos astros. Estudos carinhosamente feitos com o coração―porque Fradique sentia pela Natureza, sobretudo pelo animal e pela planta, uma ternura e uma veneração genuinamente budhistas. «Amo a Natureza [76] (escrevia-me elle em 1882) por si mesma, toda e individualmente, na graça e na fealdade de cada uma das fórmas innumeraveis que a enchem: e amo-a ainda como manifestação tangivel e multipla da suprema Unidade, da Realidade intangivel, a que cada Religião e cada Philosophia deram um nome diverso e a que eu presto culto sob o nome de Vida. Em resumo adoro a Vida―de que são igualmente expressões uma rosa e uma chaga, uma constellação e (com horror o confesso) o conselheiro Acacio. Adoro a Vida e portanto tudo adoro―porque tudo é viver, mesmo morrer. Um cadaver rigido no seu esquife vive tanto como uma aguia batendo furiosamente o vôo. E a minha religião está toda no credo de Athanasio, com uma pequena variante:―«Creio na Vida toda-poderosa, creadora do céo e da terra...»

Quando começou porém a nossa intimidade, em 1880, o seu inquieto espirito mergulhava de preferencia nas sciencias sociaes, aquellas sobretudo que pertencem á Pre-historia―a Anthropologia, a Linguistica, o estudo das Raças, dos Mythos e das Instituições Primitivas. Quasi todos os tres mezes, altas rumas de livros enviadas da casa Hachette, densas camadas de Revistas especiaes, alastrando o tapete de Caramania, indicavam-me que uma nova curiosidade se apoderára d'elle com intensidade e paixão. Conheci-o assim successiva e ardentemente occupado com os monumentos megalithicos da Andaluzia; [77] com as habitações lacustres; com a mythologia dos povos Aryanos; com a magia Chaldaica; com as raças Polynesias; com o direito costumario dos Cafres; com a christianisação dos Deuses Pagãos... Estas aferradas investigações duravam emquanto podia extrahir d'ellas «alguma emoção ou surpreza intellectual». Depois, um dia, Revistas e volumes desappareciam, e Fradique annunciava triumphalmente alargando os passos alegres por sobre o tapete livre:―«Sorvi todo o Sabeismo!», ou «Esgotei os Polynesios!»

O estudo porém a que se prendeu ininterrompidamente, com especial constancia, foi o da Historia. «Desde pequeno (escrevia elle a Oliveira Martins, n'uma das suas ultimas cartas, em 1886) tive a paixão da Historia. E adivinha vossê porquê, Historiador? Pelo confortavel e conchegado sentimento que ella me dava da solidariedade humana. Quando fiz onze annos, minha avó, de repente, para me habituar ás coisas duras da vida (como ella dizia), arrancou-me ao pachorrento ensino do padre Nunes, e mandou-me a uma escóla chamada Terceirense. O jardineiro levava-me pela mão: e todos os dias a avó me dava com solemnidade um pataco para eu comprar na tia Martha, confeiteira da esquina, bolos para a minha merenda. Este creado, este pataco, estes bolos, eram costumes novos que feriam o meu monstruoso orgulho de morgadinho―por me descerem ao nivel humilde dos filhos do nosso procurador. Um dia, porém, folheando [78] uma Encyclopedia de Antiguidades Romanas, que tinha estampas, li, com surpreza, que os rapazes em Roma (na grande Roma!) iam tambem de manhã para a escóla, como eu, pela mão d'um servo―denominado o Capsarius; e compravam tambem, como eu, um bolo n'uma tia Martha do Velabro ou das Carinas, para comerem á merenda―que chamavam o Ientaculum. Pois, meu caro, no mesmo instante a veneravel antiguidade d'esses habitos tirou-lhes a vulgaridade toda que n'elles me humilhava tanto! Depois de os ter detestado por serem communs aos filhos do Silva procurador―respeitei-os por terem sido habituaes nos filhos de Scipião. A compra do bolo tornou-se como um rito que desde a Antiguidade todos os rapazes de escóla cumpriam, e que me era dado por meu turno celebrar n'uma honrosa solidariedade com a grande gente togada. Tudo isto, evidentemente, não o sentia com esta clara consciencia. Mas nunca entrei d'ahi por diante na tia Martha, sem erguer a cabeça, pensando com uma vangloria heroica:―«Assim faziam tambem os romanos!» Era por esse tempo pouco mais alto que uma espada gôda, e amava uma mulher obesa que morava ao fim da rua...»

N'essa mesma carta, adiante, Fradique accrescenta:―«Levou-me pois effectivamente á Historia o meu amor da Unidade―amor que envolve o horror ás interrupções, ás lacunas, aos espaços escuros onde se não sabe o que ha. Viajei [79] por toda a parte viajavel, li todos os livros de explorações e de travessias―porque me repugnava não conhecer o globo em que habito até aos seus extremos limites, e não sentir a contínua solidariedade do pedaço de terra que tenho sob os pés com toda a outra terra que se arqueia para além. Por isso, incansavelmente exploro a Historia, para perceber até aos seus derradeiros limites a Humanidade a que pertenço, e sentir a compacta solidariedade do meu sêr com a de todos os que me precederam na vida. Talvez vossê murmure com desdem―«mera bisbilhotice!» Amigo meu, não despreze a bisbilhotice! Ella é um impulso humano, de latitude infinita, que, como todos, vai do reles ao sublime. Por um lado leva a escutar ás portas―e pelo outro a descobrir a America!»

O saber historico de Fradique surprehendia realmente pela amplexidade e pelo detalhe. Um amigo nosso exclamava um dia, com essa ironia affavel que nos homens de raça celtica sublinha e corrige a admiração:―«Aquelle Fradique! Tira a charuteira, e dá uma synthese profunda, d'uma transparencia de crystal, sobre a guerra do Peloponeso;―depois accende o charuto, e explica o feitio e o metal da fivela do cinturão de Leonidas!» Com effeito, a sua forte capacidade de comprehender philosophicamente os movimentos collectivos, o seu fino poder de evocar psychologicamente os caracteres individuaes―alliava-se n'elle [80] a um minucioso saber archeologico da vida, das maneiras, dos trajes, das armas, das festas, dos ritos de todas as idades, desde a India Vedica até á França Imperial. As suas cartas a Oliveira Martins (sobre o Sebastianismo, o nosso Imperio no Oriente, o Marquez de Pombal)[1] são verdadeiras maravilhas pela sagaz intuição, a alta potencia synthetica, a certeza do saber, a força e a abundancia das idéas novas. E, por outro lado, a sua erudição archeologica repetidamente esclareceu e auxiliou, na sabia composição das suas telas, o paciente e fino reconstructor dos Costumes e das Maneiras da Antiguidade Classica, o velho Suma-Rabêma. Assim m'o confessou uma tarde Suma-Rabêma, regando as roseiras, no seu jardim de Chelsea.

Fradique era de resto ajudado por uma prodigiosa memoria que tudo recolhia e tudo retinha―vasto e claro armazem de factos, de noções, de fórmas, todos bem arrumados, bem classificados, promptos sempre a servir. O nosso amigo Chambray affirmava que, comparavel á memoria de Fradique, como «installação, ordem e excellencia do stock», só conhecia a adega do café Inglez.

[81] A cultura de Fradique recebia um constante alimento e accrescimo das viagens que sem cessar emprehendia, sob o impulso de admirações ou de curiosidades intellectuaes. Só a Archeologia o levou quatro vezes ao Oriente:―ainda que a sua derradeira residencia em Jerusalem, durante dezoito mezes, foi motivada (segundo me affirmou o consul Raccolini) por poeticos amores com uma das mais esplendidas mulheres da Syria, uma filha de Abraham Côppo, o faustoso banqueiro de Aleppo, tão lamentavelmente morta depois, sobre as tristes costas de Chypre, no naufragio do Magnolia. A sua aventurosa e aspera peregrinação pela China, desde o Thibet (onde quasi deixou a vida, tentando temerariamente penetrar na cidade sagrada de Lahsá) até á alta Manchuria, constitue o mais completo estudo até hoje realisado por um homem da Europa sobre os Costumes, o Governo, a Ethica e a Litteratura d'esse povo «profundo entre todos, que (como diz Fradique) conseguiu descobrir os tres ou quatro unicos principios de moral capazes, pela sua absoluta força, de eternisar uma civilisação».

O exame da Russia e dos seus movimentos sociaes e religiosos trouxeram-no prolongados mezes pelas provincias ruraes d'entre o Dnieper e o Volga. A necessidade d'uma certeza sobre os Presidios Penaes da Siberia impelliu-o a affrontar centenas de milhas de steppes e de neves, n'uma rude telega, até ás minas de prata de Nerchinski. E proseguiria [82] n'este activo interesse, se não recebesse subitamente, ao chegar á costa, a Archangel, este aviso do general Armankoff, chefe da IV secção da policia imperial:―Monsieur, vous nous observez de trop près, pour que votre jugement n'en soit faussé; je vous invite donc, sur votre intérêt, et pour avoir de la Russie une vue d'ensemble plus exacte, d'aller la regarder de plus loin, dans votre belle maison de Paris!―Fradique abalou para Vasa, sobre o golfo de Bothnia. Passou logo á Suecia, e mandou de lá, sem data, este bilhete ao general Armankoff:―Monsieur, j'ai reçu votre invitation où il y a beaucoup d'intolerance et trois fautes de français.

Os mesmos interesses de espirito e «necessidades de certeza» o levaram na America do Sul desde o Amazonas até ás areias da Patagonia, o levaram na Africa Austral desde o Cabo até aos Montes de Zokunga... «Tenho folheado e lido attentamente o mundo como um livro cheio de idéas. Para vêr por fóra, por mera festa dos olhos, nunca fui senão a Marrocos».

O que tornava estas viagens tão fecundas como ensino era a sua rapida e carinhosa sympathia por todos os povos. Nunca visitou paizes á maneira do detestavel touriste francez, para notar de alto e pêcamente «os defeitos»―isto é, as divergencias d'esse typo de civilisação mediano e generico d'onde sahia e que preferia. Fradique amava logo os costumes, as idéas, os preconceitos dos homens [83] que o cercavam: e, fundindo-se com elles no seu modo de pensar e de sentir, recebia uma lição directa e viva de cada sociedade em que mergulhava. Este efficaz preceito―«em Roma sê romano»―tão facil e dôce de cumprir em Roma, entre as vinhas da collina Celia e as aguas susurrantes da Fonte Paulina, cumpria-o elle gostosamente trilhando com as alpercatas rotas os desfiladeiros do Himalaya. E estava tão homogeneamente n'uma cervejaria philosophica da Allemanha, aprofundando o Absoluto entre professores de Tubingen―como n'uma aringa africana da terra dos Matabeles, comparando os meritos da carabina «Express» e da carabina Winchester, entre caçadores de elephantes.



Desde 1880 os seus movimentos pouco a pouco se concentraram entre Paris e Londres―com excepção das «visitas filiaes» a Portugal: porque, apesar da sua dispersão pelo mundo, da sua facilidade em se nacionalisar nas terras alheias, e da sua impersonalidade critica, Fradique foi sempre um genuino Portuguez com irradicaveis traços de fidalgo ilhéo.

O mais puro e intimo do seu interesse deu-o sempre aos homens e ás coisas de Portugal. A compra da quinta do Saragoça, em Cintra, realisára-a (como diz n'uma carta a F. G., com desacostumada emoção) «para ter terra em Portugal, [84] e para se prender pelo forte vinculo da propriedade ao sólo augusto d'onde um dia tinham partido, levados por um ingenuo tumulto de idéas grandes, os seus avós, buscadores de mundos, de quem elle herdára o sangue e a curiosidade do além

Sempre que vinha a Portugal ia «retemperar a fibra» percorrendo uma provincia, lentamente, a cavallo―com demoras em villas decrepitas que o encantavam, infindaveis cavaqueiras á lareira dos campos, fraternisações ruidosas nos adros e nas tavernas, idas festivas a romarias no carro de bois, no vetusto e veneravel carro sabino, toldado de chita, enfeitado de louro. A sua região preferida era o Ribatejo, a terra chã da leziria e do boi. «Ahi (diz elle), de jaleca e cinta, montado n'um potro, com a vara de campino erguida, correndo entre as manadas de gado, nos finos e lavados ares da manhã, sinto, mais que em nenhuma outra parte, a delicia de viver».

Lisboa só lhe agradava―como paizagem. «Com tres fortes retoques (escrevia-me elle em 1881, do Hotel Braganza), com arvoredo e pinheiros mansos plantados nas collinas calvas da Outra-Banda; com azulejos lustrosos e alegres revestindo as fachadas sujas do casario; com uma varredella definitiva por essas bemditas ruas―Lisboa seria uma d'essas bellezas da Natureza creadas pelo Homem, que se tornam um motivo de sonho, de arte e de peregrinação. Mas uma [85] existencia enraizada em Lisboa não me parece toleravel. Falta aqui uma atmosphera intellectual onde a alma respire. Depois certas feições, singularmente repugnantes, dominam. Lisboa é uma cidade alitteratada, afadistada, catita e conselheiral. Ha litteratice na simples maneira com que um caixeiro vende um metro de fita; e, nas proprias graças com que uma senhora recebe, transparece fadistice: mesmo na Arte ha conselheirismo; e ha catitismo mesmo nos cemiterios. Mas a nausea suprema, meu amigo, vem da politiquice e dos politiquetes».

Fradique nutria pelos politicos todos os horrores, os mais injustificados: horror intellectual, julgando-os incultos, broncos, inaptos absolutamente para crear ou comprehender idéas; horror mundano, presuppondo-os reles, de maneiras crassas, improprios para se misturar a naturezas de gosto; horror physico, imaginando que nunca se lavavam, rarissimamente mudavam de meias, e que d'elles provinha esse cheiro morno e molle que tanto surprehende e enoja em S. Bento aos que d'elle não têm o habito profissional.

Havia n'estas ferozes opiniões, certamente, laivos de perfeita verdade. Mas em geral, os juizos de Fradique sobre a Politica offereciam o cunho d'um preconceito que dogmatisa―e não d'uma observação que discrimina. Assim lh'o affirmava eu uma manhã, no Braganza, mostrando que todas essas deficiencias de espirito, de cultura, de maneiras, [86] de gosto, de finura, tão acerbamente notadas por elle nos Politicos―se explicam sufficientemente pela precipitada democratisação da nossa sociedade; pela rasteira vulgaridade da vida provincial; pelas influencias abominaveis da Universidade; e ainda por intimas razões que são no fundo honrosas para esses desgraçados Politicos, votados por um fado vingador á destruição da nossa terra.

Fradique replicou simplesmente:

―Se um rato morto me disser,―«eu cheiro mal por isto e por aquillo e sobretudo porque apodreci»,―eu nem por isso deixo de o mandar varrer do meu quarto.

Havia aqui uma antipathia de instincto, toda physiologica, cuja intransigencia e obstinação nem factos nem raciocinios podiam vencer. Bem mais justo era o horror que lhe inspirava, na vida social de Lisboa, a inhabil, descomedida e papalva imitacão de Paris. Essa «saloia macaqueação», superiormente denunciada por elle n'uma carta que me escreveu em 1885, e onde assenta, n'um luminoso resumo, que «Lisboa é uma cidade traduzida do francez em calão»―tornava-se para Fradique, apenas transpunha Santa Apolonia, um tormento sincero. E a sua anciedade perpetua era então descobrir, através da frandulagem do Francezismo, algum resto do genuino Portugal.

Logo a comida constituia para elle um real desgosto. A cada instante em cartas, em conversas, se lastíma de não poder conseguir «um cozido [87] vernaculo!»―«Onde estão (exclama elle, algures) os pratos veneraveis do Portugal portuguez, o pato com macarrão do seculo XVIII, a almondega indigesta e divina do tempo das descobertas, ou essa maravilhosa cabidella de frango, petisco dilecto de D. João IV, de que os fidalgos inglezes que vieram ao reino buscar a noiva de Carlos II levaram para Londres a surprehendente noticia? Tudo estragado! O mesmo provincianismo reles põe em calão as comedias de Labiche e os acepipes de Gouffé. E estamo-nos nutrindo miseravelmente dos sobejos democraticos do boulevard, requentados, e servidos em chalaça e galantine! Desastre estranho! As coisas mais deliciosas de Portugal, o lombo de porco, a vitella de Lafões, os legumes, os dôces, os vinhos, degeneraram, insipidaram... Desde quando? Pelo que dizem os velhos, degeneraram desde o Constitucionalismo e o Parlamentarismo. Depois d'esses enxertos funestos no velho tronco lusitano, os fructos têm perdido o sabor, como os homens têm perdido o caracter...»

Só uma occasião, n'esta especialidade consideravel, o vi plenamente satisfeito. Foi n'uma taverna da Mouraria (onde eu o levára), diante d'um prato complicado e profundo de bacalhau, pimentos e grão de bico. Para o gozar com coherencia Fradique despiu a sobrecasaca. E como um de nós lançára casualmente o nome de Renan, ao atacarmos o piteu sem igual, Fradique protestou com paixão:

[88] ―Nada de idéas! Deixem-me saborear esta bacalhoada, em perfeita innocencia de espirito, como no tempo do Senhor D. João V, antes da Democracia e da Critica!

A saudade do velho Portugal era n'elle constante: e considerava que, por ter perdido esse typo de civilisação intensamente original, o mundo ficára diminuido. Este amor do passado revivia n'elle, bem curiosamente, quando via realisados em Lisboa, com uma inspiração original, o luxo e o «modernismo» intelligente das civilisações mais saturadas de cultura e perfeitas em gosto. A derradeira vez que o encontrei em Lisboa foi no Rato―n'uma festa de raro e delicado brilho. Fradique parecia desolado:

―Em Paris, affirmava elle, a duqueza de La Rochefoucauld-Bisaccia póde dar uma festa igual: e para isto não me valia a pena ter feito a quarentena em Marvão! Supponha porém vossê que eu vinha achar aqui um sarau do tempo da Senhora D. Maria I, em casa dos Marialvas, com fidalgas sentadas em esteiras, frades tocando o lundum no bandolim, desembargadores pedindo mote, e os lacaios no pateo, entre os mendigos, rezando em côro a ladainha!... Ahi estava uma coisa unica, deliciosa, pela qual se podia fazer a viagem de Paris a Lisboa em liteira!

Um dia que jantavamos em casa de Carlos Mayer, e que Fradique lamentava, com melancolica sinceridade, o velho Portugal fidalgo e fradesco [89] do tempo do snr. D. João V―Ramalho Ortigão não se conteve:

―Vossê é um monstro, Fradique! O que vossê queria era habitar o confortavel Paris do meado do seculo XIX, e ter aqui, a dois dias de viagem, o Portugal do seculo XVIII, onde podesse vir, como a um museu, regalar-se de pittoresco e de archaismo... Vossê, lá na rua de Varennes, consolado de decencia e de ordem. E nós aqui, em viellas fedorentas, inundados á noite pelos despejos d'aguas sujas, aturdidos pelas arruaças do marquez de Cascaes ou do conde d'Aveiras, levados aos empurrões para a enxovia pelos malsins da Intendencia, etc. etc... Confesse que é o que vossê queria!

Fradique volveu serenamente:

―Era bem mais digno e bem mais patriotico que em logar de vos vêr aqui, a vós, homens de letras, esticados nas gravatas e nas idéas que toda a Europa usa, vos encontrasse de cabelleira e rabicho, com as velhas algibeiras da casaca de sêda cheias d'odes shaphicas, encolhidinhos no salutar terror d'El-Rei e do Diabo, rondando os pateos da casa de Marialva ou d'Aveiro, á espera que os senhores, de cima, depois de dadas as graças, vos mandassem por um pretinho, os restos do perú e o mote. Tudo isso seria dignamente portuguez, e sincero; vós não merecieis melhor; e a vida não é possivel sem um bocado de pittoresco depois do almoço.

Com effeito, n'esta saudade de Fradique pelo [90] Portugal antigo, havia amor do «pittoresco», estranho n'um homem tão subjectivo e intellectual: mas sobretudo havia o odio a esta universal modernisação que reduz todos os costumes, crenças, idéas, gostos, modos, os mais ingenitos e mais originalmente proprios, a um typo uniforme (representado pelo sujeito utilitario e sério de sobrecasaca preta)―com a monotonia com que o chinez apara todas as arvores d'um jardim, até lhes dar a fórma unica e dogmatica de pyramide ou de vaso funerario.

Por isso Fradique em Portugal amava sobretudo o povo―o povo que não mudou, como não muda a Natureza que o envolve e lhe communica os seus caracteres graves e dôces. Amava-o pelas suas qualidades, e tambem pelos seus defeitos:―pela sua morosa paciencia de boi manso; pela alegria idyllica que lhe poetisa o trabalho; pela calma acquiescencia á vassallagem com que depois do Senhor Rei venera o Senhor Governo; pela sua doçura amaviosa e naturalista; pelo seu catholicismo pagão, e carinho fiel aos Deuses latinos, tornados santos calendares; pelos seus trajes, pelos seus cantos... «Amava-o ainda (diz elle) pela sua linguagem tão bronca e pobre, mas a unica em Portugal onde se não sente odiosamente a influencia do Lamartinismo ou das Sebentas de de Direito Publico».



[91]

V


A ultima vez que Fradique visitou Lisboa foi essa em que o encontrei no Rato, lamentando os saraus beatos e secios do seculo XVIII. O antigo poeta das Lapidarias tinha então cincoenta annos; e cada dia se prendia mais á quieta doçura dos seus habitos de Paris.

Fradique habitava, na rua de Varennes, desde 1880, uma ala do antigo palacio dos Duques de Tredennes que elle mobilára com um luxo sobrio e grave―tendo sempre detestado esse atulhamento de alfaias e estofos, onde inextricavelmente se embaralham e se contradizem as Artes e os Seculos, e que, sob o barbaro e justo nome de bric-à-brac, tanto seduz os financeiros e as cocottes. Nobres e ricas tapeçarias de Paizagem e de Historia; amplos divans d'Aubusson; alguns moveis d'arte da Renascença Franceza; porcelanas raras de Deft e da China; espaço, claridade, uma harmonia de tons castos―eis o que se encontrava nas cinco salas que constituiam o «covil» de Fradique. Todas as varandas, de ferro rendilhado, datando de Luiz XIV, abriam sobre um d'esses jardins de arvores antigas, que, n'aquelle bairro fidalgo e ecclesiastico, formam retiros de silencio e paz silvana, onde por vezes nas noites de maio se arrisca a cantar um rouxinol.

A vida de Fradique era medida por um relogio [92] secular, que precedia o toque lento e quasi austero das horas com uma toada argentina de antiga dança de côrte: e era mantida n'uma immutavel regularidade pelo seu creado Smith, velho escossez da clan dos Macduffs, já todo branco de pello e ainda todo rosado de pelle, que havia trinta annos o acompanhava, com severo zêlo, através da vida e do mundo.

De manhã, ás nove horas, mal se espalhavam no ar os compassos gentis e melancolicos d'aquelle esquecido minuete de Cimarosa ou de Haydin, Smith rompia pelo quarto de Fradique, abria todas as janellas á luz, gritava:―Morning, Sir! Immediatamente Fradique, dando de entre a roupa um salto brusco que considerava «de hygiene transcendente», corria ao immenso laboratorio de marmore, a esponjar a face e a cabeça em agua fria, com um resfolgar de Trytão ditoso. Depois, enfiando uma das cabaias de sêda que tanto me maravilhavam, abandonava-se, estirado n'uma poltrona, aos cuidados de Smith que, como barbeiro (affirmava Fradique) reunia a ligeireza macia de Figaro á sapiencia confidencial do velho Oliveiro de Luiz XI. E, com effeito, emquanto o ensaboava e escanhoava, Smith ia dando a Fradique um resumo nitido, solido, todo em factos, dos telegrammas politicos do Times, do Standard e da Gazeta de Colonia!

Era para mim uma surpreza, sempre renovada e saborosa, vêr Smith, com a sua alta gravata branca [93] á Palmerston, a rabona curta, as calças de xadrez verde e preto (côres da sua clan), os sapatos de verniz decotados, passando o pincel na barba do amo, e murmurando, em perfeita sciencia e perfeita consciencia:―«Não se realisa a conferencia do principe de Bismarck com o conde Kalnocky... Os conservadores perderam a eleição supplementar de York... Fallava-se hontem em Vienna d'um novo emprestimo russo...» Os amigos em Lisboa riam d'esta «caturreira»; mas Fradique sustentava que havia aqui um proveitoso regresso á tradição classica, que em todo o mundo latino, desde Scipião o Africano, instituira os barbeiros como «informadores universaes da coisa publica». Estes curtos resumos de Smith formavam a carcassa das suas noções politicas: e Fradique nunca dizia―«Li no Times»―mas «Li no Smith».

Bem barbeado, bem informado, Fradique mergulhava n'um banho ligeiramente tepido, d'onde voltava para as mãos vigorosas de Smith, que, com um jogo de luvas de lã, de flanella, d'estopa, de clina e de pelle de tigre, o friccionava até que o corpo todo se lhe tornasse, como o de Apollo, «roseo e reluzente». Tomava então o seu chocolate; e recolhia á bibliotheca, sala séria e simples, onde uma imagem da Verdade, radiosamente branca na sua nudez de marmore, pousava o dedo subtil sobre os labios puros, symbolisando, em frente á vasta mesa de ébano, um trabalho todo intimo [94] á busca de verdades que não são para o ruido e para o mundo.

Á uma hora almoçava, com a sobriedade d'um grego, ovos e legumes:―e depois, estendido n'um divan, tomando goles lentos de chá russo, percorria nos Jornaes e nas Revistas as chronicas d'arte, de litteratura, de theatro ou de sociedade, que não eram da competencia politica de Smith. Lia então tambem com cuidado os jornaes portuguezes (que chama algures «phenomenos picarescos de decomposição social»), sempre caracteristicos, mas superiormente interessantes para quem como elle se comprazia em analysar «a obra genuina e sincera da mediocridade», e considerava Calino tão digno d'estudo como Voltaire. O resto do dia dava-o aos amigos, ás visitas, aos ateliers, ás salas d'armas, ás exposições, aos clubs―aos cuidados diversos que se cria um homem d'alto gosto vivendo n'uma cidade d'alta civilisacão.

De tarde subia ao Bois conduzindo o seu phaeton, ou montando a Sabá, uma maravilhosa egoa das caudelarias de Aïn-Weibah que lhe cedera o Emir de Mossul. E a sua noite (quando não tinha cadeira na Opera ou na Comédie) era passada n'algum salão―precisando sempre findar o seu dia entre «o ephemero feminino». (Assim dizia Fradique).

A influencia d'este «feminino» foi suprema na sua existencia. Fradique amou mulheres; mas fóra d'essas, e s A influencia d'este «feminino» foi suprema na sua existencia. Fradique amou mulheres; mas fóra d'essas, e sobre todas as coisas, amava a Mulher.

[95] A sua conducta para com as mulheres era governada conjuntamente por devoções de espiritualista, por curiosidades de critico, e por exigencias de sanguineo. Á maneira dos sentimentaes da Restauração, Fradique considerava-as como «organismos» superiores, divinamente complicados, differentes e mais proprios de adoração do que tudo o que offerece a Natureza: ao mesmo tempo, através d'este culto, ia dissecando e estudando esses «organismos divinos», fibra a fibra, sem respeito, por paixão de analysta; e frequentemente o critico e o enthusiasta desappareciam para só restar n'elle um homem amando a mulher, na simples e boa lei natural, como os Faunos amavam as Nymphas.

As mulheres, além d'isso, estavam para elle (pelo menos nas suas theorias de conversação) classificadas em especies. Havia a «mulher d'exterior», flôr de luxo e de mundanismo culto: e havia a «mulher d'interior», a que guarda o lar, diante da qual, qualquer que fosse o seu brilho, Fradique conservava um tom penetrado de respeito, excluindo toda a investigação experimental. «Estou em presença d'estas (escreve elle a Madame de Jouarre), como em face d'uma carta alheia fechada com sinete e lacre». Na presença, porém, d'aquellas que se «exteriorisam» e vivem todas no ruido e na phantasia, Fradique achava-se tão livre e tão irresponsavel como perante um volume impresso. «Folhear o livro (diz elle ainda a Madame de Jouarre), annotal-o nas margens assetinadas, [96] critical-o em voz alta com independencia e veia, leval-o no coupé para lêr á noite em casa, aconselhal-o a um amigo, atiral-o para um canto percorridas as melhores paginas―é bem permittido, creio eu, segundo a Cartilha e o Codigo».

Seriam estas subtilezas (como suggeria um cruel amigo nosso) as d'um homem que theorisa e idealisa o seu temperamento de carrejão para o tornar litterariamente interessante? Não sei. O commentario mais instructivo das suas theorias dava-o elle, visto n'uma sala, entre «o ephemero feminino». Certas mulheres muito voluptuosas, quando escutam um homem que as perturba, abrem insensivelmente os labios. Em Fradique eram os olhos que se alargavam. Tinha-os pequenos e côr de tabaco: mas junto d'uma d'essas mulheres de exterior, «estrellas de mundanismo», tornavam-se-lhe immensos, cheios de luz negra, avelludados, quasi humidos. A velha lady Mongrave comparava-os «ás guelas abertas de duas serpentes». Havia alli com effeito um acto de alliciação e de absorpção―mas havia sobretudo a evidencia da perturbação e do encanto que o inundavam. N'essa attenção de beato diante da Virgem, no murmurio quente da voz mais amollecedora que um ar de estufa, no humedecimento enleado dos seus olhos finos,―as mulheres viam apenas a influencia omnipotentemente vencedora das suas graças de Fórma e d'Alma sobre um homem esplendidamente viril. Ora nenhum homem mais perigoso do [97] que aquelle que dá sempre ás mulheres a impressão clara, quasi tangivel―de que ellas são irresistiveis, e subjugam o coração mais rebelde só com mover os hombros lentos ou murmurar «que linda tarde!» Quem se mostra facilmente seduzido―facilmente se torna seductor. É a lenda india, tão sagaz e real, do espelho encantado em que a velha Maharina se via radiosamente bella. Para obter e reter esse espelho, em que com tanto esplendor se reflecte a sua pelle engilhada―que peccados e que traições não commetterá a Maharina?...

Creio, pois, que Fradique foi profundamente amado, e que magnificamente o mereceu. As mulheres encontravam n'elle esse sêr, raro entre os homens―um Homem. E para ellas Fradique possuia esta superioridade inestimavel, quasi unica na nossa geração―uma alma extremamente sensivel, servida por um corpo extremamente forte.



De maior duração e intensidade que os seus amores foram todavia as amizades que Fradique a si attrahiu pela sua excellencia moral. Quando eu conheci Fradique em Lisboa, no remoto anno de 1867, julguei sentir na sua natureza (como no seu verso) uma impassibilidade brilhante e metallica: e através da admiração que me deixára a sua arte, a sua personalidade, o seu viço, a sua cabaia de sêda―confessei um dia a J. Teixeira d'Azevedo [98] que não encontrára no poeta das Lapidarias aquelle tepido leite da bondade humana, sem o qual o velho Shakspeare (nem eu, depois d'elle) comprehendia que um homem fosse digno da humanidade. A sua mesma polidez, tão risonha e perfeita, me parecera mais composta por um systema do que genuinamente ingenita. Decerto, porém, concorreu para a formação d'este juizo uma carta (já velha, de 1855) que alguem me confiou, e em que Fradique, com toda a leviana altivez da mocidade, lançava este rude programma de conducta:―«Os homens nasceram para trabalhar, as mulheres para chorar, e nós, os fortes, para passar friamente através!...»

Mas em 1880, quando a nossa intimidade uma noite se fixou a uma mesa do Bignon, Fradique tinha cincoenta annos: e, ou porque eu então o observasse com uma assiduidade mais penetrante, ou porque n'elle se tivesse já operado com a idade esse phenomeno que Fustan de Carmanges chamou depois le degel de Fradique, bem cedo senti, através da impassibilidade marmorea do cinzelador das Lapidarias, brotar, tepida e generosamente, o leite da bondade humana.

A forte expressão de virtude que n'elle logo me impressionou foi a sua incondicional e irrestricta indulgencia. Ou por uma conclusão da sua philosophia, ou por uma inspiração da sua natureza―Fradique, perante o peccado e o delicto, tendia áquella velha misericordia evangelica que, consciente da [99] universal fragilidade, pergunta d'onde se erguerá a mão bastante pura para arremessar a primeira pedra ao erro. Em toda a culpa elle via (talvez contra a razão, mas em obediencia áquella voz que fallava baixo a S. Francisco d'Assis e que ainda se não calou) a irremediavel fraqueza humana: e o seu perdão subia logo do fundo d'essa Piedade que jazia na sua alma, como manancial d'agua pura em terra rica, sempre prompto a brotar.

A sua bondade, porém, não se limitava a esta expressão passiva. Toda a desgraça, desde a amargura limitada e tangivel que passa na rua, até á vasta e esparsa miseria que com a força d'um elemento devasta classes e raças, teve n'elle um consolador diligente e real. São d'elle, e escriptas nos derradeiros annos (n'uma carta a G. F.) estas nobres palavras:―«Todos nós que vivemos n'este globo formamos uma immensa caravana que marcha confusamente para o Nada. Cerca-nos uma natureza inconsciente, impassivel, mortal como nós, que não nos entende, nem sequer nos vê, e d'onde não podemos esperar nem soccorro nem consolação. Só nos resta para nos dirigir, na rajada que nos leva, esse secular preceito, summa divina de toda a experiencia humana―«ajudai-vos uns aos outros!» Que, na tumultuosa caminhada, portanto, onde passos sem conta se misturam―cada um ceda metade do seu pão áquelle que tem fome; estenda metade do seu manto áquelle que tem frio; acuda com o braço áquelle que [100] vai tropeçar; poupe o corpo d'aquelle que já tombou; e se algum mais bem provido e seguro para o caminho necessitar apenas sympathia d'almas, que as almas se abram para elle transbordando d'essa sympathia... Só assim conseguiremos dar alguma belleza e alguma dignidade a esta escura debandada para a Morte».

Decerto Fradique não era um santo militante, rebuscando pelas viellas miserias a resgatar: mas nunca houve mal, por elle conhecido, que d'elle não recebesse allivio. Sempre que lia por acaso, n'um jornal, uma calamidade ou uma indigencia, marcava a noticia com um traço a lapis, lançando ao lado um algarismo―que indicava ao velho Smith o numero de libras que devia remetter, sem publicidade, pudicamente. A sua maxima para com os pobres (a quem os Economistas affirmam que se não deve Caridade mas Justiça)―era «que á hora das comidas mais vale um pataco na mão que duas Philosophias a voar». As creanças, sobretudo quando necessitadas, inspiravam-lhe um enternecimento infinito; e era d'estes, singularmente raros, que encontrando, n'um agreste dia de inverno, um pequenino que pede, tranzido de frio―param sob a chuva e sob o vento, desapertam pacientemente o paletot, descalçam pacientemente a luva, para vasculhar no fundo da algibeira, á procura da moeda de prata que vai ser o calor e o pão d'um dia.

Esta caridade estendia-se budhistamente a tudo [101] que vive. Não conheci homem mais respeitador do animal e dos seus direitos. Uma occasião em Paris, correndo ambos a uma estação de fiacres para nos salvarmos d'um chuveiro que desabava, e seguir, na pressa que nos leváva, a uma venda de tapeçarias (onde Fradique cubiçava umas Nove Musas dançando entre loureiraes), encontrámos apenas um coupé, cuja pileca, com o sacco pendente do focinho, comia melancolicamente a sua ração. Fradique teimou em esperar que o cavallo almoçasse com socego―e perdeu as Nove Musas.

Nos ultimos tempos, preoccupava-o sobretudo a miseria das classes―por sentir que n'estas Democracias industriaes e materialistas, furiosamente empenhadas na lucta pelo pão egoista, as almas cada dia se tornam mais sêccas e menos capazes de piedade. «A fraternidade (dizia elle n'uma carta de 1886 que conservo) vai-se sumindo, principalmente n'estas vastas colmeias de cal e pedra onde os homens teimam em se amontoar e luctar; e, através do constante deperecimento dos costumes e das simplicidades ruraes, o mundo vai rolando a um egoismo feroz. A primeira evidencia d'este egoismo é o desenvolvimento ruidoso da philantropia. Desde que a caridade se organisa e se consolida em instituição, com regulamentos, relatorios, comités, sessões, um presidente e uma campainha, e de sentimento natural passa a funcção official―é porque o homem, não contando já com os impulsos do seu coração, necessita [102] obrigar-se publicamente ao bem pelas prescripções d'um estatuto. Com os corações assim duros e os invernos tão longos, que vai ser dos pobres?...»

Quantas vezes, diante de mim, nos crepusculos de novembro, na sua bibliotheca apenas alumiada pela chamma incerta e dôce da lenha no fogão, Fradique emergiu d'um silencio em que os olhares se lhe perdiam ao longe, como afundados em horisontes de tristeza―para assim lamentar, com enternecida elevação, todas as miserias humanas! E voltava então a amarga affirmação da crescente aspereza dos homens, forçados pela violencia do conflicto e da concorrencia a um egoismo rude, em que cada um se torna cada vez mais o lobo do seu semelhante, homo homini lupus.

―Era necessario que viesse outro Christo! murmurei eu um dia.

Fradique encolheu os hombros:

―Ha de vir; ha de talvez libertar os escravos; ha de ter por isso a sua igreja e a sua liturgia; e depois ha de ser negado; e mais tarde ha de ser esquecido; e por fim hão de surgir novas turbas de escravos. Não ha nada a fazer. O que resta a cada um por prudencia é reunir um peculio e adquirir um revolwer; e aos seus semelhantes que lhe baterem á porta, dar, segundo as circumstancias, ou pão ou bala.



Assim, cheios de idéas, de delicadas occupações [103] e d'obras amaveis, decorreram os derradeiros annos de Fradique Mendes em Paris, até que no inverno de 1888 a morte o colheu sob aquella fórma que elle, como Cesar, sempre appetecera―inopinatam atque repentinam.

Uma noite, sahindo d'uma festa da condessa de La Ferté (velha amiga de Fradique, com quem fizera n'um yacht uma viagem á Islandia) achou no vestiario a sua pelissa russa trocada por outra, confortavel e rica tambem, que tinha no bolso uma carteira com o monogramma e os bilhetes do general Terran-d'Azy. Fradique, que soffria de repugnancias intolerantes, não se quiz cobrir com o agasalho d'aquelle official rabugento e catarrhoso, e atravessou a praça da Concordia a pé, de casaca, até ao club da Rue Royale. A noite estava sêcca e clara, mas cortada por uma d'essas brizas subtis, mais tenues que um halito, que durante leguas se afiam sobre planicies nevadas do norte, e já eram comparadas pelo velho André Vasali a «um punhal traiçoeiro». Ao outro dia acordou com uma tosse leve. Indifferente porém aos resguardos, seguro d'uma robustez que affrontára tantos ares inclementes, foi a Fontainebleau com amigos no alto d'um mail-coach. Logo n'essa noite, ao recolher, teve um longo e intenso arripio; e trinta horas depois, sem soffrimento, tão serenamente que durante algum tempo Smith o julgou adormecido, Fradique, como diziam os antigos, «tinha vivido». Não acaba mais dôcemente um bello dia d. Logo n'essa noite, ao recolher, teve um longo e intenso arripio; e trinta horas depois, sem soffrimento, tão serenamente que durante algum tempo Smith o julgou adormecido, Fradique, como diziam os antigos, «tinha vivido». Não acaba mais dôcemente um bello dia de verão.

[104] O dr. Labert declarou que fôra uma fórma rarissima de pleuriz. E accrescentou, com um exacto sentimento das felicidades humanas:―«Toujours de la chance, ce Fradique!»

Acompanharam a sua passagem derradeira pelas ruas de Paris, sob um céo cinzento de neve, alguns dos mais gloriosos homens de França nas coisas do saber e da arte. Lindos rostos, já pisados pelo tempo, o choraram, na saudade das emoções passadas. E, em pobres moradas, em torno a lares sem lume, foi decerto tambem lamentado este sceptico de finas letras, que cuidava dos males humanos envolto em cabaias de sêda.

Jaz no Père-Lachaise, não longe da sepultura de Balzac, onde no dia dos Mortos elle mandava sempre collocar um ramo d'essas violetas de Parma que tanto amára em vida o creador da Comedia Humana. Mãos fieis, por seu turno, conservam sempre perfumado de rosas frescas o marmore simples que o cobre na terra.



VI


O erudito moralista que assigna Alceste na Gazette de Paris dedicou a Fradique Mendes uma Chronica em que resume assim o seu espirito e a sua acção:―«Pensador verdadeiramente pessoal [105] e forte, Fradique Mendes não deixa uma obra. Por indifferença, por indolencia, este homem foi o dissipador d'uma enorme riqueza intellectual. Do bloco d'ouro em que poderia ter talhado um monumento imperecivel―tirou elle durante annos curtas lascas, migalhas, que espalhou ás mãos cheias, conversando, pelos salões e pelos clubs de Paris. Todo esse pó d'ouro se perdeu no pó commum. E sobre a sepultura de Fradique, como sobre a do grego desconhecido de que canta a Anthologia, se poderia escrever:―«Aqui jaz o ruido do vento que passou derramando perfume, calor e sementes em vão...»

Toda esta chronica vem lançada com a usual superficialidade e inconsideração dos francezes. Nada menos reflectido que as designações de indolencia, indifferença, que voltam repetidamente, n'essa pagina bem ornada e sonora, como para marcar com precisão a natureza de Fradique. Elle foi ao contrario um homem todo de paixão, de acção, de tenaz labor. E escassamente póde ser accusado de indolencia, de indifferença, quem, como elle, fez duas campanhas, apostolou uma religião, trilhou os cinco continentes, absorveu tantas civilisações, percorreu todo o saber do seu tempo.

O chronista da Gazette de Paris acerta porém, singularmente, affirmando que d'esse duro obreiro não resta uma obra. Impressas e dadas ao mundo só d'elle conhecemos com effeito as poesias das Lapidarias, publicadas na Revolução de Setembro―e [106] esse curioso poemeto em latim barbaro, Laus Veneris Tennebrosae, que appareceu na Revue de Poésie et d'Art, fundada em fins de 69 em Paris por um grupo de poetas symbolistas. Fradique porém deixou manuscriptos. Muitas vezes, na rua de Varennes, os entrevi eu dentro d'um cofre hespanhol do seculo XIV, de ferro lavrado, que Fradique denominava a valla commum. Todos esses papeis (e a plena disposição d'elles) foram legados por Fradique áquella Libuska de quem elle largamente falla nas suas cartas a Madame de Jouarre, e que se nos torna tão familiar e real «com os seus velludos brancos de Veneziana e os seus largos olhos de Juno».

Esta senhora, que se chamava Varia Lobrinska, era da velha familia russa dos Principes de Palidoff. Em 1874 seu marido Paulo Lobrinski, diplomata silencioso e vago, que pertencera ao regimento das Guardas Imperiaes, e escrevia capitaine com t, e, (capiténe) morrera em Paris, por fins d'outono, ainda moço, de uma languida e longa anemia. Immediatamente Madame Lobrinska, com solemne magoa, cercada d'aias e de crépes, recolheu ás suas vastas propriedades russas perto de Starobelsk, no governo de Karkoff. Na primavera, porém, voltou com as flôres dos castanheiros,―e desde então habitava Paris em luxuosa e risonha viuvez. Um dia, em casa de Madame de Jouarre, encontrou Fradique, que, enlevado então no culto das Litteraturas slavas, se occupava com paixão do mais antigo e [107] nobre dos seus poemas, o Julgamento de Libuska, casualmente encontrado em 1818 nos archivos do castello de Zelene-Hora. Madame Lobrinska era parenta dos senhores de Zelene-Hora, condes de Colloredo―e possuia justamente uma reproducção das duas folhas de pergaminho que contêm a velha epopeia barbara.

Ambos leram esse texto heroico―até que o dôce instante veio em que, como os dois amorosos de Dante, «não leram mais no dia todo». Fradique dera a Madame Lobrinska o nome de Libuska, a rainha que no Julgamento apparece «vestida de branco e resplandecente de sapiencia». Ella chamava a Fradique Lucifer. O poeta das Lapidarias morreu em novembro:―e dias depois Madame Lobrinska recolhia de novo á melancolia das suas terras, junto de Starobelsk, no governo de Karkoff. Os seus amigos sorriram, murmuraram com sympathia que Madame Lobrinska fugira, para chorar entre os seus moujiks a sua segunda viuvez―até que reflorecesse os lilazes. Mas d'esta vez Libuska não voltou, nem com as flôres dos castanheiros.

O marido de Madame Lobrinska era um Diplomata que estudava e praticava sobretudo os menus e os cotillons. A sua carreira foi portanto irremediavelmente subalterna e lenta. Durante seis annos jazeu no Rio de Janeiro, entre os arvoredos de Petropolis, como Secretario, esperando aquella legação na Europa que o Principe Gortchakoff, então Chanceller Imperial, affirmava pertencer a Madame Lobrinska [108] par droit de beauté et de sagesse. A legação na Europa, n'uma capital mundana, culta, sem bananeiras, nunca veio compensar aquelles exilados que soffriam das saudades da neve:―e Madame Lobrinska, no seu exilio, chegou a aprender tão completamente a nossa dôce lingua de Portugal, que Fradique me mostrou uma traducção da elegia de Lavoski, A Collina do Adeus, trabalhada por ella com superior pureza e relevo. Só ella pois, realmente, d'entre todas as amigas de Fradique, podia apreciar como paginas vivas, onde o pensador depozera a confidencia do seu pensamento, esses manuscriptos que para as outras seriam apenas sêccas e mortas folhas de papel, cobertas de linhas incomprehendidas.

Logo que comecei a colleccionar as cartas dispersas de Fradique Mendes, escrevi a Madame Lobrinska contando o meu empenho em fixar n'um estudo carinhoso as feições d'esse transcendente espirito―e implorando, se não alguns extractos dos seus manuscriptos, ao menos algumas revelações sobre a sua natureza. A resposta de Madame Lobrinska foi uma recusa, bem determinada, bem deduzida,―mostrando que decerto sob «os claros olhos de Juno» estava uma clara razão de Minerva. «Os papeis de Carlos Fradique (dizia em summa) tinham-lhe sido confiados, a ella que vivia longe da publicidade, e do mundo que se interessa e lucra na publicidade, com o intuito de que para sempre conservassem o caracter intimo [109] e secreto em que tanto tempo Fradique os mantivera: e n'estas condições o revelar a sua natureza seria manifestamente contrariar o recatado e altivo sentimento que dictára esse legado...» Isto vinha escripto, com uma letra grossa e redonda, n'uma larga folha de papel aspero, onde a um canto brilhava a ouro, sob uma corôa d'ouro, esta divisa―Per terram ad coelum.

D'este modo se estabeleceu a obscuridade em torno dos manuscriptos de Fradique. Que continha realmente esse cofre de ferro, que Fradique com desconsolado orgulho denominava a valla commum, por julgar pobres e sem brilho no mundo os pensamentos que para lá arrojava?

Alguns amigos pensam que ahi se devem encontrar, se não completas, ao menos esboçadas, ou já coordenadas nos seus materiaes, as duas obras a que Fradique alludia como sendo as mais captivantes para um pensador e um artista d'este seculo―uma Psychologia das Religiões e uma Theoria da Vontade.

Outros (como J. Teixeira d'Azevedo) julgam que n'esses papeis existe um romance de realismo epico, reconstruindo uma civilisação extincta, como a Salammbô. E deduzem essa supposição (desamoravel) d'uma carta a Oliveira Martins, de 1880, em que Fradique exclamava, com uma ironia mysteriosa:―«Sinto-me resvalar, caro historiador, a praticas culpadas e vãs! Ai de mim, ai de mim, que me foge a penna para o mal! Que demonio [110] malfazejo, coberto do pó das Idades, e sobraçando in-folios archeologicos, me veio murmurar uma d'estas noites, noite de duro inverno e de erudição decorativa:―«Trabalha um romance! E no teu romance resuscita a antiguidade asiatica!»? E as suas suggestões pareceram-me dôces, amigo, d'uma doçura lethal!... Que dirá vossê, dilecto Oliveira Martins, se um dia desprecavidamente no seu lar receber um tomo meu, impresso com solemnidade, e começando por estas linhas:―«Era em Babylonia, no mez de Sivanù, depois da colheita do balsamo?...» Decerto, vossê (d'aqui o sinto) deixára pender a face aterrada entre as mãos tremulas, murmurando:―«Justos céos! Ahi vem sobre nós a descripção do templo das Sete-Espheras, com todos os seus terraços! a descripção da batalha de Halub, com todas as suas armas! a descripção do banquete de Sennacherib, com todas as suas iguarias!... Nem os bordados d'uma só tunica, nem os relevos d'um só vaso nos serão perdoados! E é isto um amigo intimo!»

Ramalho Ortigão, ao contrario, inclina a crêr que os papeis de Fradique contêm Memorias―porque só a Memorias se póde coherentemente impôr a condição de permanecerem secretas.

Eu por mim, d'um melhor e mais contínuo conhecimento de Fradique, concluo que elle não deixou um livro de Psychologia, nem uma Epopeia archeologica (que certamente pareceria a Fradique [111] uma culpada e vã ostentação de saber pittoresco e facil), nem Memorias―inexplicaveis n'um homem todo de idéa e de abstracção, que escondia a sua vida com tão altivo recato. E affirmo afoutamente que n'esse cofre de ferro, perdido n'um velho solar russo, não existe uma obra―porque Fradique nunca foi verdadeiramente um auctor.

Para o ser não lhe faltaram decerto as idéas―mas faltou-lhe a certeza de que ellas, pelo seu valor definitivo, merecessem ser registradas e perpetuadas: e faltou-lhe ainda a arte paciente, ou o querer forte, para produzir aquella fórma que elle concebera em abstracto como a unica digna, por bellezas especiaes e raras, de encarnar as suas idéas. Desconfiança de si como pensador, cujas conclusões, renovando a philosophia e a sciencia, podessem imprimir ao espirito humano um movimento inesperado; desconfiança de si como escriptor e creador d'uma Prosa, que só por si propria, e separada do valor do pensamento, exercesse sobre as almas a acção ineffavel do absolutamente bello―eis as duas influencias negativas que retiveram Fradique para sempre inedito e mudo. Tudo o que da sua intelligencia emanasse queria elle que perpetuamente ficasse actuando sobre as intelligencias pela definitiva verdade ou pela incomparavel belleza. Mas a critica inclemente e sagaz que praticava sobre os outros, praticava-a sobre si, cada dia, com redobrada sagacidade e inclemencia. O sentimento, tão vivo n'elle, da Realidade [112] fazia-lhe distinguir o seu proprio espirito tal como era, na sua real potencia e nos seus reaes limites, sem que lh'o mostrassem mais potente ou mais largo esses «fumos da illusão litteraria»―que levam todo o homem de letras, mal corre a penna sobre o papel, a tomar por faiscantes raios de luz alguns sujos riscos de tinta. E concluindo que, nem pela idéa, nem pela fórma, poderia levar ás intelligencias persuasão ou encanto que definitivamente marcassem na evolução da razão ou do gosto―preferiu altivamente permanecer silencioso. Por motivos nobremente diferentes dos de Descartes, elle seguiu assim a maxima que tanto seduzia Descartes―bene vixit qui bene latuit.

Nenhum d'estes sentimentos elle me confessou; mas todos lh'os surprehendi, transparentemente, n'um dos derradeiros Nataes que vim passar á rua de Varennes, onde Fradique pelas festas do anno me hospedava com immerecido esplendor. Era uma noite de grande e ruidoso inverno: e desde o café, com os pés estendidos á alta chamma dos madeiros de faia que estalavam na chaminé, conversavamos sobre a Africa e sobre religiões Africanas. Fradique recolhera na região do Zambeze notas muito flagrantes, muito vivas, sobre os cultos nativos―que são divinisações dos chefes mortos, tornados pela morte Mulungus, Espiritos dispensadores das coisas boas e más, com residencia divina nas cubatas e nas collinas onde tiveram a sua residencia carnal; e, comparando os ceremoniaes e os fins [113] d'estes cultos selvagens da Africa com os primitivos ceremoniaes liturgicos dos Aryas em Septa-Sandou, Fradique concluia (como mostra n'uma carta d'esse tempo a Guerra Junqueiro) que na religião o que ha de real, essencial, necessario e eterno é o Ceremonial e a Liturgia―e o que ha de artificial, de supplementar, de dispensavel, de transitorio é a Theologia e a Moral.

Todas estas coisas me prendiam irresistivelmente, sobretudo pelos traços de vida e de natureza africana com que vinham illuminadas. E sorrindo, seduzido:

―Fradique! porque não escreve vossê toda essa sua viagem á Africa?

Era a vez primeira que eu suggeria ao meu amigo a idéa de compôr um livro. Elle ergueu a face para mim com tanto espanto como se eu lhe propozesse marchar descalço, através da noite tormentosa, até aos bosques de Marly. Depois, atirando a cigarette para o lume, murmurou com lentidão e melancolia:

―Para que?... Não vi nada na Africa, que os outros não tivessem já visto.

E como eu lhe observasse que vira talvez d'um modo differente e superior; que nem todos os dias um homem educado pela philosophia, e saturado de erudição, faz a travessia da Africa; e que em sciencia uma só verdade necessita mil experimentadores―Fradique quasi se impacientou:

―Não! Não tenho sobre a Africa, nem sobre [114] coisa alguma n'este mundo, conclusões que por alterarem o curso do pensar contemporaneo valesse a pena registrar... Só podia apresentar uma série de impressões, de paizagens. E então peor! Porque o verbo humano, tal como o fallamos, é ainda impotente para encarnar a menor impressão intellectual ou reproduzir a simples fórma d'um arbusto... Eu não sei escrever! Ninguem sabe escrever!

Protestei, rindo, contra aquella generalisação tão inteiriça, que tudo varria, desapiedadamente. E lembrei que a bem curtas jardas da chaminé que nos aquecia, n'aquelle velho bairro de Paris onde se erguia a Sorbonna, o Instituto de França e a Escóla Normal, muitos homens houvera, havia ainda, que possuiam do modo mais perfeito a «bella arte de dizer».

―Quem? exclamou Fradique.

Comecei por Bossuet. Fradique encolheu os hombros, com uma irreverencia violenta que me emmudeceu. E declarou logo, n'um resumo cortante, que nos dois melhores seculos da litteratura franceza, desde o meu Bossuet até Beaumarchais, nenhum prosador para elle tinha relevo, côr, intensidade, vida... E nos modernos nenhum tambem o contentava. A distenção retumbante de Hugo era tão intoleravel como a flaccidez oleosa de Lamartine. A Michelet faltava gravidade e equilibrio; a Renan solidez e nervo; a Taine fluidez e transparencia; a Flaubert vibração e calor. O pobre [115] Balzac, esse, era d'uma exuberancia desordenada e barbarica. E o preciosismo dos Goncourt e do seu mundo parecia-lhe perfeitamente indecente...

Aturdido, rindo, perguntei áquelle «feroz insatisfeito» que prosa pois concebia elle, ideal e miraculosa, que merecesse ser escripta. E Fradique, emocionado (porque estas questões de fórma desmanchavam a sua serenidade) balbuciou que queria em prosa «alguma coisa de crystallino, de avelludado, de ondeante, de marmoreo, que só por si, plasticamente, realisasse uma absoluta belleza―e que expressionalmente, como verbo, tudo podesse traduzir desde os mais fugidios tons de luz até os mais subtis estados d'alma...»

―Emfim, exclamei, uma prosa como não póde haver!

―Não! gritou Fradique, uma prosa como ainda não ha!

Depois, ajuntou, concluindo:

―E como ainda a não ha, é uma inutilidade escrever. Só se podem produzir fórmas sem belleza: e dentro d'essas mesmas só cabe metade do que se queria exprimir, porque a outra metade não é reductivel ao verbo.

Tudo isto era talvez especioso e pueril, mas revelava o sentimento que mantivera mudo aquelle superior espirito―possuido da sublime ambição de só produzir verdades absolutamente definitivas por meio de fórmas absolutamente bellas.

Por isso, e não por indolencia de meridional [116] como insinua Alceste,―Fradique passou no mundo, sem deixar outros vestigios da formidavel actividade do seu sêr pensante além d'aquelles que por longos annos espalhou, á maneira do sabio antigo, «em conversas com que se deleitava, á tarde, sob os platanos do seu jardim, ou em cartas, que eram ainda conversas naturaes com os amigos de que as ondas o separavam...» As suas conversas, o vento as levou―não tendo, como o velho dr. Johnson, um Boswell, enthusiasta e paciente, que o seguisse pela cidade e pelo campo, com as largas orelhas attentas, e o lapis prompto a tudo notar e tudo eternizar. D'elle pois só restam as suas cartas―leves migalhas d'esse ouro de que falla Alceste, e onde se sente o brilho, o valor intrinseco, e a preciosidade do bloco rico a que pertenceram.



VII


Se a vida de Fradique foi assim governada por um tão constante e claro proposito de abstenção e silencio―eu, publicando as suas Cartas, pareço lançar estouvada e traiçoeiramente o meu amigo, depois da sua morte, n'esse ruido e publicidade a que elle sempre se recusou por uma rigida probidade de espirito. E assim seria―se eu não possuisse [117] a evidencia de que Fradique incondicionalmente approvaria uma publicação da sua Correspondencia, organisada com discernimento e carinho. Em 1888, n'uma carta em que lhe contava uma romantica jornada na Bretanha, alludia eu a um livro que me acompanhára e me encantára, a Correspondencia de Xavier Doudan―um d'esses espiritos recolhidos que vivem para se aperfeiçoar na verdade e não para se glorificar no mundo, e que, como Fradique, só deixou vestigios da sua intensa vida intellectual na sua Correspondencia, colligida depois com reverencia pelos confidentes do seu pensamento.

Fradique, na carta que me volveu, toda occupada dos Pyrenéos onde gastára o verão, accrescentava n'um post-scriptum:―«A Correspondencia de Doudan é realmente muito legivel; ainda que através d'ella apenas se sente um espirito naturalmente limitado, que desde novo se entranhou no doutrinarismo da escola de Genebra, e que depois, cahido em solidão e doença, só pelos livros conheceu a vida, os homens e o mundo. Li em todo o caso essas cartas―como leio todas as collecções de Correspondencias, que, não sendo didacticamente preparadas para o publico (como as de Plinio), constituem um estudo excellente de psychologia e de historia. Eis-ahi uma maneira de perpetuar as idéas d'um homem que eu afoutamente approvo―publicar-lhe a corresponcia! Ha desde logo esta immensa vantagem:―que [118] o valor das idéas (e portanto a escolha das que devem ficar) não é decidido por aquelle que as concebeu, mas por um grupo de amigos e de criticos, tanto mais livres e mais exigentes no seu julgamento quanto estão julgando um morto que só desejam mostrar ao mundo pelos seus lados superiores e luminosos. Além d'isso uma Correspondencia revela melhor que uma obra a individualidade, o homem; e isto é inestimavel para aquelles que na terra valeram mais pelo caracter do que pelo talento. Accresce ainda que, se uma obra nem sempre augmenta o peculio do saber humano, uma Correspondencia, reproduzindo necessariamente os costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar contemporaneo e ambiente, enriquece sempre o thesouro da documentação historica. Temos depois que as cartas d'um homem, sendo o producto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua philosophia―que é apenas a creação impessoal do seu espirito. Uma Philosophia offerece meramente uma conjectura mais que se vai juntar ao immenso montão das conjecturas: uma Vida que se confessa constitue o estudo d'uma realidade humana, que, posta ao lado de outros estudos, alarga o nosso conhecimento do Homem, unico objectivo accessivel ao esforço intellectual. E finalmente como cartas são palestras escriptas (assim affirma não sei que classico), ellas dispensam o revestimento sacramental da tal prosa como não [119] ha... Mas este ponto precisava ser mais desembrulhado―e eu sinto parar á porta o cavallo em que vou trepar ao pico de Bigorre».

Foi a lembrança d'esta opinião de Fradique, tão clara e fundamentada, que me decidiu, apenas em mim se foi calmando a saudade d'aquelle camarada adoravel, a reunir as suas cartas para que os homens alguma coisa podessem aprender e amar n'aquella intelligencia que eu tão estreitamente amára e seguira. A essa carinhosa tarefa devotei um anno―porque a correspondencia de Fradique, que, desde os quietos habitos a que se acolhera depois de 1880 aquelle «andador de continentes», era a mais preferida das suas occupacões, apresenta a vastidão e a copiosidade da correspondencia de Cicero, de Voltaire, de Proudhon, e d'outros poderosos remexedores de idéas.

Sente-se logo o prazer com que compunha estas cartas na fórma do papel―esplendidas folhas de Whatman, eburneas bastante para que a penna corresse n'ellas com o desembaraço com que a voz corta o ar; vastas bastante para que n'ellas coubesse o desenrolamento da mais complexa idéa; fortes bastante, na sua consistencia de pergaminho, para que não prevalecesse contra ellas o carcomer do tempo. «Calculei já, ajudado pelo Smith (affirma elle a Carlos Mayer), que cada uma das minhas cartas, n'este papel, com enveloppe e estampilha, me custa 250 reis. Ora suppondo vaidosamente que cada quinhentas cartas minhas [120] contêm uma idéa―resulta que cada idéa me fica por cento e vinte e cinco mil reis. Este méro calculo bastará para que o Estado, e a economica Classe-Média que o dirige, empeçam com ardor a educação―provando, como inilludivelmente prova, que fumar é mais barato que pensar... Contrabalanço pensar e fumar, porque são, ó Carlos, duas operações identicas que consistem em atirar pequenas nuvens ao vento».

Estas dispendiosas folhas têm todas a um canto as iniciaes de Fradique―F. M.―minusculas e simples, em esmalte escarlate. A letra que as enche, singularmente desigual, offerece a maior similitude com a conversação de Fradique: ora cerrada e fina, parecendo morder o papel como um buril para contornar bem rigorosamente a idéa; ora hesitante e demorada, com riscos, separações, como n'aquelle esforço tão seu de tentear, espiar, cercar a real realidade das coisas: ora mais fluida e rapida, lançada com facilidade e largueza, lembrando esses momentos de abundancia e de veia que Fontan de Carmanges denominava le dégel de Fradique, e em que o gesto estreito e sobrio se lhe desmanchava n'um esvoaçar de flammula ao vento.

Fradique nunca datava as suas cartas: e, se ellas vinham de moradas familiares aos seus amigos, notava méramente o nome do mez. Existem assim cartas innumeraveis com esta resumida indicação―Paris, Julho; Lisboa, Fevereiro... Frequentemente, [121] tambem, restituia aos mezes as alcunhas naturalistas do kalendario republicano―Paris, Floreal; Londres, Nivoze. Quando se dirigia a mulheres substituia ainda o nome do mez pelo da flôr que melhor o symbolisa; e possuo assim cartas com esta bucolica data―Florença, primeiras violetas (o que indica fins de fevereiro); Londres, chegada dos Chrysanthemos (o que indica começos de setembro). Uma carta de Lisboa offerece mesmo esta data atroz―Lisboa, primeiros fluxos da verborreia parlamentar! (Isto denuncia um janeiro triste, com lama, tipoias no largo de S. Bento, e bachareis em cima bolsando, por entre injurias, fézes de velhos compendios).

Não é portanto possivel dispôr a Correspondencia de Fradique por uma ordem chronologica: nem de resto essa ordem importa desde que eu não edito a sua Correspondencia completa e integral, formando uma historia continua e intima das suas idéas. Em cartas que não são d'um auctor e que não constituem, como as de Voltaire ou de Proudhon, o corrente e constante commentario que acompanha e illumina a obra, cumpria sobretudo destacar as paginas que com mais saliencia revelassem a personalidade―o conjunto de idéas, gostos, modos, em que tangivelmente se sente e se palpa o homem. E por isso, n'estes pesados maços das cartas de Fradique, escolho apenas algumas, soltas, d'entre as que mostram traços de caracter e relances da existencia activa; d'entre as que deixam [122] entrevêr algum instructivo episodio da sua vida de coração; d'entre as que, revolvendo noções geraes sobre a litteratura, a arte, a sociedade e os costumes, caracterisam o feitio do seu pensamento; e ainda, pelo interesse especial que as realça, d'entre as que se referem a coisas de Portugal, como as suas «impressões de Lisboa», transcriptas com tão maliciosa realidade para regalo de Madame de Jouarre.

Inutil seria decerto, n'estas laudas fragmentaes, procurar a summa do alto e livre Pensar de Fradique ou do seu Saber tão fundo e tão certo. A correspondencia de Fradique Mendes, como diz finamente Alceste―c'est son genie qui mousse. N'ella, com effeito, vemos apenas a espuma radiante e ephemera que fervia e transbordava, emquanto em baixo jazia o vinho rico e substancial que não foi nunca distribuido nem serviu ás almas sedentas. Mas, assim ligeira e dispersa, ella mostra todavia, em excellente relevo, a imagem d'este homem tão superiormente interessante em todas as suas manifestações de pensamento, de paixão, de sociabilidade e de acção.



Além do meu desejo que os contemporaneos venham a amar este espirito que tanto amei―eu obedeço, publicando as cartas de Fradique Mendes, a um intuito de puro e seguro patriotismo.

Uma nação só vive porque pensa. Cogitat ergo [123] est. A Força e a Riqueza não bastam para provar que uma nação vive d'uma vida que mereça ser glorificada na Historia―como rijos musculos n'um corpo e ouro farto n'uma bolsa não bastam para que um homem honre em si a Humanidade. Um reino d'Africa, com guerreiros incontaveis nas suas aringas e incontaveis diamantes nas suas collinas, será sempre uma terra bravia e morta, que, para lucro da Civilisação, os Civilisados pisam e retalham tão desassombradamente como se sangra e se corta a rez bruta para nutrir o animal pensante. E por outro lado se o Egypto ou Tunis formassem resplandecentes centros de Sciencias, de Litteraturas e de Artes, e, através de uma serena legião de homens geniaes, incessantemente educassem o mundo―nenhuma nação, mesmo n'esta idade de ferro e de força, ousaria occupar como um campo maninho e sem dono esses sólos augustos d'onde se elevasse, para tornar as almas melhores, o enxame sublime das Idéas e das Fórmas.

Só na verdade o Pensamento e a sua creação suprema, a Sciencia, a Litteratura, as Artes, dão grandeza aos Povos, attrahem para elles universal reverencia e carinho, e, formando dentro d'elles o thesouro de verdades e de bellezas que o mundo precisa, os tornam perante o mundo sacrosantos. Que differença ha, realmente, entre Paris e Chicago? São duas palpitantes e productivas cidades―onde os palacios, as instituições, os parques, as riquezas, se equivalem soberbamente. Porque fórma [124] pois Paris um fóco crepitante de Civilisação que irresistivelmente fascina a humanidade―e porque tem Chicago apenas sobre a terra o valor de um rude e formidavel celleiro onde se procura a farinha e o grão? Porque Paris, além dos palacios, das instituições e das riquezas de que Chicago tambem justamente se gloría, possue a mais um grupo especial de homens―Renan, Pasteur, Taine, Berthelot, Coppée, Bonnat, Falguieres, Gounod, Massenet―que pela incessante produccão do seu cerebro convertem a banal cidade que habitam n'um centro de soberano ensino. Se as Origens do Christianismo, o Fausto, as telas de Bonnat, os marmores de Falguieres, nos viessem d'além dos mares, da nova e monumental Chicago―para Chicago, e não para Paris, se voltariam, como as plantas para o sol, os espiritos e os corações da Terra.

Se uma nação, portanto, só tem superioridade porque tem pensamento, todo aquelle que venha revelar na nossa patria um novo homem de original pensar concorre patrioticamente para lhe augmentar a unica grandeza que a tornará respeitada, a unica belleza que a tornará amada;―e é como quem aos seus templos juntasse mais um sacrario ou sobre as suas muralhas erguesse mais um castello.

Michelet escrevia um dia, n'uma carta, alludindo a Anthero de Quental:―«Se em Portugal restam quatro ou cinco homens como o auctor das Odes Modernas, Portugal continúa a ser um grande [125] paiz vivo...» O mestre da Historia de França com isto significava―que emquanto viver pelo lado da Intelligencia, mesmo que jaza morta pelo lado da Acção, a nossa patria não é inteiramente um cadaver que sem escrupulo se pise e se retalhe. Ora no Pensamento ha manifestações diversas: e se nem todas irradiam o mesmo esplendor, todas provam a mesma vitalidade. Um livro de versos póde sublimemente mostrar que a alma de uma nação vive ainda pelo Genio Poetico: um conjunto de leis salvadoras, emanando de um espirito positivo, póde solidamente comprovar que um povo vive ainda pelo Genio Politico:―mas a revelação de um espirito como o de Fradique assegura que um paiz vive tambem pelos lados menos grandiosos, mas valiosos ainda, da graça, da vivaz invenção, da transcendente ironia, da phantasia, do humorismo e do gosto...

Nos tempos incertos e amargos que vão, Portuguezes d'estes não podem ficar para sempre esquecidos, longe, sob a mudez de um marmore. Por isso eu o revelo aos meus concidadãos―como uma consolação e uma esperança.



AS CARTAS




I

ao visconde de a.-t.

Londres, maio.


Meu caro patricio.―Só hontem á noite, tarde, ao recolher do campo, encontrei o bilhete com que consideravelmente me honrou, perguntando á minha experiencia―«qual é o melhor alfaiate de Londres». Depende isso inteiramente do fim para que V. necessita esse Artista. Se pretende meramente um homem que lhe cubra a nudez com economia e conforto, então recommendo-lhe aquelle que tiver taboleta mais perto do seu Hotel. São tantos passos que forra―e, como diz o Ecclesiastes, cada passo encurta a distancia da sepultura.

Se porém V., caro patricio, deseja um alfaiate que lhe dê consideração e valor no seu mundo; que V. possa citar com orgulho, á porta da Havaneza, rodando lentamente para mostrar o córte ondeado [128] e fino da cinta; que o habilite a mencionar os Lords que lá encontrou, escolhendo d'alto, com ponta da bengala, cheviotes para blusas de caça; e que lhe sirva mais tarde, na velhice, á hora gêba do rheumatismo, como recordação consoladora de elegancias moças―então com ardente instancia lhe aconselho o Cook (o Thomaz Cook) que é da mais extremada moda, absolutamente ruinoso, e falha tudo.

Para subsequentes conselhos de «fornecedores», em Londres ou outros pontos do Universo, permanece sempre ao seu grato serviço―Fradique Mendes.



II

a madame de jouarre

(Trad.)[2]

Paris, dezembro.


Minha querida madrinha.―Hontem, em casa de Madame de Tressan, quando passei, levando para a ceia Libuska, estava sentada, conversando comsigo, por debaixo do atroz retrato da Marechala [129] de Mouy, uma mulher loura, de testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez por lhe presentir, apesar de tão indolentemente enterrada n'um divan, uma rara graça no andar, graça altiva e ligeira de Deusa e de ave. Bem differente da nossa sapiente Libuska, que se move com o esplendido peso de uma estatua! E do interesse por esse outro passo, possivelmente alado e dianico (de Diana), provém estas garatujas.

Quem era? Supponho que nos chegou do fundo da provincia, d'algum velho castello do Anjou com herva nos fossos, porque me não lembro de ter encontrado em Paris aquelles cabellos fabulosamente louros como o sol de Londres em dezembro―nem aquelles hombros descahidos, dolentes, angelicos, imitados de uma madona de Montegna, e inteiramente desusados em França desde o reinado de Carlos X, do Lyrio no Valle, e dos corações incomprehendidos. Não admirei com igual fervor o vestido preto, onde reinavam coisas escandalosamente amarellas. Mas os braços eram perfeitos; e nas pestanas, quando as baixava, parecia pender um romance triste. Deu-me assim a impressão, ao começo, de ser uma elegiaca do tempo de Chateaubriand. Nos olhos porém surprehendi-lhe depois uma faisca de vivacidade sensivel―que a datava do seculo XVIII. Dirá a minha madrinha:―«como pude eu abranger tanto, ao passar, com Libuska ao lado fiscalisando?» É que voltei. Voltei, e da hombreira da porta readmirei os hombros dolentes [130] de virgem do seculo XIII; a massa de cabellos que o mólho de velas por traz, entre as orchideas, nimbava d'ouro; e sobretudo o subtil encanto dos olhos―dos olhos finos e languidos... Olhos finos e languidos. É a primeira expressão em que hoje apanho decentemente a realidade.

Porque é que não me adiantei, e não pedi uma «apresentação?» Nem sei. Talvez o requinte em retardar, que fazia com que La-Fontaine, dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse sempre o caminho mais longo. Sabe o que dava tanta seducção ao palacio das Fadas, nos tempos do rei Arthur? Não sabe. Resultados de não lêr Tennyson... Pois era a immensidade d'annos que levava a chegar lá, através de jardins encantados, onde cada recanto de bosque offerecia a emoção inesperada d'um flirt, d'uma batalha, ou d'um banquete... (Com que morbida propensão acordei hoje para o estylo asiatico!) O facto é que, depois da contemplação junto á hombreira, voltei a cear ao pé da minha radiante tyranna. Mas por entre o banal sandwich de foie-gras, e um copo de Tokay em nada parecido com aquelle Tokay que Voltaire, já velho, se recordava de ter bebido em casa de Madame d'Etioles (os vinhos dos Tressans descendem em linha varonil dos venenos da Brinvilliers), vi, constantemente vi, os olhos finos e languidos. Não ha senão o homem, entre os animaes, para misturar a languidez d'um olhar fino a fatias de foie-gras. Não o faria decerto um cão de boa raça. Mas seriamos nós [131] desejados pelo «ephemero feminino» se não fosse esta providencial brutalidade? Só a porção de Materia que ha no homem faz com que as mulheres se resignem á incorrigivel porção d'Ideal que n'elle ha tambem―para eterna perturbação do mundo. O que mais prejudicou Petrarcha aos olhos de Laura―foram os Sonetos. E quando Romeu, já com um pé na escada de sêda, se demorava, exhalando o seu extasi em invocações á Noite e á Lua―Julietta batia os dedos impacientes no rebordo do balcão, e pensava: «Ai, que palrador que és, filho dos Montaigus!» Este detalhe não vem em Shakspeare―mas é comprovado por toda a Renascença. Não me amaldiçôe por esta sinceridade de meridional sceptico, e mande-me dizer que nome tem, na sua parochia, a loura castellã do Anjou. A proposito de castellos: cartas de Portugal annunciam-me que o kiosque por mim mandado erguer em Cintra, na minha quintarola, e que lhe destinava como «seu pensadoiro e retiro nas horas de sésta»―abateu. Tres mil e oitocentos francos achatados em entulho. Tudo tende á ruina n'um paiz de ruinas. O architecto que o construiu é deputado, e escreve no Jornal da Tarde estudos melancolicos sobre as Finanças! O meu procurador em Cintra aconselha agora, para reedificar o kiosque, um estimavel rapaz, de boa familia, que entende de construcções e que é empregado na Procuradoria Geral da Corôa! Talvez se eu necessitasse um Jurisconsulto me propozessem um trolha. É com estes elementos alegres [132] que nós procuramos restaurar o nosso imperio d'Africa! Servo humilde e devoto―Fradique.



III

a oliveira martins

Paris, maio.


Querido amigo.―Cumpro emfim a promessa feita na sua erudita ermida das Aguas-Ferreas, n'aquella manhã de Março em que conversavamos ao sol sobre o caracter dos Antigos,―e remetto, como documento, a photographia da mumia de Ramèzes II (que o francez banal, continuador do grego banal, teima em chamar Sezostris), recentemente descoberta nos sarcophagos reaes de Medinet-Abou pelo professor Maspero.

Caro Oliveira Martins, não acha V. picarescamente suggestivo este facto―Ramèzes photographado?... Mas ahi está justificada a mumificação dos cadaveres, feita pelos bons Egypcios com tanta fadiga e tanta despeza, para que os homens gozassem na sua fórma terrena, segundo diz o Escriba, «as vantagens da Eternidade!» Ramèzes, como elle acreditava e lhe affirmavam os metaphysicos de Thebas, resurge effectivamente «com todos os seus ossos e a pelle que era sua» n'este anno da Graça de 1886. Ora 1886, para um Pharaoh da decima-nona dynastia, mil e quatrocentos annos anterior a Christo, [133] representa muito decentemente a Eternidade e a Vida-Futura. E eis-nos agora podendo contemplar as «proprias feições» do maior dos Ramezidas, tão realmente como Hokem seu Eunuco-Mór, ou Pentaour seu Chronista-Mór, ou aquelles que outr'ora em dias de triumphos corriam a juncar-lhe o caminho de flôres, trazendo «os seus chinós de festa e a cutis envernizada com oleos de Segabai». Ahi o tem V. agora diante de si, em photographia, com as palpebras baixas e sorrindo. E que me diz a essa face real? Que humilhantes reflexões não provoca ella sobre a irremediavel degeneração do homem! Onde ha ahi hoje um, entre os que governam povos, que tenha essa soberana fronte de calmo e incommensuravel orgulho; esse superior sorriso de omnipotente benevolencia, d'uma ineffavel benevolencia que cobre o mundo; esse ar de imperturbada e indomavel força; todo esse esplendor viril que a treva de um hypogeo, durante tres mil annos, não conseguiu apagar? Eis-ahi verdadeiramente um Dono de homens! Compare esse semblante augusto com o perfil sôrno, obliquo e bigodoso d'um Napoleão III; com o focinho de bull-dog acorrentado d'um Bismarck; ou com o carão do Czar russo, um carão parado e affavel que podia ser o do seu Copeiro-Mór. Que chateza, que fealdade tacanha d'estes rostos de poderosos!

D'onde provém isto? De que a alma modela a face como o sopro do antigo oleiro modelava o vaso fino:―e hoje, nas nossas civilisações, não [134] ha logar para que uma alma se affirme e se produza na absoluta expansão da sua força. Outr'ora um simples homem, um feixe de musculos sobre um feixe d'ossos, podia erguer-se e operar como um elemento da Natureza. Bastava ter o illimitado querer―para d'elle tirar o illimitado poder. Eis-ahi em Ramèzes um sêr que tudo quer e tudo póde, e a quem Phtah, o Deus sagaz, diz com espanto: «a tua vontade dá a vida e a tua vontade dá a morte!» Elle impelle a seu bel-prazer as raças para norte, para sul ou para leste; elle altera e arraza, como muros n'um campo, as fronteiras dos reinos; as cidades novas surgem das suas pegadas; para elle nascem todos os fructos da terra, e para elle se volta toda a esperança dos homens; o logar para onde volve os seus olhos é bemdito e prospéra, e o logar que não recebe essa luz benefica jaz como «o torrão que o Nilo não beijou»; os deuses dependem d'elle, e Amnon estremece inquieto quando, diante dos pylones do seu templo, Ramèzes faz estalar as tres cordas entrançadas do seu latego de guerra! Eis um homem―e que seguramente póde affirmar no seu canto triumphal:―«Tudo vergou sob a minha força: eu vou e venho com as passadas largas d'um leão; o rei dos deuses está á minha direita e tambem á minha esquerda; quando eu fallo o céo escuta; as coisas da terra estendem-se a meus pés, para eu as colher com mão livre; e para sempre estou erguido sobre o throno do mundo!»

[135] «O mundo», está claro, era aquella região, pela maior parte arenosa, que vai da cordilheira Libyca á Mesopotamia: e nunca houve mais petulante emphase do que nas Panegyrias dos Escribas. Mas o homem é, ou suppõe ser, inigualavelmente grande. E esta consciencia da grandeza, do incircumscripto poder vem necessariamente resplandecer na physionomia e dar essa altiva magestade, repassada de risonha serenidade, que Ramèzes conserva mesmo além da vida, resequido, mumificado, recheado de betume da Judêa.

Veja V. por outro lado as condições que cercam hoje um poderoso do typo Bismarck. Um desgraçado d'esses não está acima de nada e depende de tudo. Cada impulso da sua vontade esbarra com a resistencia d'um obstaculo. A sua acção no mundo é um perpetuo bater de craneo contra espessuras de portas bem defendidas. Toda a sorte de convenções, de tradições, de direitos, de preceitos, de interesses, de principios, se lhe levanta a cada instante diante dos passos como marcos sagrados. Um artigo de jornal fal-o estacar, hesitante. A rabulice d'um legista obriga-o a encolher precipitadamente a garra que já ia estendendo. Dez burguezes nedios e dez professores guedelhudos, votando dentro d'uma sala, estatelam por terra o alto andaime dos seus planos. Alguns florins dentro d'um sacco tornam-se o tormento das suas noites. É-lhe tão impossivel dispôr d'um cidadão como d'um astro. Nunca póde avançar d'uma arrancada, erecto [136] e seguro: tem de ser ondeante e rastejante. A vigilancia ambiente impõe-lhe a necessidade vil de fallar baixo e aos cantos. Em vez de «recolher as coisas da terra, com mão livre»―surripia-as ás migalhas, depois de escuras intrigas. As irresistiveis correntes de idéas, de sentimentos, de interesses, trabalham por baixo d'elle, em torno d'elle: e parecendo dirigil-as, pelo muito que braceja e ronca d'alto, é na realidade por ellas arrastado. Assim um omnipotente do typo Bismarck vai por vezes em apparencia no cimo das grandes coisas;―mas como a boia solta vai no cimo da torrente.

Miseravel omnipotencia! E o sentimento d'esta miseria não póde deixar de influenciar a physionomia dos nossos poderosos dando-lhe esse feitio contrafeito, crispado, torturado, azedado e sobretudo amolgado que se nota na cara de Napoleão, do czar, de Bismarck, de todos os que reunem a maior somma de poder contemporaneo―o feitio amolgado d'uma coisa que rola aos encontrões, batendo contra muralhas.

Em conclusão:―a mumia de Ramèzes II (unica face authentica do homem antigo que conhecemos) prova que, tendo-se tornado impossivel uma vida humana vivida na sua maxima liberdade e na sua maxima força, sem outros limites que os do proprio querer―resultou perder-se para sempre, no typo physico do homem, a summa e perfeita expressão da grandeza. Já não ha uma face sublime: ha carantonhas mesquinhas onde a bilis cava rugas [137] por entre os recortes do pêllo. As unicas physionomias nobres são as das feras, genuinos Ramèzes no seu deserto, que nada perderam da sua força, nem da sua liberdade. O homem moderno, esse, mesmo nas alturas sociaes, é um pobre Adão achatado entre as duas paginas d'um codigo.

Se V. acha todo isto excessivo e phantasista, attribua-o a que jantei hontem, e conversei inevitavelmente, com o seu correligionario P., conselheiro d'estado, e muchas cosas más. Más em hespanhol; e más também em portuguez no sentido de pessimas. Esta carta é a reacção violenta da conversa conselheiral e conselheirifera. Ah, meu amigo, desditoso amigo, que faz V. depois de receber o fluxo labial d'um conselheiro? Eu tomo um banho por dentro―um banho lustral, immenso banho de phantasia, onde despejo como perfume idoneo um frasco de Shelley ou de Masset. Amigo certo et nunc et semperFradique Mendes.



IV

a madame s.

Paris, fevereiro.


Minha cara amiga.―O hespanhol chama-se D. Ramon Covarubia, mora na Passage Saulnier, 12, e como é aragonez, e portanto sobrio, creio que com dez francos por lição se contentará amplamente. Mas se seu filho já sabe o castelhano necessario para entender os Romanceros, o D. Quichote, [138] alguns dos «Piccarescos», vinte paginas de Quevedo, duas comedias de Lope de Vega, um ou outro romance de Galdós, que é tudo quanto basta lêr na litteratura de Hespanha,―para que deseja a minha sensata amiga que elle pronuncie esse castelhano que sabe com o accento, o sabor, e o sal d'um madrileno nascido nas veras pedras da Calle-Mayor? Vai assim o dôce Raul desperdiçar o tempo que a Sociedade lhe marcou para adquirir idéas e noções (e a Sociedade a um rapaz da sua fortuna, do seu nome e da sua belleza, apenas concede, para esse abastecimento intellectual, sete annos, dos onze aos dezoito)―em quê? No luxo de apurar até a um requinte superfino, e superfluo, o mero instrumento de adquirir noções e idéas. Porque as linguas, minha boa amiga, são apenas instrumentos do saber―como instrumentos de lavoura. Consumir energia e vida na aprendizagem de as pronunciar tão genuina e puramente que pareça que se nasceu dentro de cada uma d'ellas, e que por meio de cada uma se pediu o primeiro pão e agua da vida―é fazer como o lavrador, que em vez de se contentar, para cavar a terra, com um ferro simples encabado n'um pau simples, se applicasse, durante os mezes em que a horta tem de ser trabalhada, a embutir emblemas no ferro e esculpir flôres e folhagens ao comprido do pau. Com um hortelão assim, tão miudamente occupado em alindar e requintar a enxada, como estariam agora, minha senhora, os seus pomares Touraine?

[139] Um homem só deve fallar, com impeccavel segurança e pureza, a lingua da sua terra:―todas as outras as deve fallar mal, orgulhosamente mal, com aquelle accento chato e falso que denuncía logo o estrangeiro. Na lingua verdadeiramente reside a nacionalidade;―e quem fôr possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa vai gradualmente soffrendo uma desnacionalisação. Não ha já para elle o especial e exclusivo encanto da falla materna com as suas influencias affectivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do caracter. Por isso o polyglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desapparece, diluido em estrangeirismo. Rue de Rivoli, Calle d'Alcalá, Regent Street, Wilhem Strasse―que lhe importa? Todas são ruas, de pedra ou de macadam. Em todas a falla ambiente lhe offerece um elemento natural e congenere onde o seu espirito se move livremente, espontaneamente, sem hesitações, sem attritos. E como pelo Verbo, que é o instrumento essencial da fusão humana, se póde fundir com todas―em todas sente e aceita uma Patria.

Por outro lado, o esforço contínuo de um homem para se exprimir, com genuina e exacta propriedade de construcção e de accento, em idiomas estranhos―isto é, o esforço para se confundir com [140] gentes estranhas no que ellas têm de essencialmente caracteristico, o Verbo―apaga n'elle toda a individualidade nativa. Ao fim de annos esse habilidoso, que chegou a fallar absolutamente bem outras linguas além da sua, perdeu toda a originalidade de espirito―porque as suas idéas forçosamente devem ter a natureza incaracteristica e neutra que lhes permitta serem indifferentemente adaptadas ás linguas mais oppostas em caracter e genio. Devem, de facto, ser como aquelles «corpos de pobre» de que tão tristemente falla o povo―«que cabem bem na roupa de toda a gente».

Além d'isso, o proposito de pronunciar com perfeição linguas estrangeiras constitue uma lamentavel sabujice para com o estrangeiro. Ha ahi, diante d'elle, como o desejo servil de não sermos nós mesmos, de nos fundirmos n'elle, no que elle tem de mais seu, de mais proprio, o Vocabulo. Ora isto é uma abdicação de dignidade nacional. Não, minha senhora! Fallemos nobremente mal, patrioticamente mal, as linguas dos outros! Mesmo porque aos estrangeiros o polyglota só inspira desconfiança, como sêr que não tem raizes, nem lar estavel―sêr que rola através das nacionalidades alheias, successivamente se disfarça n'ellas, e tenta uma installação de vida em todas porque não é tolerado por nenhuma. Com effeito, se a minha amiga percorrer a Gazeta dos Tribunaes verá que o perfeito polyglotismo é um instrumento da alta escroquerie.

[141] E aqui está como, levado pelo dilettantismo das idéas, em vez d'um endereço eu lhe forneço um tratado!... Que a minha garrulice ao menos a faça sorrir, pensar, e poupar ao nosso Raul o trabalho medonho de pronunciar Viva la Gracia! e Benditos sean tus ojos! exactissimamente como se vivesse a uma esquina da Puerta del Sol, com uma capa de bandas de velludo, chupando o cigarro de Lazarillo. Isto todavia não impede que se utilisem os serviços de D. Ramon. Elle, além de Zorrillista, é guitarrista; e póde substituir as lições na lingua de Quevedo por lições na guitarra de Almaviva. O seu lindo Raul ganhará ainda assim uma nova faculdade de exprimir―a faculdade de exprimir emoções por meio de cordas de arame. E este dom é excellente! Convem mais na mocidade, e mesmo na velhice, saber, por meio das quatro cordas d'uma viola, desafogar a alma das coisas confusas e sem nome que n'ella tumultuam, do que poder, através das estalagens do mundo, reclamar com perfeição o pão e o queijo―em sueco, hollandez, grego, bulgaro e polaco.

E será realmente indispensavel mesmo para prover, através do mundo, estas necessidades vitaes d'estomago e alma―o trilhar, durante annos, pela mão dura dos mestres, «os descampados e atoleiros das grammaticas e pronuncias», como dizia o velho Milton? Eu tive uma admiravel tia que fallava unicamente o portuguez (ou antes o minhoto) e que percorreu toda a Europa com desafôgo [142] e conforto. Esta senhora, risonha mas dyspeptica, comia simplesmente ovos―que só conhecia e só comprehendia sob o seu nome nacional vernaculo de ovos. Para ella huevos, oeufs, eggs, das ei, eram sons da Natureza bruta, pouco differençaveis do coaxar das rãs, ou d'um estalar de madeira. Pois quando em Londres, em Berlim, em Paris, em Moscow, desejava os seus ovos―esta expedita senhora reclamava o famulo do Hotel, cravava n'elle os olhos agudos e bem explicados, agachava-se gravemente sobre o tapete, imitava com o rebolar lento das saias tufadas uma gallinha no chôco, e gritava ki-ki-ri-ki! kó-kó-ri-ki! kó-ró-kó-kó! Nunca, em cidade ou região intelligente do Universo, minha tia deixou de comer os seus ovos―e superiormente frescos!

Beijo as suas mãos, benevola amiga―Fradique.



V

a guerra junqueiro

Paris, maio.


Meu caro amigo.―A sua carta transborda de illusão poetica. Suppôr, como V. candidamente suppõe, que trespassando com versos (ainda mesmo seus, e mais rutilantes que as flechas de Apollo) a Igreja, o Padre, a Liturgia, as Sacristias, o jejum da sexta-feira e os ossos dos Martyres, se póde «desentulhar Deus da alluvião sacerdotal», e [143] elevar o Povo (no Povo V. decerto inclue os conselheiros de Estado) a uma comprehensão toda pura e abstracta da Religião―a uma religião que consista apenas n'uma Moral apoiada n'uma Fé―é ter da Religião, da sua essencia e do seu objecto, uma sonhadora idéa de sonhador teimoso em sonhos!

Meu bom amigo, uma Religião a que se elimine o Ritual desapparece―porque as Religiões para os homens (com excepção dos raros Metaphysicos, Moralistas e Mysticos) não passa d'um conjunto de Ritos através dos quaes cada povo procura estabelecer uma communicação intima com o seu Deus e obter d'elle favores. Este, só este, tem sido o fim de todos os cultos, desde o mais primitivo, do culto de Indra, até ao culto recente do coração de Maria, que tanto o escandalisa na sua parochia―oh incorrigivel beato do idealismo!

Se V. o quer verificar historicamente, deixe Vianna do Castello, tome um bordão, e suba commigo por essa antiguidade fóra até um sitio bem cultivado e bem regado que fica entre o rio Indo, as escarpas do Hymalaia, e as arêas d'um grande deserto. Estamos aqui em Septa-Sindhou, no paiz das Sete-Aguas, no Valle Feliz, na terra dos Aryas. No primeiro povoado em que pararmos V. vê, sobre um outeiro, um altar de pedra coberto de musgo fresco: em cima brilha pallidamente um fogo lento: e em torno perpassam homens, vestidos de linho, com os longos cabellos presos por um aro [144] d'ouro fino. São padres, meu amigo! São os primeiros capellães da humanidade,―e cada um d'elles está, por esta quente alvorada de maio, celebrando um rito da missa Aryana. Um limpa e desbasta a lenha que ha de nutrir o lume sagrado; outro pisa dentro d'um almofariz, com pancadas que devem resoar «como tambor de victoria», as hervas aromaticas que dão o Sômma; este, como um semeador, espalha grãos de aveia em volta da Ara; aquelle, ao lado, espalmando as mãos ao céo, entoa um cantico austero. Estes homens, meu amigo, estão executando um Rito que encerra em si toda a Religião dos Aryas, e que tem por objecto propiciar Indra―Indra, o sol, o fogo, a potencia divina que póde encher de ruina e dôr o coração do Arya, sorvendo a agua das regas, queimando os pastos, desprendendo a pestilencia das lagôas, tornando Septa-Sindhou mais esteril que o «coração do mau»; ou póde, derretendo as neves do Hymalaia, e soltando com um golpe de fogo «a chuva que jaz no ventre das nuvens», restituir a agua aos rios, a verdura aos prados, a salubridade ás lagôas, a alegria e abundancia á morada do Arya. Trata-se pois simplesmente de convencer Indra a que, sempre propicio, derrame sobre Septa-Sindhou todos os favores que póde appetecer um povo rural e pastoral.

Não ha aqui Metaphysica, nem Ethica―nem explicações sobre a natureza dos deuses, nem regras para a conducta dos homens. Ha meramente [145] uma Liturgia, uma totalidade de Ritos, que o Arya necessita observar para que Indra o attenda―uma vez que, pela experiencia de gerações, se comprovou que Indra só o escutará, só concederá os beneficios rogados, quando em torno ao seu altar certos velhos, de certa casta, vestidos de linho candido, lhe erguerem canticos dôces, lhe offertarem libações, lhe amontoarem dons de fructa, mel e carne d'anho. Sem dons, sem libações, sem canticos, sem anho, Indra, amuado e sumido no fundo do Invisivel e do Intangivel, não descerá á terra a derramar-se na sua bondade. E se vier de Vianna do Castello um Poeta tirar ao Arya o seu altar de musgo, o seu pau sacrosanto, o almofariz, o crivo e o vaso do Sômma, o Arya ficará sem meios de propiciar o seu Deus, desattendido do seu Deus―e será na terra como a creancinha que ninguem nutre e a que ninguem ampara os passos.

Esta Religião primordial é o typo absoluto e inalteravel das Religiões, que todas por instincto repetem―e em que todas (apesar dos elementos estranhos de Theologia, de Metaphysica, de Ethica que lhe introduzem os espiritos superiores) terminam por se resumir, com reverencia. Em todos os climas, em todas as raças, ou divinisando as forças da Natureza, ou divinisando a Alma dos mortos, as Religiões, amigo meu, consistiram sempre praticamente n'um conjunto de praticas, pelas quaes o homem simples procura alcançar da amizade de Deus os bens supremos da saude, da forca, da paz, [146] da riqueza. E mesmo quando, já mais crente no esforço proprio, pede esses bens á hygiene, á ordem, á lei e ao trabalho, ainda persiste nos ritos propiciadores para que Deus ajude o seu esforço.

O que V. observou em Septa-Sindhou poderá verificar igualmente, parando (antes de recolhermos a Vianna, a beber esse vinho verde de Monção, que V. dithyrambisa) na Antiguidade classica, em Athenas ou Roma, onde quizer, no momento de maior esplendor e cultura das civilisações greco-latinas. Se V. ahi perguntar a um antigo, seja um oleiro de Suburra, seja o proprio Flamen Dialis, qual é o corpo de doutrinas e de conceitos moraes que compõe a Religião,―elle sorrirá, sem o comprehender. E responderá que a Religião consiste em paces deorum quaerere, em apaziguar os Deuses, em segurar a benevolencia dos Deuses. Na idéa do antigo isso significa cumprir os ritos, as praticas, as formulas, que uma longa tradição demonstrou serem as unicas que conseguem fixar a attencão dos Deuses e exercer sobre elles persuasão ou seducção. E n'esse ceremonial era indispensavel não alterar nem o valor d'uma syllaba na Prece, nem o valor d'um gesto no sacrificio, porque d'outro modo o Deus, não reconhecendo o Sacrificio da sua dilecção e a Prece do seu agrado, permanecia desattento e alheio; e a Religião falseava o seu fim supremo―influenciar o Deus. Peor ainda! Passava a ser a irreligião: e o Deus, vendo n'essa omissão de liturgia uma falta de reverencia, despedia [147] logo das Alturas os dardos da sua colera. A obliquidade das pregas na tunica do Sacrificador, um passo lançado á direita ou movido á esquerda, o cahir lento das gottas da libação, o tamanho das achas do lume votivo, todos esses detalhes estavam prescriptos immutavelmente pelos Rituaes, e a sua exclusão ou a sua alteração constituiam impiedades. Constituiam verdadeiros crimes contra a patria―porque attrahiam sobre ella a indignação dos deuses. Quantas Legiões vencidas, quantas cidadellas derrubadas, porque o Pontifice deixára perder um grão de cinza da ara―ou porque Auruspice não arrancou lã bastante da cabeça do anho! Por isso Athenas castigava o Sacerdote que alterasse o ceremonial; e o senado depunha os Consules que commettiam um erro no sacrificio―fosse elle tão ligeiro como reter a ponta da toga sobre a cabeça, quando ella devia escorregar sobre o hombro. De sorte que V., em Roma, lançando ironias d'ouro á Divindade, era talvez um grande e admirado Poeta Comico: mas satyrisando, como na Velhice do Padre Eterno, a Liturgia e o Ceremonial, era um inimigo publico, um traidor ao Estado, votado ás masmorras do Tuliano.

E se, já farto d'estes tempos antigos, V. quizer volver aos nossos philosophicos dias, encontrará nas duas grandes Religiões do occidente e do oriente, no Catholicismo e no Budhismo, uma comprovação ainda mais saliente e mais viva de que a Religião consiste intrinsecamente de praticas, sobre [148] as quaes a Theologia e a Moral se sobrepozeram, sem as penetrarem, como um luxo intellectual, accessorio e transitorio―flôres pregadas no altar pela imaginação ou pela virtude idealista. O Catholicismo (ninguem mais furiosamente o sabe do que V.) está hoje resumido a uma curta série de observancias materiaes:―e todavia nunca houve Religião dentro da qual a Intelligencia erguesse mais vasta e alta estructura de conceitos theologicos e moraes. Esses conceitos, porém, obra de doutores e de mysticos, nunca propriamente sahiram das escólas e dos mosteiros―onde eram preciosa materia de dialectica ou de poesia; nunca penetraram nas multidões para methodicamente governar os juizos ou conscientemente governar as acções. Reduzido a catechismos, a cartilhas, esse corpo de conceitos foi decorado pelo povo:―mas nunca o povo se persuadiu que tinha Religião, e que portanto agradava a Deus, servia a Deus, só por cumprir os dez mandamentos, fóra de toda a pratica e de toda a observancia ritual. E só decorou mesmo esses Dez Mandamentos, e as Obras de Misericordia, e os outros preceitos moraes do Catechismo, pela idéa de que esses versiculos, recitados com os labios, tinham, por uma virtude maravilhosa, o poder de attrahir a attenção, a bemquerença e os favores do Senhor. Para servir a Deus, que é o meio de agradar a Deus, o essencial foi sempre ouvir missa, esfiar o rosario, jejuar, commungar, fazer promessas, dar tunicas aos santos, etc. Só por estes ritos, [149] e não pelo cumprimento moral da lei moral, se propicia a Deus,―isto é, se alcançam d'elle os dons inestimaveis da saude, da felicidade, da riqueza, da paz. O mesmo Céo e Inferno, sancção extra-terrestre da lei, nunca, na idéa do povo, se ganhava ou se evitava pela pontual obediencia á lei. E talvez com razão, por isso mesmo que no Catholicismo o premio e o castigo não são manifestações da justiça de Deus, mas da graça de Deus. Ora a graça, no pensar dos simples, só se obtem pela constante e incansavel pratica dos preceitos―a missa, o jejum, a penitencia, a communhão, o rosario, a novena, a offerta, a promessa. De sorte que no catholicismo do Minhoto como na religião do Arya, em Septa-Sindhou como em Carrazeda d'Anciães, tudo se resume em propiciar Deus por meio de praticas que o captivem. Não ha aqui Theologia, nem Moral. Ha o acto do infinitamente fraco querendo agradar ao infinitamente forte. E se V., para purificar este Catholicismo, eliminar o Padre, a estola, as galhetas e a agua-benta, todo o Rito e toda a Liturgia―o catholico immediatamente abandonará uma Religião que não tem Egreja visivel, e que não lhe offerece os meios simples e tangiveis de communicar com Deus, de obter d'elle os bens transcendentes para a alma e os bens sensiveis para o corpo. O Catholicismo n'esse instante terá acabado, milhões de sêres terão perdido o seu Deus. A Egreja é o vaso de que Deus é o perfume. Egreja partida―Deus volatilisado.

[150] Se tivessemos tempo de ir á China ou a Ceylão, V. toparia com o mesmo phenomeno no Budhismo. Dentro d'essa Religião foi elaborada a mais alta das Metaphysicas, a mais nobre das Moraes: mas em todas as raças em que elle penetrou, nas barbaras ou nas cultas, nas hordas do Nepal ou no mandarinato chinez, elle consistiu sempre para as multidões em ritos, ceremonias, praticas―a mais conhecida das quaes é o moinho de rezar. V. nunca lidou com este moinho? É lamentavelmente parecido com o moinho de café: em todos os paizes budhistas V. o verá collocado nas ruas das cidades, nas encruzilhadas do campo, para que o devoto ao passar, dando duas voltas á manivella, possa fazer chocalhar dentro as orações escriptas e communica com o Budha, que por esse acto de cortezia transcendente «lhe ficará grato e lhe augmentará os seus bens».

Nem o Catholicismo, nem o Budhismo vão por este facto em decadencia. Ao contrario! Estão no seu estado natural e normal de Religião. Uma Religião, quanto mais se materialisa, mais se popularisa―e portanto mais se divinisa. Não se espante! Quero dizer, que quanto mais se desembaraça dos seus elementos intellectuaes de Theologia, de Moral, de Humanitarismo, etc., repellindo-os para as suas regiões naturaes que são a Philosophia, a Ethica e a Poesia, tanto mais colloca o povo face a face com o seu Deus, n'uma união directa e simples, tão facil de realisar que, por um mero dobrar [151] de joelhos, um mero balbuciar de Padre-Nossos, o homem absoluto que está no céo vem ao encontro do homem transitorio que está na terra. Ora este encontro é o facto essencialmente divino da Religião. E quanto mais elle se materialisa―mais ella na realidade se divinisa.

V. porém dirá (e de facto o diz): «Tornemos essa communicação puramente espiritual, e que, despida de toda a exterioridade liturgica, ella seja apenas como o espirito humano fallando ao espirito divino». Mas para isso é necessario que venha o Millenio―em que cada cavador de enxada seja um philosopho, um pensador. E quando esse Millenio detestavel chegar, e cada tipoia de praça fôr governada por um Mallebranche, terá V. ainda de ajuntar a esta perfeita humanidade masculina uma nova humanidade feminina, physiologicamente differente da que hoje embelleza a terra. Porque emquanto houver uma mulher constituida physica, intellectual e moralmente como a que Jehovah com uma tão grande inspiração d'artista fez da costella de Adão,―haverá sempre ao lado d'ella, para uso da sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.

Essa communhão mystica do Homem e de Deus, que V. quer, nunca poderá ser senão o privilegio d'uma élite espiritual, deploravelmente limitada. Para a vasta massa humana, em todos os tempos, pagã, budhista, christã, mahometana, selvagem ou culta, a Religião terá sempre por fim, na sua essencia, [152] a supplica dos favores divinos e o afastamento da cólera divina; e, como instrumentação material para realisar estes objectos, o templo, o padre, o altar, os officios, a vestimenta, a imagem. Pergunte a qualquer mediano homem sahido da turba, que não seja um philosopho, ou um moralista, ou um mystico, o que é Religião. O inglez dirá:―«É ir ao serviço ao domingo, bem vestido, cantar hymnos». O hindú dirá:―«É fazer poojah todos os dias e dar o tributo ao Mahadeo». O africano dirá:―«É offerecer ao Mulungú a sua ração de farinha e oleo». O Minhoto dirá:―«É ouvir missa, rezar as contas, jejuar á sexta-feira, commungar pela Paschoa». E todos terão razão, grandemente! Porque o seu objecto, como sêres religiosos, está todo em communicar com Deus; e esses são os meios de communicação que os seus respectivos estados de civilisação e as respectivas liturgias que d'elles sahiram, lhes fornecem. Voilà! Para V. está claro, e para outros espiritos de eleição, a Religião é outra coisa―como já era outra coisa em Athenas para Socrates e em Roma para Seneca. Mas as multidões humanas não são compostas de Socrates e de Senecas―bem felizmente para ellas, e para os que as governam, incluindo V. que as pretende governar!

De resto, não se desconsole, amigo! Mesmo entre os simples ha modos de ser religiosos, inteiramente despidos de Liturgia e de exterioridades rituaes. Um presenciei eu, deliciosamente puro e [153] intimo. Foi nas margens do Zambeze. Um chefe negro, por nome Lubenga, queria, nas vesperas de entrar em guerra com um chefe visinho, communicar com o seu Deus, com o seu Mulungú (que era, como sempre, um seu avô divinisado). O recado ou pedido, porém, que desejava mandar á sua Divindade, não se podia transmittir através dos Feiticeiros e do seu ceremonial, tão graves e confidenciaes matérias continha... Que faz Lubenga? Grita por um escravo: dá-lhe o recado, pausadamente, lentamente, ao ouvido: verifica bem que o escravo tudo comprehendera, tudo retivera: e immediatamente arrebata um machado, decepa a cabeça do escravo, e brada tranquillamente―«parte!» A alma do escravo lá foi, como uma carta lacrada e sellada, direita para o céo, ao Mulungú. Mas d'ahi a instantes o chefe bate uma palmada afflicta na testa, chama á pressa outro escravo, diz-lhe ao ouvido rapidas palavras, agarra o machado, separa-lhe a cabeça, e berra:―«Vai!»

Esquecera-lhe algum detalhe no seu pedido ao Mulungú... O segundo escravo era um post-scriptum.

Esta maneira simples de communicar com Deus deve regosijar o seu coração. Amigo do dito―Fradique.



[154]

VI

a ramalho ortigão

Paris, abril.


Querido Ramalho.―No sabbado á tarde, na rue Cambon, avisto dentro d'um fiacre o nosso Eduardo, que se arremessa pela portinhola para me gritar: «Ramalho, esta noite! de passagem para a Hollanda! ás dez! no café da Paz!»

Fico dôcemente alvoroçado; e ás nove e meia, apesar da minha justa repugnancia pela esquina do café da Paz, Centro catita do Snobismo internacional, lá me installo, com um bock, esperando a cada instante que surja, por entre a turba baça e molle do boulevard, o esplendor da Ramalhal figura. Ás dez salta d'um fiacre com anciedade o vivaz Carmonde, que abandonára á pressa uma sobremesa alegre pour voir ce grand Ortigan! Começa uma espera a dois, com bock a dois. Nada de Ramalho, nem do seu viço. Ás onze apparece Eduardo, esbaforido. E Ramalho? Inedito ainda! Espera a tres, impaciencia a tres, bock a tres. E assim até que o bronze nos soou o fim do dia.

Em compensação um caso, e profundo. Carmonde, Eduardo e eu sorviamos as derradeiras fezes do bock, já desilludidos de Ramalho e das suas pompas, quando roça pela nossa mesa um sujeito escurinho, chupadinho, esticadinho, que traz na mão com respeito, quasi com religião, um soberbo [155] ramo de cravos amarellos. É um homem d'além dos mares, da Republica Argentina ou Peruana, e amigo de Eduardo―que o retem e apresenta «o snr. Mendibal». Mendibal aceita um bock: e eu começo a contemplar mudamente aquella facesinha toda em perfil, como recortada n'uma lamina de machado, d'uma côr acobreada de chapéo côco inglez, onde a barbita rala, hesitante, denunciando uma virilidade frouxa, parece cotão, um cotão negro, pouco mais negro que a tez. A testa escanteada recua, foge toda para traz, assustada. O caroço da garganta esganiçada, ao contrario, avança como o esporão d'uma galera por entre as pontas quebradas do collarinho muito alto e mais brilhante que esmalte. Na gravata, grossa perola.

Eu contemplo, e Mendibal falla. Falla arrastadamente, quasi dolentemente, com finaes que desfallecem, se esvaem em gemido. A voz é toda de desconsolo:―mas, no que diz, revela a mais forte, segura e insolente satisfação de viver. O animal tem tudo: immensas propriedades além do mar, a consideração dos seus fornecedores, uma casa no Parc-Monceau, e «uma esposa adoravel». Como deslizou elle a mencionar essa dama que lhe embelleza o lar? Não sei. Houve um momento em que me ergui, chamado por um velho Inglez meu amigo, que passava, recolhendo da Opera, e que me queria simplesmente segredar, com uma convicção forte, que «a noute estava esplendida!» Quando voltei á mesa e ao bock, o Argentino encetára em [156] monologo a glorificação da «sua senhora». Carmonde devorava o homemzinho com olhos que riam e que saboreavam, deliciosamente divertido. Eduardo, esse, escutava com a compostura pesada de um portuguez antigo. E Mendibal, tendo posto ao lado sobre uma cadeira, com cuidados devotos, o ramo de cravos, desfiava as virtudes e os encantos de Madame. Sentia-se alli uma d'essas admirações effervescentes, borbulhantes, que se não podem retrahir, que transbordam por toda a parte, mesmo por sobre as mesas dos cafés: onde quer que passasse, aquelle homem iria deixando escorrer a sua adoração pela mulher, como um guarda-chuva encharcado vai fatalmente pingando agua. Comprehendi, desde que elle, com um prazer que lhe repuxava mais para fóra o caroço da garganta, revelou que madame Mendibal era franceza. Tinhamos alli portanto um fanatismo de preto pela graça loira d'uma parisiensesinha, picante em seducção e finura. Desde que comprehendi, sympathisei. E o Argentino farejou em mim esta benevolencia critica―porque foi para mim que se voltou, lançando o derradeiro traço, o mais decisivo, sobre as excellencias de Madame: «Sim, positivamente, não havia outra em Paris! Por exemplo, o carinho com que ella cuidava da mamã (da mamã d'elle), senhora de grande idade, cheia de achaques! Pois era uma paciencia, uma delicadeza, uma sujeição... De cahir de joelhos! Então nos ultimos dias a mamã andára tão rabugenta!... Madame [157] Mendibal até emmagrecera. De sorte que elle proprio, n'esse domingo, lhe pedira que se fosse distrahir, passar o dia a Versalhes, onde a mãe d'ella, madame Jouffroy, habitava por economia. E agora viera de a esperar na gare Saint-Lazare. Pois, senhores, todo o dia em Versalhes, a santa creatura estivera com cuidado na sogra, cheia de saudades da casa, n'uma ancia de recolher. Nem lhe soubera bem a visita á mamã! A maior parte da tarde, e uma tarde tão linda, gastára-a a reunir aquelle esplendido ramo de cravos amarellos para lhe trazer, a elle!»

―É verdade! Veja o senhor! Este ramo de cravos! Até consola. Olhe que para estas lembrancinhas, para estes carinhos, não ha senão uma franceza. Graças a Deus, posso dizer que acertei! E se tivesse filhos, um só que fosse, um rapaz, não me trocava pelo principe de Galles. Eu não sei se o senhor é casado. Perdôe a confiança. Mas se não é, sempre lhe direi, como digo a todo o mundo:―Case com uma franceza, case com uma franceza!...

Não podia haver nada mais sinceramente grotesco e tocante. Como V. não vinha, fugidio Ramalho, dispersamos. Mendibal trepou para um fiacre com o seu amoroso molho de cravos. Eu arrastei os passos, no calor da noite, até ao club. No club encontro Chambray, que V. conhece―o «formoso Chambray». Encontro Chambray no fundo d'uma poltrona, derreado e radiante. Pergunto a Chambray [158] como lhe vai a Vida, que opinião tem n'esse dia da Vida. Chambray declara a Vida uma delicia. E, immediatamente, sem se conter, faz a confidencia que lhe bailava impacientemente no sorriso e no olho humedecido.

Fôra a Versalhes, com tenção de visitar os Fouquiers. No mesmo compartimento com elle ia uma mulher, une grande et belle femme. Corpo soberbo de Diana n'um vestido collante do Redfern. Cabellos apartados ao meio, grossos e apaixonados, ondeando sobre a testa curta. Olhos graves. Dois solitarios nas orelhas. Sêr substancial, solido, sem chumaços e sem blagues, bem alimentado, envolto em consideração, superiormente installado na vida.

E, no meio d'esta respeitabilidade physica e social, um geito guloso de molhar os beiços a cada instante, vivamente, com a ponta da lingua... Chambray pensa comsigo:―«burgueza, trinta annos, sessenta mil francos de renda, temperamento forte, desapontamentos d'alcova». E apenas o comboyo larga, toma o seu «grande ar Chambray», e dardeja á dama um d'esses olhares que eram outr'ora symbolisados pelas flechas de Cupido. Madame impassivel. Mas, momentos, depois, vem d'entre as palpebras um pouco pesadas, direito a Chambray (que vigiava de lado, por traz do Figaro aberto), um d'esses raios de luz indagadora que, como os da lanterna de Diogenes, procuram um homem que seja um homem. Ao chegar a Courbevoie, a pretexto de baixar o vidro por causa da poeira, [159] Chambray arrisca uma palavra, atrevidamente timida, sobre o calor de Paris. Ella concede outra, ainda hesitante e vaga, sobre a frescura do campo. Está travada a Ecloga. Em Suresnes, Chambray já se senta na banqueta ao lado d'ella, fumando. Em Sevres, mão de Madame arrebatada por Chambray, mão de Chambray repellida por Madame:―e ambas insensivelmente se entrelaçam. Em Viroflay, proposta brusca de Chambray para darem um passeio por um sitio de Viroflay que só elle conhece, recanto bucolico, de incomparavel doçura, inaccessivel ao burguez. Depois, ás duas horas tomariam o outro trem para Versalhes. E nem a deixa hesitar―arrebata-a moralmente, ou antes physiologicamente, pela simples força da voz quente, dos olhos alegres, de toda a sua pessoa franca e mascula.

Eil-os no campo, com um aroma da seiva em redor, e a primavera e Satanaz conspirando e soprando sobre Madame os seus bafos quentes. Chambray conhece á orla do bosque, junto d'agua, uma tavernola que tem as janellas encaixilhadas em madresilva. Porque não irão lá almoçar uma caldeirada, regada com vinho branco de Suresnes? Madame na verdade sente uma fomesinha alegre de ave solta no prado: e Satanaz, dando ao rabo, corre adiante, a propiciar as coisas na tavernola. Acham lá, com effeito, uma installação magistral: quarto fresco e silencioso, mesa posta, cortina de cassa ao fundo escondendo e trahindo a alcova. «Em todo o [160] caso que o almoço suba depressa, porque elles têm de partir pelo trem das duas horas»―tal é o brado sincero de Chambray!

Quando chega a caldeirada, Chambray tem uma inspiração genial―despe o casaco, abanca em mangas de camisa. É um rasgo de bohemia e de liberdade, que a encanta, a excita, faz surgir a garota que ha quasi sempre no fundo da matrona. Atira tambem o chapéo, um chapéo de duzentos francos, para o fundo do quarto, alarga os braços, e tem este grito d'alma:

Ah oui, que c'est bon, de se desembêter!

E depois, como dizem os hespanhoes―la mar. O sol, ao despedir-se da terra por esse dia, deixou-os ainda em Viroflay; ainda na tavernola; ainda no quarto;―e outra vez á mesa, diante d'um beefsteak reconfortante, como os acontecimentos pediam com urgencia e logica.

Versalhes, esquecido! Tratava-se de voltar á estação para tomar o trem de Paris. Ella aperta devagar as fitas do chapéo, apanha uma das flôres da janella que mette no corpete, fixa um olhar lento em redor pelo quarto e pela alcova, para todo decorar e retêr―e partem. Na estação, ao saltar para um compartimento differente (por causa da chegada a Paris), Chambray n'um aperto de mão, já apressado e frouxo, supplica-lhe que ao menos lhe diga como se chama. Ella murmura―Lucie.

―E é tudo o que sei d'ella, conclue Chambray [161] accendendo o charuto. E sei tambem que é casada porque na gare Saint-Lazare, á espera d'ella, e acompanhado por um trintanario serio, de casa burgueza, estava o marido... É um rastacuero côr de chocolate, com uma barbita rala, enorme perola na gravata... Coitado, ficou encantado quando ella lhe deu um grande ramo de cravos amarellos que eu lhe mandára arranjar em Viroflay... Mulher deliciosa. Não ha senão as francezas!

Que diz V. a estas coisas consideraveis, meu bom Ramalho? Eu digo que, em resumo, este nosso Mundo é perfeito e não ha nos espaços outro mais bem organisado. Porque note V. como, ao fim d'este domingo de maio, todas estas tres excellentes creaturas, com uma simples jornada a Versalhes, obtiveram um ganho positivo na vida. Chambray passou por um immenso prazer e uma immensa vaidade―os dois unicos resultados que elle conta na existencia como proventos solidos, e valendo o trabalho de existir. Madame experimentou uma sensação nova ou differente, que a desenervou, a desafogou, lhe permittiu reentrar mais acalmada na monotonia do seu lar, e ser util aos seus com rediviva applicação. E o Argentino adquiriu outra inesperada e triumphal certeza de quanto era amado e feliz na sua escolha. Tres ditosos, ao fim d'esse dia de primavera e de campo. E se d'aqui resultar um filho (o filho que o Argentino appetece), que herde as qualidades fortes e brilhantemente gaulezas de Chambray, accresce, ao contentamento [162] individual dos tres, um lucro effectivo para a sociedade. Este mundo portanto está superiormente organisado.

Amigo fiel, que fielmente o espera á volta da Hollanda―Fradique.



VII

a madame de joujarre
(Trad.)

Lisboa, março.


Minha querida madrinha.―Foi hontem, por noite morta, no comboio, ao chegar a Lisboa (vindo do Norte e do Porto), que de repente me acudia á memoria estremunhada o juramento que lhe fiz no sabbado de Paschoa em Paris, com as mãos piamente estendidas sobre a sua maravilhosa edição dos Deveres de Cicero. Juramento bem estouvado, este, de lhe mandar todas as semanas, pelo correio, Portugal em «descripções, notas, reflexões e panoramas», como se lê no sub-titulo da Viagem á Suissa do seu amigo o Barão de Fernay, commendador de Carlos III e membro da Academia de Toulouse. Pois com tanta fidelidade cumpro eu os meus juramentos (quando feitos sobre a Moral de Cicero, e para regalo de quem reina na minha Vontade) que, apenas o recordei, abri logo escancaradamente ambos os olhos para recolher «descripções, notas, reflexões e panoramas» d'esta terra [163] que é minha e que está a la disposicion de ustêd... Chegáramos a uma estação que chamam de Sacavem―e tudo o que os meus olhos arregalados viram do meu paiz, através dos vidros humidos do wagon, foi uma densa treva, d'onde mortiçamente surgiam aqui e além luzinhas remotas e vagas. Eram lanternas de faluas dormindo no rio:―e symbolisavam d'um modo bem humilhante essas escassas e desmaiadas parcellas de verdade positiva que ao homem é dado descobrir no universal mysterio do Sêr. De sorte que tornei a cerrar resignadamente os olhos―até que, á portinhola, um homem de bonet de galão, com o casaco encharcado d'agua, reclamou o meu bilhete, dizendo Vossa Excellencia! Em Portugal, boa madrinha, todos somos nobres, todos fazemos parte do Estado, e todos nos tratamos por Excellencia.

Era Lisboa e chovia. Vinhamos poucos no comboio, uns trinta talvez―gente simples, de maletas ligeiras e sacos de chita, que bem depressa atravessou a busca paternal e somnolenta da Alfandega, e logo se sumia para a cidade sob a molhada noite de março.

No casarão soturno, á espera das bagagens sérias, fiquei eu, o Smith[3] e uma senhora esgrouviada, de oculos no bico, envolta n'uma velha capa [164] de pelles. Deviam ser duas horas da madrugada. O asphalto sujo do casarão regelava os pés.

Não sei quantos seculos assim esperamos, Smith immovel, a dama e eu marchando desencontradamente e rapidamente para aquecer ao comprido do balcão de madeira, onde dois guardas d'Alfandega, escuros como azeitonas, bocejavam com dignidade. Da porta do fundo, uma carreta, em que oscillava o montão da nossa bagagem, veio por fim rolando com pachorra. A dama de nariz de cegonha reconheceu logo a sua caixa de folha de Flandres, cuja tampa, cahindo para traz, revelou aos meus olhos que observavam (em seu serviço, exigente madrinha!) um penteador sujo, uma boceta de dôce, um livro de missa e dois ferros de frisar. O guarda enterrou o braço através d'estas coisas intimas, e com um gesto clemente declarou a Alfandega satisfeita. A dama abalou.

Ficamos sós, Smith e eu. Smith já arrebanhára a custo a minha bagagem. Mas faltava inexplicavelmente um saco de couro; e em silencio, com a guia na mão, um carregador dava uma busca vagarosa através dos fardos, barricas, pacotes, velhos bahus, armazenados ao fundo, contra a parede enxovalhada. Vi este digno homem hesitando pensativamente diante d'um embrulho de lona, diante d'uma arca de pinho. Seria qualquer d'esses o saco de couro? Depois, descorçoado, declarou que positivamente nas nossas bagagens não havia nem couro nem saco. Smith protestava, já irritado. Então [165] o capataz arrancou a guia das mãos inhabeis do carregador, e recomeçou elle, com a sua intelligencia superior de chefe, uma rebusca através das «arrumações», esquadrinhando zelosamente caixotes, vasilhas, pipos, chapeleiras, canastras, latas e garrafões... Por fim sacudiu os hombros, com indizivel tedio, e desappareceu para dentro, para a escuridão das plataformas interiores. Passados instantes voltou, coçando a cabeça por baixo do bonet, cravando os olhos em roda, pelo chão vasio, á espera que o saco rompesse das entranhas d'este globo desconsolador. Nada! Impaciente, encetei eu proprio uma pesquiza sofrega através do casarão. O guarda da Alfandega, de cigarro collado ao beiço (bondoso homem!), deitava tambem aqui e além um olhar auxiliador e magistral. Nada! Repentinamente porém uma mulher de lenço vermelho na cabeça, que alli vadiava, n'aquella madrugada agreste, apontou para a porta da estação:

―Será aquillo, meu senhor?

Era! Era o meu saco, fóra, no passeio, sob a chuvinha miuda. Não indaguei como elle se encontrava alli, sósinho, separado da bagagem a que estrictamente o prendia o numero d'ordem estampado na guia em letras grossas―e reclamei uma tipoia. O carregador atirou a jaleca para cima da cabeça, sahiu ao largo, e recolheu logo annunciando com melancolia que não havia tipoias.

―Não ha! Essa é curiosa! Então como sahem d'aqui os passageiros?

[166] O homem encolheu os hombros. «Ás vezes havia, outras vezes não havia, era conforme calhava a sorte...» Fiz reluzir uma placa de cinco tostões, e suppliquei áquelle benemerito que corresse as visinhanças da estação, á cata d'um vehiculo qualquer com rodas, coche ou carroça, que me levasse ao conchego d'um caldo e d'um lar. O homem largou, resmungando. E eu logo, como patriota descontente, censurei (voltado para o capataz e para o homem da Alfandega) a irregularidade d'aquelle serviço. Em todas as estações do Mundo, mesmo em Tunis, mesmo na Romelia, havia, á chegada dos comboios, omnibus, carros, carretas, para transportar gente e bagagem... Porque não as havia em Lisboa? Eis ahi um abominavel serviço que deshonrava a Nação!

O aduaneiro esboçou um movimento de desalento, como na plena consciencia de que todos os serviços eram abominaveis, e a Patria toda uma irreparavel desordem. Depois para se consolar puxou com delicia o lume ao cigarro. Assim se arrastou um d'estes quartos d'hora que fazem rugas na face humana.

Finalmente, o carregador voltou, sacudindo a chuva, affirmando que não havia uma tipoia em todo o bairro de Santa Apolonia.

―Mas que hei de eu fazer? Hei de ficar aqui?

O capataz aconselhou-me que deixasse a bagagem, e na manhã seguinte, com uma carruagem certa (contratada talvez por escriptura), a viesse recolher [167] «muito a meu contento». Essa separação porém não convinha ao meu conforto. Pois n'esse caso elle não via solução, a não ser que por acaso alguma caleche, tresnoitada e trasmalhada, viesse a cruzar por aquellas paragens.

Então, á maneira de naufragos n'uma ilha deserta do Pacifico, todos nos apinhamos á porta da estação, esperando através da treva a vela―quero dizer a sege salvadora. Espera amarga, espera esteril! Nenhuma luz de lanterna, nenhum rumor de rodas, cortaram a mudez d'aquelles ermos.

Farto, inteiramente farto, o capataz declarou que «iam dar tres horas, e elle queria fechar a estação!» E eu? Ia eu ficar alli na rua, amarrado, sob a noite agreste, a um montão de bagagens intransportavel? Não! nas entranhas do digno capataz decerto havia melhor misericordia. Commovido, o homem lembrou outra solução. E era que nós, eu e o Smith, ajudados por um carregador―atirassemos a bagagem para as costas, e marchassemos com ella para o Hotel. Com effeito este parecia ser o unico recurso aos nossos males. Todavia (tanto costas amollecidas por longos e deleitosos annos de civilisação repugnam a carregar fardos, e tão tenaz é a esperança n'aquelles a quem a sorte se tem mostrado amoravel) eu e o Smith ainda uma vez sahimos ao largo, mudos, sondando a escuridão, com o ouvido inclinado ao lagedo, a escutar anciosamente se ao longe, muito ao longe, não sentiriamos rolar para nós o calhambeque da [168] Providencia. Nada, desoladamente nada, na sombra avara!... A minha querida madrinha, seguindo estes lances, deve ter já lagrimas a bailar nas suas compassivas pestanas. Eu não chorei―mas tinha vergonha, uma immensa e pungente vergonha do Smith! Que pensaria aquelle escocez da minha patria―e de mim, seu amo, parcella d'essa patria desorganisada? Nada mais fragil que a reputação das nações. Uma simples tipoia que falta de noite, e eis, no espirito do Estrangeiro, desacreditada toda uma civilisação secular!

No emtanto o capataz fervia. Eram tres horas (mesmo tres e um quarto), e elle queria fechar a estação! Que fazer? Abandonamo-nos, suspirando, á decisão do desespero. Agarrei o estojo de viagem e o rolo de mantas: Smith deitou aos seus respeitaveis hombros, virgens de cargas, uma grossa maleta de couro: o carregador gemeu sob a enorme mala de cantoeiras d'aço. E (deixando ainda dois volumes para ser recolhidos de dia), começamos, sombrios e em fila, a trilhar á pata a distancia que vai de Santa Apolonia ao Hotel de Braganza! Poucos passos adiante, como o estojo de viagem me derreava o braço, atirei-o para as costas... E todos tres, de cabeça baixa, o dorso esmagado sob dezenas de kilos, com um intenso azedume a estragar-nos o figado, lá continuamos, devagar, n'uma fileira soturna, avançando para dentro da capital d'estes reinos! Eu viera a Lisboa com um fim de repouso e de luxo. Este era o luxo, [169] este o repouso! Alli, sob a chuvinha impertinente, offegando, suando, tropeçando no lagedo mal junto d'uma rua tenebrosa, a trabalhar de carrejão!...

Não sei quantas eternidades gastamos n'esta via dolorosa. Sei que de repente (como se a trouxesse, á redea, o anjo da nossa guarda) uma caleche, uma positiva caleche, rompeu a passo do negrume d'uma viella. Tres gritos, sofregos e desesperados, estacaram a parelha. E, á uma, todas as malas rolaram em catadupa sobre o calhambeque, aos pés do cocheiro, que, tomado d'assalto e de assombro, ergueu o chicote, praguejando com furor. Mas serenou, comprehendendo a sua espantosa omnipotencia―e declarou que ao Hotel de Braganza (uma distancia pouco maior que toda a Avenida dos Campos Elyseos) não me podia levar por menos de tres mil reis. Sim, minha madrinha, dezoito francos! Dezoito francos em metal, prata ou ouro, por uma corrida, n'esta Idade democratica e industrial, depois de todo o penoso trabalho das Sciencias e das Revoluções para igualisarem e embaratecerem os confortos sociaes. Tremulo de colera, mas submisso como quem cede á exigencia d'um trabuco, enfiei para a tipoia―depois de me ter despedido com grande affecto do carregador, camarada fiel da nossa trabalhosa noite.

Partimos emfim, n'um galope desesperado. D'ahi a momentos estavamos assaltando a porta adormecida do Hotel de Braganza com repiques, [170] clamores, punhadas, cocegas, injurias, gemidos, todas as violencias e todas as seducções. Debalde! Não foi mais resistente ao bello cavalleiro Percival o portão de ouro do palacio da Ventura! Finalmente o cocheiro atirou-se a ella aos couces. E, decerto por comprehender melhor esta linguagem, a porta, lenta e estremunhada, rolou nos seus gonzos. Graças te sejam, meu Deus, pae ineffavel! Estamos emfim sob um tecto, no meio dos tapetes e estuques do Progresso, ao cabo de tão barbara jornada. Restava pagar o batedor. Vim para elle com acerba ironia:

―Então, são tres mil reis?

Á luz do vestibulo, que me batia a face, o homem sorria. E que ha de elle responder, o malandro sem par?

―Aquillo era por dizer... Eu não tinha conhecido o snr. D. Fradique... Lá para o snr. D. Fradique é o que quizer.

Humilhação incomparavel! Senti logo não sei que torpe enternecimento que me amollecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós portuguezes, nos enche de culpada indulgencia uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem. Sim, minha cara madrinha... Aquelle bandido conhecia o snr. D. Fradique. Tinha um sorriso brejeiro e serviçal. Ambos eramos portuguezes. Dei uma libra áquelle bandido!

E aqui está, para seu ensino, a veridica maneira [171] por que se entra, no ultimo quartel do seculo XIX, na grande cidade de Portugal. Todo seu, aquelle que de longe de si sempre péna―Fradique.



VIII

ao snr. e. mollinet
Director da Revista de Biographia e de Historia


Paris, setembro.


Meu caro snr. Mollinet.―Encontrei hontem á noite, ao voltar de Fontainebleau, a carta em que o meu douto amigo, em nome e no interesse da Revista de Biographia e de Historia, me pergunta quem é este meu compatriota Pacheco (José Joaquim Alves Pacheco), cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornaes de Portugal. E deseja ainda o meu amigo saber que obras, ou que fundações, ou que livros, ou que idéas, ou que accrescimo na civilisacão portugueza deixou esse Pacheco, seguido ao tumulo por tão sonoras, reverentes lagrimas.

Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como n'um resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu paiz nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma idéa. Pacheco era entre nós superior e illustre unicamente porque tinha um immenso talento. Todavia, meu caro snr. Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente acclamaram, nunca deu, da sua [172] força, uma manifestação positiva, expressa, visivel! O talento immenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente elle atravessou a vida por sobre eminencias sociaes: Deputado, Director geral, Ministro, Governador de bancos, Conselheiro d'Estado, Par, Presidente do conselho―Pacheco tudo foi, tudo teve, n'este paiz que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado do seu immenso talento. Mas nunca, n'estas situações, por proveito seu ou urgencia do Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sahir, para se affirmar e operar fóra, aquelle immenso talento que lá dentro o suffocava. Quando os amigos, os partidos, os jornaes, as repartições, os corpos collectivos, a massa compacta da nação, murmurando em redor de Pacheco «que immenso talento!» o convidavam a alargar o seu dominio e a sua fortuna―Pacheco sorria, baixando os olhos serios por traz dos oculos dourados, e seguia, sempre para cima, sempre para mais alto, através das instituições, com o seu immenso talento aferrolhado dentro do craneo como no cofre d'um avaro. E esta reserva, este sorrir, este lampejar dos oculos, bastavam ao paiz que n'elles sentia e saboreava a resplandecente evidencia do talento de Pacheco.

Este talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em que Pacheco, desdenhando a Sebenta, assegurou «que o seculo XIX era um seculo de progresso e de luz». O curso [173] começou logo a presentir e a affirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta admiração cada dia crescente do curso, communicando-se, como todos os movimentos religiosos, das multidões impressionaveis ás classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um premio no fim do anno. A fama d'esse talento alastrou então por toda a academia―que, vendo Pacheco sempre pensabundo, já d'oculos, austero nos seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia alli um grande espirito que se concentra e se retesa todo em força intima. Esta geração academica, ao dispersar, levou pelo paiz, até os mais sertanejos burgos, a noticia do immenso talento de Pacheco. E já em escuras boticas de Traz-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com esperança:―«Parece que ha agora ahi um rapaz de immenso talento que se formou, o Pacheco!»

Pacheco estava maduro para a representação nacional. Veio ao seu seio―trazido por um governo (não recordo qual) que conseguira, com dispendios e manhas, apoderar-se do precioso talento de Pacheco. Logo na estrellada noite de dezembro em que elle, em Lisboa, foi ao Martinho tomar chá e torradas, se susurrou pelas mesas, com curiosidade:―«É o Pacheco, rapaz de immenso talento!» E desde que as Camaras se constituiram, todos os olhares, os do governo e os da opposição, se começaram a voltar com insistencia, quasi com anciedade, [174] para Pacheco, que, na ponta d'uma bancada, conservava a sua attitude de pensador recluso, os braços cruzados sobre o collete de velludo, a fronte vergada para o lado como sob o peso das riquezas interiores, e os oculos a faiscar... Finalmente uma tarde, na discussão da resposta ao discurso da Corôa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre zarolho que arengava sobre a «liberdade». O sacerdote immediatamente estacou com deferencia; os tachygraphos apuraram vorazmente a orelha: e toda a camara cessou o seu desafogado susurro, para que, n'um silencio condignamente magestoso, se podesse pela vez primeira produzir o immenso talento de Pacheco. No emtanto Pacheco não prodigalisou desde logo os seus thesouros. De pé, com o dedo espetado (geito que foi sempre muito seu), Pacheco affirmou n'um tom que trahia a segurança do pensar e do saber intimo:―«que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!» Era pouco, decerto:―mas a camara comprehendeu bem que, sob aquelle curto resumo, havia um mundo, todo um formidavel mundo, de idéas solidas. Não volveu a fallar durante mezes―mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisivel e inaccessivel se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu sêr. O unico recurso que restou então aos devotos d'esse immenso talento (que já os tinha, incontaveis) foi contemplar a testa de Pacheco―como se olha para o céo pela certeza [175] que Deus está por traz, dispondo. A testa de Pacheco offerecia uma superficie escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto d'elle, Conselheiros, e Directores geraes balbuciavam maravilhados:―«Nem é necessário mais! Basta vêr aquella testa!»

Pacheco pertenceu logo ás principaes commissões parlamentares. Nunca porém accedeu a relatar um projecto, desdenhoso das especialidades. Apenas ás vezes, em silencio, tomava uma nota lenta. E quando emergia da sua concentração, espetando o dedo, era para lançar alguma idéa geral sobre a Ordem, o Progresso, o Fomento, a Economia. Havia aqui a evidente attitude d'um immenso talento que (como segredavam os seus amigos, piscando o olho com finura) «está á espera, lá em cima, a pairar». Pacheco mesmo, de resto, ensinava (esboçando, com a mão gorda, o voar superior d'uma aza por sobre arvoredo copado) que o «talento verdadeiro só devia conhecer as coisas pela rama».

Este immenso talento não podia deixar de soccorrer os conselhos da Corôa. Pacheco, n'uma recomposição ministerial (provocada por uma roubalheira) foi Ministro:―e immediatamente se percebeu que massiça consolidação viera dar ao Poder o immenso talento de Pacheco. Na sua pasta (que era a da Marinha) Pacheco não fez durante os longos mezes de gerencia «absolutamente nada», como insinuaram tres ou quatro espiritos amargos e estreitamente positivos. Mas pela primeira vez, dentro d'este regimen, a nação deixou de curtir [176] inquietações e duvidas sobre o nosso Imperio Colonial. Porquê? Porque sentia que finalmente os interesses supremos d'esse Imperio estavam confiados a um immeaso talento, ao talento immenso de Pacheco.

Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surdia do seu silencio repleto e fecundo. Ás vezes porém, quando a opposição se tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com lentidão uma nota a lapis:―e esta nota, traçada com saber e madurissimo pensar, bastava para perturbar, acuar a opposição. É que o immenso talento de Pacheco terminára por inspirar, nas camaras, nas commissões, nos centros, um terror disciplinar! Ai d'esse sobre quem viesse a desabar com colera aquelle talento immenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatavel! Assim dolorosissimamente o experimentou o pedagogista, que um dia se arrojou a accusar o snr. Ministro do Reino (Pacheco dirigia então o Reino) de descurar a Instrucção do paiz! Nenhuma incriminação podia ser mais sensivel áquelle immenso espirito que, na sua phrase lapidaria e succulenta, ensinára que «um povo sem o curso dos lyceus é um povo incompleto». Espetando o dedo (geito sempre tão seu) Pacheco esborrachou o homem temerario com esta coisa tremenda:―«Ao illustre deputado que me censura só tenho a dizer que emquanto, sobre questões d'Instrucção Publica, s. exc.a, ahi n'essas bancadas, faz berreiro, eu, aqui n'esta cadeira, faço [177] luz!»―Eu estava lá, n'esse esplendido momento, na galeria. E não me recordo de ter jámais ouvido, n'uma assembléa humana, uma tão apaixonada e fervente rajada de acclamações! Creio que foi d'ahi a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de S. Thiago.

O immenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional. Vendo que inabalavel apoio esse immenso talento dava ás instituições que servia, todas o appeteceram. Pacheco começou a ser um Director universal de Companhias e de Bancos. Cubiçado pela Corôa, penetrou no Conselho de Estado. O seu partido reclamou avidamente que Pacheco fosse seu Chefe. Mas os outros partidos cada dia se soccorriam com submissa reverencia do seu immenso talento. Em Pacheco pouco a pouco se concentrava a nação.

Á maneira que elle assim envelhecia, e crescia em influencia e dignidades, a admiração pelo seu immenso talento chegou a tomar no paiz certas fórmas d'expressão só proprias da religião e do amor. Quando elle foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalmavam a mão no peito com uncção, reviravam o branco do olho ao céo, para murmurar piamente:―«Que talento!» E havia amorosos que, cerrando os olhos e repenicando um beijo nas pontas apinhadas dos dedos, balbuciavam com langor:―«Ai! que talento!» E, para que o esconder? Outros havia, a quem aquelle immenso talento amargamente irritava, como um [178] excessivo e desproporcional privilegio. A esses ouvi eu bradar com furor, atirando patadas ao chão:―«Irra, que é ter talento de mais!» Pacheco no emtanto já não fallava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta.

Não relembrarei a sua incomparavel carreira. Basta que o meu caro snr. Mollinet percorra os nossos annaes. Em todas as instituições, reformas, fundações, obras, encontrará o cunho de Pacheco. Portugal todo, moral e socialmente, está repleto de Pacheco. Foi tudo, teve tudo. Decerto, o seu talento era immenso! Mas immenso se mostrou o reconhecimento da sua patria! Pacheco e Portugal, de resto, necessitavam insubstituivelmente um do outro, e ajustadissimamente se completavam. Sem Portugal―Pacheco não teria sido o que foi entre os homens: mas sem Pacheco―Portugal não seria o que é entre as nações!

A sua velhice offereceu um caracter augusto. Perdera o cabello radicalmente. Todo elle era testa. E mais que nunca revelava o seu immenso talento―mesmo nas minimas coisas. Muito bem me lembro da noite (sendo elle Presidente do Conselho) em que, na sala da Condessa de Arrôdes, alguem, com fervor, appeteceu conhecer o que s. exc.a pensava de Canovas del Castillo. Silenciosamente, magistralmente, sorrindo apenas, s. exc.a deu com a mão grave, de leve, um corte horisontal no ar. E foi em torno um murmurio d'admiração, lento e maravilhado. N'aquelle gesto quantas [179] coisas subtis, fundamente pensadas! Eu por mim, depois de muito esgravatar, interpretei-o d'este modo:―«mediocre, meia-altura, o snr. Canovas!» Porque, note o meu caro snr. Mollinet como aquelle talento, sendo tão vasto―era ao mesmo tempo tão fino!

Rebentou;―quero dizer, s. exc.a morreu, quasi repentinamente, sem soffrimento, no começo d'este duro inverno. Ia ser justamente creado marquez de Pacheco. Toda a nação o chorou com infinita dôr. Jaz no alto de S. João, sob um mausoleu, onde por suggestão do snr. conselheiro Accacio (em carta ao Diario de Noticias) foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Genio.

Mezes depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viuva, em Cintra, na casa do dr. Videira. É uma mulher (asseguram amigos meus) de excellente intelligencia e bondade. Cumprindo um dever de portuguez, lamentei, diante da illustre e affavel senhora, a perda irreparavel que era sua e da patria. Mas quando, commovido, alludi ao immenso talento de Pacheco, a viuva de Pacheco ergueu n'um brusco espanto, os olhos que conservára baixos―e um fugidio, triste, quasi apiedado sorriso arregaçou-lhe os cantos da bôca pallida... Eterno desaccordo dos destinos humanos! Aquella mediana senhora nunca comprehendera aquelle immenso talento! Creia-me, meu caro snr. Mollinet, seu dedicado―Fradique.



[180]

IX

A CLARA...
(Trad.)

Paris, junho.


Minha adorada amiga.―Não, não foi na Exposição dos Aguarellistas, em março, que eu tive comsigo o meu primeiro encontro, por mandado dos Fados. Foi no inverno, minha adorada amiga, no baile dos Tressans. Foi ahi que a vi, conversando com Madame de Jouarre, diante d'uma console, cujas luzes, entre os molhos de orchideas, punham nos seus cabellos aquelle nimbo d'ouro que tão justamente lhe pertence como «rainha de graça entre as mulheres». Lembro ainda, bem religiosamente, o seu sorrir cançado, o vestido preto com relevos côr de botão d'ouro, o leque antigo que tinha fechado no regaço. Passei; mas logo tudo em redor me pareceu irreparavelmente enfadonho e feio; e voltei a readmirar, a meditar em silencio a sua belleza, que me prendia pelo esplendor patente e comprehensivel, e ainda por não sei quê de fino, de espiritual, de dolente e de meigo que brilhava através e vinha da alma. E tão intensamente me embebi n'essa contemplação, que levei commigo a sua imagem, decorada e inteira, sem esquecer um fio dos seus cabellos ou uma [181] ondulação da sêda que a cobria, e corri a encerrar-me com ella, alvoroçado, como um artista que n'algum escuro armazem, entre poeira e cacos, descobrisse a Obra sublime d'um Mestre perfeito.

E, porque o não confessarei? Essa imagem foi para mim, ao principio, meramente um Quadro, pendurado no fundo da minha alma, que eu a cada dôce momento olhava―mas para lhe louvar apenas, com crescente surpreza, os encantos diversos de Linha e de Côr. Era sómente uma rara tela, posta em sacrario, immovel e muda no seu brilho, sem outra influencia mais sobre mim que a d'uma fórma muito bella que captiva um gosto muito educado. O meu sêr continuava livre, attento ás curiosidades que até ahi o seduziam, aberto aos sentimentos que até ahi o solicitavam;―e só quando sentia a fadiga das coisas imperfeitas ou o desejo novo d'uma occupação mais pura, regressava á Imagem que em mim guardava, como um Fra Angelico, no seu claustro, pousando os pinceis ao fim do dia, e ajoelhando ante a Madona a implorar d'ella repouso e inspiração superior.

Pouco a pouco, porém, tudo o que não foi esta contemplação perdeu para mim valor e encanto. Comecei a viver cada dia mais retirado no fundo da minha alma, perdido na admiração da Imagem que lá rebrilhava―até que só essa occupação me pareceu digna da vida, no mundo todo não reconheci mais que uma apparencia inconstante, e fui [182] como um monge na sua cella, alheio ás coisas mais reaes, de joelhos e hirto no seu sonho, que é para elle a unica realidade.

Mas não era, minha adorada amiga, um pallido e passivo extasi diante da sua Imagem. Não! era antes um ancioso e forte estudo d'ella, com que eu procurava conhecer através da Fórma a Essencia, e (pois que a Belleza é o esplendor da Verdade) deduzir das perfeições do seu Corpo as superioridades da sua Alma. E foi assim que lentamente surprehendi o segredo da sua natureza; a sua clara testa que o cabello descobre, tão clara e lisa, logo me contou a rectidão do seu pensar: o seu sorriso, d'uma nobreza tão intellectual, facilmente me revelou o seu desdem do mundanal e do ephemero, a sua incansavel aspiração para um viver de verdade e de belleza: cada graça de seus movimentos me trahiu uma delicadeza do seu gosto: e nos seus olhos differencei o que n'elles tão adoravelmente se confunde, luz de razão, calor de coração, luz que melhor aquece, calor que melhor alumia... Já a certeza de tantas perfeições bastaria a fazer dobrar, n'uma adoração perpetua, os joelhos mais rebeldes. Mas succedeu ainda que, ao passo que a comprehendia e que a sua Essencia se me manifestava, assim visivel e quasi tangivel, uma influencia descia d'ella sobre mim―uma influencia estranha, differente de todas as influencias humanas, e que me dominava com transcendente omnipotencia. Como lhe poderei dizer? Monge, [183] fechado na minha cella, comecei a aspirar á santidade, para me harmonisar e merecer a convivencia com a Santa a que me votára. Fiz então sobre mim um aspero exame de consciencia. Investiguei com inquietação se o meu pensar era condigno da pureza do seu pensar; se no meu gosto não haveria desconcertos que podessem ferir a disciplina do seu gosto; se a minha idéa da vida era tão alta e séria como aquella que eu presentira na espiritualidade do seu olhar, do seu sorrir; e se o meu coração não se dispersára e enfraquecera de mais para poder palpitar com parallelo vigor junto do seu coração. E tem sido em mim agora um arquejante esforço para subir a uma perfeição identica áquella que em si tão submissamente adoro.

De sorte que a minha querida amiga, sem saber, se tornou a minha educadora. E tão dependente fiquei logo d'esta direcção, que já não posso conceber os movimentos do meu sêr senão governados por ella e por ella ennobrecidos. Perfeitamente sei que tudo o que hoje surge em mim de algum valor, idéa ou sentimento, é obra d'essa educação que a sua alma dá á minha, de longe, só com existir e ser comprehendida. Se hoje me abandonasse a sua influencia―devia antes dizer, como um asceta, a sua Graça―todo eu rolaria para uma inferioridade sem remissão. Veja pois como se me tornou necessaria e preciosa... E considere que, para exercer esta supremacia salvadora, [184] as suas mãos não tiveram de se impôr sobre as minhas―bastou que eu a avistasse de longe, n'uma festa, resplandecendo. Assim um arbusto silvestre floresce á borda d'um fôsso, porque lá em cima nos remotos céos fulge um grande sol, que não o vê, não o conhece, e magnanimamente o faz crescer, desabrochar, e dar o seu curto aroma... Por isso o meu amor attinge esse sentimento indescripto e sem nome que a Planta, se tivesse consciencia, sentiria pela Luz.

E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo, nenhum bem imploro de quem tanto póde e é para mim dona de todo o bem. Só desejo que me deixe viver sob essa influencia, que, emanando do simples brilho das suas perfeições, tão facil e dôcemente opéra o meu aperfeiçoamento. Só peço esta permissão caridosa. Veja pois quanto me conservo distante e vago, na esbatida humildade d'uma adoração que até receia que o seu murmurio, um murmurio de prece, roce o vestido da imagem divina...

Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a toda a recompensa terrestre, me permittisse desenrolar junto de si, n'um dia de solidão, a agitada confidencia do meu peito, decerto faria um acto de ineffavel misericordia―como outr'ora a Virgem Maria quando animava os seus adoradores, ermitas e santos, descendo n'uma nuvem e concedendo-lhes um sorriso fugitivo, ou deixando-lhes cahir entre as mãos erguidas [185] uma rosa do Paraiso. Assim, ámanhã, vou passar a tarde com Madame de Jouarre. Não ha ahi a santidade d'uma cella ou d'uma ermida, mas quasi o seu isolamento: e se a minha querida amiga surgisse, em pleno resplendor, e eu recebesse de si, não direi uma rosa, mas um sorriso, ficaria então radiosamente seguro de que este meu amor, ou este meu sentimento indescripto e sem nome que vai além do amor, encontra ante seus olhos piedade e permissão para esperar.―Fradique.



X

a madame de jouarre
(Trad.)

Lisboa, junho.


Minha excellente madrinha.―Eis o que tem «visto e feito», desde maio, na formosissima Lisboa, Ulyssipo pulcherrima, o seu admiravel afilhado. Descobri um patricio meu, das Ilhas, e meu parente, que vive ha tres annos construindo um Systema de Philosophia no terceiro andar d'uma casa de hospedes, na travessa da Palha. Espirito livre, emprehendedor e destro, paladino das Idéas Geraes, o meu parente, que se chama Procopio, [186] considerando que a mulher não vale o tormento que espalha, e que os oitocentos mil reis de um olival bastam, e de sobra, a um espiritualista―votou a sua vida á Logica e só se interessa e soffre pela Verdade. É um philosopho alegre; conversa sem berrar; tem uma aguardente de muscatel excellente;―e eu trepo com gosto duas ou tres vezes por semana á sua officina de Metaphysica a saber se, conduzido pela alma dôce de Maine de Biran, que é o seu cicerone nas viagens do Infinito, elle já entreviu emfim, disfarçada por traz dos seus derradeiros véos, a Causa das Causas. N'estas piedosas visitas vou, pouco a pouco, conhecendo alguns dos hospedes que n'esse terceiro andar da travessa da Palha gozam uma boa vida de cidade, a doze tostões por dia, fóra vinho e roupa lavada. Quasi todas as profissões em que se occupa a classe-média em Portugal estão aqui representadas com fidelidade, e eu posso assim estudar, sem esforço, como n'um indice, as idéas e os sentimentos que no nosso Anno da Graça formam o fundo moral da nação.

Esta casa de hospedes offerece encantos. O quarto do meu primo Procopio tem uma esteira nova, um leito de ferro philosophico e virginal, cassa vistosa nas janellas, rosinhas e aves pela parede,―e é mantido em rigido asseio por uma d'estas creadas como só produz Portugal, bella moça de Traz-os-Montes, que, arrastando os seus chinelos com a indolencia grave d'uma nympha latina, [187] varre, esfrega e arruma todo o andar; serve nove almoços, nove jantares e nove chás; escarolla as louças; prega esses botões de calças e de ceroulas que os portuguezes estão constantemente a perder; engomma as saias da Madama; reza o terço da sua aldeia; e tem ainda vagares para amar desesperadamente um barbeiro visinho, que está decidido a casar com ella quando fôr empregado na Alfandega. (E tudo isto por tres mil reis de soldada). Ao almoço ha dois pratos, sãos e fartos, de ovos e bifes. O vinho vem do lavrador, vinhinho leve e precoce, feito pelos veneraveis preceitos das Georgicas, e semelhante decerto ao vinho da Rethia―quo te carmine dicam, Rethica? A torrada, tratada pelo lume forte, é incomparavel. E os quatro paineis que ornam a sala, um retrato de Fontes (estadista, já morto, que é tido pelos portuguezes em grande veneração), uma imagem de Pio IX sorrindo e abençoando, uma vista da varzea de Collares, e duas donzellas beijocando uma rôla, inspiram as salutares idéas, tão necessarias, de Ordem Social, de Fé, de Paz campestre, e de Innocencia.

A patrôa, D. Paulina Soriana, é uma Madama de quarenta outonos, frescalhota e roliça, com um pescoço muito nedio, e toda ella mais branca que o chambre branco que usa por sobre uma saia de sêda roxa. Parece uma excellente senhora, paciente e maternal, de bom juizo e de boa economia. Sem ser rigorosamente viuva―tem um filho, já [188] gordo tambem, que roe as unhas e segue o curso dos lyceus. Chama-se Joaquim, e, por ternura, Quinzinho; soffreu esta primavera não sei que duro mal que o forçava a infindaveis orchatas e semicupios; e está destinado por D. Paulina á Burocracia que ella considera, e muito justamente, a carreira mais segura e a mais facil.

―O essencial para um rapaz (affirmava ha dias a apreciavel senhora, depois do almoço, traçando a perna) é ter padrinhos e apanhar um emprego; fica logo arrumado; o trabalho é pouco e o ordenadosinho está certo ao fim do mez.

Mas D. Paulina está tranquilla com a carreira do Quinzinho. Pela influencia (que é toda-poderosa n'estes Reinos) d'um amigo certo, o snr. conselheiro Vaz Netto, ha já no Ministerio das Obras Publicas ou da Justiça uma cadeira de amanuense, reservada, marcada com lenço, á espera do Quinzinho. E mesmo como o Quinzinho foi reprovado nos ultimos exames, já o snr. conselheiro Vaz Netto lembrou que, visto elle se mostrar assim desmazelado, com pouco gosto pelas letras, o melhor era não teimar mais nos estudos e no Lyceu, e entrar immediatamente para a repartição...

―Que ainda assim (ajuntou a boa senhora, quando me honrou com estas confidencias) gostava que o Quinzinho acabasse os estudos. Não era pela necessidade, e por causa do emprego, como v. exc.a vê: era pelo gosto.

Quinzinho tem pois a sua prosperidade agradavelmente [189] garantida. De resto supponho que D. Paulina junta um peculio prudente. Na casa, bem afreguezada, ha agora sete hospedes―e todos fieis, solidos, gastando, com os extras, de quarenta e cinco a cincoenta mil reis por mez. O mais antigo, o mais respeitado (e aquelle que eu precisamente já conheço) é o Pinho―o Pinho brazileiro, o commendador Pinho. É elle quem todas as manhãs annuncia a hora do almoço (o relogio do corredor ficou desarranjado desde o Natal) sahindo do seu quarto ás dez horas, pontualmente, com a sua garrafa d'agua de Vidago, e vindo occupar á mesa, já posta, mas ainda deserta, a sua cadeira, uma cadeira especial de verga, com almofadinha de vento. Ninguem sabe d'este Pinho nem a idade, nem a familia, nem a terra de provincia em que nasceu, nem o trabalho que o occupou no Brazil, nem as origens da sua commenda. Chegou uma tarde de inverno n'um paquete da Mala Real; passou cinco dias no Lazareto; desembarcou com dois bahús, a cadeira de verga, e cincoenta e seis latas de dôce de tijolo; tomou o seu quarto n'esta casa de hospedes, com janella para a travessa; e aqui engorda, pacifica e risonhamente, com o seis por cento das suas inscripções. É um sujeito atochado, baixote, de barba grisalha, a pelle escura, toda em tons de tijolo e de café, sempre vestido de casimira preta, com uma luneta d'ouro pendente d'uma fita de sêda, que elle, na rua, a cada esquina, desemmaranha do cordão d'ouro do relogio [190] para lêr com interesse e lentidão os cartazes dos theatros. A sua vida tem uma d'essas prudentes regularidades que tão admiravelmente concorrem para crear a ordem nos Estados. Depois de almoço calça as botas de cano, lustra o chapéo de sêda, e vai muito devagar até á rua dos Capellistas, ao escriptorio terreo do corretor Godinho, onde passa duas horas pousado n'um môcho, junto do balcão, com as mãos cabelludas encostadas ao cabo do guarda-sol. Depois entala o guarda-sol debaixo do braço, e pela rua do Ouro, com uma pachorra saboreada, parando a contemplar alguma senhora de sêdas mais tufadas ou alguma vittoria de librés mais lustrosas, alonga os passos para a tabacaria Sousa, ao Rocio, onde bebe um copo de agua de Caneças, e repousa até que a tarde refresque. Segue então para a Avenida, a gozar o ar puro e o luxo da cidade, sentado n'um banco; ou dá a volta ao Rocio, sob as arvores, com a face erguida e dilatada em bem-estar. Ás seis recolhe, despe e dobra a sobrecasaca, calça os chinelos de marroquim, enverga uma regalada quinzena de ganga, e janta, repetindo sempre a sopa. Depois do café dá um «hygienico» pela Baixa, com demoras pensativas, mas risonhas, diante das vitrines de confeitaria e de modas; e em certos dias sobe o Chiado, dobra a esquina da rua Nova da Trindade, e regateia, com placidez e firmeza, uma senha para o Gymnasio. Todas as sextas-feiras entra no seu banco, que é o London Brazilian. Aos domingos, á noitinha, com [191] recato, visita uma moça gorda e limpa que mora na rua da Magdalena. Cada semestre recebe o juro das suas inscripcões.

Toda a sua existencia é assim um pautado repouso. Nada o inquieta, nada o apaixona. O universo, para o commendador Pinho, consta de duas unicas entidades―elle proprio, Pinho, e o Estado que lhe dá o seis por cento: portanto o universo todo está perfeito, e a vida perfeita, desde que Pinho, graças ás aguas de Vidago, conserve appetite e saude, e que o Estado continue a pagar fielmente o coupon. De resto, pouco lhe basta para contentar a porção d'Alma e Corpo de que apparentemente se compõe. A necessidade que todo o sêr vivo (mesmo as ostras, segundo affirmam os Naturalistas) tem de communicar com os seus semelhantes por meio de gestos ou sons, é em Pinho pouco exigente. Pelos meados d'abril, sorri e diz, desdobrando o guardanapo―«temos o verão comnosco»: todos concordam e Pinho goza. Por meados d'outubro, corre os dedos pela barba e murmura―«temos comnosco o inverno»: se outro hospede discorda, Pinho emmudece, porque teme controversias. E esta honesta permutação de idéas lhe basta. Á mesa, comtanto que lhe sirvam uma sopa succulenta, n'um prato fundo, que elle possa encher duas vezes―fica consolado e disposto a dar graças a Deus. O Diario de Pernambuco, o Diario de Noticias, alguma comedia do Gymnasio, ou uma Magica, satisfazem e de sobra [192] essas outras necessidades de intelligencia e de imaginação, que Humboldt encontrou mesmo entre os Botecudos. Nas funcções do sentimento Pinho só pretende modestamente (como revelou um dia ao meu primo) «não apanhar uma doença». Com as coisas publicas está sempre agradado, governe este ou governe aquelle, comtanto que a policia mantenha a ordem, e que não se produzam nos principios e nas ruas disturbios nocivos ao pagamento do coupon. E emquanto ao destino ulterior da sua alma, Pinho (como elle a mim proprio me assegurou)―«só deseja depois de morto que o não enterrem vivo». Mesmo ácerca d'um ponto tão importante, como é para um commendador o seu mausoléo, Pinho pouco requer:―apenas uma pedra lisa e decente, com o seu nome, e um singelo orai por elle.

Errariamos porém, minha querida madrinha, em suppôr que Pinho seja alheio a tudo quanto seja humano. Não! Estou certo que Pinho respeita e ama a humanidade. Sómente a humanidade, para elle, tornou-se no decurso da sua vida excessivamente restricta. Homens, homens serios, verdadeiramente merecedores d'esse nobre nome, e dignos de que por elles se mostre reverencia, affecto, e se arrisque um passo que não cance muito―para Pinho só ha os prestamistas do Estado. Assim, meu primo Procopio, com uma malicia bem inesperada n'um espiritualista, contou-lhe ha tempos em confidencia, arregalando os olhos, que eu possuia [193] muitos papeis! muitas apolices! muitas inscripções!... Pois na primeira manhã que voltei, depois d'essa revelação, á casa de hospedes, Pinho, ligeiramente córado, quasi commovido, offereceu-me uma boceta de dôce de tijolo embrulhada n'um guardanapo. Acto tocante, que explica aquella alma! Pinho não é um egoista, um Diogenes de rabôna preta, sêccamente retrahido dentro da pipa da sua inutilidade. Não. Ha n'elle toda a humana vontade de amar os homens seus semelhantes, e de os beneficiar. Sómente quem são, para Pinho, os seus genuinos «semelhantes»? Os prestamistas do Estado. E em que consiste para Pinho o acto de beneficio? Na cessão aos outros d'aquillo que a elle lhe é inutil. Ora Pinho não se dá bem com o uso da goiabada―e logo que soube que eu era um possuidor de inscripções, um seu semelhante, capitalista como elle, não hesitou, não se retrahiu mais ao seu dever humano, praticou logo o acto de beneficio, e lá veio, ruborisado e feliz, trazendo o seu dôce dentro d'um guardanapo.

É o commendador Pinho um cidadão inutil? Não, certamente! Até para manter em estabilidade e solidez a ordem d'uma nação, não ha mais prestadio cidadão do que este Pinho, com a sua placidez de habitos, o seu facil assentimento a todos os feitios da coisa publica, a sua conta do banco verificada ás sextas-feiras, os seus prazeres colhidos em hygienico recato, a sua reticencia, a sua inercia. D'um Pinho nunca póde sahir idéa ou acto, affirmação [194] ou negação, que desmanche a paz do Estado. Assim gordo e quieto, collado sobre o organismo social, não concorrendo para o seu movimento, mas não o contrariando tambem, Pinho apresenta todos os caracteres d'uma excrescencia sebacea. Socialmente, Pinho é um lobinho. Ora nada mais inoffensivo que um lobinho: e nos nossos tempos, em que o Estado está cheio de elementos morbidos, que o parasitam, o sugam, o infeccionam e o sobreexcitam, esta inoffensibilidade de Pinho póde mesmo (em relação aos interesses da ordem) ser considerada como qualidade meritoria. Por isso o Estado, segundo corre, o vai crear barão. E barão d'um titulo que os honra a ambos, ao Estado e a Pinho, porque é n'elle simultaneamente prestada uma homenagem graciosa e discreta á Familia e á Religião. O pae de Pinho chamava-se Francisco―Francisco José Pinho. E o nosso amigo vai ser feito barão de S. Francisco.

Adeus, minha querida madrinha! Vamos no nosso decimo oitavo dia de chuva! Desde o começo de junho e das rosas, que n'este paiz de sol sobre azul, na terra trigueira da oliveira e do louro, queridos a Phebo, está chovendo, chovendo em fios d'agua cerrados, continuos, imperturbados, sem sopro de vento que os ondule, nem raio de luz que os diamantise, formando das nuvens ás ruas uma trama molle de humidade e tristeza, onde a alma se debate e definha como uma borboleta presa nas teias d'uma aranha. Estamos em pleno versiculo [195] XVII, do capitulo VII do Genesis. No caso d'estas aguas do céo não cessarem, eu concluo que as intenções de Jehovah, para com este paiz peccador, são diluvianas; e, não me julgando menos digno da Graça e da Alliança divina do que Noé, vou comprar madeira e betume, e fazer uma Arca segundo os bons modelos hebraicos ou assyrios. Se por acaso d'aqui a tempos uma pomba branca fôr bater com as azas á sua vidraça, sou eu que aportei ao Havre na minha Arca, levando commigo, entre outros animaes, o Pinho e a D. Paulina, para que mais tarde, tendo baixado as aguas, Portugal se repovoe com proveito, e o Estado tenha sempre Pinhos a quem peça dinheiro emprestado, e Quinzinhos gordos com quem gaste o dinheiro que pediu a Pinho. Seu afilhado do coração―Fradique.



XI

a mr. bertrand b.
Engenheiro na Palestina


Paris, abril.


Meu caro Bertrand.―Muito ironicamente, hoje, n'este Domingo de Paschoa em que os céos contentes, se revestiram paschalmente d'uma chasula d'ouro e d'azul, e os lilazes novos perfumam o meu jardim para o santificar, me chega a tua horrenda [196] carta, contando que findaste o traçado do Caminho de Ferro de Jaffa a Jerusalem! E triumphas! Decerto, á porta de Damasco, com as botas fortes enterradas no pó de Josaphat, o guarda-sol pousado sobre uma pedra tumular de propheta, o lapis ainda errante sobre o papel, sorris, todo te dilatas, e através das lunetas defumadas contemplas, marcada por bandeirinhas, a «linha» onde em breve, fumegando e guinchando, rolará da velha Jeppo para a velha Sião o negro comboio da tua negra obra! Em redor os empreiteiros, limpando o grosso suor da façanha, desarrolham as garrafas da cerveja festiva! E por traz de vós o Progresso, hirto contra as muralhas de Herodes, todo engonçado, todo aparafusado, tambem triumpha, esfregando, com estalidos asperos, as suas rigidas mãos de ferro fundido.

Bem o sinto, bem o comprehendo o teu escandaloso traçado, oh filho dilecto e fatal da Escóla de Pontes e Calçadas! Nem necessitava esse plano com que me deslumbras, todo em linhas escarlates, parecendo golpes d'uma faca vil por cima d'uma carne nobre. É em Jaffa, na antiquissima Jeppo, já heroica e santa antes do Diluvio, que a tua primeira Estação com os alpendres, e a carvoeira, e as balanças, e a sineta, e o chefe de bonet agaloado, se ergue entre esses laranjaes, gabados pelo Evangelho, onde S. Pedro, correndo aos brados das mulheres, resuscitou Dorcas, a boa tecedeira, e a ajudou a sahir do seu sepulchro. D'ahi a locomotiva, com a sua 1.ª classe forrada de chita, rola descaradamente [197] pela planicie de Saaron, tão amada do céo, que, mesmo sob o bruto pisar das hordas philistinas, nunca n'ella murchavam anemonas e rosas. Corta através de Beth-Dagon, e mistura o pó do seu carvão de Cardiff ao vetusto pó do Templo de Baal, que Samsão, mudo e repassado de tristeza, derrocou movendo os hombros. Corre por sobre Lydda, e atrôa com guinchos o grande S. Jorge, que ainda couraçado, emplumado, e o guante sobre a espada, alli dorme o seu somno terrestre. Toma agua, por um tubo de couro, do Poço Santo d'onde a Virgem na fugida para o Egypto, repousando sob o figueiral, deu de beber ao Menino. Pára em Ramleh, que é a velha Arymathea (Arymathea, quinze minutos de demora!), a aldeia dos dôces hortos e do homem dôce que enterrou o Senhor. Fura, por tunneis fumarentos, as collinas de Judá, onde choraram os prophetas. Rompe por entre ruinas que foram a cidadella e depois a sepultara dos Machabeus. Galga, n'uma ponte de ferro, a torrente em que David errante escolhia pedras para a sua funda derrubadora de monstros. Colleia e arqueja pelo valle melancolico que habitou Jeremias. Suja ainda Emmauz, vara o Cedron, e estaca emfim, suada, azeitada, sordida de felugem, no valle de Hennom, no terminus de Jerusalem!

Ora, meu bom Bertrand, eu que não sou das Pontes e Calçadas, nem accionista da Companhia dos Caminhos de Ferro da Palestina, apenas um peregrino saudoso d'esses logares adoraveis, considero [198] que a tua obra de civilisação é uma obra de profanação. Bem sei, engenheiro! S. Pedro resuscitando a velha Dorcas; a florescencia miraculosa das roseiras de Saaron; o Menino bebendo, na fuga para o Egypto, á sombra das arvores que os anjos iam adiante semeando,―são fabulas... Mas são fabulas que ha dois mil annos dão encanto, esperança, abrigo consolador, e energia para viver a um terço da Humanidade. Os logares onde se passaram essas historias, decerto muito simples e muito humanas, que depois, pela necessidade que a alma tem do Divino, se transformaram na tão linda mythologia christã, são por isso veneraveis. N'elles viveram, combateram, ensinaram, padeceram, desde Jacob até S. Paulo, todos os sêres excepcionaes que hoje povoam o céo. Jehovah só entre esses montes se mostrava, com terrifico esplendor, no tempo em que visitava os homens. Jesus desceu a esses valles pensativos para renovar o mundo. Sempre a Palestina foi a residencia preferida da Divindade. Nada de Material devia pois desmanchar o seu recolhimento Espiritual. E é penoso que a fumaraça do Progresso suje um ar que conserva o perfume da passagem dos anjos, e que os seus trilhos de ferro revolvam o sólo onde ainda não se apagaram as pégadas divinas.

Tu sorris, e accusas precisamente a velha Palestina de ser uma incorrigivel fonte de Illusão. Mas a illusão, Bertrand amigo, é tão util como a certeza: e na formação de todo o espirito, para que elle [199] seja completo, devem entrar tanto os Contos de Fadas como os Problemas de Euclides. Destruir a influencia religiosa e poetica da Terra Santa, tanto nos corações simples como nas intelligencias cultas, é um retrocesso na Civilisação, na verdadeira, n'aquella de que tu não és obreiro, e que tem por melhor esforço aperfeiçoar a Alma do que reforçar o Corpo, e, mesmo pelo lado da utilidade, considera um Sentimento mais util do que uma Machina. Ora, locomotivas manobrando pela Judéa e Galiléa, com a sua materialidade de carvão e ferro, o seu desenvolvimento inevitavel de hoteis, omnibus, bilhares e bicos de gaz, destroem irremediavelmente o poder emotivo da Terra-dos-Milagres, porque a modernisam, a industrialisam, a banalisam...

Esse poder, essa influencia espiritual da Palestina, de que provinha? De ella se ter conservado, através d'estes quatro mil annos, immutavelmente biblica e evangelica... Decerto sobrevieram mudanças em Israel; a administração turca tem menos esplendor que a administração romana; dos vergeis e jardins que cercavam Jerusalem, só resta penhasco e ortiga; as cidades, esboroadas, perderam o seu heroismo de cidadellas; o vinho é raro; todo o saber se apagou; e não duvido que aqui e além, em Sião, n'algum terraço de mercador levantino, se assobie ao luar a valsa de Madame Angot.

Mas a vida intima, na sua fórma rural, urbana [200] ou nomada, as maneiras, os costumes, os ceremoniaes, os trajes, os utensilios,―tudo permanece como nos tempos de Abrahão e nos tempos de Jesus. Entrar na Palestina é penetrar n'uma Biblia viva. As tendas de pelle de cabra plantadas á sombra dos sycomoros; o pastor apoiado á sua alta lança, seguido do seu rebanho; as mulheres, veladas de amarello ou branco, cantando, a caminho da fonte, com o seu cantaro no hombro; o montanhez atirando a funda ás aguias; os velhos sentados, pela frescura da tarde, á porta das villas muradas; os claros terraços cheios de pombas; o escriba que passa, com o seu tinteiro dependurado da cinta; as servas moendo o grão; o homem de longos cabellos nazarenos que nos saúda com a palavra de paz, e que conversa comnosco por parabolas; a hospedeira que nos acolhe, atirando, para passarmos, um tapete ante o limiar da sua morada; e ainda as procissões nupciaes, e as danças lentas ao rufe-rufe das pandeiretas, e as carpideiras em torno aos sepulchros caiados,―tudo transporta o peregrino á velha Judéa das Escripturas, e de um modo tão presente e real, que a cada momento duvidamos se aquella ligeira e morena mulher, com largas argolas d'ouro e um aroma de sandalo, que conduz um cordeiro preso pela ponta do manto, não será ainda Rachel, ou se, entre os homens sentados além, á sombra da figueira e da vinha, aquelle de curta barba frisada, que ergue o braço, não será Jesus ensinando.

[201] Esta sensação, preciosa para o crente, é preciosa para o intellectual, porque o põe n'uma communhão flagrante com um dos mais maravilhosos momentos da Historia Humana. Decerto seria igualmente interessante (mais interessante talvez) que se podesse colher a mesma emoção na Grecia, e que ahi encontrassemos ainda nos seus trajes, nas suas maneiras, na sua sociabilidade, a grande Athenas de Pericles. Infelizmente, essa Athenas incomparavel jaz morta, para sempre soterrada, desfeita em pó, sob a Athenas romana, e a Athenas byzantina, e a Athenas barbara, e a Athenas musulmana, e a Athenas constitucional e sordida. Por toda a parte o velho scenario da historia está assim esfrangalhado e em ruinas. Os proprios montes perderam, ao que parece, a configuração classica: e ninguem póde achar no Lacio o rio e o fresco valle que Virgilio habitou e tão virgilianamente cantou. Um unico sitio na terra permanecia ainda com os aspectos, os costumes, com que o tinham visto, e de que tinham partilhado, os homens que deram ao mundo uma das suas mais altas transformações:―e esse sitio era um pedaço da Judéa, da Samaria e da Galiléa. Se elle fôr grosseiramente modernisado, nivelado ao prototypo social, querido do seculo, que é o districto de Liverpool ou o departamento de Marselha, e se assim desapparecer para sempre a opportunidade educadora de vêr uma grande imagem do Passado, que profanação, que devastação bruta e barbara! E por [202] perder essa fórma sobrevivente das civilisações antigas, o thesouro do nosso saber e da nossa inspiração fica irreparavelmente diminuido.

Ninguem mais do que eu, decerto, aprecia e venera um caminho de ferro, meu Bertrand;―e ser-me-ia penoso ter de jornadear de Paris a Bordeus, como Jesus subia do valle de Jerichó para Jerusalem, escarranchado n'um burro. As coisas mais uteis, porém, são importunas, e mesmo escandalosas, quando invadem grosseiramente logares que lhes não são congeneres. Nada mais necessario na vida do que um restaurante: e todavia ninguem, por mais descrente ou irreverente, desejaria que se installasse um restaurante com as suas mesas, o seu tinir de pratos, o seu cheiro a guisados,―nas naves de Norte-Dame ou na velha Sé de Coimbra. Um caminho de ferro é obra louvavel entre Paris e Bordeus. Entre Jerichó e Jerusalem basta a egua ligeira que se aluga por dois drachmas, e a tenda de lona que se planta á tarde entre os palmares, á beira de uma agua clara, e onde se dorme tão santamente sob a paz radiante das estrellas da Syria.

E são justamente essa tenda, e o camello grave que carrega os fardos, e a escolta flammejante de beduinos, e os pedaços de deserto onde se galopa com a alma cheia de liberdade, e o lyrio de Salomão que se colhe nas fendas d'uma ruina sagrada, e as frescas paragens junto aos poços biblicos, e as rememorações do Passado á noite em [203] torno á fogueira do acampamento, que fazem o encanto da jornada, e attrahem o homem de gosto que ama as emoções delicadas de Natureza, Historia e Arte. Quando de Jerusalem se partir para a Galiléa n'um wagon estridente e cheio de pó, talvez ninguem emprehenda a peregrinação magnifica―a não ser o destro commis-voyageur que vai vender pelos Bazares chitas de Manchester ou pannos vermelhos de Sedan. O teu negro comboio rolará vazio. Que pura alegria essa para todos os entendimentos cultos―que não sejam accionistas dos Caminhos de Ferro da Palestina!...

Mas socega, Bertrand, engenheiro e accionista! Os homens, mesmo os que melhor servem o Ideal, nunca resistem ás tentações sensualistas do Progresso. Se d'um lado, á sahida de Jaffa, a propria caravana da Rainha de Sabá, com os seus elephantes e onagros, e estandartes, e lyras, e os arautos coroados de anemonas, e todos os fardos abarrotados de pedrarias e balsamos, infindavel em poesia e lenda, se offerecesse ao homem do seculo XIX para o conduzir lentamente a Jerusalem e a Salomão―e do outro lado um comboio, silvando, de portinholas abertas, lhe promettesse a mesma jornada, sem soalheiras nem solavancos, a vinte kilometros por hora, com bilhete d'ida e volta, esse homem, por mais intellectual, por mais eruditamente artista, agarraria a sua chapelleira e enfiaria sofregamente para o wagon, onde podesse descalçar as botas, e dormitar de ventre estendido.

[204] Por isso a tua obra maligna prosperará pela propria virtude da sua malignidade. E, dentro de poucos annos, o occidental positivo que de manhã partir da velha Jeppo, no seu wagon de 1.ª classe, e comprar na estação de Gaza a Gazeta Liberal do Sinai, e jantar divertidamente em Ramleh no Grand-Hotel dos Machabeus―irá, á noite, em Jerusalem, através da Via Dolorosa illuminada pela electricidade, beber um bock e bater tres carambolas no Casino do Santo Sepulchro!

Será este o teu feito―e o fim da lenda christã.

Adeus, monstro!―Fradique.



XII

a madame de jouarre

Quinta de Refaldes (Minho).


Minha querida madrinha.―Estou vivendo pinguemente em terras ecclesiasticas, porque esta quinta foi de frades. Agora pertence a um amigo meu, que é, como Virgilio, poeta e lavrador, e canta piedosamente as origens heroicas de Portugal emquanto amanha os seus campos e engorda os seus gados. Rijo, viçoso, requeimado dos soes, tem oito filhos, com que vai povoando estas cellas monasticas forradas de cretones claros. E eu justamente voltei de Lisboa a estes milheiraes do [205] Norte para ser padrinho do derradeiro, um famoso senhor de tres palmos, côr de tijolo, todo roscas e regueifas, com uma careca de melão, os olhinhos luzindo entre rugas como vidrilhos, e o ar profundamente sceptico e velho. No sabbado, dia de S. Bernardo, sob um azul que S. Bernardo tornára especialmente vistoso e macio, ao repicar dos sinos claros, entre aromas de roseira, e jasmineiro, lá o conduzimos, todo enfeitado de laçarotes e rendas, á Pia, onde o Padre Theotonio inteiramente o lavou da fetida crosta de Peccado Original, que desde a bolinha dos calcanhares até á moleirinha o cobria todo, pobre senhor de tres palmos que ainda não vivera da alma, e já perdera a alma... E desde então, como se Refaldes fosse a ilha dos Latophagios, e eu tivesse comido em vez da couve-flôr da horta a flôr do Lotus, por aqui me quedei, olvidado do mundo e de mim, na doçura d'estes ares, d'estes prados, de toda esta rural serenidade, que me affaga e me adormece.

O casarão conventual que habitamos, e onde os conegos Regrantes de Santo Agostinho, os ricos e nedios Cruzios, vinham preguiçar no verão, prende por um claustro florido de hydrangeas e a uma egreja lisa e sem arte, com um adro assombreado por castanheiros, pensativo, grave, como são sempre os do Minho. Uma cruz de pedra encima o portão, onde pende ainda da corrente de ferro a vetusta e lenta sineta fradesca. No meio do pateo, a fonte, de boa agua, que canta adormecidamente [206] cahindo de concha em concha, tem no topo outra cruz de pedra, que um musgo amarellento reveste de melancolia secular. Mais longe, n'um vasto tanque, lago caseiro orlado de bancos, onde decerto os bons Cruzios se vinham embeber pelas tardes de frescura e repouso, a agua das regas, limpida e farta, brota dos pés de uma santa de pedra, hirta no seu nicho, e que é talvez Santa Rita. Adiante ainda, na horta, outra santa franzina, sustentando nas mãos um vaso partido, preside, como uma nayade, ao borbulhar de outra fonte, que por quelhas de granito vai luzindo e fugindo através do feijoal. Nos esteios de pedra que sustentam a vinha ha por vezes uma cruz gravada, ou um coração sagrado, ou o monogramma de Jesus. Toda a quinta, assim santificada por signos devotos, lembra uma sacristia onde os tectos fossem de parra, a relva cobrisse os soalhos, por cada fenda borbulhasse um regato, e o incenso sahisse dos cravos.

Mas, com todos estes emblemas sacros, nada ha que nos môva; ou severamente nos arraste, aos renunciamentos do mundo. A quinta foi sempre, como agora, de grossa fartura, toda em campos de pão, bem arada e bem regada, fecunda, estendida ao sol como um ventre de Nimpha antiga. Os frades excellentes que n'ella habitaram amavam largamente a terra e a vida. Eram fidalgos que tomavam serviço na milicia do Senhor, como os seus irmãos mais velhos tomavam serviço na milicia d'El-rei―e que, como elles, [207] gozavam risonhamente os vagares, os privilegios e a riqueza da sua Ordem e da sua Casta. Vinham para Refaldes, pelas calmas de julho, em seges e com lacaios. A cozinha era mais visitada que a egreja―e todos os dias os capões alouravam no espeto. Uma poeira discreta velava a livraria, onde apenas por vezes algum conego rheumatisante e retido nas almofadas da sua cella mandava buscar o D. Quichote, ou as Farças de D. Petronilla. Espanejada, arejada, bem catalogada, com rotulos e notas traçadas pela mão erudita dos Abbades―só a adega...

Não se procure pois, n'esta morada de monges, o precioso sabor das tristezas monasticas; nem as quebradas de serra e valle, cheias de ermo e mudez, tão dôces para n'ellas se curtirem deliciosamente as saudades do céo; nem as espessuras de bosque, onde S. Bernardo se embrenhava, por n'ellas encontrar melhor que na sua cella a «fecunda solidão»; nem os claros de pinheiral gemente, com rochas núas, tão proprias para a choça e para a cruz do ermita... Não! Aqui, em torno do pateo (onde a agua da fonte todavia corre dos pés da cruz) são solidas tulhas para o grão, fofos eidos em que o gado medra, capoeiras abarrotadas de capões e de perús reverendos. Adiante é a horta viçosa, cheirosa, succulenta, bastante a fartar as panellas todas de uma aldeia, mais enfeitada que um jardim, com ruas que as tiras de morangal orlam e perfumam, e as latadas ensombram, [208] copadas de parra densa. Depois a eira de granito, limpa e alisada, rijamente construida para longos seculos de colheitas, com o seu espigueiro ao lado, bem fendilhado, bem arejado, tão largo que os pardaes voam dentro como n'um pedaço de céo. E por fim, ondulando ricamente até ás collinas macias, os campos de milho, e de centeio, o vinhedo baixo, os olivaes, os relvados, o linho sobre os regatos, o matto florido para os gados... S. Francisco de Assis e S. Bruno abominariam este retiro de frades e fugiriam d'elle, escandalisados, como de um peccado vivo.

A casa dentro offerece o mesmo bom conchego temporal. As cellas espaçosas, de tectos apainelados, abrem para as terras semeadas, e recebem d'ellas, através da vidraçaria cheia de sol, a perenne sensação de fartura, de opulencia rural, de bens terrenos que não enganam. E a sala melhor, traçada para as occupações mais gratas, é o refeitorio, com as suas varandas rasgadas, onde os regalados monges podessem, ao fim do jantar, conforme a veneravel tradição dos Cruzios, beber o seu café aos golos, galhofando, arrotando, respirando a fresquidão, ou seguindo nas faias do pateo o cantar alto d'um melro.

De sorte que não houve necessidade de alterar esta vivenda, quando de religiosa passou a secular. Estava já sabiamente preparada para a profanidade;―e a vida que n'ella então se começou a viver, não foi differente da do velho convento, apenas [209] mais bella, porque, livre das contradicções do Espiritual e do Temporal, a sua harmonia se tornou perfeita. E, tal como é, deslisa com incomparavel doçura. De madrugada, os gallos cantam, a quinta acorda, os cães de fila são acorrentados, a moça vai mungir as vaccas, o pegureiro atira o seu cajado ao hombro, a fila dos jornaleiros mette-se ás terras―e o trabalho principia, esse trabalho que em Portugal parece a mais segura das alegrias e a festa sempre incansavel, porque é todo feito a cantar. As vozes vêm, altas e desgarradas, no fino silencio, d'além, d'entre os trigos, ou do campo em sacha, onde alvejam as camisas de linho crú, e os lenços de longas franjas vermelhejam mais que papoulas. E não ha n'este labor nem dureza, nem arranque. Todo elle é feito com a mansidão com que o pão amadurece ao sol. O arado mais acaricia do que rasga a gleba. O centeio cae por si, amorosamente, no seio attrahente da foice. A agua sabe onde o torrão tem sêde, e corre para lá gralhando e refulgindo. Ceres n'estes sitios bemditos permanece verdadeiramente, como no Lacio, a Deusa da Terra, que tudo propicia e soccorre. Ella reforça o braço do lavrador, torna refrescante o seu suor, e da alma lhe limpa todo o cuidado escuro. Por isso os que a servem, mantêm uma serenidade risonha na tarefa mais dura. Essa era a ditosa feição da vida antiga.

Á uma hora é o jantar, serio e pingue. A quinta tudo fornece prodigamente:―e o vinho, o [210] azeite, a hortaliça, a fructa têm um sabor mais vivo e são, assim cabidos das mãos do bom Deus sobre a mesa, sem passar pela mercancia e pela loja. Em palacio algum, por essa Europa superfina, se come na verdade tão deliciosamente como n'estas rusticas quintas de Portugal. Na cozinha enfumarada, com duas panellas de barro e quatro achas a arder no chão, estas caseiras de aldeia, de mangas arregaçadas, guizam um banquete que faria exultar o velho Jupiter, esse transcendente guloso, educado a nectar, o Deus que mais comeu, e mais nobremente soube comer, desde que ha Deuses no céo e na terra. Quem nunca provou este arroz de caçoula, este anho paschal candidamente assado no espeto, estas cabidellas de frango coevas da Monarchia que enchem a alma, não póde realmente conhecer o que seja a especial bemaventurança tão grosseira e tão divina, que no tempo dos frades se chamava a comezaina. E a quinta depois, com as suas latadas de sombra macia, a dormente susurração das aguas regantes, os ouros claros e foscos ondulando nos trigaes, offerece, mais que nenhum outro paraiso humano ou biblico, o repouso acertado para quem emerge, pesado e risonho, d'este arroz e d'este anho!

Se estes meios-dias são um pouco materiaes, breve a tarde trará a porção de poesia de que necessita o Espirito. Em todo o céo se apagou a refulgencia d'ouro, o esplendor arrogante que se não deixa fitar e quasi repelle; agora apaziguado [211] e tratavel, elle derrama uma doçura, uma pacificação que penetra na alma, a torna tambem pacifica e dôce, e cria esse momento raro em que céo e alma fraternisam e se entendem. Os arvoredos repousam n'uma immobilidade de contemplação, que é intelligente. No piar velado e curto dos passaros ha um recolhimento e consciencia de ninho feliz. Em fila, a boiada volta dos pastos, cançada e farta, e vai ainda beberar ao tanque, onde o gotejar da agua sob a cruz é mais preguiçoso. Toca o sino a Ave-Marias. Em todos os casaes se está murmurando o nome de Nosso Senhor. Um carro retardado, pesado de matto, geme pela sombra da azinhaga. E tudo é tão calmo e simples e terno, minha madrinha, que, em qualquer banco de pedra em que me sente, fico enlevado, sentindo a penetrante bondade das coisas, e tão em harmonia com ella, que não ha n'esta alma, toda encrostada das lamas do mundo, pensamento que não podesse contar a um santo...

Verdadeiramente estas tardes santificam. O mundo recua para muito longe, para além dos pinhaes e das collinas, como uma miseria esquecida:―e estamos então realmente na felicidade de um convento, sem regras e sem abbade, feito só da religiosidade natural que nos envolve, tão propria á oração que não tem palavras, e que é por isso a mais bem comprehendida por Deus.

Depois escurece, já ha pyrilampos nas sebes. Venus, pequenina, scintilla no alto. A sala, em [212] cima, está cheia de livros, dos livros fechados no tempo dos Cruzios―porque só desde que não pertence a uma ordem espiritual é que esta casa se espiritualisou. E o dia na quinta finda com uma lenta e quieta palestra sobre idéas e letras, emquanto na guitarra ao lado geme algum dos fados de Portugal, longo em saudades e em ais, e a lua, ao fundo da varanda, uma lua vermelha e cheia, surde, como a escutar, por detraz dos negros montes.

Deus nobis haec otia fecit in umbra Lusitaniae pulcherrimae... Mau latim―grata verdade.

Seu grato e mau afilhado―Fradique.



XIII

a clara...
(Trad.)


Paris, novembro.


Meu amor.―Ainda ha poucos instantes (dez instantes, dez minutos, que tanto gastei n'um fiacre desolador desde a nossa Torre de Marfim) eu sentia o rumor do teu coração junto do meu, sem que nada os separasse senão uma pouca de argilla mortal, em ti tão bella, em mim tão rude―e já estou tentando recontinuar anciosamente, por meio d'este papel inerte, esse ineffavel estar comtigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e unica vida. É que, longe da tua presença, [213] cesso de viver, as coisas para mim cessam de ser―e fico como um morto jazendo no meio de um mundo morto. Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu nome―recomeço a aspirar desesperadamente para ti como para uma resurreição!

Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu Deus a minha Eva―que era eu, na verdade? Uma sombra fluctuando entre sombras. Mas tu vieste, dôce adorada, para me fazer sentir a minha realidade, e me permittir que eu bradasse tambem triumphalmente o meu―«amo, logo existo!» E não foi só a minha realidade que me desvendaste―mas ainda a realidade de todo este Universo, que me envolvia como um inintelligivel e cinzento montão de apparencias. Quando ha dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrellas estando tão perto dos teus olhos, e espreitasse o adormecer das collinas junto ao calor dos teus hombros―não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando nas coisas a belleza inesperada que tu sobre ellas derramas por uma emanação que te é propria, e que, antes de viver a teu lado, nunca eu lhes percebera, como se não percebe a vermelhidão das rosas ou o verde tenro das relvas antes de nascer o sol! Foste tu, minha bem-amada, que me alumiaste o mundo. No teu amor [214] recebi a minha Iniciação. Agora entendo, agora sei. E, como o antigo Iniciado, posso affirmar:―«Tambem fui a Eleusis; pela larga estrada pendurei muita flôr que não era verdadeira, diante de muito altar que não era divino; mas a Eleusis cheguei, em Eleusis penetrei―e vi e senti a verdade!...»

E accresce ainda, para meu martyrio e gloria, que tu és tão sumptuosamente bella e tão ethereamente bella, d'uma belleza feita de Céo e de Terra, belleza completa e só tua, que eu já concebera―que nunca julgára realizavel. Quantas vezes, ante aquella sempre admirada e toda perfeita Venus de Milo, pensei que se debaixo da sua testa de Deusa podessem tumultuar os cuidados humanos; se os seus olhos soberanos e mudos se soubessem toldar de lagrimas; se os seus labios, só talhados para o mel e para os beijos, consentissem em tremer no murmurio de uma prece submissa; se, sob esses seios, que foram o appetite sublime dos Deuses e dos Heroes, um dia palpitasse o Amor e com elle a Bondade; se o seu marmore soffresse, e pelo soffrimento se espiritualisasse, juntando ao esplendor da Harmonia a graça da Fragilidade; se ella fosse do nosso tempo e sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do Prazer se tornasse Senhora da Dôr―então não estaria collocada n'um museu, mas consagrada n'um santuario, porque os homens, ao reconhecer n'ella a alliança sempre almejada e sempre frustrada do Real e do Ideal, decerto [215] a teriam acclamado in eternum como a definitiva Divindade. Mas quê! A pobre Venus só offerecia a serena magnificencia da carne. De todo lhe faltava a chamma que arde na alma e a consome. E a creatura incomparavel do meu scismar, a Venus Espiritual, Cytherêa e Dolorosa, não existia, nunca existiria!... E quando eu assim pensava, eis que tu surges, e eu te comprehendo! Eras a encarnação do meu sonho, ou antes d'um sonho que deve ser universal―mas só eu te descobri, ou, tão feliz fui, que só por mim quizeste ser descoberta!

Vê, pois, se jámais te deixarei escapar dos meus braços! Por isso mesmo que és a minha Divindade,―para sempre e irremediavelmente estás presa dentro da minha adoração. Os Sacerdotes de Carthago acorrentavam ás lages dos Templos, com cadeias de bronze, as imagens dos seus Baals. Assim te quero tambem, acorrentada dentro do templo avaro que te construi, só Divindade minha, sempre no teu altar,―e eu sempre diante d'elle rojado, recebendo constantemente n'alma a tua visitação, abysmando-me sem cessar na tua essencia, de modo que nem por um momento se descontinue essa fusão ineffavel, que é para ti um acto de Misericordia e para mim de Salvação. O que eu desejaria na verdade é que fosses invisivel para todos e como não existente―que perpetuamente um estofo informe escondesse o teu corpo, uma rigida mudez occultasse a tua intelligencia. Assim passarias [216] no mundo como uma apparencia incomprehendida. E só para mim, de dentro do involucro escuro, se revelaria a tua perfeição rutilante. Vê quanto te amo―que te queria entrouxada n'um rude, vago vestido de merino, com um ar quêdo, inanimado... Perderia assim o triumphal contentamento de vêr resplandecer entre a multidão maravilhada aquella que em segredo nos ama. Todos murmurariam compassivamente―«Pobre creatura!» E só eu saberia da «pobre creatura», o corpo e a alma adoraveis!

Quanto adoraveis! Nem comprehendo que, tendo consciencia do teu encanto, não estejas de ti namorada como aquelle Narciso que treme de frio, coberto de musgo, à beira da fonte, em Savran. Mas eu largamente te amo e por mim e por ti! A tua belleza, na verdade, attinge a altura de uma virtude:―e foram decerto os modos tão puros da tua alma que fixaram as linhas tão formosas do teu corpo. Por isso ha em mim um incessante desespero de não te saber amar condignamente―ou antes (pois desceste de um céo superior) de não saber tratar, como ella merece, a hospeda divina do meu coração. Desejaria, por vezes, envolver-te toda n'uma felicidade immaterial, seraphica, calma infinitamente como deve ser a Bemaventurança―e assim deslisarmos enlaçados através do silencio e da luz, muito brandamente, n'um sonho cheio de certeza, sahindo da vida á mesma hora e indo continuar no além o mesmo sonho estatico. E outras [217] vezes desejaria arrebatar-te n'uma felicidade vehemente, tumultuosa, fulgurante, toda de chamma, de tal sorte que n'ella nos destruissemos sublimemente, e de nós só restasse uma pouca de cinza sem memoria e sem nome! Possuo uma velha gravura que é um Satanaz, ainda em toda a refulgencia da belleza archangelica, arrastando nos braços para o Abysmo uma freira, uma Santa, cujos derradeiros véos de penitencia se vão esgaçando pelas pontas das rochas negras. E na face da Santa, através do horror, brilha, irreprimida e mais forte que o horror, uma tal alegria e paixão, tão intensas―que eu as appeteceria para ti, oh minha Santa roubada! Mas de nenhum d'estes modos te sei amar, tão fraco ou inhabil é o meu coração, de modo que por o meu amor não ser perfeito, tenho de me contentar que seja eterno. Tu sorris tristemente d'esta eternidade. Ainda hontem me perguntavas:―«No calendario do seu coração, quantos dias dura a eternidade?» Mas considera que eu era um morto―e que tu me resuscitaste. O sangue novo que me circula nas veias, o espirito novo que em mim sente e comprehende, são o meu amor por ti―e se elle me fugisse, eu teria outra vez, regelado e mudo, de reentrar no meu sepulchro. Só posso deixar de te amar―quando deixar de ser. E a vida comtigo, e por ti, é tão inexprimivelmente bella! É a vida de um Deus. Melhor talvez:―e se eu fosse esse pagão que tu affirmas que sou, mas um pagão do Lacio, [218] pastor de gados, crente ainda em Jupiter e Apollo, a cada instante temeria que um d'esses Deuses invejosos te raptasse, te elevasse ao Olympo para completar a sua ventura divina. Assim não receio:―toda minha te sei e para todo o sempre, olho o mundo em torno de nós como um Paraiso para nós creado, e durmo seguro sobre o teu peito na plenitude da gloria, oh minha tres vezes bemdita, Rainha da minha graça.

Não penses que estou compondo canticos em teu louvor. É em plena simplicidade que deixo escapar o que me está borbulhando na alma... Ao contrario! Toda a Poesia de todas as idades, na sua gracilidade ou na sua magestade, seria impotente para exprimir o meu extase. Balbucio, como posso, a minha infinita oração. E n'esta desoladora insufficiencia do Verbo humano é como o mais inculto e o mais illetrado que ajoelho ante ti, e levanto as mãos, e te asseguro a unica verdade, melhor que todas as verdades―que te amo, e te amo, e te amo, e te amo!... Fradique.



XIV

a madame de jouarre
(Trad.)


Lisboa, junho.


Minha querida madrinha.―N'aquella casa de hospedes da travessa da Palha, onde vive, atrellado [219] á lavra angustiosa da Verdade, meu primo o Metaphysico, conheci, logo depois de voltar de Refaldes, um padre, o padre Salgueiro, que talvez a minha madrinha, com essa sua maliciosa paciencia de colleccionar Typos, ache interessante e psychologicamente divertido.

O meu distrahido e pallido Metaphysico affirma, encolhendo os hombros, que padre Salgueiro não se destaca por nenhuma saliencia de Corpo ou Alma entre os vagos padres da sua Diocese;―e que resume mesmo, com uma fidelidade de indice, o pensar, e o sentir, e o viver, e o parecer da classe ecclesiastica em Portugal. Com effeito, por fóra, na casca, padre Salgueiro é o costumado e corrente padre portuguez, gerado na gleba, desbravado e afinado depois pelo Seminario, pela frequentação das auctoridades e das Secretarias, por ligações de confissão e missa com fidalgas que têm capella, e sobretudo por longas residencias em Lisboa, n'estas casas de hospedes da Baixa, infestadas de litteratura e politica. O peito bem arcado, de folego fundo, como um folle de forja; as mãos ainda escuras, asperas, apesar do longo contacto com a alvura e doçura das hostias; o carão côr de couro curtido, com um sobre-tom azul nos queixos escanhoados; a corôa livida entre o cabello mais negro e grosso que pellos de clina; os dentes escaroladamente brancos―tudo n'elle pertence a essa forte plebe agricola de onde sahiu, e que ainda hoje em Portugal fornece á Egreja todo o seu pessoal, pelo [220] desejo de se alliar e de se apoiar á unica grande instituição humana que realmente comprehende e de que não desconfia. Por dentro, porém, como miolo, padre Salgueiro apresenta toda uma estructura moral deliciosamente pittoresca e nova para quem, como eu, do Clero Lusitano só entrevira exterioridades, uma batina desapparecendo pela porta d'uma sacristia, um velho lenço de rapé posto na borda d'um confessionario, uma sobrepeliz alvejando n'uma tipoia atraz d'um morto...

O que em padre Salgueiro me encantou logo, na noite em que tanto palestramos, rondando pachorrentamente o Rocio, foi a sua maneira de conceber o Sacerdocio. Para elle o Sacerdocio (que de resto ama e acata como um dos mais uteis fundamentos da sociedade) não constitue de modo algum uma funcção espiritual―mas unicamente e terminantemente uma funcção civil. Nunca, desde que foi collado á sua parochia, padre Salgueiro se considerou senão como um funccionario do Estado, um Empregado Publico, que usa um uniforme, a batina (como os guardas da alfandega usam a fardeta), e que, em logar de entrar todas as manhãs n'uma repartição do Terreiro do Paço para escrevinhar ou archivar officios, vai mesmo nos dias santificados, a uma outra repartição, onde, em vez da carteira se ergue um altar, celebrar missas e administrar sacramentos. As suas relações portanto não são, nunca foram, com o céo (do céo só lhe importa saber se está chuvoso ou claro)―mas com a Secretaria [221] da Justiça e dos Negocios Ecclesiasticos. Foi ella que o collocou na sua Parochia, não para continuar a obra do Senhor guiando docemente os homens pela estrada limpa da Salvação (missões de que não curam as secretarias do Estado), mas, como funccionario, para executar certos actos publicos que a lei determina a bem da ordem social―baptisar, confessar, casar, enterrar os parochianos.

Os sacramentos são, pois, para este excellente padre Salgueiro, meras ceremonias civis, indispensaveis para a regularisação do estado civil,―e nunca, desde que os administra, pensou na sua natureza divina, na Graça que communicam ás almas, e na força com que ligam a vida transitoria a um principio Immanente. Decerto, outr'ora no seminario, padre Salgueiro decorou em compendios ensebados a sua Theologia Dogmatica, a sua Theologia Pastoral, a sua Moral, o seu S. Thomaz, o seu Liguori―mas meramente para cumprir as disciplinas officiaes do curso, ser ordenado pelo seu bispo, depois provido n'uma parochia pelo seu ministro, como todos os outros bachareis que em Coimbra decoram as Sebentas de Direito natural e de Direito romano para «fazerem o curso», receber na cabeça a borla de doutor, e depois o aconchego de um emprego facil. Só o grau vale e importa, porque justifica o despacho. A sciencia é a formalidade penosa que lá conduz―verdadeira provação, que, depois de atravessada, não deixa ao espirito [222] desejos de regressar á sua disciplina, á sua aridez, á sua canceira. Padre Salgueiro, hoje, já esqueceu regaladamente a significação theologica e espiritual do casamento:―mas casa, e casa com pericia, com bom rigor liturgico, com boa fiscalisação civil, esmiuçando escrupulosamente as certidões, pondo na benção toda a uncção prescripta, perfeito em unir as mãos com a estola, cabal na ejaculação dos latins, porque é subsidiado pelo Estado para casar bem os cidadãos, e, funccionario zeloso, não quer cumprir com defeitos funcções que lhe são pagas sem atrazo.

A sua ignorancia é deliciosa. Além de raros actos da vida activa de Jesus, a fuga para o Egypto no burrinho, os pães multiplicados nas bodas de Caná, o azorrague cahindo sobre os vendilhões do Templo, certas expulsões de Demonios, nada sabe do Evangelho―que considera todavia muito bonito. Á doutrina de Jesus é tão alheio como á philosophia de Hegel. Da Biblia tambem só conhece episodios soltos, que aprendeu certamente em oleographias―a Arca de Noé, Samsão arrancando as portas de Gaza, Judith degollando Holophernes. O que tambem me diverte, nas noites amigas em que conversamos na travessa da Palha, é o seu desconhecimento absolutamente candido das origens, da historia da Egreja. Padre Salgueiro imagina que o Christianismo se fundou de repente, n'um dia (decerto um domingo), por milagre flagrante de Jesus Christo:―e desde essa festiva hora tudo para elle [223] se esbate n'uma treva incerta, onde vagamente reluzem nimbos de santos e tiáras de papas, até Pio IX. Não admira, porém, na obra pontifical de Pio IX, nem a Infallibilidade, nem o Syllabus:―porque se préza de liberal, deseja mais progresso, bemdiz os beneficios da instrucção, assigna o Primeiro de Janeiro.

Onde eu tambem o acho superiormente pittoresco, é cavaqueando ácerca dos deveres que lhe incumbem como pastor de almas―os deveres para com as almas. Que elle, por continuação de uma obra divina, esteja obrigado a consolar dôres, pacificar inimizades, dirigir arrependimentos, ensinar a cultura da bondade, adoçar a dureza dos egoismos, é para o benemerito padre Salgueiro a mais estranha e incoherente das novidades! Não que desconheça a belleza moral d'essa missão, que considera mesmo cheia de poesia. Mas não admitte que, formosa e honrosa como é, lhe pertença a elle padre Salgueiro! Outro tanto seria exigir de um verificador da alfandega que moralisasse e purificasse o commercio. Esse santo emprehendimento pertence aos Santos. E os Santos, na opinião de padre Salgueiro, formam uma Casta, uma Aristocracia espiritual, com obrigações sobrenaturaes que lhes são delegadas e pagas pelo Céo. Muito differentes se apresentam as obrigações de um parocho! Funccionario ecclesiastico, elle só tem a cumprir funcções rituaes em nome da Egreja, e portanto do Estado que a subsidia. Ha ahi uma criança [224] para baptisar? Padre Salgueiro toma a estola e baptisa. Ha ahi um cadaver para enterrar? Padre Salgueiro toma o hyssope e enterra. No fim do mez recebe os seus dez mil reis (além da esmola)―e o seu bispo reconhece o seu zelo.

A idéa que padre Salgueiro tem da sua missão determina, com louvavel logica, a sua conducta. Levanta-se ás dez horas, hora classicamente adoptada pelos empregados do Estado. Nunca abre o breviario―a não ser em presença dos seus superiores ecclesiasticos, e então por deferencia gerarchica, como um tenente, que, em face ao seu general, se perfila, pousa a mão na espada. Emquanto a orações, meditações, mortificações, exames d'alma, todos esses pacientes methodos de aperfeiçoamento e santificação propria, nem sequer suspeita que lhe sejam necessarios ou favoraveis. Para que? Padre Salgueiro constantemente tem presente que, sendo um funccionario, deve manter, sem transigencias, nem omissões, o decoro que tornará as suas funcções respeitadas do mundo. Veste, por isso, sempre de preto. Não fuma. Todos os dias de jejum come um peixe austero. Nunca transpoz as portas impuras de um botequim. Durante o inverno só uma noite vai a um theatro, a S. Carlos, quando se canta o Polliuto, uma opera sacra, de purissima lição. Deceparia a lingua, com furor, se d'ella lhe pingasse uma falsidade. E é casto. Não condemna e repelle a mulher com colera, como os Santos Padres:―até a venéra, se [225] ella é economica e virtuosa. Mas o regulamento da Egreja prohibe a mulher: elle é um funccionario ecclesiastico, e a mulher portanto não entra nas suas funcções. É rigidamente casto. Não conheço maior respeitabilidade do que a de padre Salgueiro.

As suas occupações, segundo observei, consistem muito logicamente, como empregado (além das horas dadas aos deveres liturgicos), em procurar melhoria de emprego. Pertence por isso a um partido politico:―e em Lisboa, tres noites por semana, toma chá em casa do seu chefe, levando rebuçados ás senhoras. Maneja habilmente eleições. Faz serviços e recados, complexos e indescriptos, a todos os directores geraes da Secretaria dos Negocios Ecclesiasticos. Com o seu bispo é incansavel:―e ainda ha mezes o encontrei, suado e afflicto, por causa de duas incumbencias de. S. exc.a uma relativa a queijadas de Cintra, outra a uma collecção do Diario do Governo.

Não fallei da sua intelligencia. É pratica e methodica―como verifiquei, assistindo a um sermão que elle prégou pela festa de S. Venancio. Por esse sermão, encommendado, recebia padre Salgueiro 20$000 reis―e deu, por esse preço, um sermão succulento, documentado, encerrando tudo o que convinha á glorificação de S. Venancio. Estabeleceu a filiação do Santo; desenrolou todos os seus milagres (que são poucos) com exactidão, exarando as datas, citando as auctoridades; narrou com rigor agiologico o seu martyrio; enumerou as [226] egrejas que lhe são consagradas, com as épocas da fundação. Enxertou destramente louvores ao Ministro dos Negocios Ecclesiasticos. Não esqueceu a Familia Real, a quem rendeu preito constitucional. Foi, em summa, um excellente relatorio sobre S. Venancio.

Felicitei n'essa noite, com fervor, o reverendo padre Salgueiro. Elle murmurou, modesto e simples:

―S. Venancio infelizmente não se presta. Não foi bispo, nunca exerceu cargo publico!... Em todo o caso, creio que cumpri.

Ouço que vai ser nomeado conego. Larguissimamente o merece. Jesus não possue melhor amanuense. E nunca realmente comprehendi por que razão outro amigo meu, um frade do Varatojo, que, pelo extasi da sua fé, a profusão da sua caridade, o seu devorador cuidado na pacificação das almas, me faz lembrar os velhos homens evangelicos, chama sempre a este sacerdote tão zeloso, tão pontual, tão proficiente, tão respeitavel―«o horrendo padre Salgueiro!»

Ora veja, minha madrinha! Mais de trinta ou quarenta mil annos são necessarios para que uma montanha se desfaça e se abata até ao tamanhinho d'um outeiro que um cabrito galga brincando. E menos de dois mil annos bastaram para que o Christianismo baixasse dos grandes padres das Sete Egrejas da Asia até ao divertido padre Salgueiro, que não é de sete Egrejas, nem mesmo [227] d'uma, mas sómente, e muito devotamente, da Secretaria dos Negocios Ecclesiasticos. Este baque provaria a fragilidade do Divino―se não fosse que realmente o Divino abrange as religiões e as montanhas, a Asia, o padre Salgueiro, os cabritinhos folgando, tudo o que se desfaz e tudo o que se refaz, e até este seu afilhado, que é todavia humanissimo.―Fradique.



XV

a bento de s.

Paris, outubro.


Meu caro Bento.―A tua idéa de fundar um jornal é damninha e execravel. Lançando, e em formato rico, com telegrammas e chronicas, uma outra «d'essas folhas impressas que apparecem todas as manhãs», como diz tão assustada e pudicamente o Arcebispo de Paris, tu vaes concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os Juizos ligeiros, se exacerbe mais a Vaidade, e se endureça mais a Intolerancia. Juizos ligeiros, Vaidade, Intolerancia―eis tres negros peccados sociaes que, moralmente, matam uma Sociedade! E tu alegremente te preparas para os atiçar. Inconsciente como uma peste, espalhas sobre as almas a morte. Já decerto o Diabo está atirando mais braza para debaixo da caldeira de pez, em [228] que, depois do Julgamento, recozerás e ganirás, meu Bento e meu reprobo!

Não penses que, moralista amargo, exagero, como qualquer S. João Chrysostomo. Considera antes como foi incontestavelmente a Imprensa, que, com a sua maneira superficial, leviana e atabalhoada de todo affirmar, de tudo julgar, mais enraigou no nosso tempo o funesto habito dos juizos ligeiros. Em todos os seculos decerto se improvisaram estouvadamente opiniões: o grego era inconsiderado e garrulo; já Moysés, no longo Deserto, soffria com o murmurar variavel dos Hebreus; mas nunca, como no nosso seculo apressado, essa improvisação impudente se tornou a operação natural do entendimento. Com excepção de alguns philosophos escravisados pelo Methodo, e d'alguns devotos roidos pelo Escrupulo, todos nós hoje nos deshabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluidas que formamos as nossas massiças conclusões. Para julgar em Politica o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, n'uma manhã de vento. Para apreciar em Litteratura o livro mais profundo, atulhado de idéas novas, que o amor de extensos annos fortemente encadeou―apenas nos basta folhear aqui e além uma pagina, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condemnar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos―«Este [229] é uma besta! Aquelle é um maroto!» Para proclamar―«É um genio!» ou «É um santo!» offerecemos uma resistencia mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz d'um céo de maio nos inclinam á benevolencia, tambem concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distrahido sobre o eleito, a corôa ou a aureola, e ahi empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bemdito dia a estampar rotulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não ha acção individual ou collectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos promptos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda. E a opinião tem sempre, e apenas, por base aquelle pequenino lado do facto, do homem, da obra, que perpassou n'um relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos um caracter: por um caracter avaliamos um povo. Um inglez, com quem outr'ora jornadeei pela Asia, varão douto, collaborador de Revistas, socio de Academias, considerava os francezes todos, desde os senadores até aos varredores, como «porcos e ladrões»... Porquê, meu Bento? Porque em casa de seu sogro houvera um escudeiro, vagamente oriundo de Dijon, que não mudava de collarinho e surripiava os charutos. Este inglez illustra magistralmente a formação escandalosa das nossas generalisações.

E quem nos tem enraizado estes habitos de [230] desoladora leviandade? O jornal―o jornal, que offerece cada manhã, desde a chronica até aos annuncios, uma massa espumante de juizos ligeiros, improvisados na vespera, á meia noite, entre o silvar do gaz e o fervilhar das chalaças, por excellentes rapazes que rompem pela redacção, agarram uma tira de papel, e, sem tirar mesmo o chapéo, decidem com dois rabiscos da penna sobre todas as coisas da Terra e do Céo. Que se trate d'uma revolução do Estado, da solidez d'um Banco, d'uma Magica, ou d'um descarrillamento, o rabisco da penna, com um traço, esparrinha e julga. Nenhum estudo, nenhum documento, nenhuma certeza. Ainda, este domingo, meu Bento, um alto jornal de Paris, commentando a situação economica, e politica de Portugal, affirmava, e com um aprumado saber, que «em Lisboa os filhos das mais illustres familias da aristocracia se empregam como carregadores da alfandega, e ao fim de cada mez mandam receber as soldadas pêlos seus lacaios!» Que dizes tu aos herdeiros das casas historicas de Portugal, carregando pipas de azeite no caes da alfandega, e conservando criados de farda para lhes ir receber o salario? Estas pipas, estes fidalgos, estes lacaios dos carregadores, formam uma deliciosa e chimerica alfandega que é menos das Mil e Uma Noites, que das Mil e Uma Asneiras. Pois assim o ensinou um jornal consideravel, rico, bem provido de Encyclopedias, de Mappas, de Estatisticas, de Telephones, de Telegraphos, [231] com uma redacção muito erudita, pinguemente remunerada, que conhece a Europa, pertence á Academia das Sciencias Moraes e Sociaes, e legisla no Senado! E tu, Bento, no teu jornal, fornecido tambem de Encyclopedias e de Telephones, vaes com penna sacudida lançar sobre a França e sobre a China, e sobre o desventuroso Universo que se torna assumpto e propriedade tua, juizos tão solidos e comprovados como os que aquella bemdita gazeta archivou definitivamente ácerca da nossa alfandega e da nossa fidalguia...

Este é o primeiro peccado, bem negro. Considera agora outro, mais negro. Pelo jornal, e pela reportagem que será a sua funcção e a sua força, tu desenvolverás, no teu tempo e na tua terra, todos os males da Vaidade! A reportagem, bem sei, é uma util abastecedora da Historia. Decerto importou saber se era adunco ou chato o nariz de Cleopatra, pois que do feitio d'esse nariz dependeram, durante algum tempo, de Philippes a Actium, os destinos do Universo. E quantos mais detalhes a esfuracadora bisbilhotice dos reporters revelar sobre o snr. Renan, e os seus moveis, e a sua roupa branca, tantos mais elementos positivos possuirá o seculo XX para reconstruir com segurança a personalidade do auctor das Origens do Christianismo, e, através d'ella, comprehender a obra. Mas, como a reportagem hoje se exerce, menos sobre os que influem nos negocios do Mundo ou [232] nas direcções do Pensamento, do que, como diz a Biblia, sobre toda a «sorte e condições de gente van», desde os jockeys até aos assassinos, a sua indiscriminada publicidade concorre pouco para a documentação da historia, e muito, prodigiosamente, escandalosamente, para a propagação das vaidades!

O jornal é com effeito o folle incansavel que assopra a vaidade humana, lhe irrita e lhe espalha a chamma. De todos os tempos é ella, a vaidade do homem! Já sobre ella gemeu o gemebundo Salomão, e por ella se perdeu Alcibiades, talvez o maior dos gregos. Incontestavelmente, porém, meu Bento, nunca a vaidade foi, como no nosso damnado seculo XIX, o motor offegante do pensamento e da conducta. N'estes estados de civilisação, ruidosos e ôcos, tudo deriva da vaidade, tudo tende á vaidade. E a fórma nova da vaidade para o civilisado consiste em ter o seu rico nome impresso no jornal, a sua rica pessoa commentada no jornal! Vir no jornal! eis hoje a impaciente aspiração e a recompensa suprema! Nos regimens aristocraticos o esforço era obter, senão já o favor, ao menos o sorriso do Principe. Nas nossas democracias a ancia da maioria dos mortaes é alcançar em sete linhas o louvor do jornal. Para se conquistarem essas sete linhas bemditas, os homens praticam todas as acções―mesmo as boas. Mesmo as boas, meu Bento! O «nosso generoso amigo Z...» só manda os cem mil reis á Creche, para que a gazeta exalte os [233] cem mil reis de Z..., nosso amigo generoso. Nem é mesmo necessario que as sete linhas contenham muito mel e muito incenso: basta que ponham o nome em evidencia, bem negro, n'essa tinta cujo brilho é mais appetecido que o velho nimbo d'ouro do tempo das Santidades. E não ha classe que não ande devorada por esta fome morbida do reclamo. Ella é tão roedora nos sêres de exterioridade e de mundanidade, como n'aquelles que só pareciam amar na vida, como a sua fórma melhor, a quietação e o silencio... Entrámos na quaresma (é entre as cinzas, e com cinzas, que te estou moralisando). Agora, n'estas semanas de peixe, surdem os frades dominicanos, do fundo dos seus claustros, a prégar nos pulpitos de Paris. E porquê esses sermões sensacionaes, d'uma arte profana e theatral, com exhibicões de psychologia amorosa, com affectações de anarchismo evangelico, e tão creadores de escandalo que Paris corre mais gulosamente a Notre-Dame em tarde de Dominicano, do que á Comedia-Franceza em noite de Coquelin? Porque os monges, filhos de S. Domingos, querem setenta linhas nos jornaes do Boulevard, e toda a celebridade dos histriões. O Jornal estende sobre o mundo as suas duas folhas, salpicadas de preto, como aquellas duas azas com que os iconographistas do seculo XV representavam a Luxuria ou a Gula: e o Mundo todo se arremessa para o jornal, se quer agachar sob as duas azas que o levem á gloriola, lhe espalhem o nome [234] pelo ar sonoro. E é por essa gloriola que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os Politicos desmancham a ordem do Estado, e os Artistas rebolam na extravagancia esthetica, e os Sabios alardeiam theorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os generos, surge a horda ululante dos charlatães... (Como me vim tornando altiloquente e roncante!...) Mas é a verdade, meu Bento! Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados! (Homenzinhos de letras, poetisas, dentistas, etc.). O proprio mal appetece sofregamente as sete linhas que o maldizem. Para apparecerem no jornal, ha assassinos que assassinam. Até o velho instincto da conservação cede ao novo instincto da notoriedade: e existe tal maganão, que ante um funeral convertido em apotheose pela abundancia das corôas, dos coches e dos prantos oratorios, lambe os beiços, pensativo, e deseja ser o morto.

N'este verão, uma manhã, muito cedo, entrei n'uma taberna de Montmartre a comprar phosphoros. Rente ao balcão de zinco, diante de dois copos de vinho branco, um meliante, que pelas ventas chatas, o bigode hirsuto e pendente, o barrete de pelle de lontra, parecia (e era) um Huno, um sobrevivente das hordas d'Alarico,―gritava triumphalmente para outro vadio imberbe e livido, a quem arremessára um jornal:

―É verdade, em todas as letras, o meu nome todo! Na segunda columna, logo em cima, onde [235] diz:―Hontem um infame e ignobil bandido... Sou eu! O nome todo!

E espalhou lentamente em redor um olhar que triumphava. Eis-ahi, como agora se diz tão alambicadamente, um «estado d'alma»! Tu, Bento, vaes crear d'estes estados.



Depois considera o derradeiro peccado, negrissimo. Tu fundas, com o teu novo jornal, uma nova escola de Intolerancia. Em torno de ti, do teu partido, dos teus amigos, ergues um muro de pedra miuda e bem cimentada: dentro d'esse murosinho, onde plantas a tua bandeirola com o costumado lemma de imparcialidade, desinteresse, etc., só haverá, segundo Bento e o seu jornal, intelligencia, dignidade, saber, energia, civismo; para além d'esse muro, segundo o jornal de Bento, só haverá necessariamente sandice, vileza, inercia, egoismo, traficancia! É a disciplina de partido (e para te agradar, entendo partido, no seu sentido mais amplo, abrangendo a Litteratura, a Philosophia, etc.) que te impõe fatalmente esta divertida separação das virtudes e dos vicios. Desde que penetras na batalha, nunca poderás admittir que a Razão ou a Justiça ou a Utilidade se encontrem do lado d'aquelles contra quem descargas pela manhã a tua metralha silvante de adjectivos e verbos―porque então a decencia, se não já a consciencia, te forçariam a saltar o muro e desertar para esses justos. Tens de sustentar que elles são maleficos, [236] desarrazoados, velhacos, e vastamente merecem o chumbo com que os trespassas. Das solas dos pés até aos teus raros cabellos, meu Bento, desde logo te atolas na Intolerancia! Toda a idéa que se eleve, para além do muro, a condemnarás como funesta, sem exame, só porque appareceu dez braças adiante, do lado dos outros, que são os Reprobos, e não do lado dos teus, que são os Eleitos. Realisam esses outros uma obra? Bento não poupará prosa nem musculo para que ella pereça: e se por entre as pedras que lhe atira, casualmente entrevê n'ella certa belleza ou certa utilidade, mais furiosamente apressa a sua demolição, porque seria mortificante para os seus amigos que alguma coisa de util ou de bello nascesse dos seus inimigos―e vivesse. Nos homens que vagam para além do teu muro, tu só verás peccadores; e quando entre elles reconhecesses S. Francisco d'Assis distribuindo aos pobres os derradeiros ceitis da Porciuncula, taparias a face para que tanta santidade te não amollecesse, e gritarias mais sanhudamente:―«Lá anda aquelle malandro a esbanjar com os vadios o dinheiro que roubou!»

Assim tu serás no teu jornal. E, em torno de ti, os que o compram e o adoptam lentamente e moralmente se fazem á tua imagem. Todo o jornal distilla intolerancia, como um alambique distilla alcool, e cada manhã a multidão se envenena aos goles com esse veneno capcioso. É pela acção do jornal que se azedam todos os velhos conflictos do [237] mundo―e que as almas, desevangelisadas, se tornam mais rebeldes á indulgencia. A sociabilidade incessantemente amacia e arredonda as divergencias humanas, como um rio arredonda e alisa todos os seixos que n'elle rolam: e a humanidade, que uma longa cultura e a velhice tem tornado docemente sociavel, tenderia a uma suprema pacificação―se cada manhã o jornal não avivasse os odios de Principios, de Classes, de Raças, e, com os seus gritos, os acirrasse como se acirram mastins até que se enfureçam e mordam. O jornal exerce hoje todas as funcções malignas do defuncto Satanaz, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o Pae da Mentira, mas o Pae da Discordia. É elle que por um lado inflamma as exigencias mais vorazes―e por outro fornece pedra e cal ás resistencias mais iniquas. Vê tu quando se alastra uma gréve, ou quando entre duas nações bruscamente se chocam interesses, ou quando, na ordem espiritual, dois credos se confrontam em hostilidade: o instincto primeiro dos homens, que o abuso da Civilisação material tem amollecido e desmarcialisado, é murmurar paz! juizo! e estenderem as mãos uns para os outros, n'aquelle gesto hereditario que funda os pactos. Mas surge logo o jornal, irritado como a Furia antiga, que os separa, e lhes sopra na alma a intransigencia, e os empurra á batalha, e enche o ar de tumulto e de pó.

O jornal matou na terra a paz. E não só atiça as questões já dormentes como borralhos de lareira, [238] até que d'ellas salte novamente uma chamma furiosa―mas inventa dissensões novas, como esse anti-semitismo nascente, que repetirá, antes que o seculo finde, as anachronicas e brutas perseguições medievaes. Depois é o jornal...

Mas escuta! Onze horas! Onze horas ligeiras estão dançando, no meu velho relogio, o minuete de Gluck. Ora esta carta já vai, como a de Tiberio, muito tremenda e verbosa, verbosa et tremenda epistola; e eu tenho pressa de a findar, para ir, ainda antes do almoço, lêr os meus jornaes, com delicia.―Teu Fradique.



XVI

a clara

(Trad.)


Paris, outubro.


Minha muito amada Clara.―Toda em queixumes, quasi rabugenta, e mentalmente tarjada de luto, me appareceu hoje a tua carta com os primeiros frios de outubro. E porquê, minha dôce descontente? Porque, mais féro de coração que um Trastamara ou um Borgia, estive cinco dias (cinco curtos dias de outomno) sem te mandar uma linha, affirmando essa verdade tão patente e de ti conhecida como o disco do sol―«que só em ti penso, [239] e só em ti vivo!...» Mas não sabes tu, oh super-amada, que a tua lembrança-me palpita na alma tão natural e perennemente como o sangue no coração? Que outro principio governa e mantem a minha vida senão o teu amor? Realmente necessitas ainda, cada manhã, um certificado, em letra bem firme, de que a minha paixão está viva e viçosa e te envia os bons dias? Para que? Para socego da tua incerteza? Meu Deus! Não será antes para regalo do teu orgulho? Sabes que és Deusa, e reclamas incessantemente o incenso e os canticos do teu devoto. Mas Santa Clara, tua padroeira, era uma grande santa, de alta linhagem, de triumphal belleza, amiga de S. Francisco de Assis, confidenta de Gregorio IX, fundadora de mosteiros, suave fonte de piedade e milagres―e todavia só é festejada uma vez, cada anno, a 27 de agosto!

Sabes bem que estou gracejando, Santa Clara da minha fé! Não! não mandei essa linha superflua, porque todos os males bruscamente se abateram sobre mim:―um defluxo burlesco, com melancolia, obtusidade e espirros; um confuso duello, de que fui o enfastiado padrinho, e em que apenas um ramo secco d'olaia soffreu, cortado por uma bala; e, emfim, um amigo que regressou da Abyssinia, cruelmente Abyssinisante, e a quem tive de escutar com resignado pasmo as caravanas, os perigos, os amores, as façanhas e os leões!... E ahi está como a minha pobre Clara, solitaria nas suas florestas, ficou sem essa folha, cheia das minhas [240] letras, e tão inutil para a segurança do seu coração como as folhas que a cercam, já murchas decerto e dançando no vento.

Porque não sei como se comportam os teus bosques;―mas aqui as folhas do meu pobre jardim amarellaram e rolam na herva humida. Para me consolar da verdura perdida, accendi o meu lume:―e toda a noite de hontem mergulhei na muito velha chronica d'um Chronista medieval da minha terra, que se chama Fernam Lopes. Ahi se conta d'um rei que recebeu o debil nome de Formoso, e que, por causa d'um grande amor, desdenhou princezas de Castella e de Aragão, dissipou thesouros, affrontou sedições, soffreu a desaffeição dos povos, perdeu a vassallagem de castellos e terras, e quasi estragou o reino! Eu já conhecia a chronica―mas só agora comprehendo o rei. E grandemente o invejo, minha linda Clara! Quando se ama como elle (ou como eu), deve ser um contentamento esplendido o ter princezas da christandade, e thesouros, e um povo, e um reino forte para sacrificar a dois olhos, finos e languidos, sorrindo pelo que esperam e mais pelo que promettem... Na verdade só se deve amar quando se é rei―porque só então se póde comprovar a altura do sentimento com a magnificencia do sacrificio. Mas um méro vassallo como eu (sem hoste ou castello), que possue elle de rico, ou de nobre, ou de bello para sacrificar? Tempo, fortuna, vida? Mesquinhos valores. É como offertar na mão aberta [241] um pouco de pó. E depois a bem amada nem sequer fica na historia.

E por historia―muito approvo, minha estudiosa Clara, que andes lendo a do divino Budha. Dizes, desconsoladamente, que elle te parece apenas um Jesus muito complicado. Mas, meu amor, é necessario desentulhar esse pobre Budha da densa alluvião de Lendas e Maravilhas que sobre elle tem acarretado, durante seculos, a imaginação da Asia. Tal como ella foi, deprendida da sua mythologia, e na sua nudez historica,―nunca alma melhor visitou a terra, e nada iguala, como virtude heroica, a Noite do Renunciamento. Jesus foi um proletario, um mendigo sem vinha ou leira, sem amor nenhum terrestre, que errava pelos campos da Galiléa, aconselhando aos homens a que abandonassem como elle os seus lares e bens, descessem á solidão e á mendicidade, para penetrarem um dia n'um Reino venturoso, abstracto, que está nos Céos. Nada sacrificava em si e instigava os outros ao sacrificio―chamando todas as grandezas ao nivel da sua humildade. O Budha, pelo contrario, era um Principe, e como elles costumam ser na Asia, de illimitado poder, de illimitada riqueza: casára por um immenso amor, e d'ahi lhe viera um filho, em quem esse amor mais se sublimára:―e este principe, este esposo, este pae, um dia, por dedicação aos homens, deixa o seu palacio, o seu reino, a esposada do seu coração, o filhinho adormecido no berço de nacar, e, sob a rude estamenha de um mendicante, vai através do mundo esmolando e prégando a renuncia aos deleites, [242] o aniquilamento de todo o desejo, o illimitado amor pelos sêres, o incessante aperfeiçoamento na caridade, o desdem forte do ascetismo que se tortura, a cultura perenne da misericordia que resgata, e a confiança na morte...

Incontestavelmente, a meu vêr (tanto quanto estas excelsas coisas se podem discernir d'uma casa de Paris, no seculo XIX e com defluxo) a vida do Budha é mais meritoria. E depois considera a differença do ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus, diz:―«Eu sou filho de Deus, e insto com cada um de vós, homens mortaes, em que pratiqueis o bem durante os poucos annos que passaes na terra, para que eu depois, em premio, vos dê a cada um, individualmente, uma existencia superior, infinita em annos e infinita em delicias, n'um palacio que está para além das nuvens e que é de meu Pae!» O Budha, esse, diz simplesmente:―«Eu sou um pobre frade mendicante, e peço-vos que sejaes bons darante a vida, porque de vós, em recompensa, nascerão outros melhores, e d'esses outros ainda mais perfeitos, e assim, pela pratica crescente da virtude em cada geração, se estabelecerá pouco a pouco na terra a virtude universal!» A justiça do justo, portanto, segundo Jesus, só aproveita egoistamente ao justo. E a justiça do justo, segundo o Budha, aproveita ao sêr que o substituir na existencia, e depois ao outro, que d'esse nascer, sempre durante a passagem na terra, para lucro eterno da terra. Jesus cria uma aristocracia de santos, que arrebata para o céo onde elle é Rei, e que constituem a côrte do céo para deleite [243] da sua divindade;―e não vem d'ella proveito directo para o Mundo, que continua a soffrer da sua porção de Mal, sempre indiminuida. O Budha, esse, cria, pela somma das virtudes individuaes, santamente accumuladas, uma humanidade que em cada cyclo nasce progressivamente melhor, que por fim se torna perfeita, e que se estende a toda a terra d'onde o Mal desapparece, e onde o Budha é sempre, á beira do caminho rude, o mesmo frade mendicante. Eu, minha flor, sou pelo Budha. Em todo o caso, esses dois Mestres possuiram, para bem dos homens, a maior porção de Divindade que até hoje tem sido dado á alma humana conter. De resto, tudo isto é muito complicado; e tu sabiamente procederias em deixar o Budha no seu Budhismo, e, uma vez que esses teus bosques são tão admiraveis, em te retemperar na sua força e nos seus aromas salutares. O Budha pertence á cidade e ao collegio de França: no campo a verdadeira Sciencia deve cahir das arvores, como nos tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina mais que todas as folhas dos livros. Sobretudo do que eu―que aqui estou pontificando, e fazendo pedantescamente, ante os teus lindos olhos, tão finos e meigos, um curso escandaloso de Religiões Comparadas.

Só me restam tres pollegadas de papel,―e ainda te não contei, oh doce exilada, as novas de Paris, acta Urbis. (Bom, agora latim!) São raras, e pallidas. Chove: continuamos em Republica; Madame de Jouarre, que chegou da Rocha com menos cabellos brancos, mas mais cruel, convidou alguns desventurados (dos [244] quaes eu o maior) para escutarem tres capitulos d'um novo attentado do barão de Fernay sobre a Grecia; os jornaes publicam outro prefacio do snr. Renan, todo cheio do snr. Renan, e em que elle se mostra, como sempre, o enternecido e erudito vigario de Nossa Senhora da Razão; e temos, emfim, um casamento de paixão e luxo, o do nosso esculptural visconde de Fonblant com mademoiselle Degrave, aquella nariguda, magrinha e de maus dentes, que herdou, milagrosamente, os dois milhões do cervejeiro, e que tem tão lindamente engordado e ri com dentes tão lindos. Eis tudo, minha adorada... E é tempo que te mande, em montão, n'esta linha, as saudades, os desejos e as coisas ardentes e suaves e sem nome de que meu coração está cheio, sem que se esgote por mais que plenamente as arremesse aos teus pés adoraveis, que beijo com submissão e com fé.―Fradique.


Notas:

[1] Estas cartas constituem verdadeiros Ensaios Historicos, que, pelas suas proporções, não poderiam entrar n'esta collecção. Reunidas as notas e fragmentos dispersos, devem formar um volume a que o seu compilador dará, penso eu, o titulo de Versos e Prosas de Fradique Mendes.

[2] Muitas das cartas de Fradique Mendes, aqui publicadas, são naturalmente escriptas em francez. Todas essas vão acompanhadas da indicação abreviada trad. (traduzida).

[3] O velho creado de quarto de Fradique Mendes.





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José Maria Eça de Queirós

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     of receipt of the work.

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electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
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of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
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LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

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written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
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opportunities to fix the problem.

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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
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provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

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providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.net

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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