A CORRESPONDENCIA
DE
Fradique Mendes
Obras do mesmo auctor:
Revista de Portugal. 4 grossos
volumes |
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12$000 |
As Minas de Salomão. 1
volume |
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600 |
Os Maias. 2 grossos
volumes |
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2$000 |
O Crime do
Padre Amaro. Terceira
edição inteiramente refundida, recomposta e
differente na fórma e na
acção da
edição primitiva. 1 grosso
volume |
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1$200 |
O Primo Bazilio. Terceira
edição. 1 grosso
volume |
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1$000 |
A Reliquia. 1 grosso
volume |
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1$000 |
O Mandarim. Quarta
edição. 1
volume |
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500 |
A Illustre Casa de Ramires. 1
volume |
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1$000 |
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No prelo: |
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A Cidade e as Serras. |
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Eça de Queiroz
A CORRESPONDENCIA
DE
FRADIQUE MENDES
(MEMORIAS E NOTAS)
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1900
Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao
cidadão Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro,
que para a garantia que lhe offerece a lei n.º 496 de 1
d'Agosto de
1898, fez o competente deposito na Bibliotheca nacional, segundo a
determinação do art. 13.º da mesma Lei.
Porto―Imprensa
Moderna
A CORRESPONDENCIA DE FRADIQUE MENDES
FRADIQUE MENDES
(MEMORIAS E NOTAS)
I
A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em
Paris, pela Paschoa,―justamente na semana em que elle
regressára da sua viagem á Africa Austral. O meu
conhecimento porém
com esse homem admiravel datava de Lisboa, do anno remoto de 1867. Foi
no verão d'esse anno, uma tarde, no café
Martinho, que encontrei, n'um numero já amarrotado da
Revolução de
Setembro, este nome de C. Fradique Mendes, em letras
enormes, por baixo de versos que me maravilharam.
Os themas («os motivos emocionaes», como
nós diziamos em 1867) d'essas cinco ou seis
poesias, reunidas em folhetim sob o titulo de
Lapidarias, tinham
logo para mim uma originalidade captivante e bemvinda. Era o tempo em
que eu e os
[2]
meus
camaradas de Cenaculo, deslumbrados pelo Lyrismo Epico da
Légende
des
Siècles, «o livro que um grande vento
nos trouxera de Guernesey»―decidiramos abominar e combater a
rijos brados o Lyrismo Intimo, que, enclausurado nas duas pollegadas do
coração, não comprehendendo d'entre
todos os rumores do Universo senão o rumor das saias
d'Elvira, tornava a Poesia, sobretudo em Portugal, uma monotona e
interminavel confidencia de glorias e martyrios de amor. Ora Fradique
Mendes pertencia evidentemente aos poetas novos que, seguindo o Mestre
sem-igual da
Légende des Siècles, iam,
n'uma universal
sympathia buscar motivos emocionaes fóra das limitadas
palpitações do
coração―á Historia, á
Lenda, aos Costumes, ás Religiões, a tudo que
através das idades, diversamente e unamente, revela e define
o Homem. Mas além d'isso Fradique Mendes trabalhava um outro
filão poetico que me seduzia―o da Modernidade, a
notação fina e sobria das graças e dos
horrores da Vida, da Vida ambiente e costumada, tal como a podemos
testemunhar ou presentir nas ruas que todos trilhamos nas moradas
visinhas das nossas, nos humildes destinos deslizando em torno de
nós por penumbras humildes.
Esses poemetos das
Lapidarias
desenrolavam com effeito themas magnificamente novos. Ahi um Santo
allegorico, um Solitario do seculo VI, morria uma tarde sobre as neves
da Silesia, assaltado e
[3]
domado por
uma tão inesperada e bestial rebellião
da Carne, que, á beira da Bemaventurança,
subitamente a perdia, e com ella o fructo divino e custoso de cincoenta
annos de penitencia e d'ermo: um corvo, facundo e velho além
de toda a velhice, contava façanhas do tempo em que seguira
pelas Gallias, n'um bando alegre, as legiões de Cesar,
depois as hordas de Alarico rolando para a Italia, branca e toda de
marmores sob o azul: o bom cavalleiro Percival, espelho e
flôr d'Idealistas, deixava por cidades e campos o sulco
silencioso da sua armadura d'ouro, correndo o mundo, desde longas
éras, á busca do San-Gral, o mystico vaso cheio
de sangue de Christo, que, n'uma manhã de Natal, elle vira
passar e lampejar entre nuvens por sobre as torres de Camerlon: um
Satanaz de feitio germanico, lido em Spinosa e Leibnitz, dava n'uma
viella de cidade medieval uma serenada ironica aos astros,
«gottas de luz no frio ar geladas»... E, entre
estes motivos de esplendido symbolismo, lá vinha o quadro de
singela modernidade, as
Velhinhas, cinco velhinhas, com chales de ramagens
pelos hombros, um lenço ou um cabaz na mão,
sentadas sobre um banco de pedra, n'um longo silencio de saudade, a uma
restea de sol d'outono.
Não asseguro todavia a nitidez d'estas bellas
reminiscencias. Desde essa sésta de agosto, no Martinho,
não encontrei mais as
Lapidarias: e, de
resto, o que n'ellas então me prendeu, não foi
a Idéa, mas a Fórma―uma fórma soberba
de plasticidade
[4]
e
de vida, que ao mesmo tempo me lembrava o verso marmoreo de Lecomte de
Lisle com um sangue mais quente nas veias do marmore, e a nervosidade
intensa de Baudelaire vibrando com mais norma e cadencia. Ora
precisamente, n'esse anno de 1867, eu, J. Teixeira de Azevedo e outros
camaradas tinhamos descoberto no céo da Poesia Franceza
(unico para que nossos olhos se erguiam) toda uma pleiade d'estrellas
novas onde sobresahiam, pela sua refulgencia superior e especial, esses
dois sóes―Baudelaire e Lecomte de Lisle. Victor Hugo, a
quem chamavamos já «papá
Hugo» ou «Senhor Hugo-Todo-Poderoso»,
não era
para nós um astro―mas o Deus mesmo, inicial e immanente, de
quem os astros recebiam a luz, o movimento e o rythmo. Aos seus
pés Lecomte de Lisle e Baudelaire faziam duas
constellações de
adoravel brilho: e o seu encontro fôra para nós um
deslumbramento e um amor! A mocidade d'hoje, positiva e estreita, que
pratíca a Politica, estuda as cotações
da
Bolsa e lê George Ohnet,
mal póde comprehender os santos enthusiasmos com que
nós recebiamos a iniciação d'essa Arte
Nova, que em
França, nos começos do Segundo Imperio, surgira
das ruinas do Romantismo como sua derradeira
encarnação, e que nos era trazida em Poesia pelos
versos de Lecomte de Lisle, de Baudelaire, de Coppée, de
Dierx, de Mallarmé, e d'outros menores: e menos talvez
póde comprehender taes fervores essa parte da mocidade culta
que logo desde as escolas
[5]
se nutre de Spencer e de Taine, e
que procura com ancia e agudeza exercer a critica, onde nós
outr'ora, mais ingenuos e ardentes, nos abandonavamos á
emoção. Eu mesmo sorrio hoje ao
pensar n'essas noites em que, no quarto de J. Teixeira d'Azevedo,
enchia de sobresalto e duvida dois conegos que ao lado moravam,
rompendo por horas mortas a clamar a
Charogne de
Baudelaire, tremulo e pallido de paixão:
Et pourtant vous serez semblable
à cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil
de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
Do outro lado do tabique sentiamos ranger as camas dos ecclesiasticos,
o raspar espavorido de phosphoros. E eu, mais pallido, n'um extase
tremente:
Alors, oh ma beauté, dites
à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai
gardé la forme et l'essence divine
De mes amours
décomposés!
Certamente Baudelaire não valia este tremor e esta pallidez.
Todo o culto sincero, porém, tem uma belleza essencial,
independente dos merecimentos do Deus para quem se evola. Duas
mãos postas com legitima fé serão
sempre
tocantes―mesmo quando se ergam para um Santo tão affectado
e postiço como S. Simeão Stylita. E o nosso
[6]
transporte era
candido, genuinamente nascido do Ideal satisfeito, só
comparavel áquelle que
outr'ora invadia os navegadores peninsulares ao pisarem as terras nunca
d'antes pisadas, Eldorados maravilhosos, ferteis em delicias e
thesouros, onde os seixos das praias lhes pareciam logo diamantes a
reluzir.
Li algures que Juan Ponce de Leon, enfastiado das cinzentas planicies
de Castella-a-Velha, não encontrando
tambem já encanto nos pomares verde-negros da Andaluzia―se
fizera ao mar, para buscar outras terras, e
mirar algo nuevo.
Tres annos sulcou incertamente a melancolia das aguas atlanticas: mezes
tristes errou perdido nos nevoeiros das Bermudas: toda a
esperança findára,
já as prôas gastas se voltavam para os lados onde
ficára a Hespanha. E eis que n'uma manhã de
grande sol, em dia de S. João, surgem ante a armada extatica
os esplendores da Florida! «
Gracias te sean,
mi S. Juan bendito, que he mirado algo nuevo!»
As lagrimas corriam-lhe pelas barbas brancas―e Juan Ponce de Leon
morreu de emoção. Nós
não morremos: mas lagrimas congeneres com as do velho
mareante saltaram-me dos olhos, quando pela primeira vez penetrei por
entre o brilho sombrio e os perfumes acres das
Flôres
do
Mal. Eramos assim absurdos em 1867!
De resto, exactamente como Ponce de Leon, eu só procurava em
Litteratura e Poesia
algo nuevo que mirar. E para um meridional de
vinte annos,
[7]
amando
sobretudo a Côr e o Som na plenitude da sua riqueza, que
poderia ser esse
algo
nuevo senão o luxo novo das fórmas
novas? A Fórma, a belleza inedita e rara da
Fórma, eis realmente, n'esses tempos de delicado
sensualismo, todo o meu interesse e todo o meu cuidado! Decerto eu
adorava a Idéa na sua essencia;―mas quanto mais o Verbo que
a encarnava! Baudelaire, mostrando á sua amante na
Charogne
a carcassa
pôdre do cão e equiparando em ambas as miserias da
carne, era para mim de magnifica surpreza e enlevo: e diante d'esta
crespa e atormentada subtilisação do sentir, que
podia valer o facil e velho Lamartine no
Lago, mostrando a Elvira a cansada lua, e
comparando em ambas a pallidez e a graça meiga? Mas se este
aspero e funebre espiritualismo de Baudelaire me chegasse expresso na
lingua lassa e molle de Casimir Delavigne―eu não lhe teria
dado mais apreço do que a versos vis do
Almanach
de
Lembranças.
Foi sensualmente enterrado n'esta idolatria da Fórma, que
deparei com essas
Lapidarias de
Fradique Mendes, onde julguei vêr reunidas e fundidas as
qualidades discordantes de magestade e de nervosidade que constituiam,
ou me pareciam constituir, a grandeza dos meus dois idolos―o auctor
das
Flôres do Mal e o
auctor dos
Poemas Barbaros. A isto accrescia,
para me fascinar, que este poeta era portuguez, cinzelava assim
preciosamente a lingua que até ahi tivera como joias
acclamadas o
Noivado do Sepulchro e o
Avè Cesar!, habitava
[8]
Lisboa, pertencia aos
Novos, possuia decerto na alma, talvez no viver, tanta originalidade
poetica como nos seus poemas! E esse folhetim amarrotado da
Revolução
de
Setembro tomava assim a importancia d'uma
revelação d'Arte, uma aurora de Poesia, nascendo
para banhar as almas moças na luz e no calor especial a que
ellas aspiravam, meio adormecidas, quasi regeladas sob o algido luar do
Romantismo. Graças te sejam dadas, meu Fradique bemdito, que
na minha velha lingua
hé
mirado algo nuevo! Creio que murmurei isto, banhado em
gratidão. E, com o numero da
Revolução de Setembro, corri
a casa de J. Teixeira de Azevedo, á travessa do
Guarda-Mór, a annunciar o advento esplendido!
Encontrei-o, como de costume, nos silenciosos vagares das tardes de
verão, em mangas de camisa, diante de uma bacia que
trasbordava de morangos e de vinho de Torres. Com vozes clamorosas,
atirando gestos até ao tecto, declamei-lhe a
Morte
do Santo. Se bem recordo,
este asceta, ao findar sobre as neves da Silesia, era miserrimamente
trahido pela desleal Natureza! Todos os appetites da paixão
e do corpo, tão
laboriosamente recalcados por elle durante meio seculo d'ermo,
irrompiam de repente, á beira da eternidade, n'um tumulto
bestial, não querendo para sempre findar com a carne que ia
findar―antes de serem uma vez satisfeitos! E os anjos que, para o
receber, desciam d'aza serena, sobraçando mólhos
de Palmas
[9]
e
cantando os Epithalamios, encontravam, em vez d'um Santo, um Satyro,
senil e grotesco―que de rojos, entre bramidos sordidos, mordia com
beijos vorazes a neve, a macia alvura da neve, onde o seu delirio
furiosamente imaginava nudezes de cortezãs!... Tudo isto era
tratado com uma grandeza sobria e rude que me parecia sublime. J.
Teixeira d'Azevedo achou tambem «sublime―mas
bréjeiro». E concordou que convinha desentulhar
Fradique Mendes da obscuridade, e erguel-o no alto do escudo como o
radiante mestre dos Novos.
Fui logo n'essa noite á
Revolução de
Setembro, procurar um companheiro meu de Coimbra, Marcos
Vidigal, que, nos nossos alegres tempos de Direito Romano e Canonico,
ganhára, por tocar concertina, lêr a
Historia
da Musica
de Scudo, e lançar através da Academia os nomes
de Mozart e de Beethoven, uma soberba auctoridade sobre Musica
classica. Agora, vadiando em Lisboa, escrevia na
Revolução, aos domingos, uma
«Chronica lyrica»―para gozar gratuitamente o
bilhete de S. Carlos.
Era um moço com cabellos ralos e côr de manteiga,
sardento, apagado de idéas e de modos―mas que despertava e
se illuminava todo quando lograva «a
chance
(como
elle dizia) de roçar por um homem celebre, ou de arranchar
n'uma coisa original»; e isto tornára-o a elle,
pouco a pouco, quasi original e quasi celebre. N'essa noite, que era
sabbado e de pesado calor, lá estava á banca, com
uma quinzena d'alpaca, suando, bufando, a espremer
[10]
do seu pobre craneo, como d'um
limão meio sêcco, gottas d'uma Chronica sobre a
Volpini. Apenas eu alludi a Fradique Mendes, áquelles versos
que me tinham maravilhado―Vidigal arrojou a penna, já
risonho, com um clarão alvoroçado
na face molle:
―Fradique? Se conheço o grande Fradique? É meu
parente! É meu patricio! É meu parceiro!
―Ainda bem, Vidigal, ainda bem!
Fomos ao Passeio Publico (onde Marcos se ia encontrar com um agiota).
Tomámos sorvetes debaixo das acacias: e pelo chronista da
Revolução conheci a origem,
a mocidade, os feitos do poeta das
Lapidarias.
Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha e rica familia dos
Açores; e descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes,
filho segundo da casa da Troba, e donatario d'uma das primeiras
capitanias creadas nas Ilhas por começos do seculo XVI. Seu
pai, homem magnificamente bello, mas de gostos rudes, morrera (quando
Carlos ainda gatinhava) d'um desastre, na caça. Seis annos
depois sua mãi, senhora tão airosa, pensativa e
loura
que merecera d'um poeta da Terceira o nome de
Virgem d'Ossian,
morria tambem d'uma febre trazida dos campos, onde andára
bucolicamente, n'um dia de sol forte, cantando e ceifando feno. Carlos
ficou em companhia e sob a tutela de sua avó materna, D.
Angelina Fradique, velha estouvada, erudita e
[11]
exotica que colleccionava aves
empalhadas, traduzia Klopstock, e perpetuamente soffria dos
«dardos d'Amor». A sua primeira
educação
fôra singularmente emmaranhada: o capellão de D.
Angelina, antigo frade benedictino, ensinou-lhe o latim, a doutrina, o
horror á maçonaria, e outros principios
solidos; depois um coronel francez, duro jacobino que se batera em 1830
na barricada de S
t-Merry, veio abalar estes
alicerces espirituaes
fazendo traduzir ao rapaz a
Pucelle de Voltaire e
a
Declaração dos direitos do homem;
e finalmente um allemão, que
ajudava D. Angelina a enfardelar Klopstock na vernaculidade de Filinto
Elysio, e se dizia parente de Emmanuel Kant, completou a
confusão iniciando Carlos, ainda antes de lhe nascer o
buço, na
Critica da Razão pura e na heterodoxia
metaphysica dos professores de Tubinguen. Felizmente Carlos
já então gastava longos dias a cavallo pelos
campos, com a sua matilha de galgos:―e da anemia que lhe teriam
causado as abstracções do raciocinio, salvou-o o
sôpro fresco dos montados e a natural pureza dos regatos em
que bebia.
A avó, tendo imparcialmente approvado estas embrulhadas
linhas d'educacão, decidiu de repente, quando Carlos
completou dezeseis annos, mandal-o para Coimbra que ella considerava um
nobre centro d'estudos classicos e o derradeiro refugio das
Humanidades. Corria porém na Ilha que a traductora de
Klopstock, apesar dos sessenta annos que lhe revestiam a face d'um
pêllo mais denso que a hera
[12]
d'uma ruina, decidira afastar o
neto―para casar com o bolieiro.
Durante tres annos Carlos tocou guitarra pelo
Penedo da
Saudade, encharcou-se de
carrascão na tasca das Camêlas, publicou na
Idéa sonetos asceticos, e amou
desesperadamente a filha d'um ferrador de Lorvão. Acabava de
ser reprovado em Geometria quando a avó morreu subitamente,
na sua quinta das
Tornas, n'um
caramanchão de rosas, onde se esquecera toda uma
sésta de junho, tomando café, e escutando a viola
que o cocheiro repicava com os dedos carregados d'anneis.
Restava a Carlos um tio, Thadeu Mendes, homem de luxo e de boa mesa,
que vivia em Paris preparando a salvação da
Sociedade com Persigny, com Morny, e com o principe Luiz
Napoleão de quem era devoto e crédor. E Carlos
foi para Paris estudar Direito nas cervejarias que cercam a Sorbonne,
á espera da maioridade que lhe devia trazer as
heranças accumuladas do pai e da avó―calculadas
por Vidigal n'um farto milhão de cruzados. Vidigal, filho
d'uma sobrinha de D. Angelina, nascido na Terceira, possuia por legado,
conjuntamente com Carlos, uma quinta chamada o
Corvovello.
D'ahi lhe vinha ser «parente, patricio e parceiro»
do homem das
Lapidarias
.
Depois d'isto Vidigal sabia apenas que Fradique, livre e rico, sahira
do
Quartier-Latin a começar uma existencia
soberba e fogosa. Com um impeto de ave solta, viajára logo
por todo o mundo, a
[13]todos os sopros do
vento, desde Chicago até Jerusalem, desde
a Islandia até ao Sahará. N'estas jornadas,
sempre emprehendidas por uma solicitação da
intelligencia ou por ancia d'emoções,
achára-se
envolvido em feitos historicos e tratára altas
personalidades do seculo. Vestido com a camisa escarlate,
acompanhára Garibaldi na conquista das Duas-Sicilias.
Encorporado no Estado-Maior do velho Napier, que lhe chamava
the
Portuguese Lion
(o Leão Portuguez), fizera toda a campanha da Abyssinia.
Recebia cartas de Mazzini. Havia apenas mezes que visitára
Hugo no seu rochedo de Guernesey...
Aqui recuei, com os olhos esbugalhados! Victor Hugo (todos ainda se
lembram), desterrado então em Guernesey, tinha para
nós, idealistas e democratas de 1867, as
proporções sublimes e lendarias d'um S.
João em Pathmos. E recuei protestando, com os olhos
esbugalhados, tanto se me afigurava fóra das possibilidades
que um portuguez, um Mendes tivesse apertado nas suas a mão
augusta que escrevera a
Lenda dos Seculos!
Correspondencia com Mazzini, camaradagem com Garibaldi, vá!
Mas na ilha sagrada, ao rumor das ondas da Mancha, passear, conversar,
scismar com o vidente dos
Miseraveis―parecia-me a impudente
exaggeração d'um ilhéo que me queria
intrujar...
―Juro! gritou Vidigal, levantando a mão veridica
ás acacias que nos cobriam.
E immediatamente, para demonstrar a verosimilhança d'aquella
gloria, já altissima para Fradique,
[14]
contou-me outra, bem superior,
e que cercava o estranho homem d'uma aureola mais refulgente.
Não se tratava já de ser estimado por um homem
excelso―mas, coisa preciosa entre todas, de ser amado por uma excelsa
mulher. Pois bem! Durante dois annos, em Paris, Fradique fôra
o eleito de Anna de Léon, a gloriosa Anna de
Léon, a mais culta e bella cortezã (Vidigal dizia
«o melhor
bocado») do Segundo Imperio, de que ella, pela
graça especial da sua voluptuosidade intelligente, como
Aspasia no seculo de Pericles, fôra a expressão e
a flôr!
Muitas vezes eu lêra no
Figaro os louvores de Anna de Léon, e
sabia que poetas a tinham celebrado sob o nome de
Venus
Victoriosa. Os
amores com a cortezã não me impressionaram
decerto tanto como a intimidade com o homem das
Contemplações: mas a minha
incredulidade cessou―e Fradique assumiu para mim a estatura d'um
d'esses sêres que, pela seducção ou
pelo genio, como Alcibiades ou como Goethe, dominam uma
civilisação, e d'ella colhem deliciosamente tudo
o que ella póde dar em gostos e em triumphos.
Foi por isso talvez que córei, intimidado, quando Vidigal,
reclamando outro sorvete de leite, se offereceu para me levar ao
surprehendente Fradique. Sem me decidir, pensando em Novalis que tambem
assim hesitava, enleado, ao subir uma manhã em Berlim as
escadas d'Hegel―perguntei a Vidigal se o poeta das
Lapidarias residia em
Lisboa...
[15]
Não! Fradique viera de Inglaterra visitar Cintra, que
adorava, e onde comprára a quinta da
Saragoça,
no caminho dos
Capuchos, para ter de verão em Portugal um repouso fidalgo.
Estivera lá
desde o dia de Santo Antonio:―e agora parára em Lisboa, no
Hotel Central, antes de recolher a Paris, seu centro e seu lar. De
resto, accrescentou Marcos, não havia como Fradique ninguem
tão simples, tão alegre, tão facil. E,
se eu desejava conhecer
um homem genial, que esperasse ao outro dia, domingo, ás
duas, depois da missa do Loreto, á porta da Casa Havaneza.
―Valeu? Ás duas, religiosamente, depois da missa!
Bateu-me o coração. Por fim, com um
esforço, como Novalis no patamar d'Hegel, afiancei, pagando
os sorvetes, que ao outro dia, ás duas, religiosamente, mas
sem missa, estaria no portal da Havaneza!
II
Gastei a noite preparando phrases, cheias de profundidade e belleza,
para lançar a Fradique Mendes! Tendiam todas á
glorificação das
Lapidarias. E
lembro-me de ter, com amoroso cuidado, burilado
[16]
e repolido
esta:―«A fórma de v. exc.
a
é um marmore divino com estremecimentos humanos!»
De manhã apurei requintadamente a minha
toilette como se, em vez de Fradique, fosse
encontrar Anna de Léon―com quem já n'essa
madrugada, n'um sonho repassado de erudição e
sensibilidade,
eu passeára na Via Sagrada que vai de Athenas a Eleusis,
conversando, por entre os lyrios que desfolhavamos, sobre o ensino de
Platão e a
versificação das
Lapidarias.
E
ás
duas horas, dentro de uma tipoia, para que o macadam regado me
não maculasse o verniz dos sapatos, parava na Havaneza,
pallido, perfumado, commovido, com uma tremenda rosa de chá
na lapella. Eramos assim em 1867!
Marcos Vidigal já me esperava, impaciente, roendo o charuto.
Saltou para a tipoia; e batemos através do Loreto, que
escaldava ao sol do agosto.
Na rua do Alecrim (para combater a pueril emoção
que me enleava) perguntei ao meu companheiro quando publicaria Fradique
as
Lapidarias. Por entre
o barulho das rodas Vidigal gritou:
―Nunca!
E contou que a publicação d'aquelles trechos na
Revolução
de
Setembro quasi occasionára, entre Fradique e
elle, «uma pega intellectual». Um dia, depois de
almoço, em Cintra, emquanto Fradique fumava o seu
chibouk
persa, Vidigal, na sua
familiaridade, como patricio e como parente, abrira sobre
[17]
a mesa uma pasta de velludo
negro. Descobrira, surprehendido, largas folhas de versos, n'uma tinta
já amarellada. Eram as
Lapidarias.
Lêra a
primeira, a
Serenada de Satan aos astros. E,
maravilhado, pedira a Fradique para publicar na
Revolução algumas d'essas
estrophes divinas. O primo sorrira, consentira―com a rigida
condição de serem firmadas por um pseudonymo.
Qual?... Fradique abandonava a escolha á phantasia de
Vidigal. Na redacção, porém, ao
revêr as
provas, só lhe acudiram pseudonymos decrepitos e safados, o
Independente, o
Amigo da Verdade,
o
Observador―nenhum bastante novo para dignamente
firmar poesia tão nova. Disse
comsigo:―«Acabou-se! Sublimidade não é
vergonha. Ponho-lhe o nome!» Mas quando Fradique viu a
Revolução
de Setembro ficou livido, e chamou regeladamente a Vidigal
«indiscreto, burguez e philisteu»!―E aqui Vidigal
parou para me pedir a significação de
philisteu. Eu não sabia; mas archivei
gulosamente o termo, como amargo. Recordo até que logo
n'essa tarde, no Martinho, tratei de
philisteu o
auctor
consideravel do
Avè César!
―De modo que, rematou Vidigal, é melhor não lhe
fallares nas
Lapidarias!
Sim! pensava eu. Talvez Fradique, á maneira do chanceller
Bacon e d'outros homens grandes pela acção,
deseje esconder d'este mundo de
materialidade e de força o seu fino genio poetico! Ou talvez
essa ira, ao vêr o seu nome impresso debaixo
[18]
de versos com que se orgulharia
Lecomte de Lisle, seja a do artista nobremente e perpetuamente
insatisfeito que não aceita ante os homens como sua a obra
onde sente imperfeições! Estes modos de ser,
tão superiores e novos, cahiam na minha
admiração como oleo n'uma fogueira. Ao pararmos
no Central tremia d'acanhamento.
Senti um allivio quando o porteiro annunciou que o snr. Fradique
Mendes, n'essa manhã, cedo, tomára uma caleche
para Belem. Vidigal empallideceu, de desespero:
―Uma caleche! Para Belem!... Ha alguma coisa em Belem?
Murmurei, n'uma idéa d'Arte, que havia os Jeronymos. N'esse
instante uma tipoia, lançada a trote, estacou na rua, com as
pilecas fumegando. Um homem desceu, ligeiro e forte. Era Fradique
Mendes.
Vidigal, alvoroçado, apresentou-me como um «poeta
seu amigo». Elle adiantou a mão
sorrindo―mão delicada e branca onde vermelhejava um rubi.
Depois, acariciando o hombro do primo Marcos, abriu uma carta que lhe
estendia o porteiro.
Pude então, á vontade, contemplar o cinzelador
das
Lapidarias, o
familiar de
Mazzini, o conquistador das Duas-Sicilias, o bem-adorado de Anna de
Léon! O que me seduziu logo foi a sua esplendida solidez, a
sã e viril proporção dos
membros rijos, o aspecto calmo de poderosa estabilidade com que parecia
assentar na vida, tão livremente e
tão firmemente como sobre aquelle chão de
ladrilhos
[19]
onde pousavam
os seus largos sapatos de verniz resplandecendo sob polainas de linho.
A face era do feitio aquilino e grave que se chama
cesareano, mas sem as linhas empastadas e a
espessura flaccida que a tradição das
Escólas
invariavelmente attribue aos Cesares, na tela ou no gesso, para os
revestir de magestade; antes pura e fina como a d'um Lucrecio
moço, em plena gloria, todo nos sonhos da Virtude e da Arte.
Na pelle, d'uma brancura lactea e fresca, a barba, por ser pouca
decerto, não deixava depois de escanhoada nem aspereza nem
sombra; apenas um buço crespo e leve lhe orlava os
labios que, pela vermelhidão humida e pela sinuosidade
subtil, pareciam igual e superiormente talhados para a Ironia e para o
Amor. E toda a sua finura, misturada de energia, estava nos
olhos―olhos pequenos e negros, brilhantes como contas de onyx, d'uma
penetração aguda, talvez
insistente de mais, que perfurava, se enterrava sem esforço,
como uma verruma d'aço em madeira molle.
Trazia uma quinzena solta, d'uma fazenda preta e macia, igual
á das calças que cahiam sem um vinco: o collete
de linho branco fechava por botões de coral pallido: e o
laço da gravata de setim negro, dando relevo á
alvura espelhada dos collarinhos quebrados, offerecia a
perfeição concisa que já me
encantára no seu verso.
Não sei se as mulheres o considerariam
bello. Eu achei-o um varão
magnifico―dominando sobretudo por uma graça clara que sahia
de toda a
[20]
sua força mascula. Era o seu viço que
deslumbrava. A vida de tão varias e trabalhosas actividades
não lhe cavára uma prega de fadiga. Parecia ter
emergido, havia momentos, assim de quinzena preta e barbeado, do fundo
vivo da Natureza. E apesar de Vidigal me ter contado que Fradique
festejára os «trinta e tres» em Cintra,
pela festa de S. Pedro, eu sentia n'aquelle corpo a robustez tenra e
agil de um ephebo, na infancia do mundo grego. Só quando
sorria ou quando olhava se surprehendiam immediatamente n'elle vinte
seculos de litteratura.
Depois de lêr a carta, Fradique Mendes abriu os
braços, n'um gesto desolado e risonho, implorando a
misericordia de Vidigal. Tratava-se, como sempre, da Alfandega, fonte
perenne das suas amarguras! Agora tinha lá encalhado um
caixote, contendo uma mumia egypcia...
―Uma mumia...?
Sim, perfeitamente, uma mumia historica, o corpo veridico e veneravel
de Pentaour, escriba ritual do Templo de Amnon em Thebas, e chronista
de Ramèzes II. Mandára-o vir de Paris para dar a
uma senhora da Legação d'Inglaterra, Lady Ross,
sua amiga d'Athenas, que em plena frescura e plena ventura,
colleccionava antiguidades funerarias do Egypto e da Assyria... Mas,
apesar d'esforços sagazes, não conseguia arrancar
o defunto letrado aos armazens da Alfandega―que elle enchera de
confusão e de horror. Logo na primeira
[21]
tarde, quando Pentaour
desembarcára, enfaixado dentro do seu caixão, a
Alfandega aterrada avisou a policia. Depois, calmadas as
desconfianças d'um crime, surgira uma insuperavel
difficuldade:―que artigo da pauta se poderia applicar ao cadaver d'um
hierogrammata do tempo de Ramèzes? Elle Fradique suggerira o
artigo que taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que
é um arenque defumado senão a mumia, sem
ligaduras e sem inscripções, d'um arenque que
viveu? Ter
sido peixe ou escriba nada importava para os effeitos fiscaes. O que a
Alfandega via diante de si era o corpo d'uma creatura, outr'ora
palpitante, hoje seccada ao fumeiro. Se ella em vida nadava n'um
cardume nas ondas do mar do Norte, ou se, nas margens do Nilo, ha
quatro mil annos, arrolava as rezes de Amnon e commentava os
capitulos
de fim de dia―não era certamente da conta dos
Poderes Publicos. Isto parecia-lhe logico. Todavia as auctoridades da
Alfandega continuavam a hesitar, coçando o queixo, diante do
cofre sarapintado que encerrava tanto saber e tanta piedade! E agora
n'aquella carta os amigos Pintos Bastos aconselhavam, como mais
nacional e mais rapido, que se arrancasse um
empenho
do Ministro da Fazenda
para fazer sahir sem direitos o corpo augusto do escriba de
Ramèzes. Ora este empenho, quem melhor para o
alcançar que Marcos―esteio da
Regeneração e seu Chronista musical?
Vidigal esfregava as mãos, illluminado. Ahi estava
[22]
uma coisa bem digna d'elle,
«bem
catita»―salvar do fisco a mumia «d'um
figurão
pharaonico»! E arrebatou a carta dos Pintos Bastos, enfiou
para a tipoia, gritou ao cocheiro a morada do Ministro, seu collega na
Revolução de
Setembro. Assim fiquei só com Fradique―que me
convidou a subir aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma
«soda e limão».
Pela escada, o poeta das
Lapidarias alludiu ao
torrido calor d'agosto. E eu que n'esse instante, defronte do espelho
no patamar, revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha
sobrecasaca e a frescura da minha rosa―deixei estouvadamente escapar
esta coisa hedionda:
―Sim, está d'escachar!
E ainda o torpe som não morrera, já uma
afflicção me lacerava, por esta
«chulice» de esquina de tabacaria assim
atabalhoadamente lançada como um pingo de sêbo
sobre o supremo artista das
Lapidarias,
o homem
que
conversára com Hugo á beira-mar!... Entrei no
quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava
desesperadamente uma outra phrase sobre o calor, bem trabalhada, toda
scintillante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezes
parallelas, em calão
teimoso:―«é de rachar»!
«está de
ananazes»! «derrete os untos»!...
Atravessei alli uma d'essas angustias atrozes e grotescas, que, aos
vinte annos, quando se começa a vida e a litteratura, vincam
a alma―e jámais esquecem.
[23]
Felizmente Fradique desapparecera por traz d'um reposteiro de alcova.
Só, limpando o suor, considerando que altos pensadores se
exprimem assim, com uma simplicidade rude,―serenei. E á
perturbação succedeu a curiosidade de descobrir
em torno, pelo aposento, algum vestigio da originalidade intensa do
homem que o habitava. Vi apenas cançadas cadeiras de reps
azul-ferrete, um lustre embuçado em tulle, e uma console, de
altos pés dourados, entre as duas janellas que respiravam
para o rio. Sómente, sobre o marmore da
console, e por meio dos livros que atulhavam uma velha mesa de pau
preto, pousavam soberbos ramos de flôres: e a um canto
afofava-se um espaçoso divan,
installado decerto por Fradique com colchões sobrepostos,
que dois cobrejões orientaes revestiam de côres
estridentes. Errava além d'isso em toda a sala um aroma
desconhecido, que tambem me pareceu oriental, como feito de rosas de
Smyrna, mescladas a um fio de canella e mangerona.
Fradique Mendes voltára de dentro, vestido com uma cabaia
chineza! Cabaia de mandarim, de sêda verde, bordada a
flôres de amendoeira―que me maravilhou e que me intimidou.
Vi então que tinha o cabello castanho-escuro, fino e
levemente ondeado sobre a testa, mais polida e branca que os marfins de
Normandia. E os olhos, banhados agora n'uma luz franca, não
apresentavam aquella negrura profunda que eu comparára ao
onyx, mas uma côr quente de tabaco escuro da Havana. Accendeu
[24]
uma cigarrette e
ordenou a «soda e
limão» a um creado surprehendente, muito louro,
muito grave, com uma perola espetada na gravata, largas
calças de xadrez verde e preto, e o peito florido por tres
cravos amarellos! (Percebi que este servo magnifico se chamava Smith).
O meu enleio crescia. Por fim Fradique murmurou, sorrindo, com sincera
sympathia:
―Aquelle Marcos é uma flôr!
Concordei, contei a velha estima que me prendia a Vidigal, desde o
primeiro anno de Coimbra, dos nossos tempos estouvados de Concertina e
Sebenta. Então, alegremente, recordando
Coimbra, Fradique perguntou-me pelo Pedro Penedo, pelo Paes, por outros
lentes ainda, do antigo typo fradesco e bruto; depois pelas tias
Camêlas, essas encantadoras velhas, que escrupulosamente,
através de lascivas gerações
d'estudantes, tinham permanecido virgens, para poderem no
céo, ao lado de Santa Cecilia, passar toda uma eternidade a
tocar harpa... Era uma das suas memorias melhores de Coimbra essa
taverna das tias Camêlas, e as ceias desabaladas que custavam
setenta reis, comidas ruidosamente na penumbra fumarenta das pipas, com
o prato de sardinhas em cima dos joelhos, por entre temerosas contendas
de Metaphysica e d'Arte. E que sardinhas! Que arte divina em frigir o
peixe! Muitas vezes em Paris se lembrára das risadas, das
illusões e dos piteus d'então!...
Tudo isto vinha n'um tom muito moço, sincero,
[25]
singelo―que eu
mentalmente classificava de
crystallino. Elle
estirára-se no divan; eu ficára rente da mesa,
onde um ramo de rosas se desfolhava ao calor sobre volumes de Darwin e
do Padre Manoel Bernardes. E então, dissipado o acanhamento,
todo no appetite de revolver com aquelle homem genial idéas
de Litteratura, sem me lembrar que, como Bacon, elle desejava esconder
o seu genio poetico, ou artista insatisfeito nunca reconheceria a obra
imperfeita,―alludi ás
Lapidarias.
Fradique Mendes tirou a cigarette dos labios para rir―com um riso que
seria
genuinamente galhofeiro, se de certo modo o não
contradissesse um laivo de vermelhidão que lhe subira
á face
côr de leite. Depois declarou que a
publicação d'esses
versos,
com a sua assignatura,
fôra uma perfidia do leviano Marcos. Elle não
considerava
assignaveis esses pedaços de prosa
rimada, que decalcára, havia quinze annos, na idade em que
se imita, sobre versos de Lecomte de Lisle, durante um verão
de trabalho e de fé, n'uma trapeira do Luxemburgo,
julgando-se a cada rima um innovador genial...
Eu acudi affirmando, todo em chamma, que depois da obra de Baudelaire
nada em Arte me impressionára como as
Lapidarias!
E ia
lançar a minha esplendida phrase, burilada n'essa noite com
paciente cuidado:―«A fórma de v. exc.
a
é um marmore divino...» Mas Fradique
deixára o divan
[26]
e pousava em mim os olhos finos
de onix, com uma curiosidade que me
verrumava:
―Vejo então, disse elle, que é um devoto do
maganão das
Flôres do
Mal!
Córei, áquelle espantoso termo de
maganão. E, muito grave, confessei que
para mim Baudelaire dominava, á maneira d'um grande astro,
logo abaixo d'Hugo, na moderna Poesia. Então Fradique,
sorrindo paternalmente, afiançou que bem cedo eu perderia
essa illusão! Baudelaire (que elle conhecera) não
era verdadeiramente um poeta. Poesia subentendia
emoção: e Baudelaire, todo intellectual,
não passava d'um psychologo, d'um analysta―um dissecador
subtil d'estados morbidos. As
Flôres do Mal continham apenas resumos
criticos de torturas moraes que Baudelaire muito finamente
comprehendera, mas nunca pessoalmente
sentira. A
sua obra era como a d'um pathologista, cujo
coração bate normal e serenamente, emquanto
descreve, á banca, n'uma folha de papel, pela
erudição e
observação accumuladas, as
perturbações temerosas d'uma lesão
cardiaca. Tanto assim que Baudelaire compuzera primeiro em prosa as
Flôres
do
Mal―e só mais tarde, depois de rectificar a
justeza das analyses, as passára a verso, laboriosamente,
com um diccionario de rimas!... De resto em França
(accrescentou o estranho homem) não havia poetas. A genuina
expressão da clara intelligencia franceza era a prosa. Os
seus mais finos conhecedores prefeririam sempre os poetas cuja poesia
se caracterisasse
[27]
pela precisão, lucidez, sobriedade―que
são qualidades de prosa; e um poeta tornava-se tanto mais
popular quanto mais visivelmente possuia o genio de prosador. Boileau
continuaria a ser um classico e um immortal, quando já
ninguem se lembrasse em França do tumultuoso lyrismo de
Hugo...
Dizia estas coisas enormes n'uma voz lenta, penetrante―que ia
recortando os termos com a certeza e a perfeição
d'um buril. E eu escutava,
varado! Que um Boileau, um pedagogo, um lambão de
côrte, permanecesse nos cimos da Poesia Franceza, com a sua
Ode
á tomada de
Namur, a sua cabelleira e a sua ferula, quando o nome do
poeta da
Lenda dos Seculos fosse como um
suspiro do vento que passou―parecia-me uma d'essas
affirmações, de rebuscada originalidade, com que
se procura assombrar os simples, e que eu mentalmente classificava de
insolente.
Tinha mil
coisas, abundantes e esmagadoras, a contestar: mas não
ousava, por não poder apresental-as n'aquella
fórma translucida e geometrica do poeta das
Lapidarias. Essa
cobardia, porém, e o esforço para reter os
protestos do meu enthusiasmo pelos Mestres da minha mocidade,
suffocava-me, enchia-me de mal-estar: e anciava só por
abalar d'aquella sala onde, com tão bolorentas
opiniões classicas, tanta rosa
nas jarras e todas as molles exhalações de
canella e mangerona,―se respirava conjuntamente um ar
abafadiço de Serralho e de Academia.
[28]
Ao mesmo tempo julgava humilhante ter soltado apenas, n'aquella
conversação com o familiar de Mazzini e d'Hugo,
miudos reparos sobre o Pedro Penedo e o carrascão das
Camêlas. E na justa ambição de
deslumbrar Fradique com um resumo critico, provando as minhas finas
letras, recorri á phrase, á lapidada phrase,
sobre a fórma do seu verso. Sorrindo, retorcendo o
buço, murmurei:―«Em
todo o caso a fórma de v. exc.
a
é um
marmore...» Subitamente, á porta que se abrira com
estrondo, surgiu Vidigal:
―Tudo prompto! gritou. Despachei o defunto!
O ministro, homem de poesia, e de eloquencia, interessára-se
francamente por aquella mumia d'um «collega», e
jurára logo poupar-lhe
o opprobrio de ser tarifada como peixe salgado. S. exc.
a
tinha mesmo
ajuntado:―«Não, senhor!
não, senhor! Ha de entrar livremente, com todas as honras
devidas a um classico!» E logo de manhã Pentaour
deixaria a Alfandega, de tipoia!
Fradique riu d'aquella designação de
classico dada a um hierogrammata do tempo de
Ramèzes―e Vidigal, triumphante, abancando ao piano, entoou
com ardor a
Grã-Duqueza.
Então eu, tomado estranhamente, sem razão, por um
sentimento de inferioridade
e de melancolia, estendi a mão para o chapéo.
Fradique não me reteve; mas os dois
passos com que me acompanhou no corredor, o seu sorriso e o seu
shake-hands,
foram
perfeitos. Apenas na rua, desabafei:―,
foram
perfeitos. Apenas na rua, desabafei:―«Que
pedante!»
[29]
Sim, mas inteiramente
novo,
dessemelhante de todos os homens que eu até ahi conhecera! E
á noite, na travessa do Guarda-Mór (occultando a
escandalosa apologia de Boileau, para nada d'elle mostrar imperfeito),
espantei J. Teixeira d'Azevedo com
um Fradique
idealisado, em que
tudo era irresistivel, as idéas, o verbo, a cabaia de
sêda, a face marmorea de Lucrecio moço, o perfume
que esparzia, a graça, a erudição e o
gosto!
J. Teixeira d'Azevedo tinha o enthusiasmo difficil e lento em fumegar.
O homem deu-lhe apenas a impressão de ser postiço
e theatral. Concordou no emtanto que convinha ir estudar «um
machinismo de
pose montado com tanto
luxo»!
Fomos ambos ao Central, dias depois, no fundo d'uma tipoia. Eu,
engravatado em setim, de gardenia ao peito. J. Teixeira d'Azevedo,
caracterisado de «Diogenes do seculo XIX», com um
pavoroso cacete ponteado de ferro, chapéo braguez orlado de
sêbo, jaquetão encardido e remendado que lhe
emprestára o creado, e grossos tamancos ruraes!... Tudo isto
arranjado com trabalho, com despeza, com intenso nojo, só
para horrorisar Fradique―e diante d'esse homem de sceptismo e de luxo,
altivamente affirmar, como democrata e como idealista, a grandeza moral
do remendo e a philosophica austeridade da nodoa! Eramos assim em 1867!
Tudo perdido! Perdida a minha gardenia, perdida a immundicie estoica do
meu camarada! O
[30]
snr.
Fradique Mendes (disse o porteiro) partira na vespera n'um vapor que ia
buscar bois a Marrocos.
III
Alguns annos passaram. Trabalhei, viajei. Melhor fui conhecendo os
homens e a realidade das coisas, perdi a idolatria da Fórma,
não tornei a lêr Baudelaire. Marcos Vidigal, que,
através da
Revolução de Setembro,
trepára da Chronica Musical á
Administração Civil, governava a
India como Secretario Geral, de novo entregue, n'esses ocios asiaticos
que lhe fazia o Estado, á
Historia da
Musica e á concertina: e levado assim esse grato
amigo do Tejo para o Mandovi eu não soubera mais do poeta
das
Lapidarias.
Nunca porém se me apagára a lembrança
do homem singular. Antes por vezes me succedia de repente
vêr, claramente
vêr,
n'um relevo quasi
tangivel―a face eburnea e fresca, os olhos côr de tabaco
insistentes e verrumando, o sorriso sinuoso e sceptico onde viviam
vinte seculos de litteratura.
Em 1871 percorri o Egypto. Uma occasião, em Memphis, ou no
sitio em que foi Memphis, navegava nas margens inundadas do Nilo, por
entre
[31]
palmeiraes que
emergiam da agua, e reproduziam sobre um fundo radiante de luar
oriental, o recolhimento e a solemnidade triste de longas arcarias de
claustros. Era uma solidão, um vasto silencio de terra
morta, apenas dôcemente quebrado pela cadencia dos remos e
pelo canto dolente do arraes... E eis que subitamente (sem que
recordação alguma
evocasse até esta imagem)―
vejo,
nitidamente
vejo, avançando com o
barco, e com elle cortando as faxas de luz e sombra, o quarto do Hotel
Central, o grande divan de côres estridentes, e Fradique, na
sua cabaia de sêda, celebrando por entre o fumo da cigarette
a immortalidade de Boileau! E eu mesmo já não
estava no Oriente, nem em Memphis, sobre as immoveis aguas do Nilo; mas
lá, entre o reps azul, sob o lustre embuçado em
tulle, diante das duas janellas que miravam o Tejo, sentindo em baixo
as carroças de ferragens rolarem para o Arsenal. Perdera
porém o acanhamento que então me enleava. E,
durante o tempo que assim remámos n'esta
decoração pharaonica
para a morada do Sheik de Abou-Kair, fui argumentando com o poeta das
Lapidarias,
e
enunciando emfim, na defeza de Hugo e Baudelaire, as coisas finas e
tremendas com que o devia ter emmudecido n'aquella tarde de agosto! O
arraes cantava os vergeis de Damasco. Eu berrava
mentalmente:―«Mas veja v. exc.
a nos
Miseraveis
a alta
lição moral...»
Ao outro dia, que era o da festa do Beiram, recolhi ao Cairo pela hora
mais quente; quando os
[32]
muezzins
cantam a terceira
oração. E ao apear do meu burro, diante do Hotel
Sheperd, nos jardins do Ezbekieh, quem hei de eu avistar? Que homem,
d'entre todos os homens, avistei eu no terraço, estendido
n'uma comprida cadeira de vime, com as mãos cruzadas por
traz da nuca, o
Times esquecido sobre os joelhos, embebendo-se
todo de calor e de luz? Fradique Mendes.
Galguei os degraus do terraço, lançando o nome de
Fradique, por entre um riso de transbordante prazer. Sem desarranjar a
sua beatitude, elle descruzou apenas um braço que me
estendeu com lentidão. O encanto do seu acolhimento esteve
na facilidade com que me reconheceu, sob as minhas lunetas azues, e o
meu vasto chapéo panamá:
―«Então como vai desde o Hotel Central?... Ha
quanto tempo pelo Cairo?»
Teve ainda outras palavras indolentes e affaveis. N'um banco ao seu
lado, todo eu sorria, limpando o pó que me
empastára a face com uma espessura de mascara. Durante o
curto e dôce momento que alli conversámos, soube
que Fradique chegára havia uma semana de Suez, vindo das
margens do Euphrates e da Persia, por onde errára, como nos
contos de fadas, um anno inteiro e um dia; que tinha um
debarieh,
com o lindo nome
de
Rosa das Aguas, já tripulado e
amarrado
á sua espera no caes de Boulak; e que ia n'elle subir o Nilo
até ao Alto Egypto, até á Nubia, ainda
para
além de Ibsambul...
[33]
Todo o sol do Mar Vermelho e das planicies do Euphrates não
lhe tostára a pelle lactea. Trazia,
exactamente como no Hotel Central, uma larga quinzena preta e um
collete branco fechado por botões de coral. E o
laço da gravata de setim negro representava bem, n'aquella
terra de roupagens soltas e rutilantes, a precisão
formalista das idéas
occidentaes.
Perguntou-me pela pachorrenta Lisboa, por Vidigal que burocratisava
entre os palmares brahmanicos... Depois, como eu continuava a esfregar
o suor e o pó, aconselhou que me purificasse n'um banho
turco, na piscina que fica ao pé da Mesquita de El-Monyed, e
que repousasse toda a tarde, para percorrermos á noite as
illuminações
do Beiram.
Mas em logar de descançar, depois do banho lustral, tentei
ainda, ao trote dôce de um burro, através da
poeira quente do deserto libyco, visitar fóra do Cairo as
sepulturas dos Kalifas. Quando á noite, na sala do Sheperd,
me sentei diante da sopa de «rabo de boi», a fadiga
tirára-me o
animo de pasmar para outras maravilhas musulmanas. O que me appetecia
era o leito fresco, no meu quarto forrado de esteiras, onde
tão romanticamente se ouviam cantar no jardim as fontes
entre os rosaes.
Fradique Mendes já estava jantando, n'uma mesa onde
flammejava, entre as luzes, um ramo enorme de cactos. Ao seu lado
pousava de leve, sobre um escabello mourisco, uma senhora, vestida de
branco, a quem eu só via a massa esplendida dos cabellos
[34]
louros, e as costas,
perfeitas e graciosas, como as d'uma estatua de Praxiteles que usasse
um collete de Madame Marcel; defronte, n'uma cadeira de
braços, alastrava-se um homem gordo e molle, cuja vasta
face, de barbas encaracoladas, cheia de força tranquilla
como a de um Jupiter, eu já decerto
encontrára algures, ou viva ou em marmore. E cahi logo
n'esta preoccupação. Em que rua, em que museu
admirára eu já aquelle rosto olympico, onde
apenas a fadiga do olhar, sob as palpebras pesadas, trahia a argilla
mortal?
Terminei por perguntar ao negro de Seneh que servia o
macarrão. O selvagem escancarou um riso de faiscante alvura
no ebano do carão redondo, e, através da mesa,
grunhiu com
respeito:―
Cé-le-diêu...
Justos céos!
Le Dieu!
Intentaria o negro affirmar que aquelle homem de barbas encaracoladas
era
um Deus―
o
Deus especial e conhecido que habitava o Sheperd!
Fôra pois n'um altar, n'uma téla devota, que eu
vira essa face, dilatada em magestade pela
absorpção perenne do incenso e da prece? De novo
interroguei o Nubio quando elle voltou erguendo nas mãos
espalmadas uma travessa que fumegava. De novo o Nubio me atirou, em
syllabas claras, bem feridas, dissipando toda a incerteza―
C'est
le Dieu!
Era um Deus! Sorri a esta idéa de litteratura―um Deus de
rabona, jantando á mesa do Hotel Sheperd. E, pouco a pouco,
da minha imaginação esfalfada foi-se evolando
não sei que sonho, esparso
[35]
e tenue, como o fumo que se
eleva de uma brazeira meio apagada. Era sobre o Olympo, e os velhos
Deuses, e aquelle amigo de Fradique que se parecia com Jupiter. Os
Deuses (scismava eu, colhendo garfadas lentas da salada de tomates)
não tinham talvez morrido: e desde a chegada de S. Paulo
á Grecia, viviam refugiados n'um valle da Laconia, outra vez
entregues, nos ocios que lhes impozera o Deus novo, ás suas
occupações
primordiaes de lavradores e pastores. Sómente, já
pelo habito que os Deuses nunca perderam de imitar os homens,
já para escapar aos ultrajes d'uma Christandade pudibunda,
os olympicos abafavam sob saias e jaquetões o esplendor das
nudezas que a Antiguidade adorára: e como tomavam outros
costumes humanos, ora por necessidade (cada dia se torna mais difficil
ser Deus), ora por curiosidade (cada dia se torna mais divertido ser
Homem), os Deuses iam lentamente consummando a sua
humanisação. Já por vezes deixavam a
doçura do seu valle bucolico; e com bahús, com
saccos de tapete, viajavam por distracção ou
negocios, folheando os
Guias Bedecker. Uns iam
estudar
nas cidades, entre a Civilisação, as maravilhas
da Imprensa,
do Parlamentarismo e do Gaz; outros, aconselhados pelo erudito Hermes,
cortavam a monotonia dos longos estios da Attica bebendo as aguas em
Vichy ou em Carlsbad: outros ainda, na saudade imperecivel das
omnipotencias passadas, peregrinavam até ás
ruinas dos templos onde outr'ora lhes era
[36]
offertado o mel e o sangue das
rezes. Assim se tornava verosimil que aquelle homem, cuja face cheia de
magestade e força serena reproduzia as
feições com que Jupiter se revelou á
Escóla
d'Athenas―fosse na realidade Jupiter, o Tonante, o Fecundador, pai
inesgotavel dos Deuses, creador da Regra e da Ordem. Mas que motivo o
traria alli, vestido de flanella azul, pelo Cairo, pelo Hotel Sheperd,
comendo um macarrão que profanadoramente se prendia
ás barbas divinas por onde a ambrosia escorrera? Certamente
o dôce motivo que através da
Antiguidade, em Céo e Terra, sempre inspirára os
actos de Jupiter―do frascario e femeeiro Jupiter. O que o podia
arrastar ao Cairo senão
alguma
saia, esse desejo esplendidamente insaciavel de deusas e de
mulheres que outr'ora tornava pensativas as donzellas da
Hellenia ao decorarem na Cartilha Pagã as datas em que elle
batera as azas de Cysne entre os joelhos de Leda, sacudira as pontas de
touro entre os braços d'Europa, gottejára em
pingos d'ouro sobre o seio de Danae, pulára em linguas de
fogo até aos labios d'Egina, e mesmo um dia, enojando
Minerva e as damas sérias do Olympo, atravessára
toda a Macedonia com uma escada ao hombro para trepar ao alto eirado da
morena Seméle? Agora, evidentemente, viera ao Cairo passar
umas férias sentimentaes, longe da Juno molle e conjugal,
com aquella viçosa mulher, cujo busto irresistivel provinha
das artes conjuntas de Praxiteles e de Madame Marcel. E ella, quem
seria ella? A côr das suas
[37]
tranças, a suave
ondulação dos seus
hombros, tudo indicava claramente uma d'essas deliciosas Nymphas das
Ilhas da Ionia, que outr'ora os Diaconos Christãos
expulsavam dos seus frescos regatos, para n'elles baptisar
centuriões cacheticos e comidos de dividas, ou velhas
matronas com pêllo no queixo, tropegas do incessante
peregrinar aos altares de Aphrodite. Nem elle nem ella porém
podiam esconder a sua origem divina: através do vestido de
cassa o corpo da Nympha irradiava uma claridade; e, attendendo bem,
vêr-se-hia a fronte marmorea de Jupiter arfar em cadencia, no
calmo esforço de perpetuamente conceber a Regra e a Ordem.
Mas Fradique? Como se achava alli Fradique, na intimidade dos
Immortaes, bebendo com elles champagne Clicquot, ouvindo de perto a
harmonia ineffavel da palavra de Jove? Fradique era um dos derradeiros
crentes do Olympo, devotamente prostrado diante da Fórma, e
transbordando de alegria pagã. Visitára a
Laconia; fallava a lingua dos
Deuses; recebia d'elles a inspiração. Nada mais
consequente do que descobrir Jupiter no Cairo, e prender-se logo ao seu
serviço, como
cicerone, nas terras barbaras de Allah. E
certamente com elle e com a Nympha da Ionia ia Fradique subir o Nilo,
na
Rosa das Aguas, até
aos derrocados templos onde Jupiter poderia murmurar, pensativo, e
indicando minas d'aras com a ponta do guarda-sol:―«Abichei
aqui muito incenso!»
Assim, através da salada de tomates, eu desenvolvia
[38]
e coordenava
estas imaginações―decidido a convertel-as n'um
Conto para publicar em Lisboa na
Gazeta de Portugal.
Devia chamar-se
A derradeira campanha de Jupiter:―e n'elle
obtinha o fundo erudito e phantasista para incrustar todas as notas de
costumes e de paizagens colhidas na minha viagem do Egypto.
Sómente, para dar ao conto um relevo de modernidade e de
realismo picante, levaria a Nympha das aguas, durante a jornada do
Nilo, a enamorar-se de Fradique e a trahir Jupiter! E eil-a
aproveitando cada recanto de palmeiral e cada sombra lançada
pelos velhos pilones d'Osiris para se pendurar do pescoço do
poeta das
Lapidarias,
murmurar-lhe coisas em grego mais dôces que os versos de
Hesiodo, deixar-lhe nas flanellas o seu aroma de ambrosia, e ser por
todo esse valle do Nilo immensamente
cochonne―emquanto o Pai dos Deuses, cofiando as
barbas encaracoladas, continuaria imperturbavelmente a conceber a
Ordem, supremo, augusto, perfeito, ancestral e cornudo!
Enthusiasmado, já construia a primeira linha do Conto:
«Era no Cairo, nos jardins de Choubra, depois do jejum do
Ramadan...»―quando vi Fradique adiantar-se para mim, com a
sua chavena de café na mão. Jupiter tambem se
erguera,
cançadamente. Pareceu-me um Deus pesado e molle, com um
principio de obesidade, arrastando a perna tarda, bem proprio para o
ultrage que eu lhe preparava na
Gazeta de Portugal.
Ella
porém tinha a harmonia,
[39]
o aroma, o andar, a
irradiação d'uma
Deusa!... Tão realmente divina que resolvi logo
substituir-me a Fradique no Conto, ser eu o
cicerone, e com os Immortaes vogar á
véla e á
sirga sobre o rio de immortalidade! Junto á minha face,
não
á de Fradique, balbuciaria ella, desfallecendo de
paixão entre os granitos sacerdotaes de Medinet-Abou, as
coisas mais dôces da
Anthologia! Ao menos, em sonho, realisava uma
triumphal viagem a Thebas. E faria pensar aos assignantes da
Gazeta
de
Portugal:―«O que elle por lá
gozou!»
Fradique sentára-se, recebendo, de Jove e da Nympha que
passavam, um sorriso cuja doçura tambem me envolveu.
Vivamente puxei a cadeira para o poeta das
Lapidarias:
―Quem é este homem? Conheço-lhe a cara...
―Naturalmente, de gravuras... É Gautier!
Gautier! Theophilo Gautier! O grande Theo! O mestre impeccavel! Outro
ardente enlevo da minha mocidade! Não me enganára
pois inteiramente. Se não era um Olympico―era pelo menos o
derradeiro Pagão, conservando, n'estes tempos de abstracta e
cinzenta intellectualidade, a religião verdadeira da Linha e
da Côr! E esta intimidade de Fradique com o auctor de
Mademoiselle
de
Maupin, com o velho paladino de
Hernani,
tornou-me logo mais precioso este compatriota que dava á
nossa gasta Patria um lustre tão original! Para saber se
elle preferia aniz ou genebra acariciei-lhe a manga com meiguice. E foi
em mim um extase
[40]
ruidoso, diante da sua agudeza, quando elle me aclarou o grunhir do
negro de Seneh. O que eu tomára pelo annuncio d'uma
presença divina significava apenas―
c'est le deux!
Gautier no
hotel occupava o quarto numero dois. E, para o barbaro, o plastico
mestre do Romantismo era apenas―
o
dois!
Contei-lhe então a minha phantasia pagã, o Conto
que ia trabalhar, os perfeitos dias de paixão que lhe
destinava na viagem para a Nubia. Pedi mesmo permissão para
lhe dedicar a
Derradeira Campanha de Jupiter. Fradique sorriu,
agradeceu. Desejaria bem (confessou elle) que essa fosse a realidade,
porque não se podia encontrar mulher de mais genuina belleza
e de mais aguda seducção do que essa Nympha das
aguas, que se chamava Jeanne Morlaix, e era comparsa dos
Delassements-Comiques.
Mas, para seu
mal, a radiosa creatura estava caninamente namorada de um Sicard,
corretor de fundos, que a trouxera ao Cairo, e que fôra
n'essa tarde, com banqueiros gregos, jantar aos jardins de Choubra...
―Em todo o caso, accrescentou o originalissimo homem, nunca
esquecerei, meu caro patricio, a sua encantadora
intenção!
Descartes, zombando, creio eu, da physica Epicuriana ou atomista, falla
algures das affeiçoes produzidas pelos
Atomes
crochus, atomos
recurvos, em fórma de colchete ou d'anzol, que se engancham
invisivelmente de coração a
coração, e formam essas
cadeias,
resistentes como o bronze de Samothracia,
[41]
que para sempre ligam e fundem dois sêres, n'uma constancia
vencedora da Sorte e sobrevivente á Vida. Um qualquer
nada
provoca esse fatal ou providencial enlaçamento d'atomos. Por
vezes um olhar, como desastradamente em Verona succedeu a Romeu e
Julieta: por vezes o impulso de duas creanças para o mesmo
fructo, n'um vergel real, como na amizade classica de Orestes e
Pylades. Ora, por esta theoria (tão satisfatoria como
qualquer outra em Psychologia affectiva), a esplendida aventura de
amor, que eu tão generosamente reservára a
Fradique na
Ultima campanha de
Jupiter, seria a causa mysteriosa e inconsciente, o
nada que determinou a sua primeira sympathia para
commigo, desenvolvida, solidificada depois em seis annos de intimidade
intellectual.
Muitas vezes, no decurso da nossa convivencia, Fradique alludiu
gratamente a essa minha
encantadora
intenção de lhe atar em torno
do pescoço os braços de Jeanne Morlaix.
Fôra elle captivado pela sinuosa e poetica homenagem que eu
assim prestava ás suas seducções de
homem?
Não sei.―Mas, quando nos erguemos para ir vêr as
illuminações do Beiram, Fradique Mendes, com um
modo novo, aberto, quente, quasi intimo, já me tratava por
vossê.
As illuminações no Oriente consistem, como as do
Minho, de tigellinhas de barro e de vidro onde
[42]
arde um pavio ou uma mecha
d'estopa. Mas a descomedida profusão com que se prodigalisam
as tigellinhas (quando as paga o Pachá) torna as velhas
cidades meio arruinadas, que assim se enfeitam em louvor de Allah,
realmente deslumbrantes―sobretudo para um occidental besuntado de
litteratura, e inclinado a vêr por toda a parte, reproduzidas
no moderno Oriente, as muito lidas maravilhas d'essas
Mil e
uma noites
que ninguem jámais leu.
Na celebração do Beiram (custeada pelo Khediva),
as tigellinhas eram incontaveis―e todas as linhas do Cairo, as mais
quebradas e as mais fugidias, resaltavam na escuridão,
esplendidamente sublinhadas por um risco de luz. Longas fieiras de
pontos refulgentes marcavam a borda dos eirados; as portas abriam sob
ferraduras de lumes; dos toldos pendia uma franja que faiscava; um
brilho tremia, com a aragem, sobre cada folha d'arvore; e os minaretes,
que a Poesia Oriental classicamente compara desde seculos aos
braços da Terra levantados para o Céo,
ostentavam, como braços em noite de festa, um luxo de
braceletes fulgindo na treva serena. Era (lembrei eu a Fradique) como
se durante todo o dia tivesse cahido sobre a sordida cidade uma grossa
poeirada d'ouro, pousando em cada friso de
moucharabieh e em cada grade de varandim, e agora
rebrilhasse, com radiosa saliencia, na negrura da noite calma.
Mas, para mim, a belleza especial e nova estava
[43]
na multidão festiva
que atulhava as praças e os bazares―e que Fradique,
através do rumor e da poeira, me explicava como um livro de
estampas. Com quanta profundidade e miudeza conhecia o Oriente este
patricio admiravel! De todas aquellas gentes, intensamente diversas
desde a côr até ao traje―elle sabia a
raça, a historia, os costumes, o logar proprio na
civilisação musalmana.
Devagar, abotoado n'um paletot de flanella, com um chicote de nervo
(que é no Egypto o emblema de Auctoridade) entalado debaixo
do braço, ia apontando, nomeando á minha
curiosidade flammejante essas estranhas figuras, que eu comparava,
rindo, ás d'uma mascarada fabulosa, arranjada por um
archeologo em noite de folia erudita para reproduzir as
«modas» dos Semitas e os seus
«typos» através
das idades:―aqui Fellahs, ridentes e ageis na sua longa camisa de
algodão azul; além Beduinos
sombrios, movendo gravemente os pés entrapados em ligaduras,
com o pesado alfange de bainha escarlate pendurado no peito; mais longe
Abadiehs, de grenha em fórma de mêda,
eriçada de longas
cerdas de porco-espinho que os corôam d'uma aureola negra...
Estes, de porte insolente; com compridos bigodes esvoaçando
ao vento, armas ricas reluzindo nas cintas de sêda, e curtos
saiotes tufados e encanudados, eram Arnautas da Macedonia; aquelles,
bellas estatuas gregas esculpidas em ebano, eram homens do Sennar; os
outros, com a cabeça envolta n'um lenço amarello
cujas franjas immensas lhes faziam
[44]
uma romeira de fios d'ouro,
eram cavalleiros do Hedjaz... E quantos ainda elle me fazia distinguir
e comprehender! Judeus immundos, de caracoes frisados; Coptas togados
á maneira de senadores; soldados pretos do Darfour, com
fardetas de linho ennodoadas de poeira e sangue; Ulemas de turbante
verde; Persas de mitra de feltro; mendigos de mesquita, cobertos de
chagas; amanuenses turcos, pomposos e anafados, de collete bordado a
ouro... Que sei eu! Um Carnaval rutilante, onde a cada momento
passavam, sacudidos pelo trote dos burros sobre albardas vermelhas,
enormes saccos enfunados―que eram mulheres. E toda esta turba
magnifica e ruidosa se movia entre invocações a
Allah, repiques de pandeiretas, gemidos estridentes partindo das cordas
das
dourbakas, e
cantos lentos―esses cantos arabes, d'uma voluptuosidade tão
dolente e tão aspera, que Fradique dizia
passarem n'alma com uma «caricia rascante». Mas por
vezes, entre o casario decrepito e rendilhado, surgia uma frontaria
branca, casa rica de Sheik ou de Pachá, com a varanda em
arcarias, por onde se avistavam lá dentro, n'um silencio de
harem, sêdas
colgantes, recamos d'ouro, um tremor de lumes no crystral dos lustres,
fórmas airosas sob véos
claros... Então a multidão parava, emmudecia, e
de todos os labios sahia um grande
ah!
languido e maravilhado.
Assim caminhavamos, quando, ao sahir do Moujik, Fradique Mendes parou,
e, muito gravemente,
[45]
trocou com um moço pallido, de esplendidos olhos, o
salam―essa
saudação oriental em que os dedos tres vezes
batem a testa, a bôca e o
coração. E como eu, rindo, lhe invejava aquella
intimidade com um «homem de tunica verde e de mitra
persa»:
―É um Ulema de Bagdad, disse Fradique, d'uma casta antiga,
superiormente intelligente... Uma das personalidades mais finas e mais
seductoras que encontrei na Persia!
Então, com a familiaridade que se ia entre nós
accentuando, perguntei a Fradique o que o detivera assim na Persia um
anno inteiro e um dia como nos contos de fadas. E Fradique, com toda a
singeleza, confessou que se demorára tanto nas margens do
Euphrates por se achar casualmente ligado a um movimento religioso que,
desde 1849, tomava na Persia um desenvolvimento quasi triumphal, e que
se chamava o
Babismo. Attrahido para essa nova seita por
curiosidade critica, para observar como nasce e se funda uma
Religião, chegára pouco a pouco a ganhar pelo
Babismo um interesse militante―não por
admiração da doutrina, mas por
veneração dos apostolos. O Babismo (contou-me
elle, seguindo por uma viella mais solitaria e favoravel ás
confidencias) tivera por iniciador certo Mirza-Mohamed, um d'esses
Messias que cada dia surgem na incessante
fermentação religiosa do Oriente, onde a
religião é a occupação
suprema e querida da
vida. Tendo
[46]
conhecido os Evangelhos Christãos por contacto com os
Missionarios; iniciado na pura tradição
mosaista pelos judeus do Hiraz; sabedor profundo do Guebrismo, a velha
religião nacional da Persia―Mirza-Mohamed
amalgamára estas doutrinas com uma
concepção mais abstracta e pura do Mahometismo, e
declarára-se
Bab. Em
persa
Bab quer dizer
Porta. Elle era, pois, a
porta―a
unica
porta através da qual os homens
poderiam jámais penetrar na absoluta Verdade. Mais
litteralmente, Mirza-Mohamed apresentava-se como o grande
porteiro, o homem eleito entre todos pelo Senhor
para abrir aos crentes a porta da Verdade―e portanto do Paraiso. Em
resumo era um Messias, um Christo. Como tal atravessou a classica
evolução dos
Messias: teve por primeiros discipulos, n'uma aldeia obscura, pastores
e mulheres: soffreu a sua
tentação na montanha: cumpriu as penitencias
expiadoras: prégou parabolas: escandalisou em
Méca os doutores: e padeceu a sua Paixão,
morrendo, não me lembro se degolado, se fuzilado, depois do
jejum do Rhamadan, em Tabriz.
Ora, dizia Fradique, no mundo musulmano ha duas divisões
religiosas―os Sieds e os Sunis. Os Persas são Sieds, como
os Turcos são Sunis. Estas
differenças porém, no fundo, têm um
caracter mais politico e de raça, do que theologico e de
dogma; ainda que um fellah do Nilo desprezará sempre um
persa do Euphrates como
heretico e
sujo. A
discordancia resalta, mais
viva e teimosa,
[47]
logo que Sieds ou Sunis necessitem pronunciar-se perante uma nova
interpretação de doutrina ou uma nova
apparição de propheta. Assim o
Babismo entre os Sieds, topára com uma hostilidade que se
avivou até á
perseguição:―a isto desde logo indicava que
seria acolhido pelos Sunis com deferencia e sympathia.
Partindo d'esta idéa, Fradique, que em Bagdad se
ligára familiarmente com um dos mais vigorosos e
auctorisados apostolos do Babismo, Said-El-Souriz (a quem
salvára o filho d'uma febre paludosa com
applicações de
Fruit-salt), suggerira-lhe um dia, conversando
ambos no eirado sobre estes altos interesses espirituaes, a
idéa de apoiar o Babismo nas raças agricolas do
valle do Nilo e nas raças nómadas da Libya. Entre
homens de seita
Suni, o Babismo encontraria um campo facil ás
conversões; e, pela tradicional marcha dos movimentos
sectarios, que no Oriente, como em toda a parte, sobem das massas
sinceras do povo até ás classes cultas, talvez
essa nova onda de emoção
religiosa, partindo dos Fellahs e dos Beduinos, chegasse a penetrar no
ensino de alguma das mesquitas do Cairo, sobretudo na mesquita de
El-Azhar, a grande Universidade do Oriente, onde os ulemas mais
moços formam uma cohorte de enthusiastas sempre disposta
ás innovações e aos
apostolados combattentes. Ganhando ahi auctoridade theologica, e
litterariamente polido, o Babismo poderia então atacar com
vantagem as velhas fortalezas do Musulmanismo
[48]
dogmatico. Esta
idéa penetrára profundamente em Said-El-Souriz.
Aquelle moço pallido, com quem elle trocára o
salam,
fôra logo mandado como emissario babista a Medinet-Abou (a
antiga Thebas), para sondar o Sheik Ali-Hussein, homem de decisiva
influencia em todo o valle do Nilo pelo seu saber e pela sua virtude: e
elle, Fradique, não tendo agora no Occidente
occupações attractivas, cheio
de curiosidade por este pittoresco Advento, partia tambem para Thebas,
devendo encontrar-se com o babista, á lua mingoante, em
Beni-Soueff, no Nilo...
Não recordo, depois de tantos annos, se estes eram os factos
certos. Só sei que as
revelações de Fradique, lançadas assim
através do Cairo em festa, me impressionaram indizivelmente.
Á medida que elle fallava do Bab, d'essa missão
apostolica ao velho Sheik de Thebas, de uma outra fé
surgindo no mundo musulmano com o seu cortejo de martyrios e d'extasis,
da possivel fundação de
um imperio Babista―o homem tomava aos meus olhos
proporções grandiosas. Não
conhecera jámais ninguem envolvido em coisas tão
altas: e sentia-me ao mesmo tempo orgulhoso e aterrado de receber este
segredo sublime. Outra não seria minha
commoção, se, nas vesperas de S. Paulo embarcar
para a Grecia, a levar a Palavra aos gentilicos, eu tivesse com elle
passeado pelas ruas estreitas de Seleucia, ouvindo-lhe as
esperanças e os sonhos!
Assim conversando, penetrámos no adro da
[49]
mesquita de El-Azhar onde mais
fulgurante e estridente tumultuava a festa do Beiram. Mas já
não me prendiam as surprezas d'aquelle arraial
musulmano―nem
almées
dançando entre brilhos de vermelho e d'ouro; nem poetas do
deserto recitando as façanhas d'Antar; nem Derviches, sob as
suas tendas de linho, uivando em cadencia os louvores d'Allah...
Calado, invadido pelo pensamento do Bab, revolvia commigo o confuso
desejo de me aventurar n'essa campanha espiritual! Se eu partisse para
Thebas com Fradique?... Porque não? Tinha a mocidade, tinha
o enthusiasmo. Mais viril e nobre seria encetar no Oriente uma carreira
de evangelista, que banalmente recolher á banal Lisboa, a
escrevinhar tiras de papel, sob um bico de gaz, na
Gazeta de
Portugal! E pouco
a pouco d'este desejo, como d'uma agua que ferve, ia subindo o vapor
lento d'uma visão. Via-me discipulo do Bab―recebendo n'essa
noite, do ulema de Bagdad, a iniciação da
Verdade. E partia logo a prégar, a espalhar o verbo babista.
Onde iria? A Portugal certamente, levando de preferencia a
salvação ás
almas que me eram mais caras. Como S. Paulo, embarcava n'uma galera: as
tormentas assaltavam a minha prôa apostolica: a imagem do Bab
apparecia-me sobre as aguas, e o seu sereno olhar enchia minha alma de
fortaleza indomavel. Um dia, por fim, avistava terra, e na
manhã clara sulcava o claro Tejo, onde ha tantos seculos
não entra um enviado de Deus. Logo de longe
lançava uma injuria ás
igrejas
[50]
de Lisboa,
construcções d'uma Fé
vetusta e menos pura. Desembarcava. E, abandonando as minhas bagagens,
n'um desprendimento já divino de bens ainda terrestres,
galgava aquella bemdita rua do Alecrim, e em meio do Loreto,
á hora em que os Directores Geraes sobem devagar da Arcada,
abria os braços e bradava:―«Eu sou a
Porta!»
Não mergulhei no Apostolado babista―mas succedeu que,
enlevado n'estas phantasmagorias, me perdi de Fradique. E
não sabia o caminho do Hotel Sheperd,―nem, para d'elle me
informar, outros termos uteis, em arabe, além de
agua e
amor! Foram angustiosos momentos em que farejei
estonteado pelo largo de El-Azhar, tropeçando nos fogareiros
onde fervia o café, esbarrando inconsideradamente
contra rudes beduinos armados. Já por sobre a turba atirava,
aos brados, o nome de Fradique―quando topei com elle olhando
placidamente uma
almée que
dançava...
Mas seguiu logo, encolhendo os hombros. Nem me permittiu adiante
admirar um poeta, que, em meio de fellahs pasmados e de Moghrebinos
arrimados ás lanças, lia, n'uma toada langorosa e
triste, tiras de papel ensebado. A Dança e a Poesia,
affirmava Fradique, as duas grandes artes orientaes, iam em miserrima
decadencia. N'uma e outra se tinham perdido as
tradições do estylo puro. As
almées,
pervertidas
pela influencia dos casinos do Ezbequieh onde se perneia o
can-can―já polluiam a graça das velhas
danças arabes, atirando
[51]
a perna pelos ares á
moda vil de Marselha! E na Poesia triumphava a mesma banalidade,
mesclada de extravagancia. As fórmas delicadas do
classicismo persa nem se respeitavam, nem quasi se conheciam; a fonte
da imaginação seccava entre os
musulmanos; e a pobre Poesia Oriental, tratando themas vetustos com uma
emphase preciosa, descambára, como a nossa, n'um
Parnasianismo
barbaro...
―De sorte, murmurei, que o Oriente...
―Está tão mediocre como o Occidente.
E recolhemos ao hotel, devagar, emquanto Fradique, findando o charuto,
me contava que o espirito oriental, hoje, vive só da
actividade philosophica, agitado cada manhã por uma nova e
complicada concepção da Moral, que lhe offerecem
os Logicos dos bazares e os Metaphysicos do deserto...
Ao outro dia acompanhei Fradique a Boulak, onde elle ia embarcar para o
Alto Egypto. O seu
debarieh esperava, amarrado
á estacaria, rente das casas do Velho Cairo, entre barcas
d'Assouan, carregadas de lentilha e de cana dôce. O sol
mergulhava nas areias libycas: e ao alto, o céo adormecia,
sem uma sombra, sem uma nuvem, puro em toda a sua profundidade como a
alma d'um justo. Uma fila de mulheres coptas, com o cantaro amarello
pousado no hombro, descia cantando para a agua do Nilo, bemdita entre
todas as aguas. E os ibis, antes de recolher aos ninhos, vinham, como
no tempo em que eram Deuses, lançar por sobre os eira
esperava, amarrado
á estacaria, rente das casas do Velho Cairo, entre barcas
d'Assouan, carregadas de lentilha e de cana dôce. O sol
mergulhava nas areias libycas: e ao alto, o céo adormecia,
sem uma sombra, sem uma nuvem, puro em toda a sua profundidade como a
alma d'um justo. Uma fila de mulheres coptas, com o cantaro amarello
pousado no hombro, descia cantando para a agua do Nilo, bemdita entre
todas as aguas. E os ibis, antes de recolher aos ninhos, vinham, como
no tempo em que eram Deuses, lançar por sobre os eirados,
com um bater d'azas contentes, a benção
crepuscular.
[52]
Baixei, atraz de Fradique, ao salão do
debarieh, envidraçado, estofado, com
armas penduradas para as manhãs de caça, e rumas
de livros para as
séstas de estudo e de calma quando lentamente se navega
á sirga. Depois, durante momentos, no convés,
contemplámos silenciosamente aquellas margens que,
através das compridas idades, têm feito o
enlevo de todos os homens, por todos sentirem que n'ellas a vida
é cheia de bens maiores e de
doçura suprema. Quantos, desde os rudes Pastores que
arrazaram Thanis, aqui pararam como nós, alongando para
estas aguas, para estes céos, olhos cobiçosos,
extaticos ou saudosos: Reis de Judá, Reis de Assyria,
Reis da Persia; os Ptolomeus magnificos;
Prefeitos de Roma e Prefeitos de Byzancio; Amrou enviado de Mahomet, S.
Luiz enviado de Christo; Alexandre-o-Grande sonhando o imperio do
Oriente, Bonaparte retomando o immenso sonho; e ainda os que vieram
só para contar da terra adoravel, desde o loquaz Herodoto
até ao primeiro Romantico, o homem pallido de grande
pose que disse as dôres de
«Réné»! Bem conhecida
é ella, a paizagem divina e sem igual. O Nilo corre,
paternal e fecundo. Para além verdejam, sob o vôo
das pombas, os jardins e os pomares de Rhodah. Mais longe as palmeiras
de Giseh, finas e como de bronze sobre o ouro da tarde, abrigam aldeias
que têm a simplicidade de ninhos. Á orla do
deserto, erguem-se, no orgulho da sua eternidade, as tres Pyramides.
Apenas isto―e para sempre a alma
[53]
fica presa e lembrando, e para
viver n'esta suavidade e n'esta belleza os povos travam entre si longas
guerras.
Mas a hora chegára: abracei Fradique com singular
emoção. A vela fôra içada
á briza suave que arripiava a folhagem das mimosas.
Á prôa o arraes,
espalmando as mãos para o céo,
clamou:―«Em nome de Allah que nos leve, clemente e
misericordioso!» Ao redor, d'outras barcas, vozes lentas
murmuraram:―«Em nome de Allah que vos leve!» Um
dos remadores, sentado á borda, feriu as cordas da
dourbaka,
outro
tomou uma flauta de barro. E entre bençãos e
cantos a vasta barca fendeu as aguas sagradas, levando para Thebas o
meu incomparavel amigo.
III
Durante annos não tornei a encontrar Fradique Mendes, que
concentrára as suas jornadas dentro da Europa
Occidental―emquanto eu errava pela America, pelas Antilhas, pelas
republicas do golfo do Mexico. E quando a minha vida emfim se aquietou
n'um velho condado rural de Inglaterra, Fradique, retomado por essa
«bisbilhotice
[54]
ethnographica» a que
elle allude n'uma carta a Oliveira Martins, começava a sua
longa viagem ao Brazil, aos Pampas, ao Chili e á Patagonia.
Mas o fio de sympathia, que nos unira no Cairo, não se
partiu; nem nós, apesar de tão
tenue, o deixámos perder por entre os interesses mais fortes
das nossas fortunas desencontradas. Quasi todos os tres mezes
trocavamos uma carta―cinco ou seis folhas de papel que eu
tumultuosamente atulhava de imagens e impressões, e que
Fradique miudamente enchia de idéas e de factos.
Além d'isto, eu sabia de Fradique por alguns dos meus
camaradas, com quem, durante uma residencia mais intima em Lisboa, do
outono de 1875 ao verão de 1876, elle creára
amizades onde todos encontraram proveito intellectual e encanto.
Todos, apesar das dissimilhanças de temperamentos ou das
maneiras differentes de conceber a vida―tinham como eu sentido a
seducção d'aquelle homem adoravel. D'elle me
escrevia em novembro de 1877 o auctor do
Portugal
Contemporaneo:―«Cá encontrei o teu
Fradique, que considero o portuguez mais interessante do seculo XIX.
Tem curiosas parecenças com Descartes! É a mesma
paixão das viagens, que levava o philosopho a fechar os
livros «para estudar o grande livro do Mundo»; a
mesma attracção pelo
luxo e pelo ruido, que em Descartes se traduzia pelo gosto de
frequentar as «côrtes e os
exercitos»; o mesmo amor do mysterio, e das subitas
[55]
desapparições; a mesma vaidade, nunca confessada,
mas intensa, do nascimento e da fidalguia; a mesma coragem serena; a
mesma singular mistura de instinctos romanescos e de razão
exacta, de phantasia e de geometria. Com tudo isto falta-lhe na vida um
fim sério e supremo, que estas qualidades, em si excellentes
concorressem a realisar. E receio que em logar do
Discurso
sobre o Methodo venha só a deixar um
vaudeville». Ramalho Ortigão,
pouco tempo depois, dizia d'elle n'uma carta
carinhosa:―«Fradique Mendes é o mais completo,
mais acabado producto da civilisação em que me
tem sido dado embeber os olhos. Ninguem está mais
superiormente apetrechado para triumphar na Arte e na Vida. A rosa da
sua botoeira é sempre a mais fresca, como a idéa
do seu espirito é sempre
a mais original. Marcha cinco leguas sem parar, bate ao remo os
melhores remadores de Oxford, mette-se sósinho ao deserto a
caçar o tigre, arremette com um chicote na mão
contra um troço de lanças abyssinias:―e
á
noite n'uma sala, com a sua casaca do Cook, uma perola negra no
esplendor do peitilho, sorri ás mulheres com o encanto e o
prestigio com que sorrira á fadiga, ao perigo e á
morte. Faz armas como o cavalleiro de Saint-Georges, e possue as
noções mais novas e as mais certas sobre Physica,
sobre Astronomia, sobre Philologia e sobre Metaphysica. É um
ensino, uma lição de alto gosto,
vêl-o
[56]
no
seu quarto, na vida intima de
gentleman em viagem, entre as suas malas de couro
da Russia, as grandes escovas de prata lavrada, as cabaias de
sêda, as carabinas de Winchester, preparando-se, escolhendo
um perfume, bebendo golos de chá que lhe manda o Gran-Duque
Vladimir, e dictando a um creado de calção, mais
veneravelmente correcto que um mordomo de Luiz XIV, telegrammas que
vão levar noticias suas aos
boudoirs de Paris e de Londres. E depois de tudo
isto fecha a sua porta ao mundo―e lê Sophocles no
original».
O poeta da
Morte de D.
João e da
Musa em Ferias
chamava-lhe «um Sainte-Beuve
encadernado em Alcides». E explicava assim, n'uma carta
d'esse tempo que conservo, a sua apparição no
mundo: «Deus um dia agarrou n'um bocado de Henri Heine,
n'outro de Chateaubriand, n'outro de Brummel, em pedaços
ardentes d'aventureiros da Renascença, e em fragmentos
resequidos de sabios do Instituto de França, entornou-lhe
por cima
champagne e tinta de
imprensa, amassou tudo nas suas mãos omnipotentes, modelou
á pressa Fradique, e arrojando-o á Terra
disse: Vai, e veste-te no Poole!» Emfim Carlos
Mayer,
lamentando como Oliveira Martins que ás multiplas e fortes
aptidões de Fradique faltasse
coordenação e convergencia para um fim superior,
deu um dia sobre a personalidade do meu amigo um resumo sagaz e
profundo: «O cerebro de Fradique
[57]
está admiravelmente
construido e mobilado. Só lhe falta uma idéa que
o alugue, para vivar e governar lá dentro. Fradique
é um genio com
escriptos!»
Tambem Fradique, n'esse inverno, conheceu o pensador das
Odes
Modernas, de quem,
n'uma das suas cartas a Oliveira Martins, falla com tanta
elevação e carinho. E o ultimo companheiro da
minha mocidade que se relacionou com o antigo poeta das
Lapidarias foi
J. Teixeira
d'Azevedo, no verão de 1877, em Cintra, na quinta da
Saragoça, onde Fradique viera repousar
da sua jornada ao Brazil e ás republicas do Pacifico. Tinham
ahi conversado muito, e divergido sempre. J. Teixeira d'Azevedo, sendo
um nervoso e um apaixonado, sentia uma insuperavel antipathia pelo que
elle chamava o
lymphatismo critico de Fradique.
Homem todo de
emoção não se podia fundir
intellectualmenle com aquelle homem todo de analyse. O extenso saber de
Fradique tambem não o impressionava. «As
noções d'esse guapo erudito (escrevia elle em
1879) são bocados do Larousse diluidos em agua de
Colonia». E emfim certos requintes de Fradique (escovas de
prata e camisas de sêda), a sua voz mordente recortando o
verbo com perfeição e preciosidade, o seu habito
de beber champagne com
soda-water, outros traços ainda,
causavam uma
irritação quasi physica ao meu velho camarada da
Travessa do Guarda-Mór. Confessava porém, como
Oliveira
Martins, que Fradique era o portuguez mais interessante
[58]
e mais suggestivo do seculo
XIX. E correspondia-se regularmente com elle―mas para o contradizer
com acrimonia.
Em 1880 (nove annos depois da minha peregrinação
no Oriente), passei em Paris a semana da Paschoa. Uma noite, depois da
Opera, fui cear solitariamente ao Bignon. Tinha encetado as ostras e
uma chronica do
Temps, quando por
traz do jornal que eu encostára á garrafa assomou
uma larga mancha clara, que era um collete, um peitilho, uma gravata,
uma face, tudo de incomparavel brancura. E uma voz muito serena
murmurou: «Separámo-nos ha annos no caes de
Boulak...» Ergui-me com um grito, Fradique com um sorriso;―e
o
maitre-d'hotel recuou assombrado
diante da meridional e ruidosa effusão do meu
abraço. D'essa noite em Paris datou verdadeiramente a nossa
intimidade intellectual―que em oito annos, sempre igual e sempre
certa, não teve uma
intermissão, nem uma sombra que lhe toldasse a pureza.
Determinadamente lhe chamo
intellectual, porque esta intimidade nunca passou
além das coisas do espirito. Nas alegres temporadas que com
elle convivi em Paris, em Londres e em Lisboa, de 1880 a 1887, na nossa
copiosa correspondencia d'esses annos privei sempre, sem reserva, com a
intelligencia de Fradique―e interrompidamente assisti e me misturei
á sua vida pensante: nunca porém penetrei na sua
vida affectiva de sentimento e de coração. Nem,
na verdade, me atormentou a
[59]
curiosidade de a
conhecer―talvez por sentir que a rara originalidade de Fradique se
concentrava toda no sêr pensante, e que o outro, o
sêr sensivel,
feito da banal argilla humana, repetia sem especial relevo as
costumadas fragilidades da argilla. De resto, desde essa noite de
Paschoa em Paris que iniciou as nossas relações,
nós
conservámos sempre o habito especial, um pouco altivo,
talvez estreito, de nos considerarmos dois puros espiritos. Se eu
então concebesse uma Philosophia original, ou preparasse os
mandamentos d'uma nova Religião, ou surripiasse á
Natureza distrahida uma das suas secretas Leis―de preferencia
escolheria Fradique como confidente d'esta actividade espiritual; mas
nunca, na ordem do Sentimento, iria a elle com a confidencia d'uma
esperança ou d'uma desillusão. E Fradique
igualmente manteve commigo esta attitude de inaccessivel
recato―não se manifestando nunca aos meus olhos
senão na sua
funcção intellectual.
Muito bem me lembro eu d'uma resplandecente manhã de maio em
que atravessavamos, conversando por sob os castanheiros em
flôr, o jardim das Tulherias. Fradique, que se
encostára ao meu braço, vinha vagarosamente
desenvolvendo a idéa de que a extrema
democratisação da Sciencia, o seu universal e
illimitado derramamento através das plebes, era o grande
erro da nossa
civilisação, que com elle preparava para bem cedo
a sua catastrophe moral... De repente, ao transpôrmos a grade
[60]
para a
praça da Concordia, o Philosopho que assim
lançava, por entre as tenras verduras de maio, estas
predicções de desastre e de
fim―estaca, emmudece! Diante de nós, ao trote fino d'uma
egoa de luxo, passára vivamente, para os lados da rua
Royale, um coupé onde entrevi, na penumbra dos setins que o
forravam, uns cabellos côr de mel. Vivamente tambem, Fradique
sacode o meu braço, balbucia um
«adeus!», acena a um fiacre, e
desapparece ao galope arquejante da pileca para os lados do
cães d'Orsay.
«Mulher!», pensei eu. Era, com effeito, a mulher e
o seu tormento; e como se deprehende d'uma carta a Madame de Jouarre
(datada de «Maio, sabbado», e começando:
«Hontem
philosophava com um amigo no jardim das Tulherias...»)
Fradique corria n'esse fiacre a uma desillusão bem rude e
mortificante. Ora n'essa tarde, ao crepusculo, fui (como
combinára) buscar Fradique á rua de Varennes, ao
velho palacio dos Tredennes, onde elle installára desde o
Natal os seus aposentos com um luxo tão nobre e
tão sobrio. Apenas entrei na
sala que denominavamos a «Heroica», porque a
revestiam quatro tapeçarias de Luca Cornelio contando os
Trabalhos
de Hercules, Fradique
deixa a janella d'onde olhava o jardim já esbatido em
sombra, vem para mim serenamente, com as mãos enterradas nos
bolsos d'uma quinzena de sêda. E, como se desde essa
manhã
nenhum
outro cuidado o absorvesse senão o seu th cuidado
o absorvesse senão o seu thema do
jardim das Tulherias:
[61]
―Não lhe acabei de dizer ha pouco... A Sciencia, meu caro,
tem de ser recolhida como outr'ora aos Santuarios. Não ha
outro meio de nos salvar da anarchia moral. Tem de ser recolhida aos
Santuarios, e entregue a um sacro collegio intellectual que a guarde,
que a defenda contra as curiosidades das plebes... Ha a fazer com esta
idéa um programma para as gerações
novas!
Talvez na face, se eu tivesse reparado, encontrasse restos de pallidez
e de emoção: mas o tom era simples, firme, d'um
critico genuinamente occupado na deducção do seu
conceito. Outro homem que, como aquelle, tivesse soffrido horas antes
uma desillusão tão mortificante e rude,
murmuraria ao
menos, n'um desafogo generico e impessoal:―«Ah, amigo, que
estupida é a vida!» Elle fallou da Sciencia e das
Plebes,―desenrolando determinadamente diante de mim, ou impondo talvez
a si mesmo, os raciocinios do seu cerebro, para que os meus olhos
não penetrassem de leve, ou os seus não se
detivessem demais, nas amarguras do seu coração.
N'uma carta a Oliveira Martins, de 1883, Fradique diz:―«O
homem, como os antigos reis do Oriente, não se deve mostrar
aos seus semelhantes senão unica e serenamente
occupado
no
officio de reinar―isto é, de pensar».
Esta regra, d'um orgulho apenas permissivel a um Spinosa ou a um Kant,
dirigia severamente a sua conducta. Pelo menos commigo assim se
comportou immutavelmente,
[62]
através da nossa activa convivencia,
não se abrindo, não se offerecendo todo,
senão nas funcções da Intelligencia.
Por isso talvez, mais
que nenhum outro homem, elle exerceu sobre mim imperio e
seducção.
IV
O que impressionava logo na Intelligencia de Fradique, ou antes na sua
maneira de se exercer, era a suprema liberdade junta á
suprema audacia. Não conheci jámais espirito
tão
impermeavel á tyrannia ou á
insinuação das
«idéas feitas»: e decerto nunca um homem
traduziu o seu pensar original e proprio com mais calmo e soberbo
desassombro. «Apesar de trinta seculos de geometria me
affirmarem (diz elle n'uma carta a J. Teixeira d'Azevedo) que
a
linha recta é a mais curta distancia
entre dois pontos, se eu achasse que, para subir da porta do
Hotel Universal á porta da Casa Havaneza, me sahia mais
directo e breve rodear pelo bairro de S. Martinho e pelos altos da
Graça, declararia logo á secular geometria―que a
distancia mais curta entre dois pontos é uma
curva vadia e delirante!». Esta
independencia da Razão, que Fradique assim apregôa
com desordenada Phantasia,
[63]
constitue uma qualidade
rara:―mas o animo de a affirmar intemeratamente diante da magestosa
Tradição, da Regra, e das conclusões
oraculares dos Mestres, é já uma virtude, e
rarissima, de
radiosa excepção!
Fradique (n'outra carta a J. Teixeira d'Azevedo) falla d'um polaco, G.
Cornuski, professor e critico, que escrevia na
Revista Suissa,
e
que (diz Fradique) «constantemente sentia o seu gosto, muito
pessoal e muito decidido, rebellar-se contra obras de Litteratura e de
Arte que a unanimidade critica, desde seculos, tem consagrado como
magistraes―a
Gerusalemme Liberata do Tasso, as
telas do Ticiano, as tragedias de Racine, as
orações de Bossuet, os nossos
Lusiadas,
e
outros monumentos canonizados. Mas, sempre que a sua probidade de
Professor e de Critico lhe impunha a proclamação
da verdade, este homem robusto, sanguineo, que heroicamente se batera
em duas insurreições, tremia,
pensava:―«Não! Porque será o meu
criterio mais seguro que o de tão finos entendimentos
através dos tempos? Quem sabe? Talvez n'essas obras exista a
sublimidade―e só no meu espirito a impotencia de a
comprehender». E o desgraçado Cornuski, com a alma
mais triste que um crepusculo d'outono, continuava, diante dos
córos da
Athalie e das nudezes do Ticiano, a murmurar
desconsoladamente:―«Como é
bello!»
Raros soffrem estas angustias criticas do desditoso
[64]
Cornuski. Todos
porém, com risonha inconsciencia, praticam o seu servilismo
intellectual. Já, com effeito, porque o nosso espirito
não
possua a viril coragem de affrontar a auctoridade d'aquelles a quem
tradicionalmente attribue um criterio mais firme e um saber mais alto;
já porque as idéas estabelecidas, fluctuando
diffusamente na nossa memoria, depois de leituras e conversas, nos
pareçam ser as nossas proprias; já porque a
suggestão d'esses conceitos se imponha e nos leve
subtilmente a concluir em concordancia com elles―a lamentavel verdade
é que hoje todos nós
servilmente tendemos a pensar e sentir como antes de nós e
em torno de nós já se sentiu ou
pensou.
«O homem do seculo XIX, o Europeu, porque só elle
é essencialmente do seculo XIX (diz
Fradique n'uma carta a Carlos Mayer), vive dentro d'uma pallida e morna
infecção
de banalidade, causada pelos quarenta mil volumes que todos
os annos, suando e gemendo, a Inglaterra, a França e a
Allemanha depositam ás esquinas, e em que interminavelmente
e monotonamente reproduzem, com um ou outro arrebique sobreposto, as
quatro idéas e as quatro impressões legadas pela
Antiguidade e pela Renascença. O Estado por meio das suas
escólas canalisa esta
infecção. A isto, oh Carolus, se chama
educar!
A
creança, desde a sua primeira «Selecta de
Leitura» ainda mal soletrada, começa a absorver
esta camada do Logar-Commum―camada que depois todos os
[65]
dias, através da
vida, o Jornal, a Revista, o Folheto, o Livro lhe vão
atochando no espirito até lh'o empastarem todo em
banalidade, e lh'o tornarem tão inutil para a
producção como um
sólo cuja fertilidade nativa morreu sob a areia e pedregulho
de que foi barbaramente alastrado. Para que um Europeu lograsse ainda
hoje ter algumas idéas novas, de viçosa
originalidade, seria necessario que se internasse no Deserto ou nos
Pampas; e ahi esperasse pacientemente que os sopros vivos da Natureza,
batendo-lhe a Intelligencia e d'ella pouco a pouco varrendo os detritos
de vinte seculos de Litteratura, lhe refizessem uma virgindade. Por
isso eu te affirmo, oh Carolus Mayerensis, que a Intelligencia, que
altivamente pretenda readquirir a divina potencia de gerar, deve ir
curar-se da Civilisacão litteraria por meio d'uma residencia
tonica, durante dois annos, entre os Hottentotes e os Patagonios. A
Patagonia opéra sobre o Intellecto como Vichy sobre o
figado―desobstruindo-o, e permittindo-lhe o são exercicio
da funcção natural. Depois de dois annos de vida
selvagem, entre o Hottentote nú movendo-se na plenitude
logica do Instincto,―que restará ao civilisado de todas as
suas idéas sobre o Progresso, a Moral, a
Religião, a Industria, a Economia Politica, a Sociedade e a
Arte? Farrapos. Os pendentes farrapos que lhe restarão das
pantalonas e da quinzena que trouxe da Europa, depois de vinte mezes
[66]
de matagal e de
brejo. E não possuindo em torno de si Livros e Revistas que
lhe renovem uma provisão de «idéas
feitas», nem um benefico Nunes Algibebe que lhe
forneça uma outra andaina de «fato
feito»―o Europeu irá
insensivelmente regressando á nobreza do estado primitivo,
nudez do corpo e originalidade da alma. Quando de lá voltar
é um Adão forte e puro,
virgem de litteratura, com o craneo limpo de todos os conceitos e todas
as noções amontoadas desde Aristoteles podendo
proceder soberbamente a um exame inedito das coisas humanas. Carlos,
espirito que distillas
espiritos, queres
remergulhar nas Origens e vir commigo á inspiradora
Hottentocia? Lá, livres e nús, estirados ao sol
entre a
palmeira e o regato que tutelarmente nos darão o sustento do
corpo, com a nossa lança forte cravada na relva, e mulheres
ao lado vertendo-nos n'um canto dôce a
porção de poesia e de sonho que
a alma precisa―deixaremos livremente as ilhargas crestadas
estalarem-nos de riso á idéa das grandes
Philosophias, e das grandes Moraes, e das grandes Economias, e das
grandes Criticas, e das grandes
Pilherias que vão por
essa Europa, onde densos formigueiros de chapéos altos se
atropellam, estonteados pelas superstições da
civilisação, pela illusão do ouro,
pelo pedantismo das sciencias, pelas
mistificações dos
reformadores pela escravidão da rotina, e pela estupida
admiração de si mesmos!...»
[67]
Assim diz Fradique. Ora este «exame inedito das coisas
humanas», só possivel, segundo o poeta das
Lapidarias, ao
Adão
renovado que regressasse da Patagonia com o espirito escarolado do
pó e do lixo de longos annos de Litteratura―tentou-o elle,
sem deixar os muros classicos da rua de Varennes, com incomparavel
vigor e sinceridade. E n'isto mostrava intrepidez moral. No mundo a que
irresistivelmente o prendiam os seus gostos e os seus habitos―mundo
mediano e regrado, sem
invenção e sem iniciativa intellectual, onde as
Idéas, para agradar, devem ser como as Maneiras,
«geralmente adoptadas» e não
individualmente
creadas―Fradique, com a sua indocil e brusca liberdade de Juizos,
affrontava o perigo de passar por um petulante rebuscador de
originalidade, avido de gloriola e de excessivo destaque. Um espirito
inventivo e novo, com uma força de pensar muito propria,
deixando transbordar a vida abundante e multipla que o anima e
enche―é mais desagradavel a esse mundo do que o homem
rudemente natural que não regre e limite dentro das
«Conveniencias» a espessura da cabelleira, o
estridor das risadas, e o franco mover dos membros grossos. D'esse
espirito indisciplinado e creador, logo se murmura com
desconfiança: «Pretencioso! busca o effeito e o
destaque!» Ora Fradique nada detestava mais intensamente do
que o
effeito e o
destaque excessivo.
Nunca lhe
conheci senão gravatas escuras. E tudo preferiria a ser
apontado
[68]
como um
d'esses homens, que, sem odio sincero a Diana e ao seu culto e
só para que d'elles se falle com espanto nas
praças, vão, em plena festa,
agitando um grande facho, incendiar-lhe o templo em Epheso. Tudo
preferiria―menos (como elle diz n'uma carta a Madame de Jouarre)
«ter de vestir a Verdade nos armazens do Louvre para poder
entrar com ella em casa de Anna de Varle, duqueza de Varle e
d'Orgemont. A entrar hei de levar a minha amiga núa, toda
núa, pisando os tapetes com os seus pés
nús, enristando para os homens as pontas fecundas dos seus
nobres seios nús.
Amicus Mundus, sed magis amica
Veritas! Este bello latim significa, minha madrinha, que eu,
no fundo, julgo que a originalidade é agradavel
ás mulheres e só desagradavel aos homens―o que
duplamente me leva a amal-a com pertinacia».
Esta independencia, esta livre elasticidade de espirito e intensa
sinceridade―impedindo que por seducção elle se
désse todo a um
Systema, onde para sempre permanecesse por inercia―eram de resto as
qualidades que melhor convinham á
funcção intellectual que para Fradique se
tornára a mais continua e preferida.
«Não ha em mim
infelizmente (escrevia elle a Oliveira Martins, em 1882) nem um sabio,
nem um philosopho. Quero dizer, não sou um d'esses homens
seguros e uteis, destinados por temperamento ás analyses
secundarias que se chamam Sciencias, e que consistem
[69]
em reduzir uma
multidão de factos esparsos a Typos e Leis particulares por
onde se explicam modalidades do Universo; nem sou tambem um d'esses
homens, fascinantes e pouco seguros, destinados por genio ás
analyses superiores que se chamam Philosophias, e que consistem em
reduzir essas Leis e esses Typos a uma formula geral por onde se
explica a essencia mesma do inteiro Universo. Não sendo pois
um sabio, nem um philosopho, não posso concorrer para o
melhoramento dos meus semelhantes―nem accrescendo-lhes o bem-estar por
meio da Sciencia que é uma productora de riqueza, nem
elevando-lhes o bem-sentir por meio da Metaphysica que é uma
inspiradora de poesia. A entrada na Historia tambem se me conserva
vedada:―porque, se, para se produzir Litteratura basta possuir
talentos, para tentar a Historia convém possuir virtudes. E
eu!... Só portanto me resta ser, através das
idéas e dos factos, um homem que passa, infinitamente
curioso e attento. A egoista occupação do meu
espirito hoje, caro historiador, consiste em me acercar d'uma
idéa ou d'um facto, deslizar suavemente para dentro,
percorrel-o miudamente, explorar-lhe o inedito, gozar todas as
surprezas e emoções intellectuaes que elle possa
dar, recolher com cuidado o ensino ou a parcella de verdade que exista
nos seus refolhos―e sahir, passar a outro facto ou a outra
idéa, com vagar e com paz, como se percorresse uma a uma as
cidades
[70]
d'um paiz
d'arte e luxo. Assim visitei outr'ora a Italia, enlevado no esplendor
das côres e das fórmas. Temporal e espiritualmente
fiquei simplesmente um
touriste».
Estes
touristes da intelligencia
abundam em França e em Inglaterra. Sómente
Fradique
não se limitava, como esses, a exames exteriores e
impessoaes, á maneira de quem n'uma cidade d'Oriente,
retendo as noções e os gostos de
Europeu, estuda apenas o aéreo relevo dos monumentos e a
roupagem das multidões. Fradique (para continuar a sua
imagem) transformava-se em «cidadão das cidades
que visitava».
Mantinha por principio que se devia momentaneamente
crêr para bem comprehender uma
crença. Assim se fizera babista, para penetrar e desvendar o
Babismo. Assim se afiliára em Paris a um club
revolucionario,
As Pantheras de Batignolles, e
frequentára as suas sessões, encolhido n'uma
quinzena sordida pregada com alfinetes, com a esperança de
lá
colher «a flôr de alguma extravagancia
instructiva». Assim se incorporava em Londres aos
Positivistas rituaes, que, nos dias festivos do Calendario Comtista,
vão queimar o incenso e a myrrha na ara da Humanidade e
enfeitar de rosas a Imagem de Augusto Comte. Assim se ligára
com os
Theosophistas, concorrera prodigamente para a
fundação da
Revista Espiritista,
e presidia as
Evocações da rua Cardinet, envolto na tunica de
linho, entre os dois
mediums supremos, Patoff e
Lady Thorgan. Assim
[71]
habitára durante um longo verão Seo-d'Urgel, a
catholica cidadella do Carlismo, «para destrinçar
bem (diz elle) quaes são os motivos e as formulas que fazem
um
Carlista―porque todo o
sectario obedece á realidade d'um motivo e á
illusão
d'uma formula». Assim se tornára o confidente do
veneravel Principe Koblaskini, para «poder desmontar e
estudar peça a peça o mecanismo d'um cerebro de
Nihilista». Assim se preparava (quando a morte o
surprehendeu) a voltar á India, para se tornar budhista
praticante, e penetrar cabalmente o Budhismo, em que fixára
a curiosidade e actividade critica dos seus derradeiros annos. De sorte
que d'elle bem se póde dizer que foi o devoto de todas as
Religiões, o partidario de todos os Partidos, o discipulo de
todas as Philosophias―cometa errando através das
idéas, embebendo-se convictamente n'ellas, de cada uma
recebendo um accrescimo de substancia, mas em cada uma deixando alguma
coisa do calor e da energia do seu movimento pensante. Aquelles que
imperfeitamente o conheciam classificavam Fradique como um
dilettante. Não! essa séria
convicção (a que os
inglezes chamam
earnestness), com que Fradique se
arremessava ao fundo real das coisas, communicava á sua vida
uma valia e efficacia muito superiores ás que o
dilettantismo, a diversão sceptica que
tantas injurias arrancou a Carlyle, communica ás naturezas
que a elle deliciosamente se abandonam. O
dilettante, com effeito, corre entre as
idéas e os factos como
[72]
as borboletas (a quem
é desde seculos comparado) correm entre as flôres,
para pousar, retomar logo o vôo estouvado, encontrando n'essa
fugidia mutabilidade o deleite supremo. Fradique, porém, ia
como a abelha, de cada planta pacientemente extrahindo o seu
mel:―quero dizer, de cada opinião recolhendo essa
«parcella de verdade» que cada uma invariavelmente
contém, desde que homens, depois de outros homens, a tenham
fomentado com interesse ou paixão.
Assim se exercia esta diligente e alta Intelligencia. Qual era
porém a sua qualidade essencial e intrinseca? Tanto quanto
pude discernir, a suprema qualidade intellectual de Fradique pareceu-me
sempre ser―uma percepção extraordinaria da
Realidade. «Todo o phenomeno (diz elle n'uma carta a Anthero
de Quental, suggestiva através de certa obscuridade que a
envolve) tem uma Realidade. A expressão de
Realidade
não é philosophica; mas eu emprego-a,
lanço-a ao acaso e tenteando, para apanhar dentro d'ella o
mais possivel d'um conceito pouco coercivel, quasi irreductivel ao
verbo. Todo o phenomeno, pois, tem relativamente ao nosso entendimento
e á sua potencia de discriminar, uma Realidade―quero dizer
certos caracteres, ou (para me exprimir por uma imagem, como recommenda
Buffon) certos
contornos que o limitam, o
definem,
lhe dão feição propria no esparso e
universal conjunto, e constituem o seu
exacto,
real e
unico modo de
[73]
ser. Sómente o erro, a
ignorancia, os preconceitos, a tradição, a rotina
e sobretudo a
illusão,
formam em torno de cada phenomeno uma nevoa que esbate e deforma os
seus contornos, e impede que a visão intellectual o divise
no seu
exacto,
real e
unico modo de ser. É
justamente o que succede aos monumentos de Londres mergulhados no
nevoeiro... Tudo isto vai expresso d'um modo bem hesitante e
incompleto! Lá fóra o sol está cahindo
d'um céo fino e nitido sobre o meu quintal de convento
coberto de neve dura: n'este ar tão puro e claro, em que as
coisas tomam um relevo rigido, perdi toda a flexibilidade e fluidez da
technologia philosophica: só me poderia exprimir por imagens
recortadas á tesoura. Mas vossê decerto
comprehenderá, Anthero
excellente e subtil! Já esteve em Londres, no outono, em
novembro? Nas manhãs de nevoeiro, n'uma rua de Londres, ha
difficuldade em distinguir se a sombra densa que ao longe se empasta
é a estatua d'um heroe ou o fragmento d'um tapume. Uma
pardacenta illusão submerge toda a cidade―e com espanto se
encontra n'uma taverna quem julgára penetrar n'um templo.
Ora para a maioria dos espiritos uma nevoa igual fluctua sobre as
realidades da vida e do mundo. D'ahi vem que quasi todos os seus passos
são transvios, quasi todos os seus juizos são
enganos; e estes constantemente estão trocando o Templo e a
Taberna. Raras são as visões intellectuaes
bastante agudas
[74]
e poderosas para romper
através da neblina e surprehender as linhas exactas, o
verdadeiro contorno da Realidade. Eis o que eu queria
tartamudear».
Pois bem! Fradique dispunha de uma d'essas visões
privilegiadas. O proprio modo que tinha de pousar lentamente os olhos e
detalhar em
silencio―como dizia Oliveira Martins―revelava logo o seu
processo interior de concentrar e applicar a Razão,
á maneira de um longo e pertinaz dardo de luz,
até que, desfeitas as nevoas, a Realidade pouco a pouco lhe
surgisse na sua rigorosa e
unica
fórma.
A manifestação d'esta magnifica força
que mais impressionava―era o seu poder de
definir. Possuindo um espirito que
via
com a maxima
exactidão; possuindo um verbo que
traduzia
com
a maxima concisão―elle podia assim dar resumos
absolutamente profundos e perfeitos. Lembro que uma noite, na sua casa
da rua de Varennes, em Paris, se discutia com ardor a natureza da Arte.
Repetiram-se todas as definições de Arte,
enunciadas desde Platão: inventaram-se outras, que eram,
como sempre, o phenomeno visto limitadamente através d'um
temperamento. Fradique conservou-se algum tempo mudo, dardejando os
olhos para o vago. Por fim, com essa maneira lenta (que para os que
incompletamente o conheciam parecia professoral) murmurou, no silencio
deferente que se alargára:―«A Arte é
um resumo da
Natureza feito pel
com
a maxima concisão―elle podia assim dar resumos
absolutamente profundos e perfeitos. Lembro que uma noite, na sua casa
da rua de Varennes, em Paris, se discutia com ardor a natureza da Arte.
Repetiram-se todas as definições de Arte,
enunciadas desde Platão: inventaram-se outras, que eram,
como sempre, o phenomeno visto limitadamente através d'um
temperamento. Fradique conservou-se algum tempo mudo, dardejando os
olhos para o vago. Por fim, com essa maneira lenta (que para os que
incompletamente o conheciam parecia professoral) murmurou, no silencio
deferente que se alargára:―«A Arte é
um resumo da
Natureza feito pela imaginação».
[75]
Certamente, não conheço mais completa
definição d'Arte! E com razão
affirmava um amigo nosso, homem de excellente phantasia, que
«se o bom Deus, um dia, compadecido das nossas
hesitações, nos atirasse lá de cima,
do seu divino ermo, a final explicação da Arte,
nós
ouviriamos resoar entre as nuvens, soberba como o rolar de cem carros
de guerra, a definição de
Fradique!»
A superior intelligencia de Fradique tinha o apoio de uma cultura forte
e rica. Já os seus instrumentos de saber eram consideraveis.
Além d'um solido conhecimento das linguas classicas (que, na
sua idade de Poesia e de Litteratura decorativa, o
habilitára a crear em latim barbaro poemetos tão
bellos como o
Laus Veneris
tenebros[ae])―possuia profundamente os idiomas das tres
grandes nações pensantes, a França, a
Inglaterra e a Allemanha. Conhecia tambem o arabe, que (segundo me
affirmou Riaz-Effendi, chronista do sultão Abdul-Aziz)
fallava com abundancia e gosto.
As sciencias naturaes eram-lhe queridas e familiares; e uma insaciavel
e religiosa curiosidade do Universo impellira-o a estudar tudo o que
divinamente o compõe, desde os insectos até aos
astros. Estudos carinhosamente feitos com o
coração―porque Fradique sentia pela Natureza,
sobretudo pelo animal e pela planta, uma ternura e uma
veneração genuinamente budhistas. «Amo
a Natureza
[76]
(escrevia-me elle em 1882) por si mesma, toda e individualmente, na
graça e na fealdade de cada uma das fórmas
innumeraveis que a enchem: e amo-a ainda como
manifestação tangivel e multipla da suprema
Unidade, da Realidade intangivel, a que cada Religião e cada
Philosophia deram um nome diverso e a que eu presto culto sob o nome de
Vida.
Em resumo
adoro a Vida―de que são igualmente expressões
uma rosa e uma chaga, uma constellação e (com
horror o confesso) o conselheiro Acacio. Adoro a Vida e portanto tudo
adoro―porque tudo é viver, mesmo morrer. Um cadaver rigido
no seu esquife vive tanto como uma aguia batendo furiosamente o
vôo. E a minha religião está toda no
credo de Athanasio, com uma pequena variante:―«Creio na
Vida
toda-poderosa, creadora do
céo e da terra...»
Quando começou porém a nossa intimidade, em 1880,
o seu inquieto espirito mergulhava de preferencia nas sciencias
sociaes, aquellas sobretudo que pertencem á Pre-historia―a
Anthropologia, a Linguistica, o estudo das Raças, dos Mythos
e das
Instituições Primitivas. Quasi todos os tres
mezes, altas rumas de livros enviadas da casa Hachette, densas camadas
de Revistas especiaes, alastrando o tapete de Caramania, indicavam-me
que uma nova curiosidade se apoderára d'elle com intensidade
e paixão. Conheci-o assim successiva e ardentemente occupado
com os monumentos megalithicos da Andaluzia;
[77]
com as
habitações lacustres; com a
mythologia dos povos Aryanos; com a magia Chaldaica; com as
raças Polynesias; com o direito costumario dos Cafres; com a
christianisação dos Deuses Pagãos...
Estas aferradas
investigações duravam emquanto podia extrahir
d'ellas «alguma emoção ou surpreza
intellectual».
Depois, um dia, Revistas e volumes desappareciam, e Fradique annunciava
triumphalmente alargando os passos alegres por sobre o tapete
livre:―«Sorvi todo o
Sabeismo!», ou «Esgotei os Polynesios!»
O estudo porém a que se prendeu ininterrompidamente, com
especial constancia, foi o da Historia. «Desde pequeno
(escrevia elle a Oliveira Martins, n'uma das suas ultimas cartas, em
1886) tive a paixão da Historia. E adivinha vossê
porquê, Historiador? Pelo confortavel e conchegado sentimento
que ella me dava da solidariedade humana. Quando fiz onze annos, minha
avó, de repente,
para me
habituar ás coisas duras da vida (como ella
dizia),
arrancou-me ao pachorrento ensino do padre Nunes, e mandou-me a uma
escóla chamada
Terceirense. O jardineiro levava-me pela
mão: e todos os dias a avó me dava com
solemnidade um pataco para eu comprar na tia Martha, confeiteira da
esquina, bolos para a minha merenda. Este creado, este pataco, estes
bolos, eram costumes novos que feriam o meu monstruoso orgulho de
morgadinho―por me descerem ao nivel humilde dos filhos do nosso
procurador. Um dia, porém, folheando
[78]
uma
Encyclopedia
de Antiguidades
Romanas, que tinha estampas, li, com surpreza, que os
rapazes em Roma (na grande Roma!) iam tambem de manhã para a
escóla, como eu, pela mão d'um servo―denominado
o
Capsarius; e compravam tambem, como eu, um bolo
n'uma tia Martha do Velabro ou das Carinas, para comerem á
merenda―que chamavam o
Ientaculum. Pois, meu caro, no mesmo instante a
veneravel antiguidade d'esses habitos tirou-lhes a vulgaridade toda que
n'elles me humilhava tanto! Depois de os ter detestado por serem
communs aos filhos do Silva procurador―respeitei-os por terem sido
habituaes nos filhos de Scipião. A compra do bolo tornou-se
como um rito que desde a Antiguidade todos os rapazes de
escóla cumpriam, e que me era dado por meu turno celebrar
n'uma honrosa solidariedade com a grande gente togada. Tudo isto,
evidentemente, não o sentia com esta clara consciencia. Mas
nunca entrei d'ahi por diante na tia Martha, sem erguer a
cabeça, pensando com uma vangloria
heroica:―«Assim faziam tambem os romanos!» Era por
esse tempo pouco mais alto que uma espada gôda, e amava uma
mulher obesa que morava ao fim da rua...»
N'essa mesma carta, adiante, Fradique accrescenta:―«Levou-me
pois effectivamente á Historia o meu amor da Unidade―amor
que envolve o horror ás interrupções,
ás lacunas, aos espaços escuros onde se
não sabe o que ha. Viajei
[79]
por toda a parte viajavel, li todos
os livros de explorações e de travessias―porque
me repugnava não conhecer o globo em que habito
até aos seus extremos limites, e não sentir a
contínua solidariedade do pedaço de terra que
tenho sob os pés com toda a outra terra que se arqueia para
além. Por isso, incansavelmente exploro a Historia, para
perceber até aos seus derradeiros limites a Humanidade a que
pertenço, e sentir a compacta solidariedade do meu
sêr com a de todos os que me precederam na vida. Talvez
vossê murmure com desdem―«mera
bisbilhotice!» Amigo meu, não despreze a
bisbilhotice! Ella é um impulso humano, de latitude
infinita, que, como todos, vai do reles ao sublime. Por um lado leva a
escutar ás portas―e pelo outro a descobrir a
America!»
O saber historico de Fradique surprehendia realmente pela amplexidade e
pelo detalhe. Um amigo nosso exclamava um dia, com essa ironia affavel
que nos homens de raça celtica sublinha e corrige a
admiração:―«Aquelle
Fradique! Tira a charuteira, e dá uma synthese profunda,
d'uma transparencia de crystal, sobre a guerra do Peloponeso;―depois
accende o charuto, e explica o feitio e o metal da fivela do
cinturão de
Leonidas!» Com effeito, a sua forte capacidade de
comprehender philosophicamente os movimentos collectivos, o seu fino
poder de evocar psychologicamente os caracteres individuaes―alliava-se
n'elle
[80]
a um minucioso
saber archeologico da vida, das maneiras, dos trajes, das armas, das
festas, dos ritos de todas as idades, desde a India Vedica
até á França Imperial. As suas cartas
a Oliveira
Martins (sobre o Sebastianismo, o nosso Imperio no Oriente, o Marquez
de Pombal)
[1]
são verdadeiras maravilhas pela sagaz
intuição, a alta potencia
synthetica, a certeza do saber, a força e a abundancia das
idéas novas. E, por outro lado, a sua
erudição archeologica repetidamente esclareceu e
auxiliou, na sabia composição das suas telas, o
paciente e fino reconstructor dos Costumes e das Maneiras da
Antiguidade Classica, o velho Suma-Rabêma. Assim m'o
confessou uma tarde Suma-Rabêma, regando as roseiras, no seu
jardim de Chelsea.
Fradique era de resto ajudado por uma prodigiosa memoria que tudo
recolhia e tudo retinha―vasto e claro armazem de factos, de
noções, de fórmas, todos bem
arrumados, bem classificados, promptos sempre a servir. O nosso amigo
Chambray affirmava que, comparavel á memoria de Fradique,
como «installação, ordem e
excellencia do
stock», só
conhecia a adega do café Inglez.
[81]
A cultura de Fradique recebia um constante alimento e accrescimo das
viagens que sem cessar emprehendia, sob o impulso de
admirações ou de curiosidades intellectuaes.
Só a Archeologia o levou quatro vezes ao Oriente:―ainda que
a sua derradeira residencia em Jerusalem, durante dezoito mezes, foi
motivada (segundo me affirmou o consul Raccolini) por poeticos amores
com uma das mais esplendidas mulheres da Syria, uma filha de Abraham
Côppo, o faustoso banqueiro de Aleppo, tão
lamentavelmente morta depois, sobre as tristes costas de Chypre, no
naufragio do
Magnolia. A sua aventurosa e aspera
peregrinação pela China, desde o Thibet (onde
quasi deixou a vida, tentando temerariamente penetrar na cidade sagrada
de Lahsá) até á alta
Manchuria, constitue o mais completo estudo até hoje
realisado por um homem da Europa sobre os Costumes, o Governo, a Ethica
e a Litteratura d'esse povo «profundo entre todos, que (como
diz Fradique) conseguiu descobrir os tres ou quatro unicos principios
de moral capazes, pela sua absoluta força, de eternisar uma
civilisação».
O exame da Russia e dos seus movimentos sociaes e religiosos
trouxeram-no prolongados mezes pelas provincias ruraes d'entre o
Dnieper e o Volga. A necessidade d'uma certeza sobre os Presidios
Penaes da Siberia impelliu-o a affrontar centenas de milhas de steppes
e de neves, n'uma rude telega, até ás minas de
prata de Nerchinski. E
proseguiria
[82]
n'este
activo interesse, se não recebesse subitamente, ao chegar
á costa, a Archangel, este aviso do general Armankoff, chefe
da IV secção da
policia imperial:―
Monsieur, vous nous observez de trop
près, pour que votre jugement n'en soit faussé;
je vous invite donc, sur votre
intérêt, et pour avoir de la Russie une vue
d'ensemble plus exacte, d'aller la regarder de plus loin, dans votre
belle maison de Paris!―Fradique abalou para Vasa, sobre o
golfo de Bothnia. Passou logo á Suecia, e mandou de
lá, sem data, este bilhete ao general Armankoff:―
Monsieur,
j'ai reçu votre
invitation où il y a beaucoup d'intolerance et trois fautes
de français.
Os mesmos interesses de espirito e «necessidades de
certeza» o levaram na America do Sul desde o Amazonas
até ás areias da Patagonia, o levaram na Africa
Austral desde o Cabo até aos Montes de Zokunga...
«Tenho folheado e lido attentamente o mundo como um livro
cheio de idéas. Para vêr
por
fóra, por mera festa dos olhos, nunca fui
senão a Marrocos».
O que tornava estas viagens tão fecundas como ensino era a
sua rapida e carinhosa sympathia por todos os povos. Nunca visitou
paizes á maneira do detestavel
touriste
francez, para
notar de alto e pêcamente «os
defeitos»―isto
é, as divergencias d'esse typo de
civilisação mediano e generico d'onde sahia e que
preferia. Fradique amava logo os costumes, as idéas, os
preconceitos dos homens
[83]
que o cercavam: e, fundindo-se com elles no seu modo de pensar e
de sentir, recebia uma lição directa e viva de
cada sociedade em que
mergulhava. Este efficaz preceito―«
em Roma
sê
romano»―tão facil e dôce de
cumprir em Roma, entre as vinhas da collina Celia e as aguas
susurrantes da Fonte Paulina, cumpria-o elle gostosamente trilhando com
as alpercatas rotas os desfiladeiros do Himalaya. E estava
tão homogeneamente n'uma cervejaria philosophica da
Allemanha, aprofundando o Absoluto entre professores de Tubingen―como
n'uma aringa africana da terra dos Matabeles, comparando os meritos da
carabina «Express» e da carabina Winchester, entre
caçadores de elephantes.
Desde 1880 os seus movimentos pouco a pouco se concentraram entre Paris
e Londres―com excepção das «visitas
filiaes» a Portugal: porque, apesar da sua
dispersão pelo mundo, da sua facilidade em se nacionalisar
nas terras alheias, e da sua impersonalidade critica, Fradique foi
sempre um genuino Portuguez com irradicaveis traços de
fidalgo ilhéo.
O mais puro e intimo do seu interesse deu-o sempre aos homens e
ás coisas de Portugal. A compra da quinta do
Saragoça, em Cintra,
realisára-a (como diz n'uma carta a F. G., com desacostumada
emoção) «para
ter
terra em Portugal,
[84]
e para se prender pelo forte vinculo
da propriedade ao sólo augusto d'onde um dia tinham partido,
levados por um ingenuo tumulto de idéas grandes, os seus
avós, buscadores de mundos, de quem elle herdára
o sangue e a curiosidade do
além!»
Sempre que vinha a Portugal ia «retemperar a fibra»
percorrendo uma provincia, lentamente, a cavallo―com demoras em villas
decrepitas que o encantavam, infindaveis cavaqueiras á
lareira dos campos, fraternisações ruidosas nos
adros e nas tavernas, idas festivas a romarias no carro de bois, no
vetusto e veneravel carro sabino, toldado de chita, enfeitado de louro.
A sua região preferida era o Ribatejo, a terra
chã da leziria e do boi. «Ahi (diz elle), de
jaleca e cinta, montado n'um potro, com a vara de campino erguida,
correndo entre as manadas de gado, nos finos e lavados ares da
manhã, sinto, mais que em nenhuma outra parte, a delicia de
viver».
Lisboa só lhe agradava―como paizagem. «Com tres
fortes retoques (escrevia-me elle em 1881, do Hotel Braganza), com
arvoredo e pinheiros mansos plantados nas collinas calvas da
Outra-Banda; com azulejos lustrosos e alegres revestindo as fachadas
sujas do casario; com uma varredella definitiva por essas bemditas
ruas―Lisboa seria uma d'essas bellezas da Natureza creadas pelo Homem,
que se tornam um motivo de sonho, de arte e de
peregrinação. Mas uma
[85]
existencia enraizada em Lisboa
não me parece toleravel. Falta aqui uma atmosphera
intellectual onde a alma respire. Depois certas
feições,
singularmente repugnantes, dominam. Lisboa é uma cidade
alitteratada,
afadistada,
catita e
conselheiral. Ha
litteratice
na simples maneira
com que um caixeiro vende um metro de fita; e, nas proprias
graças com que uma senhora recebe, transparece
fadistice:
mesmo na Arte ha
conselheirismo; e ha
catitismo
mesmo nos cemiterios.
Mas a nausea suprema, meu amigo, vem da politiquice e dos
politiquetes».
Fradique nutria pelos politicos todos os horrores, os mais
injustificados: horror intellectual, julgando-os incultos, broncos,
inaptos absolutamente para crear ou comprehender idéas;
horror mundano, presuppondo-os reles, de maneiras crassas, improprios
para se misturar a naturezas de gosto; horror physico, imaginando que
nunca se lavavam, rarissimamente mudavam de meias, e que d'elles
provinha esse cheiro morno e molle que tanto surprehende e enoja em S.
Bento aos que d'elle não têm o habito
profissional.
Havia n'estas ferozes opiniões, certamente, laivos de
perfeita verdade. Mas em geral, os juizos de Fradique sobre a Politica
offereciam o cunho d'um preconceito que dogmatisa―e não
d'uma observação que discrimina. Assim lh'o
affirmava eu uma manhã, no Braganza, mostrando que todas
essas deficiencias de espirito, de cultura, de maneiras,
[86]
de gosto, de finura,
tão acerbamente notadas por elle nos Politicos―se explicam
sufficientemente pela precipitada democratisação
da nossa
sociedade; pela rasteira vulgaridade da vida provincial; pelas
influencias abominaveis da Universidade; e ainda por intimas
razões que são no fundo
honrosas para esses desgraçados Politicos, votados por um
fado vingador á destruição da nossa
terra.
Fradique replicou simplesmente:
―Se um rato morto me disser,―«eu cheiro mal por isto e por
aquillo e sobretudo porque apodreci»,―eu nem por isso deixo
de o mandar varrer do meu quarto.
Havia aqui uma antipathia de instincto, toda physiologica, cuja
intransigencia e obstinação
nem factos nem raciocinios podiam vencer. Bem mais justo era o horror
que lhe inspirava, na vida social de Lisboa, a inhabil, descomedida e
papalva imitacão de Paris. Essa «saloia
macaqueação», superiormente denunciada
por elle n'uma carta que me escreveu em 1885, e onde assenta, n'um
luminoso resumo, que «
Lisboa é uma
cidade
traduzida do francez em calão»―tornava-se
para Fradique, apenas transpunha Santa Apolonia, um tormento sincero. E
a sua anciedade perpetua era então descobrir,
através da frandulagem do Francezismo, algum resto do
genuino Portugal.
Logo a comida constituia para elle um real desgosto. A cada instante em
cartas, em conversas, se lastíma de não poder
conseguir «um cozido
[87]
vernaculo!»―«Onde estão (exclama
elle, algures) os pratos veneraveis do Portugal portuguez, o pato com
macarrão do seculo XVIII, a almondega indigesta e divina do
tempo das descobertas, ou essa maravilhosa cabidella de frango, petisco
dilecto de D. João IV, de que os fidalgos inglezes que
vieram ao reino buscar a noiva de Carlos II levaram para Londres a
surprehendente noticia? Tudo estragado! O mesmo provincianismo reles
põe em calão as comedias de Labiche e os acepipes
de Gouffé. E estamo-nos nutrindo miseravelmente dos sobejos
democraticos do
boulevard, requentados, e
servidos em chalaça e galantine! Desastre estranho! As
coisas mais deliciosas de Portugal, o lombo de porco, a vitella de
Lafões, os legumes, os dôces, os vinhos,
degeneraram,
insipidaram...
Desde quando? Pelo que dizem os velhos, degeneraram desde o
Constitucionalismo e o Parlamentarismo. Depois d'esses enxertos
funestos no velho tronco lusitano, os fructos têm perdido o
sabor, como os homens têm perdido o caracter...»
Só uma occasião, n'esta especialidade
consideravel, o vi plenamente satisfeito. Foi n'uma taverna da Mouraria
(onde eu o levára), diante d'um prato complicado e profundo
de bacalhau, pimentos e grão de bico. Para o gozar com
coherencia Fradique despiu a sobrecasaca. E como um de nós
lançára casualmente o nome de Renan, ao atacarmos
o piteu sem igual, Fradique protestou com paixão:
[88]
―Nada de idéas! Deixem-me saborear esta bacalhoada, em
perfeita innocencia de espirito, como no tempo do Senhor D.
João V, antes da Democracia e da Critica!
A saudade do velho Portugal era n'elle constante: e considerava que,
por ter perdido esse typo de civilisação
intensamente original, o mundo
ficára diminuido. Este amor do passado revivia n'elle, bem
curiosamente, quando via realisados em Lisboa, com uma
inspiração original, o luxo e o
«modernismo» intelligente das
civilisações mais saturadas de cultura e
perfeitas em gosto. A derradeira vez que o encontrei em Lisboa foi no
Rato―n'uma festa de raro e delicado brilho. Fradique parecia desolado:
―Em Paris, affirmava elle, a duqueza de La Rochefoucauld-Bisaccia
póde dar uma festa igual: e para isto não me
valia a pena ter feito a quarentena em Marvão! Supponha
porém vossê que eu vinha achar aqui um sarau do
tempo da Senhora D. Maria I, em casa dos Marialvas, com fidalgas
sentadas em esteiras, frades tocando o lundum no bandolim,
desembargadores pedindo mote, e os lacaios no pateo, entre os mendigos,
rezando em côro a ladainha!... Ahi estava uma coisa unica,
deliciosa, pela qual se podia fazer a viagem de Paris a Lisboa em
liteira!
Um dia que jantavamos em casa de Carlos Mayer, e que Fradique
lamentava, com melancolica sinceridade, o velho Portugal fidalgo e
fradesco
[89]
do tempo
do snr. D. João V―Ramalho Ortigão não
se conteve:
―Vossê é um monstro, Fradique! O que
vossê queria era habitar o confortavel Paris do meado do
seculo XIX, e ter aqui, a dois dias de viagem, o Portugal do seculo
XVIII, onde podesse vir, como a um museu, regalar-se de pittoresco e de
archaismo... Vossê, lá na rua de Varennes,
consolado de decencia e de ordem. E nós aqui, em viellas
fedorentas, inundados á noite pelos despejos d'aguas sujas,
aturdidos pelas arruaças do marquez de Cascaes ou do conde
d'Aveiras, levados aos empurrões para a enxovia pelos
malsins da Intendencia, etc. etc... Confesse que é o que
vossê queria!
Fradique volveu serenamente:
―Era bem mais digno e bem mais patriotico que em logar de vos
vêr aqui, a vós, homens de letras, esticados nas
gravatas e nas idéas que toda a Europa usa, vos encontrasse
de cabelleira e rabicho, com as velhas algibeiras da casaca de
sêda cheias d'odes shaphicas, encolhidinhos no salutar terror
d'El-Rei e do Diabo, rondando os pateos da casa de Marialva ou
d'Aveiro, á espera que os senhores, de cima, depois de dadas
as graças, vos mandassem por um pretinho, os restos do
perú e o mote. Tudo isso seria dignamente portuguez, e
sincero; vós não merecieis melhor; e a vida
não é possivel sem um bocado de pittoresco depois
do almoço.
Com effeito, n'esta saudade de Fradique pelo
[90]
Portugal antigo, havia amor do
«pittoresco»,
estranho n'um homem tão subjectivo e intellectual: mas
sobretudo havia o odio a esta universal
modernisação que reduz todos os costumes,
crenças, idéas, gostos, modos, os mais ingenitos
e mais originalmente
proprios, a um typo uniforme (representado pelo
sujeito
utilitario e
sério de sobrecasaca preta)―com a monotonia com
que o chinez apara todas as arvores d'um jardim, até lhes
dar a
fórma unica e dogmatica de pyramide ou de vaso funerario.
Por isso Fradique em Portugal amava sobretudo o povo―o povo que
não mudou, como não muda a Natureza que o envolve
e lhe communica os seus caracteres graves e dôces. Amava-o
pelas suas qualidades, e tambem pelos seus defeitos:―pela sua morosa
paciencia de boi manso; pela alegria idyllica que lhe poetisa o
trabalho; pela calma acquiescencia á vassallagem com que
depois do
Senhor Rei venera o
Senhor
Governo; pela sua doçura amaviosa e naturalista;
pelo seu catholicismo pagão, e carinho fiel aos Deuses
latinos, tornados santos calendares; pelos seus trajes, pelos seus
cantos... «Amava-o ainda (diz elle) pela sua linguagem
tão bronca e pobre, mas a unica em Portugal onde se
não sente odiosamente a influencia do Lamartinismo ou das
Sebentas
de
de
Direito Publico».
[91]
V
A ultima vez que Fradique visitou Lisboa foi essa em que o encontrei no
Rato, lamentando os saraus beatos e secios do seculo XVIII. O antigo
poeta das
Lapidarias
tinha
então cincoenta annos; e cada dia se prendia mais
á quieta doçura dos
seus habitos de Paris.
Fradique habitava, na rua de Varennes, desde 1880, uma ala do antigo
palacio dos Duques de Tredennes que elle mobilára com um
luxo sobrio e grave―tendo sempre detestado esse atulhamento de alfaias
e estofos, onde inextricavelmente se embaralham e se contradizem as
Artes e os Seculos, e que, sob o barbaro e justo nome de
bric-à-brac, tanto seduz os financeiros
e as
cocottes. Nobres e ricas tapeçarias de
Paizagem e de Historia; amplos divans d'Aubusson; alguns moveis d'arte
da Renascença Franceza; porcelanas raras de Deft e da China;
espaço, claridade, uma harmonia de tons castos―eis o que se
encontrava nas cinco salas que constituiam o
«covil» de Fradique. Todas as varandas, de ferro
rendilhado, datando de Luiz XIV, abriam sobre um d'esses jardins de
arvores antigas, que, n'aquelle bairro fidalgo e ecclesiastico, formam
retiros de silencio e paz silvana, onde por vezes nas noites de maio se
arrisca a cantar um rouxinol.
A vida de Fradique era medida por um relogio
[92]
secular, que precedia o
toque lento e quasi austero das horas com uma toada argentina de antiga
dança de côrte: e era mantida n'uma immutavel
regularidade pelo seu creado Smith, velho escossez da
clan
dos Macduffs, já
todo branco de pello e ainda todo rosado de pelle, que havia trinta
annos o acompanhava, com severo zêlo, através da
vida e do mundo.
De manhã, ás nove horas, mal se espalhavam no ar
os compassos gentis e melancolicos d'aquelle esquecido minuete de
Cimarosa ou de Haydin, Smith rompia pelo quarto de Fradique, abria
todas as janellas á luz, gritava:―
Morning,
Sir! Immediatamente Fradique, dando de entre a roupa um
salto brusco que considerava «de hygiene
transcendente», corria ao immenso laboratorio de marmore, a
esponjar a face e a cabeça em agua fria, com um resfolgar de
Trytão ditoso. Depois, enfiando uma das cabaias de
sêda que tanto me maravilhavam, abandonava-se, estirado n'uma
poltrona, aos cuidados de Smith que, como barbeiro (affirmava Fradique)
reunia a ligeireza macia de Figaro á sapiencia confidencial
do velho Oliveiro de Luiz XI. E, com effeito, emquanto o ensaboava e
escanhoava, Smith ia dando a Fradique um resumo nitido, solido, todo em
factos, dos telegrammas politicos do
Times, do
Standard e da
Gazeta de Colonia!
Era para mim uma surpreza, sempre renovada e saborosa, vêr
Smith, com a sua alta gravata branca
[93]
á Palmerston, a
rabona curta, as calças de
xadrez verde e preto (côres da sua
clan), os sapatos de verniz decotados, passando o
pincel na barba do amo, e murmurando, em perfeita sciencia e perfeita
consciencia:―«Não se realisa a
conferencia do principe de Bismarck com o conde Kalnocky... Os
conservadores perderam a eleição supplementar de
York... Fallava-se hontem em Vienna d'um novo emprestimo
russo...» Os amigos em Lisboa riam d'esta
«caturreira»; mas Fradique sustentava que havia
aqui um proveitoso regresso á tradição
classica, que em
todo o mundo latino, desde Scipião o Africano, instituira os
barbeiros como «informadores universaes da coisa
publica». Estes curtos resumos de Smith formavam a carcassa
das suas noções politicas: e Fradique nunca
dizia―«Li no
Times»―mas «Li no
Smith».
Bem barbeado, bem informado, Fradique mergulhava n'um banho
ligeiramente tepido, d'onde voltava para as mãos vigorosas
de Smith, que, com um jogo de luvas de lã, de flanella,
d'estopa, de clina e de pelle de tigre, o friccionava até
que o corpo todo se lhe tornasse, como o de Apollo, «roseo e
reluzente». Tomava então o seu
chocolate; e recolhia á bibliotheca, sala séria e
simples, onde uma imagem da Verdade, radiosamente branca na sua nudez
de marmore, pousava o dedo subtil sobre os labios puros, symbolisando,
em frente á vasta mesa de ébano, um trabalho todo
intimo
[94]
á
busca de verdades que não são
para o ruido e para o mundo.
Á uma hora almoçava, com a sobriedade d'um grego,
ovos e legumes:―e depois, estendido n'um divan, tomando goles lentos
de chá russo, percorria nos Jornaes e nas Revistas as
chronicas d'arte, de litteratura, de theatro ou de sociedade, que
não eram da competencia politica de Smith. Lia
então tambem com cuidado os jornaes portuguezes (que chama
algures «phenomenos picarescos de
decomposição social»), sempre
caracteristicos, mas superiormente interessantes para quem como elle se
comprazia em analysar «a obra genuina e sincera da
mediocridade», e considerava Calino tão digno
d'estudo como Voltaire. O resto do dia dava-o aos amigos, ás
visitas, aos
ateliers, ás salas
d'armas, ás exposições, aos clubs―aos
cuidados
diversos que se cria um homem d'alto gosto vivendo n'uma cidade d'alta
civilisacão.
De tarde subia ao
Bois conduzindo o
seu phaeton, ou montando a
Sabá, uma
maravilhosa egoa das caudelarias de Aïn-Weibah que lhe cedera
o Emir de Mossul. E a sua noite (quando não tinha cadeira na
Opera ou na
Comédie) era passada
n'algum salão―precisando sempre findar o seu dia entre
«o ephemero feminino». (Assim dizia
Fradique).
A influencia d'este «feminino» foi suprema na sua
existencia. Fradique amou mulheres; mas fóra d'essas, e
s
A influencia d'este «feminino» foi suprema na sua
existencia. Fradique amou mulheres; mas fóra d'essas, e
sobre todas as coisas, amava a Mulher.
[95]
A sua conducta para com as mulheres era governada conjuntamente por
devoções de espiritualista, por curiosidades de
critico, e por exigencias de sanguineo. Á maneira dos
sentimentaes da
Restauração, Fradique considerava-as como
«organismos» superiores, divinamente complicados,
differentes e mais proprios de adoração do que
tudo o que offerece a Natureza: ao mesmo tempo, através
d'este culto, ia dissecando e estudando esses «organismos
divinos», fibra a fibra, sem respeito, por paixão
de analysta; e frequentemente o critico e o enthusiasta desappareciam
para só restar n'elle um homem amando a mulher, na simples e
boa lei natural, como os Faunos amavam as Nymphas.
As mulheres, além d'isso, estavam para elle (pelo menos nas
suas theorias de conversação) classificadas em
especies. Havia a «mulher
d'exterior», flôr de luxo e de mundanismo culto: e
havia a «mulher d'interior», a que guarda o lar,
diante da qual, qualquer que fosse o seu brilho, Fradique conservava um
tom penetrado de respeito, excluindo toda a
investigação experimental. «Estou em
presença d'estas (escreve elle a Madame de Jouarre), como em
face d'uma carta alheia fechada com sinete e lacre». Na
presença,
porém, d'aquellas que se «exteriorisam»
e vivem todas no ruido e na phantasia, Fradique achava-se
tão livre e tão irresponsavel como perante um
volume impresso. «Folhear o livro (diz elle ainda a Madame de
Jouarre), annotal-o nas margens assetinadas,
[96]
critical-o em voz alta com
independencia e veia, leval-o no coupé para lêr
á noite em
casa, aconselhal-o a um amigo, atiral-o para um canto percorridas as
melhores paginas―é bem permittido, creio eu, segundo a
Cartilha e o Codigo».
Seriam estas subtilezas (como suggeria um cruel amigo nosso) as d'um
homem que theorisa e idealisa o seu temperamento de carrejão
para o tornar litterariamente interessante? Não sei. O
commentario mais instructivo das suas theorias dava-o elle, visto n'uma
sala, entre «o ephemero feminino». Certas mulheres
muito voluptuosas, quando escutam um homem que as perturba, abrem
insensivelmente os labios. Em Fradique eram os olhos que se alargavam.
Tinha-os pequenos e côr de tabaco: mas junto d'uma d'essas
mulheres de exterior, «estrellas de mundanismo»,
tornavam-se-lhe immensos, cheios de luz negra, avelludados, quasi
humidos. A velha lady Mongrave comparava-os «ás
guelas abertas de duas
serpentes». Havia alli com effeito um acto de
alliciação e de
absorpção―mas havia sobretudo a evidencia da
perturbação e do encanto que o inundavam. N'essa
attenção de beato diante da Virgem, no murmurio
quente da voz mais amollecedora que um ar de estufa, no humedecimento
enleado dos seus olhos finos,―as mulheres viam apenas a influencia
omnipotentemente vencedora das suas graças de
Fórma e d'Alma sobre um homem esplendidamente viril. Ora
nenhum homem mais perigoso do
[97]
que aquelle que dá sempre
ás mulheres a
impressão clara, quasi tangivel―de que ellas são
irresistiveis, e subjugam o coração mais rebelde
só com mover os hombros lentos ou murmurar «que
linda tarde!» Quem se mostra facilmente seduzido―facilmente
se torna seductor. É a lenda india, tão sagaz e
real, do espelho encantado em que a velha Maharina se via radiosamente
bella. Para obter e reter esse espelho, em que com tanto esplendor se
reflecte a sua pelle engilhada―que peccados e que
traições não
commetterá a Maharina?...
Creio, pois, que Fradique foi profundamente amado, e que magnificamente
o mereceu. As mulheres encontravam n'elle esse sêr, raro
entre os homens―um Homem. E para ellas Fradique possuia esta
superioridade inestimavel, quasi unica na nossa
geração―uma alma extremamente sensivel,
servida por um corpo extremamente forte.
De maior duração e intensidade que os seus amores
foram todavia as amizades que Fradique a si attrahiu pela sua
excellencia moral. Quando eu conheci Fradique em Lisboa, no remoto anno
de 1867, julguei sentir na sua natureza (como no seu verso) uma
impassibilidade brilhante e metallica: e através da
admiração que me
deixára a sua arte, a sua personalidade, o seu
viço, a sua cabaia de sêda―confessei um dia a J.
Teixeira d'Azevedo
[98]
que não encontrára no poeta das
Lapidarias aquelle
tepido
leite da bondade humana, sem
o qual o velho Shakspeare (nem eu, depois d'elle) comprehendia que um
homem fosse digno da humanidade. A sua mesma polidez, tão
risonha e perfeita, me parecera mais composta por um systema do que
genuinamente ingenita. Decerto, porém, concorreu para a
formação d'este juizo uma carta
(já velha, de 1855) que alguem me confiou, e em que
Fradique, com toda a leviana altivez da mocidade, lançava
este rude programma de conducta:―«Os homens nasceram para
trabalhar, as mulheres para chorar, e nós, os fortes, para
passar friamente através!...»
Mas em 1880, quando a nossa intimidade uma noite se fixou a uma mesa do
Bignon, Fradique tinha cincoenta annos: e, ou porque eu
então o observasse com uma assiduidade mais penetrante, ou
porque n'elle se tivesse já operado com a idade esse
phenomeno que Fustan de Carmanges chamou depois
le degel de
Fradique, bem
cedo senti, através da impassibilidade marmorea do
cinzelador das
Lapidarias,
brotar,
tepida e
generosamente, o
leite da bondade humana.
A forte expressão de virtude que n'elle logo me impressionou
foi a sua incondicional e irrestricta indulgencia. Ou por uma
conclusão da sua philosophia, ou por uma
inspiração da sua natureza―Fradique, perante o
peccado e o delicto, tendia áquella velha misericordia
evangelica que, consciente da
[99]
universal fragilidade, pergunta
d'onde se erguerá a mão bastante pura para
arremessar a primeira pedra ao erro. Em toda a culpa elle via (talvez
contra a razão, mas em obediencia áquella
voz que fallava baixo a S. Francisco d'Assis e que
ainda se não calou) a irremediavel fraqueza humana: e o seu
perdão subia logo do fundo d'essa Piedade que jazia na sua
alma, como manancial d'agua pura em terra rica, sempre prompto a
brotar.
A sua bondade, porém, não se limitava a esta
expressão passiva. Toda a desgraça, desde a
amargura limitada e tangivel que passa na rua, até
á vasta e esparsa miseria que com a força d'um
elemento devasta classes e raças, teve n'elle um consolador
diligente e real. São d'elle, e escriptas nos derradeiros
annos (n'uma carta a G. F.) estas nobres palavras:―«Todos
nós que vivemos n'este globo formamos uma immensa caravana
que marcha confusamente para o Nada. Cerca-nos uma natureza
inconsciente, impassivel, mortal como nós, que
não nos entende, nem sequer nos vê, e d'onde
não podemos esperar nem soccorro nem
consolação. Só nos resta para nos
dirigir, na rajada que nos leva, esse secular preceito, summa divina de
toda a experiencia humana―«ajudai-vos uns aos
outros!» Que, na tumultuosa caminhada, portanto, onde passos
sem conta se misturam―cada um ceda metade do seu pão
áquelle que tem fome; estenda metade do seu manto
áquelle que tem frio; acuda com o braço
áquelle que
[100]
vai tropeçar; poupe o corpo d'aquelle que já
tombou; e se algum mais bem provido e seguro para o caminho necessitar
apenas sympathia d'almas, que as almas se abram para elle transbordando
d'essa sympathia... Só assim conseguiremos dar alguma
belleza e alguma dignidade a esta escura debandada para a
Morte».
Decerto Fradique não era um santo militante, rebuscando
pelas viellas miserias a resgatar: mas nunca houve mal, por elle
conhecido, que d'elle não recebesse allivio. Sempre que lia
por acaso, n'um jornal, uma calamidade ou uma indigencia, marcava a
noticia com um traço a lapis, lançando ao lado um
algarismo―que indicava ao velho Smith o numero de libras que devia
remetter, sem publicidade, pudicamente. A sua maxima para com os pobres
(a quem os Economistas affirmam que se não deve Caridade mas
Justiça)―era «que á hora das comidas
mais vale um pataco na mão que duas Philosophias a
voar». As creanças, sobretudo quando necessitadas,
inspiravam-lhe um enternecimento infinito; e era d'estes, singularmente
raros, que encontrando, n'um agreste dia de inverno, um pequenino que
pede, tranzido de frio―param sob a chuva e sob o vento, desapertam
pacientemente o paletot, descalçam pacientemente a luva,
para vasculhar no fundo da algibeira, á procura da moeda de
prata que vai ser o calor e o pão d'um dia.
Esta caridade estendia-se budhistamente a tudo
[101]
que vive. Não conheci
homem mais respeitador do animal e dos seus direitos. Uma
occasião em Paris, correndo ambos a uma
estação de
fiacres para nos salvarmos d'um chuveiro que
desabava, e seguir, na pressa que nos leváva, a uma venda
de
tapeçarias (onde Fradique cubiçava umas
Nove
Musas dançando entre loureiraes),
encontrámos apenas um
coupé,
cuja pileca, com o
sacco pendente do focinho, comia melancolicamente a sua
ração. Fradique teimou em esperar que o cavallo
almoçasse com socego―e perdeu as
Nove Musas.
Nos ultimos tempos, preoccupava-o sobretudo a miseria das classes―por
sentir que n'estas Democracias industriaes e materialistas,
furiosamente empenhadas na lucta pelo pão egoista, as almas
cada dia se tornam mais sêccas e menos capazes de piedade.
«A fraternidade (dizia elle n'uma carta de 1886 que conservo)
vai-se sumindo, principalmente n'estas vastas colmeias de cal e pedra
onde os homens teimam em se amontoar e luctar; e, através do
constante deperecimento dos costumes e das simplicidades ruraes, o
mundo vai rolando a um egoismo feroz. A primeira evidencia d'este
egoismo é o desenvolvimento ruidoso da philantropia. Desde
que a caridade se organisa e se consolida em
instituição, com regulamentos, relatorios,
comités, sessões, um presidente e uma
campainha, e de sentimento natural passa a
funcção official―é porque o homem,
não contando já com os impulsos do seu
coração,
necessita
[102]
obrigar-se
publicamente ao bem pelas prescripções
d'um estatuto. Com os corações assim duros e os
invernos tão longos, que vai ser dos
pobres?...»
Quantas vezes, diante de mim, nos crepusculos de novembro, na sua
bibliotheca apenas alumiada pela chamma incerta e dôce da
lenha no fogão,
Fradique emergiu d'um silencio em que os olhares se lhe perdiam ao
longe, como afundados em horisontes de tristeza―para assim lamentar,
com enternecida elevação, todas as miserias
humanas! E voltava então a amarga
affirmação da
crescente aspereza dos homens, forçados pela violencia do
conflicto e da concorrencia a um egoismo rude, em que cada um se torna
cada vez mais o lobo do seu semelhante,
homo homini lupus.
―Era necessario que viesse outro Christo! murmurei eu um dia.
Fradique encolheu os hombros:
―Ha de vir; ha de talvez libertar os escravos; ha de ter por isso a
sua igreja e a sua liturgia; e depois ha de ser negado; e mais tarde ha
de ser esquecido; e por fim hão de surgir novas turbas de
escravos. Não ha nada a fazer. O que resta a cada um por
prudencia é reunir um peculio e adquirir um revolwer; e aos
seus semelhantes que lhe baterem á porta, dar, segundo as
circumstancias, ou pão ou bala.
Assim, cheios de idéas, de delicadas
occupações
[103]
e d'obras amaveis, decorreram os
derradeiros annos de Fradique Mendes em Paris, até que no
inverno de 1888 a morte o colheu sob aquella fórma que elle,
como Cesar, sempre
appetecera―
inopinatam atque repentinam.
Uma noite, sahindo d'uma festa da condessa de La Ferté
(velha amiga de Fradique, com quem fizera n'um
yacht
uma viagem á
Islandia) achou no
vestiario a sua pelissa russa
trocada por outra, confortavel e rica tambem, que tinha no bolso uma
carteira com o monogramma e os bilhetes do general Terran-d'Azy.
Fradique, que soffria de repugnancias intolerantes, não se
quiz cobrir com o agasalho d'aquelle official rabugento e catarrhoso, e
atravessou a praça da Concordia a pé, de casaca,
até ao club da
Rue
Royale. A noite estava sêcca e clara, mas cortada
por uma d'essas brizas subtis, mais tenues que um halito, que durante
leguas se afiam sobre planicies nevadas do norte, e já eram
comparadas pelo velho André Vasali a «um punhal
traiçoeiro». Ao outro dia acordou com uma tosse
leve. Indifferente porém aos resguardos, seguro d'uma
robustez que affrontára tantos ares inclementes, foi a
Fontainebleau com amigos no alto d'um
mail-coach.
Logo n'essa noite,
ao recolher, teve um longo e intenso arripio; e trinta horas depois,
sem soffrimento, tão serenamente que durante algum tempo
Smith o julgou adormecido, Fradique, como diziam os antigos,
«tinha vivido». Não acaba mais
dôcemente um bello dia d.
Logo n'essa noite,
ao recolher, teve um longo e intenso arripio; e trinta horas depois,
sem soffrimento, tão serenamente que durante algum tempo
Smith o julgou adormecido, Fradique, como diziam os antigos,
«tinha vivido». Não acaba mais
dôcemente um bello dia de
verão.
[104]
O dr. Labert declarou que fôra uma fórma rarissima
de pleuriz. E accrescentou, com um exacto sentimento das felicidades
humanas:―«
Toujours de la chance, ce Fradique!»
Acompanharam a sua passagem derradeira pelas ruas de Paris, sob um
céo cinzento de neve, alguns dos mais gloriosos homens de
França nas coisas do saber e da arte. Lindos rostos,
já pisados pelo tempo, o choraram, na saudade das
emoções passadas. E, em pobres moradas, em torno
a lares sem lume, foi decerto tambem lamentado este sceptico de finas
letras, que cuidava dos males humanos envolto em cabaias de
sêda.
Jaz no
Père-Lachaise,
não longe da sepultura de Balzac, onde no dia dos Mortos
elle mandava sempre collocar um ramo d'essas violetas de Parma que
tanto amára em vida o creador da
Comedia Humana. Mãos fieis, por seu
turno,
conservam sempre perfumado de rosas frescas o marmore simples que o
cobre na terra.
VI
O erudito moralista que assigna
Alceste na
Gazette de Paris
dedicou a Fradique Mendes uma Chronica em que resume assim o seu
espirito e a sua acção:―«Pensador
verdadeiramente
pessoal
[105]
e forte,
Fradique Mendes não deixa uma obra. Por
indifferença, por indolencia, este homem foi o dissipador
d'uma enorme riqueza intellectual. Do bloco d'ouro em que poderia ter
talhado um monumento imperecivel―tirou elle durante annos curtas
lascas, migalhas, que espalhou ás mãos cheias,
conversando, pelos salões e pelos clubs de Paris. Todo esse
pó d'ouro se perdeu no pó
commum. E sobre a sepultura de Fradique, como sobre a do grego
desconhecido de que canta a Anthologia, se poderia
escrever:―«Aqui jaz o ruido do vento que passou derramando
perfume, calor e sementes em vão...»
Toda esta chronica vem lançada com a usual superficialidade
e inconsideração dos francezes. Nada menos
reflectido que as designações de
indolencia,
indifferença,
que voltam
repetidamente, n'essa pagina bem ornada e sonora, como para marcar com
precisão a natureza de Fradique. Elle foi ao contrario um
homem todo de paixão, de acção, de
tenaz labor. E escassamente
póde ser accusado de
indolencia, de
indifferença, quem, como elle, fez duas
campanhas, apostolou uma religião, trilhou os cinco
continentes, absorveu tantas civilisações,
percorreu todo o saber do seu
tempo.
O chronista da
Gazette de Paris
acerta porém, singularmente, affirmando que d'esse duro
obreiro não resta uma obra. Impressas e dadas ao mundo
só d'elle conhecemos com effeito as poesias das
Lapidarias,
publicadas na
Revolução de
Setembro―e
[106]
esse curioso poemeto em latim barbaro,
Laus Veneris
Tennebrosae, que appareceu na
Revue de Poésie et d'Art, fundada em
fins de 69 em
Paris por um grupo de poetas symbolistas. Fradique porém
deixou manuscriptos. Muitas vezes, na rua de Varennes, os entrevi eu
dentro d'um cofre hespanhol do seculo XIV, de ferro lavrado, que
Fradique denominava a
valla commum. Todos
esses papeis (e a plena disposição d'elles) foram
legados por Fradique áquella
Libuska
de quem elle largamente falla nas suas cartas a Madame de Jouarre, e
que se nos torna tão familiar e real «com os seus
velludos brancos de Veneziana e os seus largos olhos de
Juno».
Esta senhora, que se chamava Varia Lobrinska, era da velha familia
russa dos Principes de Palidoff. Em 1874 seu marido Paulo Lobrinski,
diplomata silencioso e vago, que pertencera ao regimento das Guardas
Imperiaes, e escrevia
capitaine com
t,
e, (
capiténe)
morrera em
Paris, por fins d'outono, ainda moço, de uma languida e
longa anemia. Immediatamente Madame Lobrinska, com solemne magoa,
cercada d'aias e de crépes, recolheu ás suas
vastas propriedades russas perto de Starobelsk, no governo de Karkoff.
Na primavera, porém, voltou com as flôres dos
castanheiros,―e desde então
habitava Paris em luxuosa e risonha viuvez. Um dia, em casa de Madame
de Jouarre, encontrou Fradique, que, enlevado então no culto
das Litteraturas slavas, se occupava com paixão do mais
antigo e
[107]
nobre dos seus
poemas, o
Julgamento de
Libuska, casualmente encontrado em 1818 nos archivos do
castello de Zelene-Hora. Madame Lobrinska era parenta dos senhores de
Zelene-Hora, condes de Colloredo―e possuia justamente uma
reproducção das duas folhas de pergaminho que
contêm a velha epopeia barbara.
Ambos leram esse texto heroico―até que o dôce
instante veio em que, como os dois amorosos de Dante,
«não leram mais no dia todo».
Fradique dera a Madame Lobrinska o nome de
Libuska, a rainha que no
Julgamento
apparece
«vestida de branco e resplandecente de sapiencia».
Ella chamava a Fradique
Lucifer. O poeta das
Lapidarias morreu em
novembro:―e dias depois Madame Lobrinska recolhia de novo á
melancolia das suas terras, junto de Starobelsk, no governo de Karkoff.
Os seus amigos sorriram, murmuraram com sympathia que Madame Lobrinska
fugira, para chorar entre os seus moujiks a sua segunda
viuvez―até que reflorecesse os lilazes. Mas d'esta vez
Libuska não voltou, nem com as
flôres dos castanheiros.
O marido de Madame Lobrinska era um Diplomata que estudava e praticava
sobretudo os
menus e os
cotillons. A sua
carreira foi
portanto irremediavelmente subalterna e lenta. Durante seis annos jazeu
no Rio de Janeiro, entre os arvoredos de Petropolis, como Secretario,
esperando aquella legação na Europa que o
Principe Gortchakoff, então Chanceller Imperial, affirmava
pertencer a Madame Lobrinska
[108]
par droit de
beauté et de
sagesse. A legação na Europa, n'uma
capital mundana, culta, sem bananeiras, nunca veio compensar aquelles
exilados que soffriam das saudades da neve:―e Madame Lobrinska, no seu
exilio, chegou a aprender tão completamente a nossa
dôce lingua de Portugal, que Fradique me mostrou uma
traducção da elegia de Lavoski,
A
Collina do Adeus,
trabalhada por ella com superior pureza e relevo. Só ella
pois, realmente, d'entre todas as amigas de Fradique, podia apreciar
como paginas vivas, onde o pensador depozera a confidencia do seu
pensamento, esses manuscriptos que para as outras seriam apenas
sêccas e mortas folhas de papel, cobertas de linhas
incomprehendidas.
Logo que comecei a colleccionar as cartas dispersas de Fradique Mendes,
escrevi a Madame Lobrinska contando o meu empenho em fixar n'um estudo
carinhoso as feições d'esse transcendente
espirito―e implorando, se não alguns extractos dos seus
manuscriptos, ao menos algumas
revelações
sobre a sua natureza.
A resposta de
Madame Lobrinska foi uma recusa, bem determinada, bem
deduzida,―mostrando que decerto sob «os claros olhos de
Juno» estava uma clara razão de Minerva.
«Os papeis de Carlos Fradique (dizia em summa) tinham-lhe
sido confiados, a ella que vivia longe da publicidade, e do mundo que
se interessa e lucra na publicidade, com o intuito de que para sempre
conservassem o caracter intimo
[109]
e secreto em que tanto
tempo Fradique os mantivera: e n'estas condições
o
revelar a sua natureza seria manifestamente
contrariar o recatado e altivo sentimento que dictára esse
legado...» Isto vinha escripto, com uma letra grossa e
redonda, n'uma larga folha de papel aspero, onde a um canto brilhava a
ouro, sob uma corôa d'ouro, esta divisa―
Per terram ad
coelum.
D'este modo se estabeleceu a obscuridade em torno dos manuscriptos de
Fradique. Que continha realmente esse cofre de ferro, que Fradique com
desconsolado orgulho denominava a
valla
commum, por julgar pobres e sem brilho no mundo os
pensamentos que para lá arrojava?
Alguns amigos pensam que ahi se devem encontrar, se não
completas, ao menos esboçadas, ou já coordenadas
nos seus materiaes, as duas obras a que Fradique alludia como sendo as
mais captivantes para um pensador e um artista d'este seculo―uma
Psychologia
das Religiões
e uma
Theoria da Vontade.
Outros (como J. Teixeira d'Azevedo) julgam que n'esses papeis existe um
romance de realismo epico, reconstruindo uma
civilisação extincta,
como a
Salammbô. E deduzem essa
supposição (desamoravel) d'uma carta a Oliveira
Martins, de 1880, em que Fradique exclamava, com uma ironia
mysteriosa:―«Sinto-me resvalar, caro historiador, a praticas
culpadas e vãs! Ai de mim, ai de mim, que me foge a penna
para o mal! Que demonio
[110]
malfazejo, coberto do pó das Idades, e sobraçando
in-folios archeologicos, me veio murmurar uma d'estas noites, noite de
duro inverno e de erudição
decorativa:―«Trabalha um
romance! E no teu romance resuscita a antiguidade asiatica!»?
E as suas suggestões pareceram-me dôces, amigo,
d'uma doçura lethal!... Que dirá
vossê, dilecto Oliveira Martins, se um dia desprecavidamente
no seu lar receber um tomo meu, impresso com solemnidade, e
começando por estas
linhas:―«
Era em Babylonia, no mez de
Sivanù, depois da colheita do balsamo?...»
Decerto,
vossê (d'aqui o sinto) deixára pender a face
aterrada entre as mãos tremulas,
murmurando:―«Justos céos! Ahi vem sobre
nós a
descripção do templo das Sete-Espheras, com todos
os seus terraços! a descripção da
batalha de Halub, com todas as suas armas! a
descripção do banquete de
Sennacherib, com todas as suas iguarias!... Nem os bordados d'uma
só tunica, nem os relevos d'um só vaso nos
serão perdoados! E é isto
um amigo intimo!»
Ramalho Ortigão, ao contrario, inclina a crêr que
os papeis de Fradique contêm
Memorias―porque só a
Memorias
se
póde coherentemente impôr a
condição de permanecerem secretas.
Eu por mim, d'um melhor e mais contínuo conhecimento de
Fradique,
concluo que elle não deixou um livro de Psychologia, nem uma
Epopeia archeologica (que certamente pareceria a Fradique
[111]
uma culpada e vã
ostentação de saber
pittoresco e facil), nem
Memorias―inexplicaveis
n'um homem todo de idéa e de
abstracção, que
escondia a sua vida com tão altivo recato. E affirmo
afoutamente que n'esse cofre de ferro, perdido n'um velho solar russo,
não existe uma
obra―porque Fradique nunca foi verdadeiramente um
auctor.
Para o ser não lhe faltaram decerto as idéas―mas
faltou-lhe a certeza de que ellas, pelo seu valor
definitivo,
merecessem ser
registradas e perpetuadas: e faltou-lhe ainda a arte paciente, ou o
querer forte, para produzir aquella fórma que elle concebera
em abstracto como a unica digna, por bellezas especiaes e raras, de
encarnar as suas idéas. Desconfiança de si como
pensador, cujas conclusões, renovando a philosophia e a
sciencia, podessem imprimir ao espirito humano um movimento inesperado;
desconfiança de si como escriptor e creador d'uma Prosa, que
só por si propria, e separada do valor do pensamento,
exercesse sobre as almas a acção ineffavel do
absolutamente
bello―eis as duas influencias negativas que retiveram Fradique para
sempre inedito e mudo. Tudo o que da sua intelligencia emanasse queria
elle que perpetuamente ficasse actuando sobre as intelligencias pela
definitiva verdade ou pela incomparavel belleza. Mas a critica
inclemente e sagaz que praticava sobre os outros, praticava-a sobre si,
cada dia, com redobrada sagacidade e inclemencia. O sentimento,
tão vivo n'elle, da Realidade
[112]
fazia-lhe distinguir o seu
proprio espirito tal como era, na sua real potencia e nos seus reaes
limites, sem que lh'o mostrassem mais potente ou mais largo esses
«fumos da illusão
litteraria»―que levam todo o homem de letras, mal corre a
penna sobre o papel, a tomar por faiscantes raios de luz alguns sujos
riscos de tinta. E concluindo que, nem pela idéa, nem pela
fórma, poderia levar
ás intelligencias persuasão ou encanto que
definitivamente marcassem na evolução da
razão ou do
gosto―preferiu altivamente permanecer silencioso. Por motivos
nobremente diferentes dos de Descartes, elle seguiu assim a maxima que
tanto seduzia Descartes―
bene vixit qui bene
latuit.
Nenhum d'estes sentimentos elle me confessou; mas todos lh'os
surprehendi, transparentemente, n'um dos derradeiros Nataes que vim
passar á rua de Varennes, onde Fradique pelas festas do anno
me hospedava com immerecido esplendor. Era uma noite de grande e
ruidoso inverno: e desde o café, com os pés
estendidos á alta chamma dos madeiros de faia que estalavam
na chaminé, conversavamos sobre a Africa e sobre
religiões Africanas. Fradique recolhera na região
do Zambeze notas muito flagrantes, muito vivas, sobre os cultos
nativos―que são divinisações dos
chefes mortos,
tornados pela morte
Mulungus, Espiritos
dispensadores das coisas boas e más, com residencia divina
nas cubatas e nas collinas onde tiveram a sua residencia carnal; e,
comparando os ceremoniaes e os fins
[113]
d'estes cultos selvagens da
Africa com os primitivos ceremoniaes liturgicos dos Aryas em
Septa-Sandou, Fradique concluia (como mostra n'uma carta d'esse tempo a
Guerra Junqueiro) que na religião o que ha de real,
essencial, necessario e eterno é o Ceremonial e a
Liturgia―e o que ha de artificial, de supplementar, de dispensavel, de
transitorio é a Theologia e a Moral.
Todas estas coisas me prendiam irresistivelmente, sobretudo pelos
traços de vida e de natureza africana com que vinham
illuminadas. E sorrindo, seduzido:
―Fradique! porque não escreve vossê
toda essa sua viagem á Africa?
Era a vez primeira que eu suggeria ao meu amigo a idéa de
compôr um livro. Elle ergueu a face para mim com tanto
espanto como se eu lhe propozesse marchar descalço,
através da noite
tormentosa, até aos bosques de Marly. Depois, atirando a
cigarette para o lume, murmurou com lentidão e melancolia:
―Para que?... Não vi nada na Africa, que os outros
não tivessem já visto.
E como eu lhe observasse que vira talvez d'um modo differente e
superior; que nem todos os dias um homem educado pela philosophia, e
saturado de erudição, faz a travessia da Africa;
e que em sciencia uma só verdade necessita mil
experimentadores―Fradique quasi se impacientou:
―Não! Não tenho sobre a Africa, nem sobre
[114]
coisa alguma n'este
mundo, conclusões que por alterarem o curso do pensar
contemporaneo valesse a pena registrar... Só podia
apresentar uma série
de impressões, de paizagens. E então peor! Porque
o verbo humano, tal como o fallamos, é ainda impotente para
encarnar a menor impressão intellectual ou reproduzir a
simples fórma d'um arbusto... Eu não sei
escrever! Ninguem sabe escrever!
Protestei, rindo, contra aquella generalisação
tão inteiriça, que tudo varria, desapiedadamente.
E lembrei que a bem curtas jardas da chaminé que nos
aquecia, n'aquelle velho bairro de Paris onde se erguia a Sorbonna, o
Instituto de França e a Escóla Normal, muitos
homens houvera, havia ainda, que possuiam do modo mais perfeito a
«bella arte de dizer».
―Quem? exclamou Fradique.
Comecei por Bossuet. Fradique encolheu os hombros, com uma irreverencia
violenta que me emmudeceu. E declarou logo, n'um resumo cortante, que
nos dois melhores seculos da litteratura franceza, desde o
meu
Bossuet
até Beaumarchais, nenhum prosador para elle tinha relevo,
côr, intensidade, vida... E nos modernos nenhum tambem o
contentava. A distenção retumbante de Hugo era
tão intoleravel como a flaccidez oleosa de Lamartine. A
Michelet faltava gravidade e equilibrio; a Renan solidez e nervo; a
Taine fluidez e transparencia; a Flaubert
vibração e calor. O pobre
[115]
Balzac, esse, era d'uma
exuberancia desordenada e barbarica. E o preciosismo dos Goncourt e do
seu mundo parecia-lhe perfeitamente indecente...
Aturdido, rindo, perguntei áquelle «feroz
insatisfeito» que prosa pois concebia elle, ideal e
miraculosa, que merecesse ser escripta. E Fradique, emocionado (porque
estas questões de fórma
desmanchavam a sua serenidade) balbuciou que queria em prosa
«alguma coisa de crystallino, de avelludado, de ondeante, de
marmoreo, que só por si, plasticamente, realisasse uma
absoluta belleza―e que expressionalmente, como verbo, tudo podesse
traduzir desde os mais fugidios tons de luz até os mais
subtis estados d'alma...»
―Emfim, exclamei, uma prosa como não póde haver!
―Não! gritou Fradique, uma
prosa como
ainda não ha!
Depois, ajuntou, concluindo:
―E como ainda a não ha, é uma inutilidade
escrever. Só se podem produzir fórmas sem
belleza: e dentro d'essas mesmas só cabe metade do que se
queria exprimir, porque a outra metade não é
reductivel ao verbo.
Tudo isto era talvez especioso e pueril, mas revelava o sentimento que
mantivera mudo aquelle superior espirito―possuido da sublime
ambição de só produzir verdades
absolutamente definitivas por meio de fórmas absolutamente
bellas.
Por isso, e não por indolencia de meridional
[116]
como insinua
Alceste,―Fradique
passou no mundo, sem deixar outros vestigios da formidavel actividade
do seu sêr pensante além d'aquelles que por longos
annos espalhou, á maneira do sabio antigo, «em
conversas com que se deleitava, á tarde, sob os platanos do
seu jardim, ou em cartas, que eram ainda conversas naturaes com os
amigos de que as ondas o separavam...» As suas conversas, o
vento as levou―não tendo, como o velho dr. Johnson, um
Boswell, enthusiasta e paciente, que o seguisse pela cidade e pelo
campo, com as largas orelhas attentas, e o lapis prompto a tudo notar e
tudo eternizar. D'elle pois só restam as suas cartas―leves
migalhas d'esse ouro de que falla
Alceste, e onde se sente o brilho, o valor
intrinseco, e a preciosidade do bloco rico a que pertenceram.
VII
Se a vida de Fradique foi assim governada por um tão
constante e claro proposito de
abstenção e silencio―eu, publicando as suas
Cartas, pareço lançar estouvada e
traiçoeiramente o meu amigo, depois da sua morte, n'esse
ruido e publicidade a que elle sempre se recusou por uma rigida
probidade de espirito. E assim seria―se eu não possuisse
[117]
a evidencia
de que Fradique incondicionalmente approvaria uma
publicação da sua Correspondencia,
organisada com discernimento e carinho. Em 1888, n'uma carta em que lhe
contava uma romantica jornada na Bretanha, alludia eu a um livro que me
acompanhára e me encantára, a
Correspondencia
de Xavier Doudan―um
d'esses espiritos recolhidos que vivem para se aperfeiçoar
na verdade e não para se glorificar no mundo, e que, como
Fradique, só deixou vestigios da sua intensa vida
intellectual na sua Correspondencia, colligida depois com reverencia
pelos confidentes do seu pensamento.
Fradique, na carta que me volveu, toda occupada dos Pyrenéos
onde gastára o verão,
accrescentava n'um
post-scriptum:―«A
Correspondencia de Doudan é realmente muito legivel; ainda
que através d'ella apenas se sente um espirito naturalmente
limitado, que desde novo se entranhou no doutrinarismo da escola de
Genebra, e que depois, cahido em solidão e
doença, só
pelos livros conheceu a vida, os homens e o mundo. Li em todo o caso
essas cartas―como leio todas as collecções de
Correspondencias, que,
não sendo didacticamente preparadas para o publico (como as
de Plinio), constituem um estudo excellente de psychologia e de
historia. Eis-ahi uma maneira de perpetuar as idéas d'um
homem que eu afoutamente approvo―publicar-lhe a corresponcia! Ha desde
logo esta immensa vantagem:―que
[118]
o valor das
idéas (e portanto a escolha das que devem ficar)
não é decidido por aquelle que as concebeu, mas
por um grupo de amigos e de criticos, tanto mais livres e mais
exigentes no seu julgamento quanto estão julgando um morto
que só desejam mostrar ao mundo pelos seus lados superiores
e luminosos. Além d'isso uma Correspondencia revela melhor
que uma obra a individualidade, o homem; e isto é
inestimavel para aquelles que na terra valeram mais pelo caracter do
que pelo talento. Accresce ainda que, se uma obra nem sempre augmenta o
peculio do saber humano, uma Correspondencia, reproduzindo
necessariamente os costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar
contemporaneo e ambiente, enriquece sempre o thesouro da
documentação historica. Temos depois que as
cartas d'um homem, sendo o producto quente e vibrante da sua vida,
contêm mais ensino que a sua philosophia―que é
apenas a creação impessoal do seu espirito. Uma
Philosophia offerece meramente uma conjectura mais que se vai juntar ao
immenso montão das conjecturas: uma Vida que se confessa
constitue o estudo d'uma realidade humana, que, posta ao lado de outros
estudos, alarga o nosso conhecimento do Homem, unico objectivo
accessivel
ao
esforço intellectual. E finalmente como
cartas
são palestras
escriptas (assim affirma não sei que classico),
ellas dispensam o revestimento sacramental da
tal prosa como
não
[119]
ha... Mas
este ponto precisava ser
mais desembrulhado―e eu sinto parar á porta o cavallo em
que vou trepar ao pico de Bigorre».
Foi a lembrança d'esta opinião de Fradique,
tão clara e fundamentada, que me decidiu, apenas em mim se
foi calmando a saudade d'aquelle camarada adoravel, a reunir as suas
cartas para que os homens alguma coisa podessem aprender e amar
n'aquella intelligencia que eu tão estreitamente
amára e seguira. A essa carinhosa tarefa devotei um
anno―porque a correspondencia de Fradique, que, desde os quietos
habitos a que se acolhera depois de 1880 aquelle «andador de
continentes», era a mais preferida das suas
occupacões, apresenta a vastidão e a copiosidade
da correspondencia de Cicero, de Voltaire, de Proudhon, e d'outros
poderosos remexedores de idéas.
Sente-se logo o prazer com que compunha estas cartas na
fórma do papel―esplendidas folhas de Whatman, eburneas
bastante para que a penna corresse n'ellas com o desembaraço
com que a voz corta o ar; vastas bastante para que n'ellas coubesse o
desenrolamento da mais complexa idéa; fortes bastante, na
sua consistencia de pergaminho, para que não prevalecesse
contra ellas o carcomer do tempo. «Calculei já,
ajudado pelo Smith (affirma elle a Carlos Mayer), que cada uma das
minhas cartas, n'este papel, com enveloppe e estampilha, me custa 250
reis. Ora suppondo vaidosamente que cada quinhentas cartas minhas
[120]
contêm uma
idéa―resulta que cada idéa
me fica por
cento e vinte e cinco mil
reis. Este méro calculo bastará para
que o Estado, e a economica Classe-Média que o dirige,
empeçam com ardor a
educação―provando, como inilludivelmente prova,
que fumar é mais barato que pensar...
Contrabalanço
pensar e
fumar, porque são,
ó Carlos, duas operações identicas que
consistem em atirar pequenas nuvens ao vento».
Estas dispendiosas folhas têm todas a um canto as iniciaes de
Fradique―F. M.―minusculas e simples, em esmalte escarlate. A letra
que as enche, singularmente desigual, offerece a maior similitude com a
conversação de Fradique: ora cerrada e fina,
parecendo morder o papel como um buril para contornar bem rigorosamente
a idéa; ora hesitante e demorada, com riscos,
separações,
como n'aquelle esforço tão seu de tentear,
espiar, cercar a real realidade das coisas: ora mais fluida e rapida,
lançada com facilidade e largueza, lembrando esses momentos
de abundancia e de veia que Fontan de Carmanges denominava
le
dégel de Fradique, e em que o gesto estreito e
sobrio se lhe desmanchava n'um esvoaçar de flammula ao
vento.
Fradique nunca datava as suas cartas: e, se ellas vinham de moradas
familiares aos seus amigos, notava méramente o nome do mez.
Existem assim cartas innumeraveis com esta resumida
indicação―
Paris, Julho;
Lisboa,
Fevereiro... Frequentemente,
[121]
tambem, restituia aos
mezes as alcunhas naturalistas do kalendario republicano―
Paris,
Floreal;
Londres, Nivoze. Quando se
dirigia a
mulheres substituia ainda o nome do mez pelo da flôr que
melhor o symbolisa; e possuo assim cartas com esta bucolica data―
Florença,
primeiras
violetas (o que indica fins de fevereiro);
Londres,
chegada dos Chrysanthemos (o que indica começos
de setembro). Uma carta de Lisboa offerece mesmo esta data
atroz―Lisboa,
primeiros fluxos da
verborreia parlamentar! (Isto denuncia um janeiro triste,
com lama, tipoias no largo de S. Bento, e bachareis em cima bolsando,
por entre injurias, fézes de velhos compendios).
Não é portanto possivel dispôr a
Correspondencia de Fradique por uma ordem chronologica: nem de resto
essa ordem importa desde que eu não edito a sua
Correspondencia completa e integral, formando uma historia continua e
intima das suas idéas. Em cartas que não
são d'um
auctor e que não constituem, como as de
Voltaire ou de Proudhon, o corrente e constante commentario que
acompanha e illumina a obra, cumpria sobretudo destacar as paginas que
com mais saliencia revelassem a
personalidade―o
conjunto de
idéas, gostos, modos, em que tangivelmente se sente e se
palpa o homem. E por isso, n'estes pesados maços das cartas
de Fradique, escolho apenas algumas, soltas, d'entre as que mostram
traços de caracter e relances da existencia activa; d'entre
as que deixam
[122]
entrevêr algum instructivo episodio da sua vida de
coração; d'entre as que, revolvendo
noções geraes sobre a litteratura, a arte, a
sociedade e os costumes, caracterisam o feitio do seu pensamento; e
ainda, pelo interesse especial que as realça, d'entre as que
se referem a coisas de Portugal, como as suas
«impressões de Lisboa», transcriptas com
tão maliciosa realidade para regalo de Madame de Jouarre.
Inutil seria decerto, n'estas laudas fragmentaes, procurar a
summa do alto e livre Pensar de Fradique ou do seu Saber tão
fundo e tão certo. A correspondencia de Fradique
Mendes, como diz finamente Alceste―
c'est son genie qui
mousse. N'ella, com effeito, vemos apenas a espuma radiante
e ephemera que fervia e transbordava, emquanto em baixo jazia o vinho
rico e substancial que não foi nunca distribuido nem serviu
ás almas
sedentas. Mas, assim ligeira e dispersa, ella mostra todavia, em
excellente relevo, a imagem d'este homem tão superiormente
interessante em todas as suas manifestações de
pensamento, de
paixão, de sociabilidade e de acção.
Além do meu desejo que os contemporaneos venham a amar este
espirito que tanto amei―eu obedeço, publicando as cartas de
Fradique Mendes, a um intuito de puro e seguro patriotismo.
Uma nação só vive porque pensa.
Cogitat ergo
[123]
est. A
Força e a Riqueza não
bastam para provar que uma nação vive d'uma vida
que
mereça ser glorificada na Historia―como rijos musculos n'um
corpo e ouro farto n'uma bolsa não bastam para que um homem
honre em si a Humanidade. Um reino d'Africa, com guerreiros incontaveis
nas suas aringas e incontaveis diamantes nas suas collinas,
será sempre uma terra bravia e morta, que, para lucro da
Civilisação, os Civilisados pisam e retalham
tão desassombradamente como se sangra e se corta a rez bruta
para nutrir o animal pensante. E por outro lado se o Egypto ou Tunis
formassem resplandecentes centros de Sciencias, de Litteraturas e de
Artes, e, através de uma serena legião de homens
geniaes, incessantemente educassem o mundo―nenhuma
nação, mesmo n'esta idade de ferro e de
força, ousaria occupar como um campo maninho e sem dono
esses sólos augustos d'onde se elevasse, para tornar as
almas melhores, o enxame sublime das Idéas e das
Fórmas.
Só na verdade o Pensamento e a sua
creação suprema, a Sciencia, a Litteratura, as
Artes, dão grandeza aos Povos, attrahem para elles universal
reverencia e carinho, e, formando dentro d'elles o thesouro de verdades
e de bellezas que o mundo precisa, os tornam perante o mundo
sacrosantos. Que differença ha, realmente, entre Paris e
Chicago? São duas palpitantes e productivas cidades―onde os
palacios, as instituições, os parques, as
riquezas, se equivalem soberbamente. Porque fórma
[124]
pois Paris um fóco
crepitante de
Civilisação que irresistivelmente fascina a
humanidade―e porque tem Chicago apenas sobre a terra o valor de um
rude e formidavel celleiro onde se procura a farinha e o
grão? Porque Paris, além dos palacios, das
instituições e das riquezas de que Chicago tambem
justamente se gloría, possue a mais um grupo especial de
homens―Renan, Pasteur, Taine, Berthelot, Coppée, Bonnat,
Falguieres, Gounod, Massenet―que pela incessante produccão
do seu cerebro convertem a banal cidade que habitam n'um centro de
soberano ensino. Se as
Origens do
Christianismo, o
Fausto, as telas de
Bonnat, os
marmores de Falguieres, nos viessem d'além dos mares, da
nova e monumental Chicago―para Chicago, e não para Paris,
se voltariam, como as plantas para o sol, os espiritos e os
corações da Terra.
Se uma nação, portanto, só tem
superioridade porque tem pensamento, todo aquelle que venha revelar na
nossa patria um novo homem de original pensar concorre patrioticamente
para lhe augmentar a unica grandeza que a tornará
respeitada, a unica belleza que a tornará amada;―e
é como quem aos seus templos juntasse mais um sacrario ou
sobre as suas muralhas erguesse mais um castello.
Michelet escrevia um dia, n'uma carta, alludindo a Anthero de
Quental:―«Se em Portugal restam quatro ou cinco homens como
o auctor das
Odes Modernas, Portugal
continúa a ser um grande
[125]
paiz vivo...» O
mestre da
Historia de
França com isto significava―que emquanto viver
pelo lado da Intelligencia, mesmo que jaza morta pelo lado da
Acção, a nossa patria não
é inteiramente um cadaver que sem escrupulo se pise e se
retalhe. Ora no Pensamento ha manifestações
diversas: e se nem todas irradiam o mesmo esplendor, todas provam a
mesma vitalidade. Um livro de versos póde sublimemente
mostrar que a alma de uma nação vive ainda pelo
Genio Poetico: um conjunto de leis salvadoras, emanando de um espirito
positivo, póde solidamente comprovar que um povo vive ainda
pelo Genio Politico:―mas a revelação de um
espirito como o de Fradique
assegura que um paiz vive tambem pelos lados menos grandiosos, mas
valiosos ainda, da graça, da vivaz
invenção, da transcendente ironia, da
phantasia, do humorismo e do gosto...
Nos tempos incertos e amargos que vão, Portuguezes d'estes
não podem ficar para sempre esquecidos, longe, sob a mudez
de um marmore. Por isso eu o revelo aos meus
concidadãos―como uma consolação e uma
esperança.
AS CARTAS
I
ao
visconde de a.-t.
Londres, maio.
Meu caro patricio.―Só
hontem á noite, tarde, ao recolher do campo, encontrei o
bilhete com que consideravelmente me honrou, perguntando á
minha experiencia―«qual é o melhor alfaiate de
Londres». Depende isso inteiramente do fim para que V.
necessita esse Artista. Se pretende meramente um homem que lhe cubra a
nudez com economia e conforto, então recommendo-lhe aquelle
que tiver taboleta mais perto do seu Hotel. São tantos
passos que forra―e, como diz o
Ecclesiastes, cada passo encurta a distancia da
sepultura.
Se porém V., caro patricio, deseja um alfaiate que lhe
dê consideração e valor no seu
mundo; que V. possa citar com orgulho, á porta da Havaneza,
rodando lentamente para mostrar o córte ondeado
[128]
e fino da cinta; que o
habilite a mencionar os Lords que lá encontrou, escolhendo
d'alto, com ponta da bengala, cheviotes para blusas de caça;
e que lhe sirva mais tarde, na velhice, á hora
gêba do rheumatismo, como recordação
consoladora de elegancias moças―então com
ardente instancia lhe aconselho o Cook (o Thomaz Cook) que é
da mais extremada moda, absolutamente ruinoso, e falha tudo.
Para subsequentes conselhos de «fornecedores», em
Londres ou outros pontos do Universo, permanece sempre ao seu grato
serviço―
Fradique Mendes.
II
a
madame de jouarre
Paris, dezembro.
Minha querida madrinha.―Hontem, em
casa de Madame de Tressan, quando passei, levando para a ceia Libuska,
estava sentada, conversando comsigo, por debaixo do atroz retrato da
Marechala
[129]
de Mouy, uma mulher loura, de
testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez por lhe presentir,
apesar de tão indolentemente enterrada n'um divan, uma rara
graça no andar, graça altiva e
ligeira de Deusa e de ave. Bem differente da nossa sapiente Libuska,
que se move com o esplendido peso de uma estatua! E do interesse por
esse outro passo, possivelmente alado e
dianico
(de Diana), provém estas garatujas.
Quem era? Supponho que nos chegou do fundo da provincia, d'algum velho
castello do Anjou com herva nos fossos, porque me não lembro
de ter encontrado em Paris aquelles cabellos fabulosamente louros como
o sol de Londres em dezembro―nem aquelles hombros descahidos,
dolentes,
angelicos, imitados de uma madona de
Montegna, e inteiramente desusados em França desde o reinado
de Carlos X, do
Lyrio no Valle, e
dos corações incomprehendidos. Não
admirei com igual fervor o vestido preto, onde reinavam coisas
escandalosamente amarellas. Mas os braços eram perfeitos; e
nas pestanas, quando as baixava, parecia pender um romance triste.
Deu-me assim a impressão, ao começo, de ser uma
elegiaca do tempo de Chateaubriand. Nos olhos porém
surprehendi-lhe depois uma faisca de vivacidade sensivel―que a datava
do seculo XVIII. Dirá a minha madrinha:―«como
pude eu abranger tanto, ao passar, com Libuska ao lado
fiscalisando?» É que voltei. Voltei, e da
hombreira da porta readmirei os hombros dolentes
[130]
de virgem do seculo XIII; a
massa de cabellos que o mólho de velas por traz, entre as
orchideas, nimbava d'ouro; e sobretudo o subtil encanto dos olhos―dos
olhos finos e languidos... Olhos
finos e languidos.
É a primeira
expressão em que hoje apanho decentemente a realidade.
Porque é que não me adiantei, e não
pedi uma «apresentação?» Nem
sei.
Talvez o requinte em
retardar, que fazia com que
La-Fontaine, dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse sempre o
caminho mais longo. Sabe o que dava tanta
seducção ao palacio das Fadas, nos tempos do rei
Arthur? Não sabe. Resultados de não lêr
Tennyson... Pois era a immensidade d'annos que levava a chegar
lá, através de jardins encantados, onde cada
recanto de bosque offerecia a emoção inesperada
d'um
flirt, d'uma batalha, ou d'um
banquete... (Com que morbida propensão acordei hoje para o
estylo asiatico!) O facto é que, depois da
contemplação junto á hombreira, voltei
a cear ao pé da minha radiante tyranna. Mas por entre o
banal sandwich de
foie-gras, e um copo de Tokay
em
nada parecido com aquelle Tokay que Voltaire, já velho, se
recordava de ter bebido em casa de Madame d'Etioles (os vinhos dos
Tressans descendem em linha varonil dos venenos da Brinvilliers), vi,
constantemente
vi, os
olhos finos
e languidos. Não ha senão o
homem, entre os animaes, para misturar a languidez d'um olhar fino a
fatias de
foie-gras. Não o faria decerto um
cão de boa raça. Mas seriamos
nós
[131]
desejados
pelo «ephemero feminino» se
não fosse esta providencial brutalidade? Só a
porção de Materia que ha no homem faz com que as
mulheres se resignem á incorrigivel
porção
d'Ideal que n'elle ha tambem―para eterna
perturbação do mundo. O que mais prejudicou
Petrarcha aos olhos de Laura―foram os
Sonetos. E
quando Romeu,
já com um pé na escada de sêda, se
demorava, exhalando o seu extasi em invocações
á Noite e
á Lua―Julietta batia os dedos impacientes no rebordo do
balcão, e pensava: «Ai, que palrador que
és, filho dos
Montaigus!» Este detalhe não vem em
Shakspeare―mas é comprovado por toda a
Renascença.
Não me amaldiçôe por esta sinceridade
de meridional
sceptico, e mande-me dizer que nome tem, na sua parochia, a loura
castellã do Anjou. A proposito de castellos: cartas de
Portugal annunciam-me que o kiosque por mim mandado erguer em Cintra,
na minha quintarola, e que lhe destinava como «seu pensadoiro
e retiro nas horas de sésta»―abateu. Tres mil e
oitocentos francos achatados em entulho. Tudo tende á ruina
n'um paiz de ruinas. O architecto que o construiu é
deputado, e escreve no
Jornal da Tarde estudos
melancolicos sobre as Finanças! O meu procurador em Cintra
aconselha agora, para reedificar o kiosque, um estimavel rapaz, de boa
familia, que entende de construcções e que
é empregado na Procuradoria Geral da Corôa! Talvez
se eu necessitasse um Jurisconsulto me propozessem um trolha.
É com estes elementos alegres
[132]
que nós procuramos
restaurar o nosso imperio d'Africa! Servo humilde e
devoto―
Fradique.
III
a
oliveira martins
Paris, maio.
Querido amigo.―Cumpro emfim a
promessa feita na sua erudita ermida das Aguas-Ferreas, n'aquella
manhã de Março em que conversavamos ao sol sobre
o caracter dos Antigos,―e remetto, como documento, a photographia da
mumia de Ramèzes II (que o francez banal, continuador do
grego banal, teima em chamar Sezostris), recentemente descoberta nos
sarcophagos reaes de Medinet-Abou pelo professor Maspero.
Caro Oliveira Martins, não acha V. picarescamente suggestivo
este facto―
Ramèzes
photographado?... Mas ahi está justificada a
mumificação
dos cadaveres, feita pelos bons Egypcios com tanta fadiga e tanta
despeza, para que os homens gozassem na sua fórma terrena,
segundo diz o Escriba, «as vantagens da
Eternidade!» Ramèzes,
como elle acreditava e lhe affirmavam os metaphysicos de Thebas,
resurge effectivamente «com todos os seus ossos e a pelle que
era sua» n'este anno da Graça
de 1886. Ora 1886, para um Pharaoh da decima-nona dynastia, mil e
quatrocentos annos anterior a Christo,
[133]
representa muito decentemente
a
Eternidade e a
Vida-Futura.
E eis-nos agora
podendo contemplar as «proprias
feições» do
maior dos Ramezidas, tão realmente como Hokem seu
Eunuco-Mór, ou Pentaour seu Chronista-Mór, ou
aquelles que outr'ora em dias de triumphos corriam a juncar-lhe o
caminho de flôres, trazendo «os seus
chinós de festa e a cutis envernizada com oleos de
Segabai». Ahi o tem V. agora diante de si, em photographia,
com as palpebras baixas e sorrindo. E que me diz a essa face real? Que
humilhantes reflexões não provoca ella sobre a
irremediavel degeneração do homem! Onde ha ahi
hoje um, entre os que governam povos, que tenha essa soberana fronte de
calmo e incommensuravel orgulho; esse superior sorriso de omnipotente
benevolencia, d'uma ineffavel benevolencia que cobre o mundo; esse ar
de imperturbada e indomavel força; todo esse esplendor viril
que a treva de um hypogeo, durante tres mil annos, não
conseguiu apagar? Eis-ahi verdadeiramente um
Dono de homens!
Compare esse
semblante augusto com o perfil sôrno, obliquo e bigodoso d'um
Napoleão III; com o focinho de
bull-dog acorrentado d'um Bismarck; ou com o
carão do Czar russo, um carão parado e affavel
que podia ser o do seu Copeiro-Mór. Que chateza, que
fealdade tacanha d'estes rostos de poderosos!
D'onde provém isto? De que a alma modela a face como o sopro
do antigo oleiro modelava o vaso fino:―e hoje, nas nossas
civilisações,
não
[134]
ha logar
para que uma alma se affirme e se produza na absoluta
expansão da sua força. Outr'ora um simples homem,
um feixe de musculos sobre um feixe d'ossos, podia erguer-se e operar
como um elemento da Natureza. Bastava ter o illimitado querer―para
d'elle tirar o illimitado poder. Eis-ahi em Ramèzes um
sêr que tudo quer e tudo
póde, e a quem Phtah, o Deus sagaz, diz com espanto:
«a tua vontade dá a vida e a tua vontade
dá a
morte!» Elle impelle a seu bel-prazer as raças
para norte, para sul ou para leste; elle altera e arraza, como muros
n'um campo, as fronteiras dos reinos; as cidades novas surgem das suas
pegadas; para elle nascem todos os fructos da terra, e para elle se
volta toda a esperança dos homens; o logar para onde volve
os seus olhos é bemdito e prospéra, e o logar que
não recebe essa luz benefica jaz como «o
torrão que o Nilo não
beijou»; os deuses dependem d'elle, e Amnon estremece
inquieto quando, diante dos pylones do seu templo, Ramèzes
faz estalar as tres cordas entrançadas do seu latego de
guerra! Eis um
homem―e que
seguramente póde affirmar no seu canto
triumphal:―«Tudo vergou sob a minha força: eu vou
e venho com as passadas largas d'um leão; o rei dos deuses
está
á minha direita e tambem á minha esquerda; quando
eu fallo o céo escuta; as coisas da terra estendem-se a meus
pés, para eu as colher com mão livre; e para
sempre estou erguido sobre o throno do mundo!»
[135]
«O mundo», está claro, era aquella
região, pela maior parte arenosa, que vai da cordilheira
Libyca á Mesopotamia: e nunca houve mais petulante emphase
do que nas Panegyrias dos Escribas. Mas o homem é, ou
suppõe ser, inigualavelmente grande. E esta consciencia da
grandeza, do incircumscripto poder vem necessariamente resplandecer na
physionomia e dar essa altiva magestade, repassada de risonha
serenidade, que Ramèzes conserva mesmo além da
vida, resequido, mumificado, recheado de betume da Judêa.
Veja V. por outro lado as condições que cercam
hoje um poderoso do typo Bismarck. Um desgraçado d'esses
não está acima de nada e depende de tudo. Cada
impulso da sua vontade esbarra com a resistencia d'um obstaculo. A sua
acção no
mundo é um perpetuo bater de craneo contra espessuras de
portas bem defendidas. Toda a sorte de
convenções, de tradições,
de direitos, de preceitos, de interesses, de principios, se lhe levanta
a cada instante diante dos passos como marcos sagrados. Um artigo de
jornal fal-o estacar, hesitante. A rabulice d'um legista obriga-o a
encolher precipitadamente a garra que já ia estendendo. Dez
burguezes nedios e dez professores guedelhudos, votando dentro d'uma
sala, estatelam por terra o alto andaime dos seus planos. Alguns
florins dentro d'um sacco tornam-se o tormento das suas noites.
É-lhe tão impossivel dispôr d'um
cidadão como
d'um astro. Nunca póde avançar d'uma arrancada,
erecto
[136]
e seguro: tem de
ser ondeante e rastejante. A vigilancia ambiente impõe-lhe a
necessidade vil de fallar baixo e aos cantos. Em vez de
«recolher as coisas da terra, com mão
livre»―surripia-as
ás migalhas, depois de escuras intrigas. As irresistiveis
correntes de idéas, de sentimentos, de interesses, trabalham
por baixo d'elle, em torno d'elle: e parecendo dirigil-as, pelo muito
que braceja e ronca d'alto, é na realidade por ellas
arrastado. Assim um omnipotente do typo Bismarck vai por vezes em
apparencia no cimo das grandes coisas;―mas como a boia solta vai no
cimo da torrente.
Miseravel omnipotencia! E o sentimento d'esta miseria não
póde deixar de influenciar a
physionomia dos nossos poderosos dando-lhe esse feitio contrafeito,
crispado, torturado, azedado e sobretudo
amolgado
que se nota na cara de
Napoleão, do czar, de Bismarck, de todos os que reunem a
maior somma de poder contemporaneo―o feitio
amolgado d'uma coisa que rola aos
encontrões, batendo contra muralhas.
Em conclusão:―a mumia de Ramèzes II (unica face
authentica do homem antigo que conhecemos) prova que, tendo-se tornado
impossivel uma vida humana vivida na sua maxima liberdade e na sua
maxima força, sem outros limites que os do proprio
querer―resultou perder-se para sempre, no typo physico do homem, a
summa e perfeita expressão da grandeza. Já
não ha uma face sublime: ha carantonhas mesquinhas onde a
bilis cava rugas
[137]
por
entre os recortes do pêllo. As unicas physionomias nobres
são as das feras, genuinos Ramèzes no seu
deserto, que nada perderam da sua força, nem da sua
liberdade. O homem moderno, esse, mesmo nas alturas sociaes,
é um pobre Adão
achatado entre as duas paginas d'um codigo.
Se V. acha todo isto excessivo e phantasista, attribua-o a que jantei
hontem, e conversei inevitavelmente, com o seu correligionario P.,
conselheiro d'estado,
e muchas cosas
más.
Más em hespanhol; e
más
também
em portuguez no sentido de pessimas. Esta carta é a
reacção
violenta da conversa conselheiral e conselheirifera. Ah, meu amigo,
desditoso amigo, que faz V. depois de receber o fluxo labial d'um
conselheiro? Eu tomo um banho por dentro―um banho lustral, immenso
banho de phantasia, onde despejo como perfume idoneo um frasco de
Shelley ou de Masset. Amigo certo
et nunc et
semper―
Fradique
Mendes.
IV
a
madame s.
Paris, fevereiro.
Minha cara amiga.―O hespanhol
chama-se D. Ramon Covarubia, mora na Passage Saulnier, 12, e como
é aragonez, e portanto sobrio, creio que com dez francos por
lição se
contentará amplamente. Mas se seu filho já sabe o
castelhano necessario para entender os
Romanceros,
o
D. Quichote,
[138]
alguns dos «Piccarescos»,
vinte paginas de Quevedo, duas comedias de Lope de Vega, um ou outro
romance de Galdós, que é tudo quanto basta
lêr na litteratura de Hespanha,―para que deseja a minha
sensata amiga que elle pronuncie esse castelhano que sabe com o
accento, o sabor, e o sal d'um madrileno nascido nas veras pedras da
Calle-Mayor? Vai assim o dôce Raul desperdiçar o
tempo que a Sociedade lhe marcou para adquirir idéas e
noções (e a Sociedade a um
rapaz da sua fortuna, do seu nome e da sua belleza, apenas concede,
para esse abastecimento intellectual, sete annos, dos onze aos
dezoito)―em quê? No luxo de apurar até a um
requinte superfino, e superfluo, o mero instrumento de adquirir
noções e
idéas. Porque as linguas, minha boa amiga, são
apenas instrumentos do saber―como instrumentos de lavoura. Consumir
energia e vida na aprendizagem de as pronunciar tão genuina
e puramente que pareça que se nasceu dentro de cada uma
d'ellas, e que por meio de cada uma se pediu o primeiro pão
e agua da vida―é fazer como o lavrador, que em vez de se
contentar, para cavar a terra, com um ferro simples encabado n'um pau
simples, se applicasse, durante os mezes em que a horta tem de ser
trabalhada, a embutir emblemas no ferro e esculpir flôres e
folhagens ao comprido do pau. Com um hortelão assim,
tão miudamente occupado em
alindar e requintar a enxada, como estariam agora, minha senhora, os
seus pomares Touraine?
[139]
Um homem só deve fallar, com impeccavel segurança
e pureza, a lingua da sua terra:―todas as outras as deve fallar mal,
orgulhosamente mal, com aquelle accento chato e falso que
denuncía logo
o estrangeiro. Na lingua verdadeiramente reside a nacionalidade;―e
quem fôr possuindo com crescente
perfeição os idiomas da Europa vai
gradualmente soffrendo uma desnacionalisação.
Não
ha já para elle o especial e exclusivo encanto da
falla materna com as suas influencias affectivas,
que o envolvem, o isolam das outras raças; e o
cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente lhe dá o
cosmopolitismo do caracter. Por isso o polyglota nunca é
patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no
organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu
patriotismo desapparece, diluido em estrangeirismo.
Rue de
Rivoli,
Calle d'Alcalá,
Regent Street,
Wilhem Strasse―que
lhe importa?
Todas são ruas, de pedra ou de macadam. Em todas a falla
ambiente lhe offerece um elemento natural e congenere onde o seu
espirito se move livremente, espontaneamente, sem
hesitações, sem attritos. E como pelo Verbo, que
é o instrumento essencial da
fusão humana, se póde fundir com todas―em todas
sente e aceita uma Patria.
Por outro lado, o esforço contínuo de um homem
para se exprimir, com genuina e exacta propriedade de
construcção e de accento, em idiomas
estranhos―isto é, o esforço para se confundir
com
[140]
gentes estranhas no
que ellas têm de essencialmente caracteristico, o
Verbo―apaga n'elle toda a individualidade nativa. Ao fim de annos esse
habilidoso, que chegou a fallar absolutamente bem outras linguas
além da sua, perdeu toda a originalidade de espirito―porque
as suas idéas forçosamente devem ter a natureza
incaracteristica e neutra que lhes permitta serem indifferentemente
adaptadas ás linguas mais oppostas em caracter e genio.
Devem, de facto, ser como aquelles «corpos de
pobre» de que tão tristemente falla o
povo―«que cabem bem na roupa de toda a gente».
Além d'isso, o proposito de pronunciar com
perfeição linguas estrangeiras constitue uma
lamentavel sabujice para com o estrangeiro. Ha ahi, diante d'elle, como
o desejo servil de
não
sermos nós mesmos, de nos fundirmos n'elle, no
que elle tem de mais seu, de mais proprio, o Vocabulo. Ora isto
é uma abdicação de dignidade
nacional. Não, minha senhora! Fallemos nobremente mal,
patrioticamente mal, as linguas dos outros! Mesmo porque aos
estrangeiros o polyglota só inspira
desconfiança, como sêr que não tem
raizes, nem lar
estavel―sêr que rola através das nacionalidades
alheias, successivamente se disfarça n'ellas, e tenta uma
installação de vida em todas porque
não é tolerado por nenhuma. Com effeito, se a
minha amiga percorrer a Gazeta dos Tribunaes verá que o
perfeito polyglotismo é um instrumento da alta
escroquerie.
[141]
E aqui está como, levado pelo dilettantismo das
idéas, em vez d'um endereço eu lhe
forneço um tratado!... Que a minha garrulice ao menos a
faça sorrir, pensar, e poupar ao nosso Raul o trabalho
medonho de pronunciar
Viva la
Gracia! e
Benditos sean tus ojos!
exactissimamente como se vivesse a uma esquina da
Puerta del
Sol, com
uma capa de bandas de velludo, chupando o cigarro de Lazarillo. Isto
todavia não impede que se utilisem os serviços de
D. Ramon. Elle, além de
Zorrillista, é guitarrista; e póde substituir as
lições na lingua de Quevedo por
lições na guitarra de Almaviva. O seu lindo Raul
ganhará ainda assim uma nova faculdade de exprimir―a
faculdade de exprimir emoções por meio de cordas
de arame. E este dom é excellente! Convem mais na mocidade,
e mesmo na velhice, saber, por meio das quatro cordas d'uma viola,
desafogar a alma das coisas confusas e sem nome que n'ella tumultuam,
do que poder, através das estalagens do mundo, reclamar com
perfeição o pão e o queijo―em
sueco, hollandez, grego, bulgaro e polaco.
E será realmente indispensavel mesmo para prover,
através do mundo, estas necessidades vitaes d'estomago e
alma―o trilhar, durante annos, pela mão dura dos mestres,
«os descampados e atoleiros das grammaticas e
pronuncias», como dizia o velho Milton? Eu tive uma admiravel
tia que fallava unicamente o portuguez (ou antes o minhoto) e que
percorreu toda a Europa com desafôgo
[142]
e conforto. Esta
senhora, risonha mas dyspeptica, comia simplesmente ovos―que
só conhecia e só comprehendia sob o seu nome
nacional vernaculo de
ovos. Para ella
huevos,
oeufs,
eggs,
das ei, eram sons da
Natureza bruta,
pouco differençaveis do coaxar das rãs, ou d'um
estalar de madeira. Pois quando em Londres, em Berlim, em Paris, em
Moscow, desejava os seus ovos―esta expedita senhora reclamava o famulo
do Hotel, cravava n'elle os olhos agudos e bem explicados, agachava-se
gravemente sobre o tapete, imitava com o rebolar lento das saias
tufadas uma gallinha no chôco, e gritava
ki-ki-ri-ki!
kó-kó-ri-ki!
kó-ró-kó-kó!
Nunca, em cidade ou região intelligente do Universo, minha
tia deixou de comer os seus ovos―e superiormente frescos!
Beijo as suas mãos, benevola
amiga―
Fradique.
V
a guerra junqueiro
Paris, maio.
Meu caro amigo.―A sua carta
transborda de illusão poetica. Suppôr, como V.
candidamente suppõe, que trespassando com versos (ainda
mesmo seus, e mais rutilantes que as flechas de Apollo) a Igreja, o
Padre, a Liturgia, as Sacristias, o jejum da sexta-feira e os ossos dos
Martyres, se póde «desentulhar Deus da
alluvião
sacerdotal», e
[143]
elevar o Povo (no Povo V. decerto inclue os conselheiros de Estado) a
uma comprehensão toda pura e abstracta da
Religião―a uma religião que consista apenas
n'uma Moral apoiada n'uma Fé―é ter da
Religião, da sua essencia e do seu objecto, uma sonhadora
idéa de sonhador teimoso em sonhos!
Meu bom amigo, uma Religião a que se elimine o Ritual
desapparece―porque as Religiões para os homens (com
excepção dos raros Metaphysicos, Moralistas e
Mysticos) não passa d'um conjunto de Ritos
através dos quaes cada povo procura estabelecer uma
communicação intima com o seu Deus e obter d'elle
favores. Este, só este, tem sido o fim de todos os cultos,
desde o mais primitivo, do culto de Indra, até ao culto
recente do
coração de Maria, que tanto o escandalisa na sua
parochia―oh incorrigivel beato do idealismo!
Se V. o quer verificar historicamente, deixe Vianna do Castello, tome
um bordão, e suba commigo por essa antiguidade
fóra até um sitio bem cultivado e bem regado que
fica entre o rio Indo, as escarpas do Hymalaia, e as arêas
d'um grande deserto. Estamos aqui em Septa-Sindhou, no paiz das
Sete-Aguas, no Valle Feliz, na terra dos Aryas. No primeiro povoado em
que pararmos V. vê, sobre um outeiro, um altar de pedra
coberto de musgo fresco: em cima brilha pallidamente um fogo lento: e
em torno perpassam homens, vestidos de linho, com os longos cabellos
presos por um aro
[144]
d'ouro
fino. São padres, meu amigo! São os
primeiros capellães da humanidade,―e cada um d'elles
está, por esta quente alvorada de maio, celebrando um rito
da missa Aryana. Um limpa e desbasta a lenha que ha de nutrir o lume
sagrado; outro pisa dentro d'um almofariz, com pancadas que devem
resoar «como tambor de victoria», as hervas
aromaticas que dão o
Sômma; este, como um semeador, espalha
grãos de aveia em volta da Ara; aquelle, ao lado, espalmando
as mãos ao céo,
entoa um cantico austero. Estes homens, meu amigo, estão
executando um Rito que encerra em si toda a Religião dos
Aryas, e que tem por objecto propiciar Indra―Indra, o sol, o fogo, a
potencia divina que póde encher de ruina e dôr o
coração do Arya, sorvendo a agua das regas,
queimando os pastos, desprendendo a pestilencia das lagôas,
tornando Septa-Sindhou mais esteril que o
«coração do mau»; ou
póde, derretendo as neves do Hymalaia, e soltando com um
golpe de fogo «a chuva que jaz no ventre das
nuvens», restituir a agua aos rios, a verdura aos prados, a
salubridade ás lagôas, a alegria e abundancia
á
morada do Arya. Trata-se pois simplesmente de convencer Indra a que,
sempre propicio, derrame sobre Septa-Sindhou todos os favores que
póde appetecer um povo rural e pastoral.
Não ha aqui Metaphysica, nem Ethica―nem
explicações sobre a natureza dos deuses, nem
regras para a conducta dos homens. Ha meramente
[145]
uma Liturgia, uma totalidade de
Ritos, que o Arya necessita observar para que Indra o attenda―uma vez
que, pela experiencia de gerações, se
comprovou que Indra só o escutará, só
concederá os beneficios rogados, quando em torno ao seu
altar certos velhos, de certa casta, vestidos de linho candido, lhe
erguerem canticos dôces, lhe offertarem
libações, lhe amontoarem dons de fructa, mel e
carne d'anho. Sem dons, sem libações, sem
canticos, sem anho, Indra, amuado e sumido no fundo do Invisivel e do
Intangivel, não descerá
á terra a derramar-se na sua bondade. E se vier de Vianna do
Castello um Poeta tirar ao Arya o seu altar de musgo, o seu pau
sacrosanto, o almofariz, o crivo e o vaso do
Sômma,
o Arya
ficará sem meios de propiciar o seu Deus, desattendido do
seu Deus―e será na terra como a creancinha que ninguem
nutre e a que ninguem ampara os passos.
Esta Religião primordial é o typo absoluto e
inalteravel das Religiões, que todas por instincto
repetem―e em que todas (apesar dos elementos estranhos de Theologia,
de Metaphysica, de Ethica que lhe introduzem os espiritos superiores)
terminam por se resumir, com reverencia. Em todos os climas, em todas
as raças, ou divinisando as
forças da Natureza, ou divinisando a Alma dos mortos, as
Religiões, amigo meu, consistiram sempre praticamente n'um
conjunto de praticas, pelas quaes o homem simples procura
alcançar da amizade de Deus os bens supremos da saude, da
forca, da paz,
[146]
da
riqueza. E mesmo quando, já mais crente no
esforço proprio, pede esses bens á hygiene,
á ordem, á lei e ao trabalho, ainda persiste nos
ritos propiciadores para que Deus
ajude o
seu esforço.
O que V. observou em Septa-Sindhou poderá verificar
igualmente, parando (antes de recolhermos a Vianna, a beber esse vinho
verde de Monção, que V. dithyrambisa) na
Antiguidade classica, em Athenas ou Roma, onde quizer, no momento de
maior esplendor e cultura das civilisações
greco-latinas. Se V. ahi perguntar a um antigo, seja um oleiro de
Suburra, seja o proprio
Flamen
Dialis, qual é o corpo de doutrinas e de
conceitos moraes que compõe a Religião,―elle
sorrirá,
sem o comprehender. E responderá que a Religião
consiste em
paces deorum quaerere, em
apaziguar os Deuses, em segurar a benevolencia dos Deuses. Na
idéa do antigo isso significa cumprir os ritos, as praticas,
as formulas, que uma longa tradição
demonstrou serem as unicas que conseguem fixar a attencão
dos Deuses e exercer sobre elles
persuasão ou seducção. E n'esse
ceremonial era
indispensavel não alterar nem o valor d'uma syllaba na
Prece, nem o valor d'um gesto no sacrificio, porque d'outro modo o
Deus, não reconhecendo o Sacrificio da sua
dilecção e a Prece do seu agrado,
permanecia desattento e alheio; e a Religião falseava o seu
fim supremo―influenciar o Deus. Peor ainda! Passava a ser a
irreligião: e o Deus, vendo n'essa omissão de
liturgia uma falta de reverencia, despedia
[147]
logo das Alturas os dardos
da sua colera. A obliquidade das pregas na tunica do Sacrificador, um
passo lançado á direita ou movido á
esquerda, o cahir lento das gottas da libação, o
tamanho
das achas do lume votivo, todos esses detalhes estavam prescriptos
immutavelmente pelos Rituaes, e a sua exclusão ou a sua
alteração
constituiam impiedades. Constituiam verdadeiros crimes contra a
patria―porque attrahiam sobre ella a indignação
dos deuses. Quantas Legiões vencidas, quantas cidadellas
derrubadas, porque o Pontifice deixára perder um
grão de cinza da ara―ou porque Auruspice não
arrancou lã bastante da cabeça do anho! Por isso
Athenas castigava o Sacerdote que alterasse o ceremonial; e o senado
depunha os Consules que commettiam um erro no sacrificio―fosse elle
tão ligeiro como reter a ponta da toga sobre a
cabeça, quando ella devia escorregar sobre o hombro. De
sorte que V., em Roma, lançando ironias d'ouro á
Divindade, era talvez um grande e admirado Poeta Comico: mas
satyrisando, como na
Velhice do Padre Eterno, a
Liturgia e o Ceremonial, era um inimigo publico, um traidor ao Estado,
votado ás masmorras do
Tuliano.
E se, já farto d'estes tempos antigos, V. quizer volver aos
nossos philosophicos dias, encontrará nas duas grandes
Religiões do occidente e do oriente, no Catholicismo e no
Budhismo, uma comprovação ainda mais saliente e
mais viva de que a Religião consiste intrinsecamente de
praticas, sobre
[148]
as
quaes a Theologia e a Moral se sobrepozeram, sem as penetrarem, como um
luxo intellectual, accessorio e transitorio―flôres pregadas
no altar pela imaginação ou pela virtude
idealista. O
Catholicismo (ninguem mais furiosamente o sabe do que V.)
está hoje resumido a uma curta série de
observancias materiaes:―e todavia nunca houve Religião
dentro da qual a Intelligencia erguesse mais vasta e alta estructura de
conceitos theologicos e moraes. Esses conceitos, porém, obra
de doutores e de mysticos, nunca propriamente sahiram das
escólas e dos mosteiros―onde eram preciosa materia de
dialectica ou de poesia; nunca penetraram nas multidões para
methodicamente governar os juizos ou conscientemente governar as
acções. Reduzido a catechismos, a cartilhas, esse
corpo de conceitos foi decorado pelo povo:―mas nunca o povo se
persuadiu que tinha Religião, e que portanto
agradava a Deus,
servia a
Deus, só por cumprir os dez mandamentos,
fóra de toda a pratica e de toda a observancia ritual. E
só decorou mesmo esses
Dez Mandamentos, e as
Obras de
Misericordia, e os outros preceitos moraes do Catechismo,
pela idéa de que esses versiculos,
recitados com
os
labios, tinham, por uma virtude maravilhosa, o poder de
attrahir a attenção, a bemquerença e
os favores do Senhor. Para
servir a Deus, que
é o meio
de agradar a Deus, o
essencial foi sempre ouvir missa, esfiar o rosario, jejuar, commungar,
fazer promessas, dar tunicas aos santos, etc. Só por estes
ritos,
[149]
e não
pelo cumprimento moral da lei moral, se propicia a Deus,―isto
é, se alcançam d'elle os
dons inestimaveis da saude, da felicidade, da riqueza, da paz. O mesmo
Céo e Inferno, sancção
extra-terrestre da lei, nunca, na idéa do povo, se ganhava
ou se evitava pela pontual obediencia á lei. E talvez com
razão, por isso mesmo que no Catholicismo o premio e o
castigo não são
manifestações da
justiça de Deus, mas da
graça
de
Deus. Ora a graça, no pensar dos simples, só se
obtem pela constante e incansavel pratica dos preceitos―a missa, o
jejum, a penitencia, a communhão, o rosario, a novena, a
offerta, a promessa. De sorte que no catholicismo do Minhoto como na
religião do Arya, em Septa-Sindhou como em Carrazeda
d'Anciães, tudo se resume em propiciar Deus por meio de
praticas que o captivem. Não ha aqui Theologia, nem Moral.
Ha o acto do infinitamente fraco querendo agradar ao infinitamente
forte. E se V., para purificar este Catholicismo, eliminar o Padre, a
estola, as galhetas e a agua-benta, todo o Rito e toda a Liturgia―o
catholico immediatamente abandonará uma Religião
que não tem Egreja visivel, e que não lhe
offerece os meios simples e tangiveis de communicar com Deus, de obter
d'elle os bens transcendentes para a alma e os bens sensiveis para o
corpo. O Catholicismo n'esse instante terá acabado,
milhões de sêres terão perdido o seu
Deus. A Egreja é o vaso de que Deus é o perfume.
Egreja
partida―Deus volatilisado.
[150]
Se tivessemos tempo de ir á China ou a Ceylão, V.
toparia com o mesmo phenomeno no Budhismo. Dentro d'essa
Religião foi elaborada a mais alta das Metaphysicas, a mais
nobre das Moraes: mas em todas as raças em que elle
penetrou, nas barbaras ou nas cultas, nas hordas do Nepal ou no
mandarinato chinez, elle consistiu sempre para as multidões
em ritos, ceremonias, praticas―a mais conhecida das quaes é
o
moinho de
rezar. V. nunca lidou com este moinho? É
lamentavelmente parecido com o
moinho de café:
em
todos os paizes budhistas V. o verá collocado nas ruas das
cidades, nas encruzilhadas do campo, para que o devoto ao passar, dando
duas voltas á manivella, possa fazer chocalhar dentro as
orações escriptas e communica
com o Budha, que por esse acto de cortezia transcendente «lhe
ficará grato e lhe
augmentará os seus bens».
Nem o Catholicismo, nem o Budhismo vão por este facto em
decadencia. Ao contrario! Estão no seu estado natural e
normal de Religião. Uma
Religião, quanto mais se materialisa, mais se popularisa―e
portanto mais se divinisa. Não se espante! Quero dizer, que
quanto mais se desembaraça dos seus elementos intellectuaes
de Theologia, de Moral, de Humanitarismo, etc., repellindo-os para as
suas regiões naturaes que são a Philosophia, a
Ethica e a Poesia, tanto mais colloca o povo face a face com o seu
Deus, n'uma união directa e simples, tão facil de
realisar que, por um mero dobrar
[151]
de joelhos, um mero balbuciar de
Padre-Nossos, o homem absoluto que está no céo
vem ao encontro do homem transitorio que está na terra. Ora
este encontro é o facto essencialmente divino da
Religião. E quanto mais elle se materialisa―mais ella na
realidade se divinisa.
V. porém dirá (e de facto o diz):
«Tornemos essa communicação puramente
espiritual, e que, despida de toda a exterioridade liturgica, ella seja
apenas como o espirito humano fallando ao espirito divino».
Mas para isso é necessario que venha o Millenio―em que cada
cavador de enxada seja um philosopho, um pensador. E quando esse
Millenio detestavel chegar, e cada tipoia de praça
fôr governada por um Mallebranche, terá V. ainda
de ajuntar a esta perfeita humanidade masculina uma nova humanidade
feminina, physiologicamente differente da que hoje embelleza a terra.
Porque emquanto houver uma mulher constituida physica, intellectual e
moralmente como a que Jehovah com uma tão grande
inspiração d'artista
fez da costella de Adão,―haverá sempre ao lado
d'ella, para uso da sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.
Essa communhão mystica do Homem e de Deus, que V. quer,
nunca poderá ser senão o privilegio d'uma
élite
espiritual,
deploravelmente limitada. Para a vasta massa humana, em todos os
tempos, pagã, budhista, christã, mahometana,
selvagem ou culta, a Religião terá sempre por
fim, na sua essencia,
[152]
a supplica dos favores divinos e o afastamento da
cólera divina; e, como
instrumentação material para realisar estes
objectos, o templo, o padre, o altar, os officios, a vestimenta, a
imagem. Pergunte a qualquer mediano homem sahido da turba, que
não seja um philosopho, ou um moralista, ou um mystico, o
que é Religião. O inglez
dirá:―«É ir ao serviço ao
domingo, bem vestido, cantar hymnos». O hindú
dirá:―«É fazer
poojah todos os dias e dar o tributo ao
Mahadeo». O africano
dirá:―«É offerecer ao
Mulungú a sua
ração de farinha e oleo». O Minhoto
dirá:―«É ouvir missa, rezar as contas,
jejuar á sexta-feira, commungar pela Paschoa». E
todos terão
razão, grandemente! Porque o seu objecto, como
sêres religiosos, está todo em communicar com
Deus; e esses são os meios de
communicação que
os seus respectivos estados de civilisação e as
respectivas liturgias que d'elles sahiram, lhes fornecem.
Voilà! Para V. está claro, e
para outros espiritos de
eleição, a Religião é outra
coisa―como já era
outra coisa em Athenas para Socrates e em Roma para Seneca. Mas as
multidões humanas não
são compostas de Socrates e de Senecas―bem felizmente para
ellas, e para os que as governam, incluindo V. que as pretende
governar!
De resto, não se desconsole, amigo! Mesmo entre os simples
ha modos de ser religiosos, inteiramente despidos de Liturgia e de
exterioridades rituaes. Um presenciei eu, deliciosamente puro e
[153]
intimo. Foi nas margens
do Zambeze. Um chefe negro, por nome Lubenga, queria, nas vesperas de
entrar em guerra com um chefe visinho, communicar com o seu Deus, com o
seu Mulungú (que era, como sempre, um seu avô
divinisado). O recado ou pedido, porém, que desejava mandar
á sua Divindade, não se podia transmittir
através dos Feiticeiros e do seu ceremonial, tão
graves e confidenciaes matérias continha... Que faz Lubenga?
Grita por um escravo: dá-lhe o recado, pausadamente,
lentamente, ao ouvido: verifica bem que o escravo tudo comprehendera,
tudo retivera: e immediatamente arrebata um machado, decepa a
cabeça do escravo, e brada
tranquillamente―«parte!» A alma do escravo
lá foi, como uma carta lacrada e sellada, direita para o
céo, ao
Mulungú. Mas d'ahi a instantes o chefe bate uma palmada
afflicta na testa, chama á pressa outro escravo, diz-lhe ao
ouvido rapidas palavras, agarra o machado, separa-lhe a
cabeça, e berra:―«Vai!»
Esquecera-lhe algum detalhe no seu pedido ao Mulungú... O
segundo escravo era um
post-scriptum.
Esta maneira simples de communicar com Deus deve regosijar o seu
coração. Amigo do
dito―
Fradique.
[154]
VI
a ramalho ortigão
Paris, abril.
Querido Ramalho.―No sabbado
á tarde, na rue Cambon, avisto dentro d'um fiacre o nosso
Eduardo, que se arremessa pela portinhola para me gritar:
«Ramalho, esta noite! de passagem para a Hollanda!
ás dez! no café da
Paz!»
Fico dôcemente alvoroçado; e ás nove e
meia, apesar da minha justa repugnancia pela esquina do café
da Paz, Centro catita do
Snobismo internacional, lá me installo,
com um bock, esperando a cada instante que surja, por entre a turba
baça e molle do boulevard, o esplendor da Ramalhal figura.
Ás dez salta d'um fiacre com anciedade o vivaz Carmonde, que
abandonára á pressa uma sobremesa alegre
pour
voir ce grand Ortigan!
Começa uma espera a dois, com bock a dois. Nada de Ramalho,
nem do seu viço. Ás onze apparece Eduardo,
esbaforido. E Ramalho? Inedito ainda! Espera a tres, impaciencia a
tres, bock a tres. E assim até que o bronze nos soou o fim
do dia.
Em compensação um caso, e profundo. Carmonde,
Eduardo e eu sorviamos as derradeiras fezes do bock, já
desilludidos de Ramalho e das suas pompas, quando roça pela
nossa mesa um sujeito escurinho, chupadinho, esticadinho, que traz na
mão com respeito, quasi com religião, um soberbo
[155]
ramo de cravos
amarellos. É um homem d'além dos mares, da
Republica Argentina ou Peruana, e amigo de Eduardo―que o retem e
apresenta «o snr. Mendibal». Mendibal aceita um
bock: e eu começo a contemplar mudamente aquella facesinha
toda em perfil, como recortada n'uma lamina de machado, d'uma
côr acobreada de chapéo
côco inglez, onde a barbita rala, hesitante, denunciando uma
virilidade frouxa, parece cotão, um cotão
negro, pouco mais negro que a tez. A testa escanteada recua, foge toda
para traz, assustada. O caroço da garganta
esganiçada, ao contrario, avança como o
esporão d'uma galera por entre as pontas quebradas do
collarinho muito alto e mais brilhante que esmalte. Na gravata, grossa
perola.
Eu contemplo, e Mendibal falla. Falla arrastadamente, quasi
dolentemente, com finaes que desfallecem, se esvaem em gemido. A voz
é toda de desconsolo:―mas, no que diz, revela a mais forte,
segura e insolente satisfação de viver. O animal
tem tudo: immensas propriedades além do mar, a
consideração dos seus fornecedores, uma casa no
Parc-Monceau, e «uma esposa adoravel». Como
deslizou elle a mencionar essa dama que lhe embelleza o lar?
Não sei. Houve um momento em que me ergui, chamado por um
velho Inglez meu amigo, que passava, recolhendo da Opera, e que me
queria simplesmente segredar, com uma convicção
forte, que «a noute estava esplendida!» Quando
voltei á mesa e ao bock, o Argentino encetára em
[156]
monologo a
glorificação da «sua
senhora». Carmonde devorava o homemzinho com olhos que riam e
que saboreavam, deliciosamente divertido. Eduardo, esse, escutava com a
compostura pesada de um portuguez antigo. E Mendibal, tendo posto ao
lado sobre uma cadeira, com cuidados devotos, o ramo de cravos,
desfiava as virtudes e os encantos de Madame. Sentia-se alli uma
d'essas admirações effervescentes, borbulhantes,
que se não podem retrahir, que transbordam por toda a parte,
mesmo por sobre as mesas dos cafés: onde quer que passasse,
aquelle homem iria deixando escorrer a sua
adoração pela mulher, como um guarda-chuva
encharcado vai fatalmente pingando agua. Comprehendi, desde que elle,
com um prazer que lhe repuxava mais para fóra o
caroço da garganta, revelou que madame Mendibal era
franceza. Tinhamos alli portanto um fanatismo de preto pela
graça loira d'uma parisiensesinha, picante em
seducção e
finura. Desde que comprehendi, sympathisei. E o Argentino farejou em
mim esta benevolencia critica―porque foi para mim que se voltou,
lançando o derradeiro traço, o mais decisivo,
sobre as excellencias de Madame: «Sim, positivamente,
não havia outra em Paris! Por exemplo, o carinho com que
ella cuidava da mamã (da mamã d'elle),
senhora de grande idade, cheia de achaques! Pois era uma paciencia, uma
delicadeza, uma
sujeição... De cahir de joelhos! Então
nos ultimos dias a mamã andára tão
rabugenta!... Madame
[157]
Mendibal
até emmagrecera. De sorte que elle proprio, n'esse domingo,
lhe pedira que se fosse distrahir, passar o dia a Versalhes, onde a
mãe d'ella, madame Jouffroy, habitava por economia. E agora
viera de a esperar na
gare
Saint-Lazare. Pois, senhores, todo o dia em Versalhes, a santa creatura
estivera com cuidado na sogra, cheia de saudades da casa, n'uma ancia
de recolher. Nem lhe soubera bem a visita á mamã!
A maior parte da tarde, e uma tarde tão linda,
gastára-a a
reunir aquelle esplendido ramo de cravos amarellos para lhe trazer, a
elle!»
―É verdade! Veja o senhor! Este ramo de cravos!
Até consola. Olhe que para estas lembrancinhas, para estes
carinhos, não ha senão uma franceza.
Graças a Deus, posso dizer que acertei! E se tivesse filhos,
um só que fosse, um rapaz, não me
trocava pelo principe de Galles. Eu não sei se o senhor
é casado. Perdôe a confiança. Mas se
não é, sempre lhe direi, como digo a todo o
mundo:―Case com uma franceza, case com uma franceza!...
Não podia haver nada mais sinceramente grotesco e tocante.
Como V. não vinha, fugidio Ramalho, dispersamos. Mendibal
trepou para um fiacre com o seu amoroso molho de cravos. Eu arrastei os
passos, no calor da noite, até ao club. No club encontro
Chambray, que V. conhece―o «formoso Chambray».
Encontro Chambray no fundo d'uma poltrona, derreado e radiante.
Pergunto a Chambray
[158]
como lhe vai a Vida, que opinião tem n'esse dia da Vida.
Chambray declara a Vida uma delicia. E, immediatamente, sem se conter,
faz a confidencia que lhe bailava impacientemente no sorriso e no olho
humedecido.
Fôra a Versalhes, com tenção de visitar
os Fouquiers. No mesmo compartimento com elle ia uma mulher,
une
grande et belle
femme. Corpo soberbo de Diana n'um vestido collante do
Redfern. Cabellos apartados ao meio, grossos e apaixonados, ondeando
sobre a testa curta. Olhos graves. Dois solitarios nas orelhas.
Sêr substancial, solido, sem chumaços e sem
blagues, bem alimentado, envolto em consideração,
superiormente installado na
vida.
E, no meio d'esta respeitabilidade physica e social, um geito guloso de
molhar os beiços a cada instante, vivamente, com a ponta da
lingua... Chambray pensa comsigo:―«burgueza, trinta annos,
sessenta mil francos de renda, temperamento forte, desapontamentos
d'alcova». E apenas o comboyo larga, toma o seu
«grande ar Chambray», e dardeja á dama
um d'esses olhares que eram outr'ora symbolisados pelas flechas de
Cupido. Madame impassivel. Mas, momentos, depois, vem d'entre as
palpebras um pouco pesadas, direito a Chambray (que vigiava de lado,
por traz do
Figaro aberto), um d'esses raios de luz indagadora
que, como os da lanterna de Diogenes, procuram um homem que seja um
homem. Ao chegar a Courbevoie, a pretexto de baixar o vidro por causa
da poeira,
[159]
Chambray
arrisca uma palavra, atrevidamente timida, sobre o calor de Paris. Ella
concede outra, ainda hesitante e vaga, sobre a frescura do campo.
Está travada a Ecloga. Em Suresnes, Chambray já
se senta na banqueta ao lado d'ella, fumando. Em Sevres, mão
de Madame arrebatada por Chambray, mão de Chambray repellida
por Madame:―e ambas insensivelmente se entrelaçam. Em
Viroflay, proposta brusca de Chambray para darem um passeio por um
sitio de Viroflay que só elle conhece, recanto bucolico, de
incomparavel doçura, inaccessivel ao burguez. Depois,
ás duas horas tomariam o outro trem para Versalhes. E nem a
deixa hesitar―arrebata-a moralmente, ou antes physiologicamente, pela
simples força da voz quente, dos olhos alegres, de toda a
sua pessoa franca e mascula.
Eil-os no campo, com um aroma da seiva em redor, e a primavera e
Satanaz conspirando e soprando sobre Madame os seus bafos quentes.
Chambray conhece á orla do bosque, junto d'agua, uma
tavernola que tem as janellas encaixilhadas em madresilva. Porque
não irão lá almoçar
uma caldeirada, regada com vinho branco de Suresnes? Madame na verdade
sente uma fomesinha alegre de ave solta no prado: e Satanaz, dando ao
rabo, corre adiante, a propiciar as coisas na tavernola. Acham
lá, com effeito, uma installação
magistral: quarto fresco e silencioso, mesa posta, cortina de cassa ao
fundo escondendo e trahindo a alcova. «Em todo o
[160]
caso que o almoço suba
depressa, porque elles têm de partir pelo trem das duas
horas»―tal é o brado
sincero de Chambray!
Quando chega a caldeirada, Chambray tem uma
inspiração genial―despe o casaco, abanca em
mangas de camisa. É um rasgo de bohemia e de liberdade, que
a encanta, a excita, faz surgir a
garota que ha quasi sempre no fundo da
matrona. Atira tambem o chapéo, um
chapéo de duzentos francos, para o fundo do quarto, alarga
os braços, e tem este grito d'alma:
―
Ah oui, que c'est bon, de se
desembêter!
E depois, como dizem os hespanhoes―
la
mar. O sol, ao despedir-se da terra por esse dia, deixou-os
ainda em Viroflay; ainda na tavernola; ainda no quarto;―e outra vez
á mesa, diante d'um
beefsteak
reconfortante, como os
acontecimentos pediam com urgencia e logica.
Versalhes, esquecido! Tratava-se de voltar á
estação para tomar o trem de Paris. Ella aperta
devagar as fitas do chapéo, apanha uma das flôres
da janella que mette no corpete, fixa um olhar lento em redor pelo
quarto e pela alcova, para todo decorar e retêr―e partem. Na
estação, ao saltar para um compartimento
differente (por causa da chegada a Paris), Chambray n'um aperto de
mão, já apressado e frouxo, supplica-lhe que ao
menos lhe diga como se chama. Ella
murmura―
Lucie.
―E é tudo o que sei d'ella, conclue Chambray
[161]
accendendo o charuto. E sei tambem
que é casada porque na
gare
Saint-Lazare,
á espera d'ella, e acompanhado por um trintanario serio, de
casa burgueza, estava o marido... É um
rastacuero côr de chocolate, com uma
barbita rala, enorme perola na gravata... Coitado, ficou encantado
quando ella lhe deu um grande ramo de cravos amarellos que eu lhe
mandára arranjar em Viroflay... Mulher deliciosa.
Não ha senão as francezas!
Que diz V. a estas coisas consideraveis, meu bom Ramalho? Eu digo que,
em resumo, este nosso Mundo é perfeito e não ha
nos espaços
outro mais bem organisado. Porque note V. como, ao fim d'este domingo
de maio, todas estas tres excellentes creaturas, com uma simples
jornada a Versalhes, obtiveram um ganho positivo na vida. Chambray
passou por um immenso prazer e uma immensa vaidade―os dois unicos
resultados que elle conta na existencia como proventos solidos, e
valendo o trabalho de existir. Madame experimentou uma
sensação nova ou differente, que a desenervou, a
desafogou, lhe permittiu reentrar mais acalmada na monotonia do seu
lar, e ser util aos seus com rediviva applicação.
E o Argentino adquiriu outra inesperada e triumphal certeza de quanto
era amado e feliz na sua escolha. Tres ditosos, ao fim d'esse dia de
primavera e de campo. E se d'aqui resultar um filho (o filho que o
Argentino appetece), que herde as qualidades fortes e brilhantemente
gaulezas de Chambray, accresce, ao contentamento
[162]
individual dos tres, um lucro
effectivo para a sociedade. Este mundo portanto está
superiormente organisado.
Amigo fiel, que fielmente o espera á volta da Hollanda―
Fradique.
VII
a madame de joujarre
(Trad.)
Lisboa, março.
Minha querida madrinha.―Foi hontem,
por noite morta, no comboio, ao chegar a Lisboa (vindo do Norte e do
Porto), que de repente me acudia á memoria estremunhada o
juramento que lhe fiz no sabbado de Paschoa em Paris, com as
mãos piamente estendidas sobre a sua maravilhosa
edição dos
Deveres de
Cicero. Juramento bem
estouvado, este, de lhe mandar todas as semanas, pelo correio, Portugal
em «descripções,
notas, reflexões e panoramas», como se
lê no sub-titulo da
Viagem á Suissa do seu amigo o
Barão
de Fernay, commendador de Carlos III e membro da Academia de Toulouse.
Pois com tanta fidelidade cumpro eu os meus juramentos (quando feitos
sobre a Moral de Cicero, e para regalo de quem reina na minha Vontade)
que, apenas o recordei, abri logo escancaradamente ambos os olhos para
recolher
«descripções, notas,
reflexões e panoramas» d'esta terra
[163]
que é minha e que
está
a la
disposicion de ustêd... Chegáramos a
uma estação que chamam de
Sacavem―e tudo o que os meus olhos arregalados viram do meu paiz,
através dos vidros humidos do wagon, foi uma densa treva,
d'onde mortiçamente surgiam aqui e além luzinhas
remotas e vagas. Eram lanternas de faluas dormindo no rio:―e
symbolisavam d'um modo bem humilhante essas escassas e desmaiadas
parcellas de verdade positiva que ao homem é dado descobrir
no universal mysterio do Sêr. De sorte que tornei a cerrar
resignadamente os olhos―até que, á portinhola,
um homem de bonet de galão, com o casaco encharcado d'agua,
reclamou o meu bilhete, dizendo
Vossa Excellencia!
Em Portugal, boa
madrinha, todos somos nobres, todos fazemos parte do Estado, e todos
nos tratamos por
Excellencia.
Era Lisboa e chovia. Vinhamos poucos no comboio, uns trinta
talvez―gente simples, de maletas ligeiras e sacos de chita, que bem
depressa atravessou a busca paternal e somnolenta da Alfandega, e logo
se sumia para a cidade sob a molhada noite de março.
No casarão soturno, á espera das bagagens
sérias, fiquei eu, o Smith
[3]
e uma senhora esgrouviada, de
oculos no bico, envolta n'uma velha capa
[164]
de pelles. Deviam ser duas horas da
madrugada. O asphalto sujo do casarão regelava
os pés.
Não sei quantos seculos assim esperamos, Smith immovel, a
dama e eu marchando desencontradamente e rapidamente para aquecer ao
comprido do balcão de madeira, onde dois guardas
d'Alfandega, escuros como azeitonas, bocejavam com dignidade. Da porta
do fundo, uma carreta, em que oscillava o montão da nossa
bagagem, veio por fim rolando com pachorra. A dama de nariz de cegonha
reconheceu logo a sua caixa de folha de Flandres, cuja tampa, cahindo
para traz, revelou aos meus olhos que observavam (em seu
serviço, exigente madrinha!) um penteador sujo, uma boceta
de dôce, um livro de missa e dois ferros de frisar. O guarda
enterrou o braço através d'estas
coisas intimas, e com um gesto clemente declarou a Alfandega
satisfeita. A dama abalou.
Ficamos sós, Smith e eu. Smith já
arrebanhára a custo a minha bagagem. Mas faltava
inexplicavelmente um saco de couro; e em silencio, com a guia na
mão, um carregador dava uma busca vagarosa
através dos fardos, barricas, pacotes, velhos bahus,
armazenados ao fundo, contra a parede enxovalhada. Vi este digno homem
hesitando pensativamente diante d'um embrulho de lona, diante d'uma
arca de pinho. Seria qualquer d'esses o saco de couro? Depois,
descorçoado, declarou que positivamente nas nossas bagagens
não havia nem couro nem saco. Smith protestava,
já irritado. Então
[165]
o capataz arrancou a guia das
mãos inhabeis do carregador, e recomeçou elle,
com a sua intelligencia superior de chefe, uma rebusca
através das
«arrumações», esquadrinhando
zelosamente caixotes, vasilhas, pipos, chapeleiras, canastras, latas e
garrafões... Por fim sacudiu os hombros, com indizivel
tedio, e desappareceu para dentro, para a escuridão das
plataformas interiores. Passados instantes voltou, coçando a
cabeça por baixo do bonet, cravando os olhos em roda, pelo
chão vasio, á
espera que o saco rompesse das entranhas d'este globo desconsolador.
Nada! Impaciente, encetei eu proprio uma pesquiza sofrega
através do casarão. O guarda da Alfandega, de
cigarro collado ao beiço (bondoso homem!), deitava tambem
aqui e além um olhar auxiliador e magistral. Nada!
Repentinamente porém uma mulher de lenço vermelho
na cabeça, que alli vadiava, n'aquella madrugada agreste,
apontou para a porta da estação:
―Será aquillo, meu senhor?
Era! Era o meu saco, fóra, no passeio, sob a chuvinha miuda.
Não indaguei como elle se encontrava alli,
sósinho, separado da bagagem a que estrictamente o prendia o
numero d'ordem estampado na guia em letras grossas―e reclamei uma
tipoia. O carregador atirou a jaleca para cima da cabeça,
sahiu ao largo, e recolheu logo annunciando com melancolia que
não havia tipoias.
―Não ha! Essa é curiosa! Então como
sahem d'aqui os passageiros?
[166]
O homem encolheu os hombros. «Ás vezes
havia, outras vezes não havia, era conforme calhava a
sorte...» Fiz reluzir uma placa de cinco
tostões, e suppliquei áquelle benemerito que
corresse as visinhanças da estação,
á cata d'um vehiculo qualquer com rodas, coche ou
carroça, que me levasse ao conchego d'um caldo e d'um lar. O
homem largou, resmungando. E eu logo, como patriota descontente,
censurei (voltado para o capataz e para o homem da Alfandega) a
irregularidade d'aquelle serviço. Em todas as
estações do Mundo, mesmo em Tunis, mesmo na
Romelia, havia, á chegada dos comboios, omnibus, carros,
carretas, para transportar gente e bagagem... Porque não as
havia em Lisboa? Eis ahi um abominavel serviço que
deshonrava a Nação!
O aduaneiro esboçou um movimento de desalento, como na plena
consciencia de que todos os serviços eram abominaveis, e a
Patria toda uma irreparavel desordem. Depois para se consolar puxou com
delicia o lume ao cigarro. Assim se arrastou um d'estes quartos d'hora
que fazem rugas na face humana.
Finalmente, o carregador voltou, sacudindo a chuva, affirmando que
não havia uma tipoia em todo o bairro de Santa Apolonia.
―Mas que hei de eu fazer? Hei de ficar aqui?
O capataz aconselhou-me que deixasse a bagagem, e na manhã
seguinte, com uma carruagem certa (contratada talvez por escriptura), a
viesse recolher
[167]
«muito a meu contento». Essa
separação porém não
convinha ao meu conforto. Pois n'esse caso elle não via
solução, a
não ser que por acaso alguma caleche, tresnoitada e
trasmalhada, viesse a cruzar por aquellas paragens.
Então, á maneira de naufragos n'uma ilha deserta
do Pacifico, todos nos apinhamos á porta da
estação, esperando através da treva a
vela―quero dizer a sege salvadora. Espera amarga, espera esteril!
Nenhuma luz de lanterna, nenhum rumor de rodas, cortaram a mudez
d'aquelles ermos.
Farto, inteiramente farto, o capataz declarou que «iam dar
tres horas, e elle queria fechar a
estação!» E eu? Ia eu ficar alli na
rua, amarrado, sob a noite agreste, a um montão de bagagens
intransportavel? Não! nas entranhas do digno capataz decerto
havia melhor misericordia. Commovido, o homem lembrou outra
solução. E era que nós, eu e o Smith,
ajudados por um carregador―atirassemos a bagagem para as costas, e
marchassemos com ella para o Hotel. Com effeito este parecia ser o
unico recurso aos nossos males. Todavia (tanto costas amollecidas por
longos e deleitosos annos de civilisação repugnam
a carregar fardos, e tão tenaz é a
esperança n'aquelles a
quem a sorte se tem mostrado amoravel) eu e o Smith ainda uma vez
sahimos ao largo, mudos, sondando a escuridão, com o ouvido
inclinado ao lagedo, a escutar anciosamente se ao longe, muito ao
longe, não sentiriamos rolar para nós o
calhambeque da
[168]
Providencia. Nada, desoladamente nada, na sombra avara!... A minha
querida madrinha, seguindo estes lances, deve ter já
lagrimas a bailar nas suas compassivas pestanas. Eu não
chorei―mas tinha vergonha, uma immensa e pungente vergonha do Smith!
Que pensaria aquelle escocez da minha patria―e de mim, seu amo,
parcella d'essa patria desorganisada? Nada mais fragil que a
reputação das nações. Uma
simples tipoia que falta de
noite, e eis, no espirito do Estrangeiro, desacreditada toda uma
civilisação secular!
No emtanto o capataz fervia. Eram tres horas (mesmo tres e um quarto),
e elle queria fechar a estação! Que fazer?
Abandonamo-nos, suspirando,
á decisão do desespero. Agarrei o estojo de
viagem e o rolo de mantas: Smith deitou aos seus respeitaveis hombros,
virgens de cargas, uma grossa maleta de couro: o carregador gemeu sob a
enorme mala de cantoeiras d'aço. E (deixando ainda dois
volumes para ser recolhidos de dia), começamos, sombrios e
em fila, a trilhar
á
pata a distancia que vai de Santa Apolonia ao Hotel de
Braganza! Poucos passos adiante, como o estojo de viagem me derreava o
braço, atirei-o para as costas... E todos tres, de
cabeça baixa, o dorso esmagado sob dezenas de kilos, com um
intenso azedume a estragar-nos o figado, lá continuamos,
devagar, n'uma fileira soturna, avançando para dentro da
capital d'estes reinos! Eu viera a Lisboa com um fim de repouso e de
luxo. Este era o luxo,
[169]
este o repouso! Alli, sob a chuvinha impertinente, offegando,
suando, tropeçando no lagedo mal junto d'uma rua tenebrosa,
a trabalhar de carrejão!...
Não sei quantas eternidades gastamos n'esta via dolorosa.
Sei que de repente (como se a trouxesse, á redea, o anjo da
nossa guarda) uma caleche, uma positiva caleche, rompeu a passo do
negrume d'uma viella. Tres gritos, sofregos e desesperados, estacaram a
parelha. E, á uma, todas as malas rolaram em catadupa sobre
o calhambeque, aos pés do cocheiro, que, tomado d'assalto e
de assombro, ergueu o chicote, praguejando com furor. Mas serenou,
comprehendendo a sua espantosa omnipotencia―e declarou que ao Hotel de
Braganza (uma distancia pouco maior que toda a Avenida dos Campos
Elyseos) não me podia levar por menos de
tres mil
reis. Sim,
minha madrinha,
dezoito francos! Dezoito francos
em
metal, prata ou ouro, por uma corrida, n'esta Idade democratica e
industrial, depois de todo o penoso trabalho das Sciencias e das
Revoluções para igualisarem e embaratecerem os
confortos sociaes. Tremulo de colera, mas submisso como quem cede
á exigencia d'um trabuco, enfiei para a tipoia―depois de me
ter despedido com grande affecto do carregador, camarada fiel da nossa
trabalhosa noite.
Partimos emfim, n'um galope desesperado. D'ahi a momentos estavamos
assaltando a porta adormecida do Hotel de Braganza com repiques,
[170]
clamores, punhadas,
cocegas, injurias, gemidos, todas as violencias e todas as
seducções. Debalde! Não foi mais
resistente ao bello cavalleiro Percival o portão de ouro do
palacio da Ventura! Finalmente o cocheiro atirou-se a ella aos couces.
E, decerto por comprehender melhor esta linguagem, a porta, lenta e
estremunhada, rolou nos seus gonzos. Graças te sejam, meu
Deus, pae ineffavel! Estamos emfim sob um tecto, no meio dos tapetes e
estuques do Progresso, ao cabo de tão barbara jornada.
Restava pagar o batedor. Vim para elle com acerba ironia:
―Então, são tres mil reis?
Á luz do vestibulo, que me batia a face, o homem sorria. E
que ha de elle responder, o malandro sem par?
―Aquillo era por dizer... Eu não tinha conhecido o snr. D.
Fradique... Lá para o snr. D. Fradique é o que
quizer.
Humilhação incomparavel! Senti logo
não sei que torpe enternecimento que me amollecia o
coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza
que nos enlaça a todos nós portuguezes, nos enche
de culpada indulgencia uns para os outros, e irremediavelmente estraga
entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem. Sim, minha cara
madrinha... Aquelle bandido conhecia o snr. D. Fradique. Tinha um
sorriso brejeiro e serviçal. Ambos eramos portuguezes. Dei
uma libra áquelle bandido!
E aqui está, para seu ensino, a veridica maneira
[171]
por que se entra, no ultimo
quartel do seculo XIX, na grande cidade de Portugal. Todo seu, aquelle
que de longe de si sempre
péna―
Fradique.
VIII
ao snr. e. mollinet
Director da Revista de Biographia e de
Historia
Paris, setembro.
Meu caro snr. Mollinet.―Encontrei
hontem á noite, ao voltar de Fontainebleau, a carta em que o
meu douto amigo, em nome e no interesse da
Revista de
Biographia e de Historia,
me pergunta quem é este meu compatriota Pacheco
(José Joaquim
Alves Pacheco), cuja morte está sendo tão vasta e
amargamente carpida nos jornaes de Portugal. E deseja ainda o meu amigo
saber que obras, ou que fundações, ou que livros,
ou que
idéas, ou que accrescimo na civilisacão
portugueza deixou esse Pacheco, seguido ao tumulo por tão
sonoras, reverentes lagrimas.
Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como n'um resumo, a sua
figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu paiz nem uma
obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma
idéa. Pacheco era entre nós superior e illustre
unicamente porque
tinha um immenso talento.
Todavia, meu caro snr. Mollinet, este talento, que duas
gerações tão soberbamente acclamaram,
nunca deu, da sua
[172]
força, uma manifestação positiva,
expressa, visivel! O talento immenso de Pacheco ficou sempre calado,
recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente elle atravessou
a vida por sobre eminencias sociaes: Deputado, Director geral,
Ministro, Governador de bancos, Conselheiro d'Estado, Par, Presidente
do conselho―Pacheco tudo foi, tudo teve, n'este paiz que, de longe e a
seus pés, o contemplava, assombrado do seu immenso talento.
Mas nunca, n'estas situações, por proveito seu ou
urgencia do Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sahir, para se
affirmar e operar fóra, aquelle immenso talento que
lá dentro o suffocava. Quando os amigos, os partidos, os
jornaes, as
repartições, os corpos collectivos, a massa
compacta da nação,
murmurando em redor de Pacheco «
que immenso talento!»
o convidavam a alargar o seu
dominio e a sua fortuna―Pacheco sorria, baixando os olhos serios por
traz dos oculos dourados, e seguia, sempre para cima, sempre para mais
alto, através das instituições, com o
seu immenso talento
aferrolhado dentro do craneo como no cofre d'um avaro. E esta reserva,
este sorrir, este lampejar dos oculos, bastavam ao paiz que n'elles
sentia e saboreava a resplandecente evidencia do talento de Pacheco.
Este talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na
manhã em que Pacheco, desdenhando a
Sebenta,
assegurou «que
o seculo XIX era um seculo de progresso e de luz». O curso
[173]
começou logo
a presentir e a affirmar, nos cafés
da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta
admiração cada dia crescente do curso,
communicando-se, como todos os movimentos religiosos, das
multidões impressionaveis ás classes
raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um
premio
no fim do anno. A fama
d'esse talento alastrou então por toda a academia―que,
vendo Pacheco sempre pensabundo, já d'oculos, austero nos
seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia
alli um grande espirito que se concentra e se retesa todo em
força intima. Esta geração academica,
ao dispersar, levou pelo paiz,
até os mais sertanejos burgos, a noticia do immenso talento
de Pacheco. E já em escuras boticas de Traz-os-Montes, em
lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com
esperança:―«Parece que ha agora ahi um rapaz de
immenso talento que se formou, o Pacheco!»
Pacheco estava maduro para a representação
nacional. Veio ao seu seio―trazido por um governo (não
recordo qual) que conseguira, com dispendios e manhas, apoderar-se do
precioso talento de Pacheco. Logo na estrellada noite de dezembro em
que elle, em Lisboa, foi ao Martinho tomar chá e torradas,
se susurrou pelas mesas, com
curiosidade:―«É o Pacheco, rapaz de immenso
talento!» E desde que as Camaras se constituiram, todos os
olhares, os do governo e os da opposição, se
começaram a voltar com insistencia, quasi com anciedade,
[174]
para Pacheco, que,
na ponta d'uma bancada, conservava a sua attitude de pensador recluso,
os braços cruzados sobre o collete de velludo, a fronte
vergada para o lado como sob o peso das riquezas interiores, e os
oculos a faiscar... Finalmente uma tarde, na discussão da
resposta ao discurso da
Corôa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre
zarolho que arengava sobre a «liberdade». O
sacerdote immediatamente estacou com deferencia; os tachygraphos
apuraram vorazmente a orelha: e toda a camara cessou o seu desafogado
susurro, para que, n'um silencio condignamente magestoso, se podesse
pela vez primeira produzir o immenso talento de Pacheco. No emtanto
Pacheco não prodigalisou desde logo os seus thesouros. De
pé, com o dedo espetado (geito que foi sempre muito seu),
Pacheco affirmou n'um tom que trahia a segurança do pensar e
do saber
intimo:―«que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a
autoridade!» Era pouco, decerto:―mas a camara comprehendeu
bem que, sob aquelle curto resumo, havia um mundo, todo um formidavel
mundo, de idéas solidas. Não volveu a fallar
durante mezes―mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto
mais invisivel e inaccessivel se conservava lá dentro, no
fundo, no rico e povoado fundo do seu sêr. O unico recurso
que restou então aos devotos d'esse immenso talento (que
já os tinha, incontaveis) foi contemplar a testa de
Pacheco―como se olha para o céo pela certeza
[175]
que Deus está por traz,
dispondo. A testa de Pacheco offerecia uma superficie escanteada, larga
e lustrosa. E muitas vezes, junto d'elle, Conselheiros, e Directores
geraes balbuciavam maravilhados:―«Nem é
necessário mais! Basta vêr aquella
testa!»
Pacheco pertenceu logo ás principaes commissões
parlamentares. Nunca porém accedeu a relatar um projecto,
desdenhoso das especialidades. Apenas ás vezes, em silencio,
tomava uma nota lenta. E quando emergia da sua
concentração, espetando o dedo, era para
lançar alguma idéa geral sobre a Ordem, o
Progresso, o Fomento, a Economia. Havia aqui a evidente attitude d'um
immenso talento que (como segredavam os seus amigos, piscando o olho
com finura) «está á espera,
lá em cima, a pairar». Pacheco mesmo, de resto,
ensinava (esboçando, com a mão gorda, o voar
superior d'uma aza por sobre arvoredo copado) que o «talento
verdadeiro só devia conhecer as coisas
pela
rama».
Este immenso talento não podia deixar de soccorrer os
conselhos da Corôa. Pacheco, n'uma
recomposição ministerial (provocada por uma
roubalheira) foi Ministro:―e immediatamente se percebeu que
massiça consolidação viera dar ao
Poder o immenso talento de Pacheco. Na sua pasta (que era a da Marinha)
Pacheco não fez durante os longos mezes de gerencia
«absolutamente nada», como insinuaram tres ou
quatro espiritos amargos e estreitamente positivos. Mas pela primeira
vez, dentro d'este regimen, a nação deixou de
curtir
[176]
inquietações e duvidas sobre o nosso Imperio
Colonial. Porquê? Porque sentia que finalmente os interesses
supremos d'esse Imperio estavam confiados a um immeaso talento, ao
talento immenso de Pacheco.
Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surdia do seu silencio
repleto e fecundo. Ás vezes porém, quando a
opposição se
tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com
lentidão uma nota a lapis:―e esta nota, traçada
com saber e madurissimo pensar, bastava para perturbar, acuar a
opposição. É que o immenso
talento de Pacheco terminára por inspirar, nas camaras, nas
commissões, nos centros, um terror disciplinar! Ai d'esse
sobre quem viesse a desabar com colera aquelle talento immenso! Certa
lhe seria a humilhação irresgatavel! Assim
dolorosissimamente
o experimentou o pedagogista, que um dia se arrojou a accusar o snr.
Ministro do Reino (Pacheco dirigia então o Reino) de
descurar a
Instrucção do paiz! Nenhuma
incriminação podia ser mais sensivel
áquelle immenso espirito que, na sua phrase lapidaria e
succulenta, ensinára que «um povo sem o curso dos
lyceus é um povo incompleto».
Espetando o dedo (geito sempre tão seu) Pacheco esborrachou
o homem temerario com esta coisa tremenda:―«Ao illustre
deputado que me censura só tenho a dizer que emquanto, sobre
questões d'Instrucção Publica, s.
exc.
a, ahi n'essas bancadas, faz berreiro, eu,
aqui n'esta cadeira,
faço
[177]
luz!»―Eu estava lá, n'esse esplendido momento, na
galeria. E não me recordo de ter jámais
ouvido, n'uma assembléa humana, uma tão
apaixonada e fervente rajada de acclamações!
Creio que foi d'ahi a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da
Ordem de S. Thiago.
O immenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo
nacional. Vendo que inabalavel apoio esse immenso talento dava
ás
instituições que servia, todas o appeteceram.
Pacheco começou a ser um Director universal de Companhias e
de Bancos. Cubiçado pela Corôa, penetrou no
Conselho de Estado. O seu partido reclamou avidamente que Pacheco fosse
seu Chefe. Mas os outros partidos cada dia se soccorriam com submissa
reverencia do seu immenso talento. Em Pacheco pouco a pouco se
concentrava a nação.
Á maneira que elle assim envelhecia, e crescia em influencia
e dignidades, a admiração pelo seu immenso
talento chegou a tomar no paiz certas fórmas
d'expressão só proprias da
religião e do amor. Quando elle foi Presidente do Conselho,
havia devotos que espalmavam a mão no peito com
uncção, reviravam o branco do olho ao
céo, para murmurar piamente:―«Que
talento!» E havia amorosos que, cerrando os olhos e
repenicando um beijo nas pontas apinhadas dos dedos, balbuciavam com
langor:―«Ai! que talento!» E, para que o esconder?
Outros havia, a quem aquelle immenso talento amargamente irritava, como
um
[178]
excessivo e
desproporcional privilegio. A esses ouvi eu bradar com furor, atirando
patadas ao chão:―«Irra, que é ter
talento de
mais!» Pacheco no emtanto já não
fallava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta.
Não relembrarei a sua incomparavel carreira. Basta que o meu
caro snr. Mollinet percorra os nossos annaes. Em todas as
instituições,
reformas, fundações, obras, encontrará
o cunho
de Pacheco. Portugal todo, moral e socialmente, está repleto
de Pacheco. Foi tudo, teve tudo. Decerto, o seu talento era immenso!
Mas immenso se mostrou o reconhecimento da sua patria! Pacheco e
Portugal, de resto, necessitavam insubstituivelmente um do outro, e
ajustadissimamente se completavam. Sem Portugal―Pacheco não
teria sido o que foi entre os homens: mas sem Pacheco―Portugal
não seria o que é entre as
nações!
A sua velhice offereceu um caracter augusto. Perdera o cabello
radicalmente. Todo elle era testa. E mais que nunca revelava o seu
immenso talento―mesmo nas minimas coisas. Muito bem me lembro da noite
(sendo elle Presidente do Conselho) em que, na sala da Condessa de
Arrôdes, alguem, com fervor, appeteceu conhecer o que s.
exc.
a pensava de Canovas del Castillo.
Silenciosamente,
magistralmente, sorrindo apenas, s. exc.
a deu
com a mão
grave, de leve, um corte horisontal no ar. E foi em torno um murmurio
d'admiração, lento e maravilhado. N'aquelle gesto
quantas
[179]
coisas subtis,
fundamente pensadas! Eu por mim, depois de muito esgravatar,
interpretei-o d'este modo:―«mediocre, meia-altura, o snr.
Canovas!» Porque, note o meu caro snr. Mollinet como aquelle
talento, sendo tão vasto―era ao mesmo tempo tão
fino!
Rebentou;―quero dizer, s. exc.
a morreu, quasi
repentinamente, sem
soffrimento, no começo d'este duro inverno. Ia ser
justamente creado marquez de Pacheco. Toda a
nação o chorou com infinita
dôr. Jaz no alto de S. João, sob um mausoleu, onde
por suggestão do snr. conselheiro Accacio (em carta ao
Diario
de Noticias) foi esculpida
uma figura de
Portugal chorando o Genio.
Mezes depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viuva, em Cintra, na
casa do dr. Videira. É uma mulher (asseguram amigos meus) de
excellente intelligencia e bondade. Cumprindo um dever de portuguez,
lamentei, diante da illustre e affavel senhora, a perda irreparavel que
era sua e da patria. Mas quando, commovido, alludi ao immenso talento
de Pacheco, a viuva de Pacheco ergueu n'um brusco espanto, os olhos que
conservára baixos―e um fugidio, triste, quasi apiedado
sorriso arregaçou-lhe os cantos da bôca pallida...
Eterno desaccordo dos destinos humanos! Aquella mediana senhora nunca
comprehendera aquelle immenso talento! Creia-me, meu caro snr.
Mollinet, seu dedicado―
Fradique.
[180]
IX
A CLARA...
(Trad.)
Paris, junho.
Minha adorada
amiga.―Não, não foi na
Exposição dos Aguarellistas,
em março, que eu tive comsigo o meu primeiro encontro, por
mandado dos Fados. Foi no inverno, minha adorada amiga, no baile dos
Tressans. Foi ahi que a vi, conversando com Madame de Jouarre, diante
d'uma console, cujas luzes, entre os molhos de orchideas, punham nos
seus cabellos aquelle nimbo d'ouro que tão justamente lhe
pertence como «rainha de graça entre as
mulheres». Lembro ainda, bem
religiosamente, o seu sorrir cançado, o vestido preto com
relevos côr de botão d'ouro, o leque antigo que
tinha fechado no regaço. Passei; mas logo tudo em redor me
pareceu irreparavelmente enfadonho e feio; e voltei a readmirar, a
meditar em silencio a sua belleza, que me prendia
pelo esplendor patente e comprehensivel, e ainda por não sei
quê de fino, de espiritual, de dolente e de meigo que
brilhava através e vinha da alma. E tão
intensamente me embebi n'essa contemplação, que
levei commigo a sua imagem, decorada e inteira, sem esquecer um fio dos
seus cabellos ou uma
[181]
ondulação da sêda que a cobria, e corri
a encerrar-me com ella, alvoroçado, como um artista que
n'algum escuro armazem, entre poeira e cacos, descobrisse a Obra
sublime d'um Mestre perfeito.
E, porque o não confessarei? Essa imagem foi para mim, ao
principio, meramente um Quadro, pendurado no fundo da minha alma, que
eu a cada dôce momento olhava―mas para lhe louvar apenas,
com crescente surpreza, os encantos diversos de Linha e de
Côr. Era sómente uma rara tela, posta em sacrario,
immovel e muda no seu brilho, sem outra influencia mais sobre mim que a
d'uma fórma muito bella que captiva um gosto muito educado.
O meu sêr continuava livre, attento ás
curiosidades que até ahi o seduziam, aberto aos sentimentos
que até ahi o solicitavam;―e só quando sentia a
fadiga das coisas imperfeitas ou o desejo novo d'uma
occupação mais pura, regressava
á Imagem que em mim guardava, como um Fra Angelico, no seu
claustro, pousando os pinceis ao fim do dia, e ajoelhando ante a Madona
a implorar d'ella repouso e inspiração superior.
Pouco a pouco, porém, tudo o que não foi esta
contemplação perdeu para mim valor e encanto.
Comecei a viver cada dia mais retirado no fundo da minha alma, perdido
na admiração da Imagem que lá
rebrilhava―até que só essa
occupação me pareceu digna da vida, no mundo todo
não reconheci mais que uma apparencia inconstante, e fui
[182]
como um monge na sua
cella, alheio ás coisas mais reaes, de joelhos e hirto no
seu sonho, que é para elle a unica realidade.
Mas não era, minha adorada amiga, um pallido e passivo
extasi diante da sua Imagem. Não! era antes um ancioso e
forte estudo d'ella, com que eu procurava conhecer através
da Fórma a
Essencia, e (pois que a Belleza é o esplendor da Verdade)
deduzir das perfeições do seu Corpo as
superioridades da sua Alma. E foi assim que lentamente surprehendi o
segredo da sua natureza; a sua clara testa que o cabello descobre,
tão clara e lisa, logo me contou a rectidão do
seu pensar: o seu sorriso, d'uma nobreza tão intellectual,
facilmente me revelou o seu desdem do mundanal e do ephemero, a sua
incansavel aspiração para um viver de verdade e
de belleza: cada graça de seus movimentos me trahiu uma
delicadeza do seu gosto: e nos seus olhos differencei o que n'elles
tão adoravelmente se confunde, luz de razão,
calor de coração, luz que melhor aquece, calor
que melhor alumia... Já a certeza de tantas
perfeições bastaria a fazer dobrar, n'uma
adoração perpetua, os joelhos mais rebeldes. Mas
succedeu ainda que, ao passo que a comprehendia e que a sua Essencia se
me manifestava, assim visivel e quasi tangivel, uma influencia descia
d'ella sobre mim―uma influencia estranha, differente de todas as
influencias humanas, e que me dominava com transcendente omnipotencia.
Como lhe poderei dizer? Monge,
[183]
fechado na minha cella, comecei a
aspirar á santidade, para me harmonisar e merecer a
convivencia com a Santa a que me votára. Fiz
então sobre mim um aspero exame de consciencia. Investiguei
com inquietação se o meu pensar era condigno da
pureza do seu pensar; se no meu gosto não haveria
desconcertos que podessem ferir a disciplina do seu gosto; se a minha
idéa da vida era tão alta e séria como
aquella que eu presentira na espiritualidade do seu olhar, do seu
sorrir; e se o meu coração não se
dispersára e enfraquecera de mais para poder palpitar com
parallelo vigor junto do seu coração. E tem sido
em mim agora um arquejante esforço para subir a uma
perfeição identica áquella que em si
tão submissamente adoro.
De sorte que a minha querida amiga, sem saber, se tornou a minha
educadora. E tão dependente fiquei logo d'esta
direcção, que já
não posso conceber os movimentos do meu sêr
senão governados
por ella e por ella ennobrecidos. Perfeitamente sei que tudo o que hoje
surge em mim de algum valor, idéa ou sentimento,
é obra d'essa educação que a sua alma
dá
á minha, de longe, só com existir e ser
comprehendida. Se hoje me abandonasse a sua influencia―devia antes
dizer, como um asceta, a sua Graça―todo eu rolaria para uma
inferioridade sem remissão. Veja pois como se me tornou
necessaria e preciosa... E considere que, para exercer esta supremacia
salvadora,
[184]
as suas
mãos não tiveram de se
impôr sobre as minhas―bastou que eu a avistasse de longe,
n'uma festa, resplandecendo. Assim um arbusto silvestre floresce
á borda d'um fôsso, porque
lá em cima nos remotos céos fulge um grande sol,
que não o vê, não o conhece, e
magnanimamente o faz crescer, desabrochar, e dar o seu curto aroma...
Por isso o meu amor attinge esse sentimento indescripto e sem nome que
a Planta, se tivesse consciencia, sentiria pela Luz.
E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo,
nenhum bem imploro de quem tanto póde e é para
mim dona de todo o bem. Só desejo que me deixe viver sob
essa influencia, que, emanando do simples brilho das suas
perfeições, tão facil e
dôcemente opéra o meu aperfeiçoamento.
Só peço esta permissão caridosa. Veja
pois quanto me conservo distante e vago, na esbatida humildade d'uma
adoração que
até receia que o seu murmurio, um murmurio de prece, roce o
vestido da imagem divina...
Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a
toda a recompensa terrestre, me permittisse desenrolar junto de si,
n'um dia de solidão, a agitada confidencia do meu peito,
decerto faria um acto de ineffavel misericordia―como outr'ora a Virgem
Maria quando animava os seus adoradores, ermitas e santos, descendo
n'uma nuvem e concedendo-lhes um sorriso fugitivo, ou deixando-lhes
cahir entre as mãos erguidas
[185]
uma rosa do Paraiso.
Assim, ámanhã, vou passar a tarde com Madame de
Jouarre. Não ha ahi a santidade d'uma cella ou d'uma ermida,
mas quasi o seu isolamento: e se a minha querida amiga surgisse, em
pleno resplendor, e eu recebesse de si, não direi uma rosa,
mas um sorriso, ficaria então radiosamente seguro de que
este meu amor, ou este meu sentimento indescripto e sem nome que vai
além do amor, encontra ante seus olhos piedade e
permissão para
esperar.―
Fradique.
X
a madame de jouarre
(Trad.)
Lisboa, junho.
Minha excellente madrinha.―Eis o
que tem «visto e feito», desde maio, na
formosissima
Lisboa,
Ulyssipo pulcherrima, o seu
admiravel afilhado. Descobri um patricio meu, das Ilhas, e meu parente,
que vive ha tres annos construindo um Systema de Philosophia no
terceiro andar d'uma casa de hospedes, na travessa da Palha. Espirito
livre, emprehendedor e destro, paladino das Idéas Geraes, o
meu parente, que se chama Procopio,
[186]
considerando que a mulher
não vale o tormento que espalha, e que os oitocentos mil
reis de um olival bastam, e de sobra, a um espiritualista―votou a sua
vida á Logica e só se interessa e soffre pela
Verdade. É um philosopho alegre; conversa sem berrar; tem
uma aguardente de muscatel excellente;―e eu trepo com gosto duas ou
tres vezes por semana á sua officina de Metaphysica a saber
se, conduzido pela alma dôce de Maine de Biran, que
é o seu cicerone nas viagens do Infinito, elle já
entreviu emfim, disfarçada por traz dos seus derradeiros
véos, a Causa das Causas. N'estas piedosas visitas vou,
pouco a pouco, conhecendo alguns dos hospedes que n'esse terceiro andar
da travessa da Palha gozam uma boa vida de cidade, a doze
tostões por dia, fóra vinho e roupa lavada. Quasi
todas as profissões em que se occupa a
classe-média em Portugal estão
aqui representadas com fidelidade, e eu posso assim estudar, sem
esforço, como n'um indice, as idéas e os
sentimentos que no nosso Anno da Graça
formam o fundo moral da nação.
Esta casa de hospedes offerece encantos. O quarto do meu primo Procopio
tem uma esteira nova, um leito de ferro philosophico e virginal, cassa
vistosa nas janellas, rosinhas e aves pela parede,―e é
mantido em rigido asseio por uma d'estas creadas como só
produz Portugal, bella moça de Traz-os-Montes, que,
arrastando os seus chinelos com a indolencia grave d'uma nympha latina,
[187]
varre, esfrega
e arruma todo o andar; serve nove almoços, nove jantares e
nove chás;
escarolla as louças; prega esses botões de
calças e de ceroulas que os portuguezes estão
constantemente a perder; engomma as saias da Madama; reza o
terço da sua aldeia; e tem ainda vagares para amar
desesperadamente um barbeiro visinho, que está decidido a
casar com ella quando fôr empregado na Alfandega. (E tudo
isto por tres mil reis de soldada). Ao almoço ha dois
pratos, sãos e fartos, de ovos e bifes. O vinho vem do
lavrador, vinhinho leve e precoce, feito pelos veneraveis preceitos das
Georgicas, e semelhante decerto ao vinho da
Rethia―
quo te carmine dicam, Rethica? A torrada,
tratada pelo lume forte, é incomparavel. E os quatro paineis
que ornam a sala, um retrato de Fontes (estadista, já morto,
que é tido pelos
portuguezes em grande veneração), uma imagem de
Pio IX sorrindo e abençoando, uma vista da varzea de
Collares, e duas donzellas beijocando uma rôla, inspiram as
salutares idéas, tão
necessarias, de Ordem Social, de Fé, de Paz campestre, e de
Innocencia.
A patrôa, D. Paulina Soriana, é uma Madama de
quarenta outonos, frescalhota e roliça, com um
pescoço muito nedio, e toda ella mais branca que o chambre
branco que usa por sobre uma saia de sêda roxa. Parece uma
excellente senhora, paciente e maternal, de bom juizo e de boa
economia. Sem ser rigorosamente viuva―tem um filho, já
[188]
gordo tambem, que roe as
unhas e segue o curso dos lyceus. Chama-se Joaquim, e, por ternura,
Quinzinho; soffreu esta primavera não sei que duro mal que o
forçava a infindaveis orchatas e semicupios; e
está destinado por D. Paulina á
Burocracia que ella considera, e muito justamente, a carreira mais
segura e a mais facil.
―O essencial para um rapaz (affirmava ha dias a apreciavel
senhora, depois do almoço,
traçando a perna) é ter padrinhos e apanhar um
emprego; fica logo arrumado; o trabalho é pouco e o
ordenadosinho está certo ao fim do mez.
Mas D. Paulina está tranquilla com a carreira do Quinzinho.
Pela influencia (que é toda-poderosa n'estes Reinos) d'um
amigo certo, o snr. conselheiro Vaz Netto, ha já no
Ministerio das Obras Publicas ou da Justiça uma cadeira de
amanuense, reservada, marcada com lenço, á espera
do
Quinzinho. E mesmo como o Quinzinho foi reprovado nos ultimos exames,
já o snr. conselheiro Vaz Netto lembrou que, visto elle se
mostrar assim desmazelado, com pouco gosto pelas letras, o melhor era
não teimar mais nos estudos e no Lyceu, e entrar
immediatamente para a repartição...
―Que ainda assim (ajuntou a boa senhora, quando me honrou com estas
confidencias) gostava que o Quinzinho acabasse os estudos.
Não era pela necessidade, e por causa do emprego, como v.
exc.
a vê: era pelo gosto.
Quinzinho tem pois a sua prosperidade agradavelmente
[189]
garantida. De resto
supponho que D. Paulina junta um peculio prudente. Na casa, bem
afreguezada, ha agora sete hospedes―e todos fieis, solidos, gastando,
com os extras, de quarenta e cinco a cincoenta mil reis por mez. O mais
antigo, o mais respeitado (e aquelle que eu precisamente já
conheço) é o Pinho―o Pinho
brazileiro, o commendador Pinho. É elle quem todas as
manhãs annuncia a hora do almoço (o relogio do
corredor ficou desarranjado desde o Natal) sahindo do seu quarto
ás dez horas, pontualmente, com a sua garrafa d'agua de
Vidago, e vindo occupar á mesa, já posta, mas
ainda deserta, a sua
cadeira, uma cadeira especial de verga, com almofadinha de vento.
Ninguem sabe d'este Pinho nem a idade, nem a familia, nem a terra de
provincia em que nasceu, nem o trabalho que o occupou no Brazil, nem as
origens da sua commenda. Chegou uma tarde de inverno n'um paquete da
Mala Real; passou cinco dias no Lazareto; desembarcou com dois
bahús, a cadeira de verga, e cincoenta e seis latas de
dôce de tijolo; tomou o seu quarto n'esta casa de hospedes,
com janella para a travessa; e aqui engorda, pacifica e risonhamente,
com o seis por cento das suas inscripções.
É um
sujeito atochado, baixote, de barba grisalha, a pelle escura, toda em
tons de tijolo e de café, sempre vestido de casimira preta,
com uma luneta d'ouro pendente d'uma fita de sêda, que elle,
na rua, a cada esquina, desemmaranha do cordão d'ouro do
relogio
[190]
para
lêr com interesse e lentidão os cartazes dos
theatros. A sua vida tem uma d'essas prudentes regularidades que
tão admiravelmente concorrem para crear a ordem nos Estados.
Depois de almoço calça as botas de cano, lustra o
chapéo de
sêda, e vai muito devagar até á rua dos
Capellistas, ao
escriptorio terreo do corretor Godinho, onde passa duas horas pousado
n'um môcho, junto do balcão, com as
mãos cabelludas encostadas ao cabo do guarda-sol. Depois
entala o guarda-sol debaixo do braço, e pela rua do Ouro,
com uma pachorra saboreada, parando a contemplar alguma senhora de
sêdas mais tufadas ou alguma vittoria de librés
mais lustrosas, alonga os passos para a tabacaria Sousa, ao Rocio, onde
bebe um copo de agua de Caneças, e repousa até
que a tarde refresque.
Segue então para a Avenida, a gozar o ar puro e o luxo da
cidade, sentado n'um banco; ou dá a volta ao Rocio, sob as
arvores, com a face erguida e dilatada em bem-estar. Ás seis
recolhe, despe e dobra a sobrecasaca, calça os chinelos de
marroquim, enverga uma regalada quinzena de ganga, e janta, repetindo
sempre a sopa. Depois do café dá um
«hygienico» pela Baixa, com demoras pensativas, mas
risonhas, diante das vitrines de confeitaria e de modas; e em certos
dias sobe o Chiado, dobra a esquina da rua Nova da Trindade, e
regateia, com placidez e firmeza, uma senha para o Gymnasio. Todas as
sextas-feiras entra no seu banco, que é o
London
Brazilian. Aos domingos,
á noitinha, com
[191]
recato, visita uma moça
gorda e limpa que mora na rua da Magdalena. Cada semestre recebe o juro
das suas inscripcões.
Toda a sua existencia é assim um pautado repouso. Nada o
inquieta, nada o apaixona. O universo, para o commendador Pinho, consta
de duas unicas entidades―elle proprio, Pinho, e o Estado que lhe
dá o seis por cento: portanto o universo todo
está perfeito, e a vida perfeita, desde que Pinho,
graças ás aguas de Vidago, conserve appetite e
saude, e que o Estado continue a pagar fielmente o coupon. De resto,
pouco lhe basta para contentar a porção d'Alma e
Corpo de que
apparentemente se compõe. A necessidade que todo o
sêr vivo (mesmo as ostras, segundo affirmam os Naturalistas)
tem de communicar com os seus semelhantes por meio de gestos ou sons,
é em Pinho pouco exigente. Pelos meados d'abril, sorri e
diz, desdobrando o guardanapo―«temos o verão
comnosco»: todos concordam e Pinho goza. Por meados
d'outubro, corre os dedos pela barba e murmura―«temos
comnosco o inverno»: se outro hospede discorda, Pinho
emmudece, porque teme controversias. E esta honesta
permutação de idéas lhe basta.
Á mesa, comtanto que lhe
sirvam uma sopa succulenta, n'um prato fundo, que elle possa encher
duas vezes―fica consolado e disposto a dar graças a Deus. O
Diario de
Pernambuco, o
Diario de Noticias,
alguma comedia
do Gymnasio, ou uma Magica, satisfazem e de sobra
[192]
essas outras necessidades de
intelligencia e de
imaginação, que Humboldt encontrou mesmo entre os
Botecudos. Nas funcções do sentimento Pinho
só pretende modestamente (como revelou um dia ao meu primo)
«não apanhar uma
doença». Com as coisas publicas está
sempre agradado, governe este ou governe aquelle, comtanto que a
policia mantenha a ordem, e que não se produzam nos
principios e nas ruas disturbios nocivos ao pagamento do coupon. E
emquanto ao destino ulterior da sua alma, Pinho (como elle a mim
proprio me
assegurou)―«só deseja depois de morto que o
não enterrem vivo». Mesmo ácerca d'um
ponto
tão importante, como é para um commendador o seu
mausoléo, Pinho pouco requer:―apenas uma pedra lisa e
decente, com o seu nome, e um singelo
orai por elle.
Errariamos porém, minha querida madrinha, em
suppôr que Pinho seja alheio a tudo quanto seja humano.
Não! Estou certo que Pinho respeita e ama a humanidade.
Sómente a humanidade, para elle, tornou-se no decurso da sua
vida excessivamente restricta. Homens, homens serios, verdadeiramente
merecedores d'esse nobre nome, e dignos de que por elles se mostre
reverencia, affecto, e se arrisque um passo que não cance
muito―para Pinho só ha os prestamistas do Estado. Assim,
meu primo Procopio, com uma malicia bem inesperada n'um espiritualista,
contou-lhe ha tempos em confidencia, arregalando os olhos, que eu
possuia
[193]
muitos papeis!
muitas apolices! muitas
inscripções!... Pois na primeira manhã
que voltei, depois d'essa revelação, á
casa de hospedes,
Pinho, ligeiramente córado, quasi commovido, offereceu-me
uma boceta de dôce de tijolo embrulhada n'um guardanapo. Acto
tocante, que explica aquella alma! Pinho não é um
egoista, um Diogenes de
rabôna preta, sêccamente retrahido dentro da pipa
da sua inutilidade. Não. Ha n'elle toda a humana vontade de
amar os homens seus semelhantes, e de os beneficiar. Sómente
quem são, para Pinho, os seus genuinos
«semelhantes»? Os prestamistas do Estado. E em que
consiste para Pinho o acto de beneficio? Na cessão aos
outros d'aquillo que a elle lhe é inutil. Ora Pinho
não se dá bem
com o uso da goiabada―e logo que soube que eu era um possuidor de
inscripções, um seu semelhante,
capitalista como elle, não hesitou, não se
retrahiu mais ao seu dever humano, praticou logo o acto de beneficio, e
lá veio, ruborisado e feliz, trazendo o seu dôce
dentro d'um guardanapo.
É o commendador Pinho um cidadão inutil?
Não, certamente! Até para manter em estabilidade
e solidez a ordem d'uma nação, não ha
mais prestadio cidadão do que este Pinho, com a sua placidez
de habitos, o seu facil assentimento a todos os feitios da coisa
publica, a sua conta do banco verificada ás sextas-feiras,
os seus prazeres colhidos em hygienico recato, a sua reticencia, a sua
inercia. D'um Pinho nunca póde sahir idéa ou
acto, affirmação
[194]
ou negação, que
desmanche a paz do Estado. Assim gordo e quieto, collado sobre o
organismo social, não concorrendo para o seu movimento, mas
não o contrariando tambem, Pinho apresenta todos os
caracteres d'uma excrescencia sebacea. Socialmente, Pinho é
um lobinho. Ora nada mais inoffensivo que um lobinho: e nos nossos
tempos, em que o Estado está cheio de elementos morbidos,
que o parasitam, o sugam, o infeccionam e o sobreexcitam, esta
inoffensibilidade de Pinho póde mesmo (em
relação aos interesses da ordem) ser considerada
como qualidade meritoria. Por isso o Estado, segundo corre, o vai crear
barão. E barão
d'um titulo que os honra a ambos, ao Estado e a Pinho, porque
é n'elle simultaneamente prestada uma homenagem graciosa e
discreta á Familia e á Religião. O pae
de Pinho chamava-se Francisco―Francisco José Pinho. E o
nosso amigo vai ser feito barão de S. Francisco.
Adeus, minha querida madrinha! Vamos no nosso decimo oitavo dia de
chuva! Desde o começo de junho e das rosas, que n'este paiz
de sol sobre azul, na terra trigueira da oliveira e do louro, queridos
a Phebo, está chovendo, chovendo em fios d'agua cerrados,
continuos, imperturbados, sem sopro de vento que os ondule, nem raio de
luz que os diamantise, formando das nuvens ás ruas uma trama
molle de humidade e tristeza, onde a alma se debate e definha como uma
borboleta presa nas teias d'uma aranha. Estamos em pleno versiculo
[195]
XVII, do capitulo VII do
Genesis. No caso d'estas aguas do céo não
cessarem, eu concluo que as
intenções de Jehovah, para com este paiz
peccador, são diluvianas; e, não me julgando
menos digno da Graça e da Alliança divina do que
Noé, vou comprar madeira e betume, e fazer uma Arca segundo
os bons modelos hebraicos ou assyrios. Se por acaso d'aqui a tempos uma
pomba branca fôr bater com as azas á sua
vidraça, sou eu que
aportei ao Havre na minha Arca, levando commigo, entre outros animaes,
o Pinho e a D. Paulina, para que mais tarde, tendo baixado as aguas,
Portugal se repovoe com proveito, e o Estado tenha sempre Pinhos a quem
peça dinheiro emprestado, e Quinzinhos gordos com quem gaste
o dinheiro que pediu a Pinho. Seu afilhado do
coração―
Fradique.
XI
a mr. bertrand b.
Engenheiro na Palestina
Paris, abril.
Meu caro Bertrand.―Muito
ironicamente, hoje, n'este Domingo de Paschoa em que os céos
contentes, se revestiram paschalmente d'uma chasula d'ouro e d'azul, e
os lilazes novos perfumam o meu jardim para o santificar, me chega a
tua horrenda
[196]
carta,
contando que findaste o traçado do
Caminho de Ferro de Jaffa a Jerusalem! E
triumphas! Decerto, á porta de Damasco, com as botas fortes
enterradas no pó de Josaphat, o guarda-sol pousado sobre uma
pedra tumular de propheta, o lapis ainda errante sobre o papel, sorris,
todo te dilatas, e através das lunetas defumadas contemplas,
marcada por bandeirinhas, a «linha» onde em breve,
fumegando e guinchando, rolará da velha Jeppo para a velha
Sião o negro comboio da tua negra obra! Em redor os
empreiteiros, limpando o grosso suor da façanha, desarrolham
as garrafas da cerveja festiva! E por traz de vós o
Progresso, hirto contra as muralhas de Herodes, todo
engonçado, todo aparafusado, tambem triumpha, esfregando,
com estalidos asperos, as suas rigidas mãos de ferro
fundido.
Bem o sinto, bem o comprehendo o teu escandaloso traçado, oh
filho dilecto e fatal da Escóla de Pontes e
Calçadas! Nem necessitava esse plano com que me deslumbras,
todo em linhas escarlates, parecendo golpes d'uma faca vil por cima
d'uma carne nobre. É em Jaffa, na antiquissima Jeppo,
já
heroica e santa antes do Diluvio, que a tua primeira
Estação com os alpendres, e a carvoeira, e as
balanças, e a sineta, e o chefe de bonet agaloado, se ergue
entre esses laranjaes, gabados pelo Evangelho, onde S. Pedro, correndo
aos brados das mulheres, resuscitou Dorcas, a boa tecedeira, e a ajudou
a sahir do seu sepulchro. D'ahi a locomotiva, com a sua 1.ª
classe forrada de chita, rola descaradamente
[197]
pela planicie de Saaron,
tão amada do céo, que, mesmo sob o bruto pisar
das hordas philistinas, nunca n'ella murchavam anemonas e rosas. Corta
através de Beth-Dagon, e mistura o pó do seu
carvão de Cardiff ao vetusto pó do Templo de
Baal, que Samsão, mudo e repassado de tristeza, derrocou
movendo os hombros. Corre por sobre Lydda, e atrôa com
guinchos o grande S. Jorge, que ainda couraçado, emplumado,
e o guante sobre a espada, alli dorme o seu somno terrestre. Toma agua,
por um tubo de couro, do Poço Santo d'onde a Virgem na
fugida para o Egypto, repousando sob o figueiral, deu de beber ao
Menino. Pára em Ramleh, que é a velha Arymathea (
Arymathea,
quinze
minutos de demora!), a aldeia dos dôces hortos e
do
homem dôce que enterrou o Senhor. Fura, por tunneis
fumarentos, as collinas de Judá, onde choraram os prophetas.
Rompe por entre ruinas que foram a cidadella e depois a sepultara dos
Machabeus. Galga, n'uma ponte de ferro, a torrente em que David errante
escolhia pedras para a sua funda derrubadora de monstros. Colleia e
arqueja pelo valle melancolico que habitou Jeremias. Suja ainda Emmauz,
vara o Cedron, e estaca emfim, suada, azeitada, sordida de felugem, no
valle de Hennom, no
terminus de Jerusalem!
Ora, meu bom Bertrand, eu que não sou das Pontes e
Calçadas, nem accionista da
Companhia dos Caminhos de Ferro da Palestina,
apenas um peregrino saudoso d'esses logares adoraveis, considero
[198]
que a tua obra de
civilisação é
uma obra de profanação. Bem sei, engenheiro! S.
Pedro
resuscitando a velha Dorcas; a florescencia miraculosa das roseiras de
Saaron; o Menino bebendo, na fuga para o Egypto, á sombra
das arvores que os anjos iam adiante semeando,―são
fabulas... Mas são fabulas que ha dois mil annos
dão encanto,
esperança, abrigo consolador, e energia para viver a um
terço da Humanidade. Os logares onde se passaram essas
historias, decerto muito simples e muito humanas, que depois, pela
necessidade que a alma tem do Divino, se transformaram na
tão linda mythologia christã, são por
isso
veneraveis. N'elles viveram, combateram, ensinaram, padeceram, desde
Jacob até S. Paulo, todos os sêres
excepcionaes que hoje povoam o céo. Jehovah só
entre esses montes se mostrava, com terrifico esplendor, no tempo em
que visitava os homens. Jesus desceu a esses valles pensativos para
renovar o mundo. Sempre a Palestina foi a residencia preferida da
Divindade. Nada de Material devia pois desmanchar o seu recolhimento
Espiritual. E é penoso que a fumaraça do
Progresso suje um ar que conserva o perfume da passagem dos anjos, e
que os seus trilhos de ferro revolvam o sólo onde ainda
não se apagaram as pégadas divinas.
Tu sorris, e accusas precisamente a velha Palestina de ser uma
incorrigivel fonte de Illusão. Mas a illusão,
Bertrand amigo, é tão util
como a certeza: e na formação de todo o espirito,
para que elle
[199]
seja
completo, devem entrar tanto os Contos de Fadas como os Problemas de
Euclides. Destruir a influencia religiosa e poetica da Terra Santa,
tanto nos corações simples como nas
intelligencias cultas, é um retrocesso na
Civilisação, na verdadeira, n'aquella de que tu
não és obreiro, e que tem por melhor
esforço aperfeiçoar a Alma do que
reforçar o Corpo, e, mesmo pelo lado da utilidade, considera
um Sentimento mais util do que uma Machina. Ora, locomotivas manobrando
pela Judéa e Galiléa, com a sua materialidade de
carvão e
ferro, o seu desenvolvimento inevitavel de hoteis, omnibus, bilhares e
bicos de gaz, destroem irremediavelmente o poder emotivo da
Terra-dos-Milagres, porque a modernisam, a industrialisam, a
banalisam...
Esse poder, essa influencia espiritual da Palestina, de que provinha?
De ella se ter conservado, através d'estes quatro mil annos,
immutavelmente
biblica e
evangelica... Decerto sobrevieram
mudanças em Israel; a administração
turca tem menos esplendor que a administração
romana; dos vergeis e jardins que cercavam Jerusalem, só
resta penhasco e ortiga; as cidades, esboroadas, perderam o seu
heroismo de cidadellas; o vinho é raro; todo o saber se
apagou; e não duvido que aqui e além, em
Sião, n'algum terraço
de mercador levantino, se assobie ao luar a valsa de
Madame
Angot.
Mas a vida intima, na sua fórma rural, urbana
[200]
ou nomada, as maneiras, os
costumes, os ceremoniaes, os trajes, os utensilios,―tudo permanece
como nos tempos de Abrahão e nos tempos de Jesus. Entrar na
Palestina é penetrar n'uma Biblia viva. As tendas de pelle
de cabra plantadas á sombra dos sycomoros; o pastor apoiado
á sua alta lança, seguido do seu rebanho; as
mulheres, veladas de amarello ou branco, cantando, a caminho da fonte,
com o seu cantaro no hombro; o montanhez atirando a funda ás
aguias; os velhos sentados, pela frescura da tarde, á porta
das villas muradas; os claros terraços cheios de pombas; o
escriba que passa, com o seu tinteiro dependurado da cinta; as servas
moendo o grão; o homem de longos cabellos nazarenos que nos
saúda com a palavra de
paz, e que
conversa
comnosco por parabolas; a hospedeira que nos acolhe, atirando, para
passarmos, um tapete ante o limiar da sua morada; e ainda as
procissões nupciaes, e as
danças lentas ao rufe-rufe das pandeiretas, e as carpideiras
em torno aos sepulchros caiados,―tudo transporta o peregrino
á velha Judéa das
Escripturas, e de um modo tão presente e real, que a cada
momento duvidamos se aquella ligeira e morena mulher, com largas
argolas d'ouro e um aroma de sandalo, que conduz um cordeiro preso pela
ponta do manto, não será ainda Rachel, ou se,
entre os homens sentados além, á sombra da
figueira e da vinha, aquelle de curta barba frisada, que ergue o
braço, não será Jesus ensinando.
[201]
Esta sensação, preciosa para o crente,
é preciosa para o intellectual, porque o põe
n'uma communhão
flagrante com um dos mais maravilhosos momentos da Historia Humana.
Decerto seria igualmente interessante (mais interessante talvez) que se
podesse colher a mesma emoção na Grecia, e que
ahi encontrassemos ainda nos seus trajes, nas suas maneiras, na sua
sociabilidade, a grande Athenas de Pericles. Infelizmente, essa Athenas
incomparavel jaz morta, para sempre soterrada, desfeita em
pó, sob a Athenas romana, e a Athenas byzantina, e a Athenas
barbara, e a Athenas musulmana, e a Athenas constitucional e sordida.
Por toda a parte o velho scenario da historia está assim
esfrangalhado e em ruinas. Os proprios montes perderam, ao que parece,
a configuração classica: e ninguem
póde achar no Lacio o rio e o fresco valle que Virgilio
habitou e tão virgilianamente cantou. Um unico sitio na
terra permanecia ainda com os aspectos, os costumes, com que o tinham
visto, e de que tinham partilhado, os homens que deram ao mundo uma das
suas mais altas transformações:―e esse sitio era
um
pedaço da Judéa, da Samaria e da
Galiléa. Se elle
fôr grosseiramente modernisado, nivelado ao prototypo social,
querido do seculo, que é o districto de Liverpool ou o
departamento de Marselha, e se assim desapparecer para sempre a
opportunidade educadora de
vêr uma
grande imagem
do Passado, que profanação, que
devastação bruta e barbara! E por
[202]
perder essa fórma sobrevivente das
civilisações antigas, o thesouro do nosso saber e
da nossa inspiração fica irreparavelmente
diminuido.
Ninguem mais do que eu, decerto, aprecia e venera um caminho de ferro,
meu Bertrand;―e ser-me-ia penoso ter de jornadear de Paris a Bordeus,
como Jesus subia do valle de Jerichó para Jerusalem,
escarranchado n'um burro. As coisas mais uteis, porém,
são importunas, e mesmo
escandalosas, quando invadem grosseiramente logares que lhes
não são congeneres. Nada mais necessario
na vida do que um restaurante: e todavia ninguem, por mais descrente ou
irreverente, desejaria que se installasse um restaurante com as suas
mesas, o seu tinir de pratos, o seu cheiro a guisados,―nas naves de
Norte-Dame ou na velha Sé de Coimbra. Um
caminho de ferro é obra louvavel entre Paris e Bordeus.
Entre Jerichó e Jerusalem basta a egua ligeira que se aluga
por dois drachmas, e a tenda de lona que se planta á tarde
entre os palmares, á beira de uma agua clara, e onde se
dorme tão santamente sob a paz radiante das estrellas da
Syria.
E são justamente essa tenda, e o camello grave que carrega
os fardos, e a escolta flammejante de beduinos, e os pedaços
de deserto onde se galopa com a alma cheia de liberdade, e o lyrio de
Salomão que se colhe nas fendas d'uma ruina sagrada, e as
frescas paragens junto aos poços biblicos, e as
rememorações do Passado á noite em
[203]
torno á
fogueira do acampamento, que fazem o encanto da jornada, e attrahem o
homem de gosto que ama as emoções delicadas de
Natureza,
Historia e Arte. Quando de Jerusalem se partir para a
Galiléa n'um wagon estridente e cheio de pó,
talvez ninguem emprehenda a peregrinação
magnifica―a não ser o destro
commis-voyageur que vai vender pelos Bazares
chitas de Manchester ou pannos vermelhos de Sedan. O teu
negro comboio rolará vazio. Que pura alegria essa para todos
os entendimentos cultos―que não sejam accionistas dos
Caminhos
de Ferro da Palestina!...
Mas socega, Bertrand, engenheiro e accionista! Os homens, mesmo os que
melhor servem o Ideal, nunca resistem ás
tentações
sensualistas do Progresso. Se d'um lado, á sahida de Jaffa,
a propria caravana da Rainha de Sabá, com os seus elephantes
e onagros, e estandartes, e lyras, e os arautos coroados de anemonas, e
todos os fardos abarrotados de pedrarias e balsamos, infindavel em
poesia e lenda, se offerecesse ao homem do seculo XIX para o conduzir
lentamente a Jerusalem e a Salomão―e do outro lado um
comboio, silvando, de portinholas abertas, lhe promettesse a mesma
jornada, sem soalheiras nem solavancos, a vinte kilometros por hora,
com bilhete d'ida e volta, esse homem, por mais intellectual, por mais
eruditamente artista, agarraria a sua chapelleira e enfiaria
sofregamente para o wagon, onde podesse descalçar as botas,
e dormitar de ventre estendido.
[204]
Por isso a tua obra maligna prosperará pela propria virtude
da sua malignidade. E, dentro de poucos annos, o occidental positivo
que de manhã partir da velha Jeppo, no seu wagon de
1.ª
classe, e comprar na estação de Gaza a
Gazeta Liberal do Sinai, e jantar divertidamente
em Ramleh no
Grand-Hotel dos
Machabeus―irá, á noite, em
Jerusalem, através da
Via Dolorosa
illuminada pela electricidade, beber um bock e bater tres carambolas no
Casino do Santo Sepulchro!
Será este o teu feito―e o fim da lenda christã.
Adeus, monstro!―
Fradique.
XII
a madame de jouarre
Quinta de Refaldes (Minho).
Minha querida madrinha.―Estou
vivendo pinguemente em terras ecclesiasticas, porque esta quinta foi de
frades. Agora pertence a um amigo meu, que é, como Virgilio,
poeta e lavrador, e canta piedosamente as origens heroicas de Portugal
emquanto amanha os seus campos e engorda os seus gados. Rijo,
viçoso, requeimado dos soes, tem oito filhos, com que vai
povoando estas cellas monasticas forradas de cretones claros. E eu
justamente voltei de Lisboa a estes milheiraes do
[205]
Norte para ser padrinho do
derradeiro, um famoso senhor de tres palmos, côr de tijolo,
todo roscas e regueifas, com uma careca de melão, os
olhinhos luzindo entre rugas como vidrilhos, e o ar profundamente
sceptico e velho. No sabbado, dia de S. Bernardo, sob um azul que S.
Bernardo tornára especialmente vistoso e macio, ao repicar
dos sinos claros, entre aromas de roseira, e jasmineiro, lá
o conduzimos, todo enfeitado de laçarotes e rendas,
á Pia, onde o Padre Theotonio inteiramente o lavou da fetida
crosta de Peccado Original, que desde a bolinha dos calcanhares
até á moleirinha o cobria todo, pobre senhor de
tres palmos que ainda não vivera da alma, e já
perdera a alma... E desde então, como se Refaldes fosse a
ilha dos Latophagios, e eu tivesse comido em vez da
couve-flôr da horta a flôr do Lotus, por aqui me
quedei, olvidado do mundo e de mim, na doçura d'estes ares,
d'estes prados, de toda esta rural serenidade, que me affaga e me
adormece.
O casarão conventual que habitamos, e onde os conegos
Regrantes de Santo Agostinho, os ricos e nedios Cruzios,
vinham preguiçar no
verão, prende por um claustro florido de hydrangeas e a uma
egreja lisa e sem arte, com um adro assombreado por castanheiros,
pensativo, grave, como são sempre os do Minho. Uma cruz de
pedra encima o portão, onde pende ainda da corrente de ferro
a vetusta e lenta sineta fradesca. No meio do pateo, a fonte, de boa
agua, que canta adormecidamente
[206]
cahindo de concha em concha,
tem no topo outra cruz de pedra, que um musgo amarellento reveste de
melancolia secular. Mais longe, n'um vasto tanque, lago caseiro orlado
de bancos, onde decerto os bons Cruzios se vinham embeber pelas tardes
de frescura e repouso, a agua das regas, limpida e farta, brota dos
pés de uma santa de pedra, hirta no seu nicho, e que
é talvez Santa Rita. Adiante ainda, na horta, outra santa
franzina, sustentando nas mãos um vaso partido, preside,
como uma nayade, ao borbulhar de outra fonte, que por quelhas de
granito vai luzindo e fugindo através do feijoal. Nos
esteios de pedra que sustentam a vinha ha por vezes uma cruz gravada,
ou um coração sagrado, ou o monogramma de Jesus.
Toda a quinta, assim santificada por signos devotos, lembra uma
sacristia onde os tectos fossem de parra, a relva cobrisse os soalhos,
por cada fenda borbulhasse um regato, e o incenso sahisse dos cravos.
Mas, com todos estes emblemas sacros, nada ha que nos môva;
ou severamente nos arraste, aos renunciamentos do mundo. A quinta foi
sempre, como agora, de grossa fartura, toda em campos de
pão, bem arada e bem regada, fecunda, estendida ao sol como
um ventre de Nimpha antiga. Os frades excellentes que n'ella habitaram
amavam largamente a terra e a vida. Eram fidalgos que tomavam
serviço na milicia do Senhor, como os seus irmãos
mais velhos tomavam serviço na milicia d'El-rei―e que, como
elles,
[207]
gozavam
risonhamente os vagares, os privilegios e a riqueza da sua Ordem e da
sua Casta. Vinham para Refaldes, pelas calmas de julho, em seges e com
lacaios. A cozinha era mais visitada que a egreja―e todos os dias os
capões alouravam no espeto. Uma poeira discreta velava a
livraria, onde apenas por vezes algum conego rheumatisante e retido nas
almofadas da sua cella mandava buscar o
D. Quichote,
ou as
Farças de D. Petronilla.
Espanejada, arejada, bem catalogada, com rotulos e notas
traçadas pela mão erudita dos
Abbades―só a adega...
Não se procure pois, n'esta morada de monges, o precioso
sabor das tristezas monasticas; nem as quebradas de serra e valle,
cheias de ermo e mudez, tão dôces para n'ellas se
curtirem
deliciosamente as saudades do céo; nem as espessuras de
bosque, onde S. Bernardo se embrenhava, por n'ellas encontrar melhor
que na sua cella a «fecunda solidão»;
nem os claros de pinheiral gemente, com rochas núas,
tão proprias para a
choça e para a cruz do ermita... Não! Aqui, em
torno do pateo (onde a agua da fonte todavia corre dos pés
da cruz) são solidas tulhas para o
grão, fofos eidos em que o gado medra, capoeiras abarrotadas
de capões e de perús reverendos. Adiante
é a horta viçosa, cheirosa, succulenta, bastante
a fartar as panellas todas de uma aldeia, mais enfeitada que um jardim,
com ruas que as tiras de morangal orlam e perfumam, e as latadas
ensombram,
[208]
copadas
de parra densa. Depois a eira de granito, limpa e alisada, rijamente
construida para longos seculos de colheitas, com o seu espigueiro ao
lado, bem fendilhado, bem arejado, tão largo que os pardaes
voam dentro como n'um pedaço de céo. E por fim,
ondulando ricamente até ás collinas macias, os
campos de milho, e de centeio, o vinhedo baixo, os olivaes, os
relvados, o linho sobre os regatos, o matto florido para os gados... S.
Francisco de Assis e S. Bruno abominariam este retiro de frades e
fugiriam d'elle, escandalisados, como de um peccado vivo.
A casa dentro offerece o mesmo bom conchego temporal. As cellas
espaçosas, de tectos apainelados, abrem para as terras
semeadas, e recebem d'ellas, através da
vidraçaria cheia de sol, a
perenne sensação de fartura, de opulencia rural,
de bens terrenos que não enganam. E a sala melhor,
traçada para as occupações mais
gratas, é o refeitorio, com as suas varandas rasgadas, onde
os regalados monges podessem, ao fim do jantar, conforme a veneravel
tradição dos Cruzios, beber o seu café
aos golos, galhofando, arrotando, respirando a fresquidão,
ou seguindo nas faias do pateo o cantar alto d'um melro.
De sorte que não houve necessidade de alterar esta vivenda,
quando de religiosa passou a secular. Estava já sabiamente
preparada para a profanidade;―e a vida que n'ella então se
começou a viver, não foi differente da do velho
convento, apenas
[209]
mais bella, porque, livre das contradicções
do Espiritual e do Temporal, a sua harmonia se tornou perfeita. E, tal
como é, deslisa com incomparavel doçura. De
madrugada, os gallos cantam, a quinta acorda, os cães de
fila são acorrentados,
a moça vai mungir as vaccas, o pegureiro atira o seu cajado
ao hombro, a fila dos jornaleiros mette-se ás terras―e o
trabalho principia, esse trabalho que em Portugal parece a mais segura
das alegrias e a festa sempre incansavel, porque é todo
feito a cantar. As vozes vêm, altas e desgarradas, no fino
silencio, d'além, d'entre os trigos, ou do campo em sacha,
onde alvejam as camisas de linho crú, e os lenços
de longas franjas vermelhejam mais que papoulas. E não ha
n'este labor nem dureza, nem arranque. Todo elle é feito com
a mansidão com que o pão amadurece ao sol. O
arado mais acaricia do que rasga a gleba. O centeio cae por si,
amorosamente, no seio attrahente da foice. A agua sabe onde o
torrão tem sêde, e corre para
lá gralhando e refulgindo. Ceres n'estes sitios bemditos
permanece verdadeiramente, como no Lacio, a Deusa da Terra, que tudo
propicia e soccorre. Ella reforça o braço do
lavrador, torna refrescante o
seu suor, e da alma lhe limpa todo o cuidado escuro. Por isso os que a
servem, mantêm uma serenidade risonha na tarefa mais dura.
Essa era a ditosa
feição da vida antiga.
Á uma hora é o jantar, serio e pingue. A quinta
tudo fornece prodigamente:―e o vinho, o
[210]
azeite, a hortaliça, a
fructa têm um sabor mais vivo e são, assim cabidos
das mãos do bom Deus sobre a mesa, sem passar pela mercancia
e pela loja. Em palacio algum, por essa Europa superfina, se come na
verdade tão deliciosamente como n'estas rusticas quintas de
Portugal. Na cozinha enfumarada, com duas panellas de barro e quatro
achas a arder no chão, estas caseiras de aldeia, de mangas
arregaçadas, guizam um banquete que faria exultar o velho
Jupiter, esse transcendente guloso, educado a nectar, o Deus que mais
comeu, e mais nobremente soube comer, desde que ha Deuses no
céo e na terra. Quem nunca provou este arroz de
caçoula, este anho paschal candidamente assado no espeto,
estas cabidellas de frango coevas da Monarchia que enchem a alma,
não póde realmente conhecer o que seja a especial
bemaventurança tão grosseira e tão
divina, que no tempo dos frades se chamava a
comezaina.
E a quinta
depois, com as suas latadas de sombra macia, a dormente
susurração das aguas regantes, os ouros claros e
foscos ondulando nos trigaes, offerece, mais que nenhum outro paraiso
humano ou biblico, o repouso acertado para quem emerge, pesado e
risonho, d'este arroz e d'este anho!
Se estes meios-dias são um pouco materiaes, breve a tarde
trará a porção de poesia
de que necessita o Espirito. Em todo o céo se apagou a
refulgencia d'ouro, o esplendor arrogante que se não deixa
fitar e quasi repelle; agora apaziguado
[211]
e tratavel, elle derrama uma
doçura, uma
pacificação que penetra na alma, a torna tambem
pacifica e dôce, e cria esse momento raro em que
céo e alma fraternisam e se entendem. Os arvoredos repousam
n'uma immobilidade de contemplação, que
é intelligente. No piar velado e curto dos passaros ha um
recolhimento e consciencia de ninho feliz. Em fila, a boiada volta dos
pastos, cançada e farta, e vai ainda beberar ao tanque, onde
o gotejar da agua sob a cruz é mais preguiçoso.
Toca o sino a Ave-Marias. Em todos os casaes se está
murmurando o nome de Nosso Senhor. Um carro retardado, pesado de matto,
geme pela sombra da azinhaga. E tudo é tão calmo
e simples e terno, minha madrinha, que, em qualquer banco de pedra em
que me sente, fico enlevado, sentindo a penetrante bondade das coisas,
e tão em harmonia com ella, que não ha n'esta
alma, toda encrostada das lamas do mundo, pensamento que não
podesse contar a um santo...
Verdadeiramente estas tardes santificam. O mundo recua para muito
longe, para além dos pinhaes e das collinas, como uma
miseria esquecida:―e estamos então realmente na felicidade
de um convento, sem regras e sem abbade, feito só da
religiosidade
natural que nos envolve, tão propria á
oração que não tem palavras, e que
é por isso a mais bem comprehendida por Deus.
Depois escurece, já ha pyrilampos nas sebes.
Venus, pequenina, scintilla no alto. A sala, em
[212]
cima, está
cheia de livros, dos livros fechados no tempo dos Cruzios―porque
só desde que não
pertence a uma ordem espiritual é que esta casa se
espiritualisou. E o dia na quinta finda com uma lenta e quieta palestra
sobre idéas e letras, emquanto na guitarra ao lado geme
algum dos fados de Portugal, longo em saudades e em ais, e a lua, ao
fundo da varanda, uma lua vermelha e cheia, surde, como a escutar, por
detraz dos negros montes.
Deus nobis haec otia fecit in umbra Lusitaniae pulcherrimae...
Mau latim―grata verdade.
Seu grato e mau afilhado―
Fradique.
XIII
a clara...
(Trad.)
Paris, novembro.
Meu amor.―Ainda ha poucos instantes
(dez instantes, dez minutos, que tanto gastei n'um
fiacre
desolador desde a nossa
Torre de Marfim) eu sentia o rumor do teu
coração junto do meu, sem que nada os separasse
senão uma pouca de argilla mortal, em ti tão
bella, em mim tão rude―e já estou tentando
recontinuar anciosamente, por meio d'este papel inerte, esse ineffavel
estar
comtigo que é hoje todo o fim da minha vida, a
minha suprema e unica vida. É que, longe da tua
presença,
[213]
cesso
de viver, as coisas para mim cessam de ser―e fico como um morto
jazendo no meio de um mundo morto. Apenas, pois, me finda esse perfeito
e curto momento de vida que me dás, só com pousar
junto de mim e murmurar o meu nome―recomeço a aspirar
desesperadamente para ti como para uma
resurreição!
Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu Deus a
minha Eva―que era eu, na verdade? Uma sombra fluctuando entre sombras.
Mas tu vieste, dôce adorada, para me fazer sentir a minha
realidade, e me permittir que eu bradasse tambem triumphalmente o
meu―«
amo, logo
existo!» E não foi só a
minha realidade que me
desvendaste―mas ainda a realidade de todo este Universo, que me
envolvia como um inintelligivel e cinzento montão de
apparencias. Quando ha dias, no terraço
de Savran, ao anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrellas
estando tão perto dos teus olhos, e espreitasse o adormecer
das collinas junto ao calor dos teus hombros―não sabias,
nem eu te soube então explicar, que essa
contemplação era ainda um modo novo de te adorar,
porque realmente estava admirando nas coisas a belleza inesperada que
tu sobre ellas derramas por uma emanação que te
é propria, e que, antes de viver a teu lado, nunca eu lhes
percebera, como se não percebe a vermelhidão das
rosas ou o verde tenro das relvas antes de nascer o sol! Foste tu,
minha bem-amada, que me alumiaste o mundo. No teu amor
[214]
recebi a minha
Iniciação. Agora entendo, agora sei. E, como o
antigo Iniciado, posso affirmar:―«Tambem fui a Eleusis; pela
larga estrada pendurei muita flôr que não era
verdadeira, diante de muito altar que não era divino; mas a
Eleusis cheguei, em Eleusis penetrei―e vi e senti a
verdade!...»
E accresce ainda, para meu martyrio e gloria, que tu és
tão sumptuosamente bella e
tão ethereamente bella, d'uma belleza feita de
Céo e de Terra, belleza completa e só tua, que eu
já
concebera―que nunca julgára realizavel. Quantas vezes, ante
aquella sempre admirada e toda perfeita Venus de Milo, pensei que se
debaixo da sua testa de Deusa podessem tumultuar os cuidados humanos;
se os seus olhos soberanos e mudos se soubessem toldar de lagrimas; se
os seus labios, só talhados para o mel e para os beijos,
consentissem em tremer no murmurio de uma prece submissa; se, sob esses
seios, que foram o appetite sublime dos Deuses e dos Heroes, um dia
palpitasse o Amor e com elle a Bondade; se o seu marmore soffresse, e
pelo soffrimento se espiritualisasse, juntando ao esplendor da Harmonia
a graça da Fragilidade; se ella fosse do nosso tempo e
sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do Prazer se tornasse
Senhora da Dôr―então não estaria
collocada n'um museu, mas consagrada n'um santuario, porque os homens,
ao reconhecer n'ella a alliança sempre almejada e sempre
frustrada do Real e do Ideal, decerto
[215]
a teriam acclamado
in
eternum
como a definitiva Divindade. Mas quê! A pobre Venus
só offerecia a serena magnificencia da carne. De todo lhe
faltava a chamma que arde na alma e a consome. E a creatura
incomparavel do meu scismar, a Venus Espiritual, Cytherêa e
Dolorosa, não existia, nunca existiria!... E quando eu assim
pensava, eis que tu surges, e eu te comprehendo! Eras a
encarnação do meu sonho, ou antes d'um sonho que
deve ser universal―mas só eu te descobri, ou,
tão feliz fui, que só por mim quizeste ser
descoberta!
Vê, pois, se jámais te deixarei escapar dos meus
braços! Por isso mesmo que és a minha
Divindade,―para sempre e irremediavelmente estás presa
dentro da minha adoração. Os Sacerdotes de
Carthago acorrentavam ás lages dos Templos, com cadeias de
bronze, as imagens dos seus Baals. Assim te quero tambem, acorrentada
dentro do templo avaro que te construi, só Divindade minha,
sempre no teu altar,―e eu sempre diante d'elle rojado, recebendo
constantemente n'alma a tua
visitação, abysmando-me sem cessar na tua
essencia, de modo que nem por um momento se descontinue essa
fusão ineffavel, que é para ti um acto de
Misericordia e para mim de Salvação. O que eu
desejaria na verdade é que fosses invisivel para todos e
como não existente―que perpetuamente um estofo informe
escondesse o teu corpo, uma rigida mudez occultasse a tua
intelligencia. Assim passarias
[216]
no mundo como uma apparencia
incomprehendida. E só para mim, de dentro do involucro
escuro, se revelaria a tua perfeição rutilante.
Vê quanto te amo―que te queria entrouxada n'um rude, vago
vestido de merino, com um ar quêdo, inanimado... Perderia
assim o triumphal contentamento de vêr resplandecer entre a
multidão maravilhada aquella que em segredo nos ama. Todos
murmurariam compassivamente―«
Pobre
creatura!» E só eu saberia da
«pobre creatura», o
corpo e a alma adoraveis!
Quanto adoraveis! Nem comprehendo que, tendo consciencia do teu
encanto, não estejas de ti namorada como aquelle Narciso que
treme de frio, coberto de musgo, à beira da fonte, em
Savran. Mas eu largamente te amo e por mim e por
ti! A tua belleza, na verdade, attinge a altura de
uma virtude:―e foram decerto os modos tão puros da tua alma
que fixaram as linhas tão formosas do teu corpo. Por isso ha
em mim um incessante desespero de não te saber amar
condignamente―ou antes (pois desceste de um céo superior)
de não saber tratar, como ella merece, a hospeda divina do
meu coração. Desejaria, por vezes, envolver-te
toda n'uma felicidade immaterial, seraphica, calma infinitamente como
deve ser a Bemaventurança―e assim deslisarmos
enlaçados através do silencio e
da luz, muito brandamente, n'um sonho cheio de certeza, sahindo da vida
á mesma hora e indo continuar no
além
o mesmo sonho estatico. E outras
[217]
vezes
desejaria arrebatar-te n'uma felicidade vehemente, tumultuosa,
fulgurante, toda de chamma, de tal sorte que n'ella nos destruissemos
sublimemente, e de nós só restasse uma pouca de
cinza sem memoria e sem nome! Possuo uma velha gravura que é
um Satanaz, ainda em toda a refulgencia da belleza archangelica,
arrastando nos braços para o Abysmo uma freira, uma Santa,
cujos derradeiros véos de penitencia se vão
esgaçando
pelas pontas das rochas negras. E na face da Santa, através
do horror, brilha, irreprimida e mais forte que o horror, uma tal
alegria e paixão, tão
intensas―que eu as appeteceria para ti, oh minha Santa roubada! Mas de
nenhum d'estes modos te sei amar, tão fraco ou inhabil
é o meu
coração, de modo que por o meu amor
não ser perfeito, tenho de me contentar que seja eterno. Tu
sorris tristemente d'esta eternidade. Ainda hontem me
perguntavas:―«No calendario do seu
coração, quantos dias dura a
eternidade?» Mas considera que eu era um morto―e que tu me
resuscitaste. O sangue novo que me circula nas veias, o espirito novo
que em mim sente e comprehende, são o meu amor por ti―e se
elle me fugisse, eu teria outra vez, regelado e mudo, de reentrar no
meu sepulchro. Só posso deixar de te amar―quando deixar de
ser. E a vida comtigo, e por ti, é tão
inexprimivelmente bella! É a vida de um Deus. Melhor
talvez:―e se eu fosse esse pagão que tu affirmas que sou,
mas um pagão do Lacio,
[218]
pastor de gados, crente ainda em
Jupiter e Apollo, a cada instante temeria que um d'esses Deuses
invejosos te raptasse, te elevasse ao Olympo para completar a sua
ventura divina. Assim não receio:―toda minha te sei e para
todo o sempre, olho o mundo em torno de nós como um Paraiso
para nós creado, e durmo seguro sobre o teu peito na
plenitude da gloria, oh minha tres vezes bemdita, Rainha da minha
graça.
Não penses que estou compondo canticos em teu louvor.
É em plena simplicidade que deixo escapar o que me
está borbulhando na alma... Ao contrario! Toda a Poesia de
todas as idades, na sua gracilidade ou na sua magestade, seria
impotente para exprimir o meu extase. Balbucio, como posso, a minha
infinita oração. E n'esta desoladora
insufficiencia do Verbo humano é como o mais inculto e o
mais illetrado que ajoelho ante ti, e levanto as mãos, e te
asseguro a unica verdade, melhor que todas as verdades―que te amo, e
te amo, e te amo, e te amo!...
Fradique.
XIV
a madame de jouarre
(Trad.)
Lisboa, junho.
Minha querida madrinha.―N'aquella
casa de hospedes da travessa da Palha, onde vive, atrellado
[219]
á lavra angustiosa da
Verdade, meu primo o Metaphysico, conheci, logo depois de voltar de
Refaldes, um padre, o padre Salgueiro, que talvez a minha madrinha, com
essa sua maliciosa paciencia de colleccionar Typos, ache interessante e
psychologicamente divertido.
O meu distrahido e pallido Metaphysico affirma, encolhendo os hombros,
que padre Salgueiro não se destaca por nenhuma saliencia de
Corpo ou Alma entre os vagos padres da sua Diocese;―e que resume
mesmo, com uma fidelidade de indice, o pensar, e o sentir, e o viver, e
o parecer da classe ecclesiastica em Portugal. Com effeito, por
fóra, na casca, padre Salgueiro é o costumado e
corrente padre portuguez, gerado na gleba, desbravado e afinado depois
pelo Seminario, pela
frequentação das auctoridades e das Secretarias,
por ligações de confissão e missa com
fidalgas que têm capella, e sobretudo por longas residencias
em Lisboa, n'estas casas de hospedes da Baixa, infestadas de
litteratura e politica. O peito bem arcado, de folego fundo, como um
folle de forja; as mãos ainda escuras, asperas, apesar do
longo contacto com a alvura e doçura das hostias; o
carão
côr de couro curtido, com um sobre-tom azul nos queixos
escanhoados; a corôa livida entre o cabello mais negro e
grosso que pellos de clina; os dentes escaroladamente brancos―tudo
n'elle pertence a essa forte plebe agricola de onde sahiu, e que ainda
hoje em Portugal fornece á Egreja todo o seu pessoal, pelo
[220]
desejo de se alliar e de
se apoiar á unica grande instituição
humana que realmente comprehende e de que não desconfia. Por
dentro, porém, como miolo, padre Salgueiro apresenta toda
uma estructura moral deliciosamente pittoresca e nova para quem, como
eu, do Clero Lusitano só entrevira exterioridades, uma
batina desapparecendo pela porta d'uma sacristia, um velho
lenço de rapé posto na borda d'um confessionario,
uma sobrepeliz alvejando n'uma tipoia atraz d'um morto...
O que em padre Salgueiro me encantou logo, na noite em que tanto
palestramos, rondando pachorrentamente o Rocio, foi a sua maneira de
conceber o Sacerdocio. Para elle o Sacerdocio (que de resto ama e acata
como um dos mais uteis fundamentos da sociedade) não
constitue de modo algum uma funcção
espiritual―mas unicamente e terminantemente uma
funcção civil. Nunca, desde que foi collado
á sua parochia, padre Salgueiro se considerou
senão como um funccionario do Estado, um Empregado Publico,
que usa um uniforme, a batina (como os guardas da alfandega usam a
fardeta), e que, em logar de entrar todas as manhãs n'uma
repartição do Terreiro do Paço
para escrevinhar ou archivar officios, vai mesmo nos dias santificados,
a uma outra repartição, onde, em vez da carteira
se ergue um altar, celebrar missas e administrar sacramentos. As suas
relações portanto
não são, nunca foram, com o céo (do
céo
só lhe importa saber se está chuvoso ou
claro)―mas com a Secretaria
[221]
da Justiça e dos Negocios Ecclesiasticos. Foi ella
que o collocou na sua Parochia, não para continuar a obra do
Senhor guiando docemente os homens pela estrada limpa da
Salvação
(missões de que não curam as secretarias do
Estado), mas, como funccionario, para executar certos actos publicos
que a lei determina a bem da ordem social―baptisar, confessar, casar,
enterrar os parochianos.
Os sacramentos são, pois, para este excellente padre
Salgueiro, meras ceremonias civis, indispensaveis para a
regularisação do estado civil,―e nunca, desde
que os administra, pensou na sua natureza divina, na Graça
que communicam ás almas, e na força com que ligam
a vida transitoria a um principio Immanente. Decerto, outr'ora no
seminario, padre Salgueiro decorou em compendios ensebados a sua
Theologia Dogmatica, a sua Theologia Pastoral, a sua Moral, o seu S.
Thomaz, o seu Liguori―mas meramente para cumprir as disciplinas
officiaes do curso, ser ordenado pelo seu bispo, depois provido n'uma
parochia pelo seu ministro, como todos os outros bachareis que em
Coimbra decoram as
Sebentas de Direito
natural e de Direito romano para «fazerem o curso»,
receber na cabeça a borla de doutor, e depois o aconchego de
um emprego facil. Só o grau vale e importa, porque justifica
o despacho. A sciencia é a formalidade penosa que
lá conduz―verdadeira
provação, que, depois de atravessada,
não deixa ao espirito
[222]
desejos de regressar á
sua disciplina, á sua
aridez, á sua canceira. Padre Salgueiro, hoje, já
esqueceu regaladamente a significação theologica
e
espiritual do casamento:―mas casa, e casa com pericia, com bom rigor
liturgico, com boa fiscalisação
civil, esmiuçando escrupulosamente as certidões,
pondo na benção toda a
uncção prescripta, perfeito em unir as
mãos com a estola, cabal na
ejaculação dos latins, porque é
subsidiado pelo Estado para casar bem os cidadãos, e,
funccionario zeloso,
não quer cumprir com defeitos funcções
que lhe
são pagas sem atrazo.
A sua ignorancia é deliciosa. Além de raros actos
da vida activa de Jesus, a fuga para o Egypto no burrinho, os
pães multiplicados nas bodas de Caná, o azorrague
cahindo sobre os vendilhões do Templo, certas
expulsões de Demonios, nada sabe do Evangelho―que considera
todavia
muito
bonito. Á doutrina de Jesus é
tão alheio como
á philosophia de Hegel. Da Biblia tambem só
conhece episodios soltos, que aprendeu certamente em oleographias―a
Arca de Noé, Samsão arrancando as portas de Gaza,
Judith degollando Holophernes. O que tambem me diverte, nas noites
amigas em que conversamos na travessa da Palha, é o seu
desconhecimento absolutamente candido das origens, da historia da
Egreja. Padre Salgueiro imagina que o Christianismo se fundou de
repente, n'um dia (decerto um domingo), por milagre flagrante de Jesus
Christo:―e desde essa festiva hora tudo para elle
[223]
se esbate n'uma treva incerta, onde
vagamente reluzem nimbos de santos e tiáras de papas,
até Pio IX. Não admira, porém, na obra
pontifical de Pio IX, nem a Infallibilidade, nem o Syllabus:―porque se
préza de liberal, deseja mais progresso, bemdiz os
beneficios da instrucção, assigna o
Primeiro de Janeiro.
Onde eu tambem o acho superiormente pittoresco, é
cavaqueando ácerca dos deveres que lhe incumbem como pastor
de almas―os deveres para com as almas. Que elle, por
continuação de uma obra divina, esteja obrigado a
consolar dôres, pacificar inimizades, dirigir
arrependimentos, ensinar a cultura da bondade, adoçar a
dureza dos egoismos, é para o benemerito padre Salgueiro a
mais estranha e incoherente das novidades! Não que
desconheça a belleza moral d'essa missão, que
considera mesmo
cheia de poesia. Mas
não admitte que, formosa e honrosa como é, lhe
pertença a
elle padre Salgueiro! Outro tanto seria exigir de um verificador da
alfandega que moralisasse e purificasse o commercio. Esse santo
emprehendimento pertence aos Santos. E os Santos, na opinião
de padre Salgueiro, formam uma Casta, uma Aristocracia espiritual, com
obrigações sobrenaturaes que lhes são
delegadas e pagas pelo Céo. Muito
differentes se apresentam as obrigações de um
parocho! Funccionario ecclesiastico, elle só tem a cumprir
funcções rituaes em nome da Egreja, e portanto do
Estado que a subsidia. Ha ahi uma criança
[224]
para baptisar? Padre Salgueiro toma
a estola e baptisa. Ha ahi um cadaver para enterrar? Padre Salgueiro
toma o hyssope e enterra. No fim do mez recebe os seus dez mil reis
(além da esmola)―e o seu bispo reconhece o seu zelo.
A idéa que padre Salgueiro tem da sua missão
determina, com louvavel logica, a sua conducta. Levanta-se
ás dez horas, hora classicamente adoptada pelos empregados
do Estado. Nunca abre o breviario―a não ser em
presença dos seus
superiores ecclesiasticos, e então por deferencia
gerarchica, como um tenente, que, em face ao seu general, se perfila,
pousa a mão na espada. Emquanto a
orações, meditações,
mortificações, exames d'alma, todos esses
pacientes methodos de aperfeiçoamento e
santificação
propria, nem sequer suspeita que lhe sejam necessarios ou favoraveis.
Para que? Padre Salgueiro constantemente tem presente que, sendo um
funccionario, deve manter, sem transigencias, nem omissões,
o decoro que tornará as suas funcções
respeitadas
do mundo. Veste, por isso, sempre de preto. Não fuma. Todos
os dias de jejum come um peixe austero. Nunca transpoz as portas
impuras de um botequim. Durante o inverno só uma noite vai a
um theatro, a S. Carlos, quando se canta o
Polliuto, uma opera sacra, de purissima
lição. Deceparia a lingua,
com furor, se d'ella lhe pingasse uma falsidade. E é casto.
Não condemna e repelle a mulher com colera, como os Santos
Padres:―até a venéra, se
[225]
ella é economica e
virtuosa. Mas o regulamento da Egreja prohibe a mulher: elle
é um funccionario ecclesiastico, e a mulher portanto
não entra nas suas funcções.
É rigidamente casto.
Não conheço maior respeitabilidade do que a de
padre Salgueiro.
As suas occupações, segundo observei, consistem
muito logicamente, como empregado (além das horas dadas aos
deveres liturgicos), em procurar melhoria de emprego. Pertence por isso
a um partido politico:―e em Lisboa, tres noites por semana, toma
chá em casa do seu chefe, levando rebuçados
ás senhoras. Maneja habilmente
eleições. Faz serviços e recados,
complexos e indescriptos, a todos os directores geraes da Secretaria
dos Negocios Ecclesiasticos. Com o seu bispo é
incansavel:―e ainda ha mezes o encontrei, suado e afflicto, por causa
de duas incumbencias de. S. exc.
a uma relativa a
queijadas de Cintra,
outra a uma collecção do
Diario do
Governo.
Não fallei da sua intelligencia. É pratica e
methodica―como verifiquei, assistindo a um sermão que elle
prégou pela festa de S. Venancio. Por esse
sermão, encommendado, recebia padre Salgueiro 20$000 reis―e
deu, por esse preço, um sermão succulento,
documentado, encerrando tudo o que convinha á
glorificação de S.
Venancio. Estabeleceu a filiação do Santo;
desenrolou todos os seus milagres (que são poucos) com
exactidão, exarando as datas, citando as auctoridades;
narrou com rigor agiologico o seu martyrio; enumerou as
[226]
egrejas que lhe são
consagradas, com as épocas da
fundação. Enxertou destramente louvores ao
Ministro dos Negocios Ecclesiasticos. Não esqueceu a Familia
Real, a quem rendeu preito constitucional. Foi, em summa, um excellente
relatorio sobre S. Venancio.
Felicitei n'essa noite, com fervor, o reverendo padre Salgueiro. Elle
murmurou, modesto e simples:
―S. Venancio infelizmente não se presta. Não foi
bispo, nunca exerceu cargo publico!... Em todo o caso, creio que
cumpri.
Ouço que vai ser nomeado conego. Larguissimamente o merece.
Jesus não possue melhor amanuense. E nunca realmente
comprehendi por que razão outro amigo meu, um frade do
Varatojo, que, pelo extasi da sua fé, a profusão
da sua caridade, o seu devorador cuidado na
pacificação das almas, me faz lembrar os velhos
homens evangelicos, chama sempre a este sacerdote tão
zeloso, tão pontual, tão proficiente,
tão
respeitavel―«o horrendo padre Salgueiro!»
Ora veja, minha madrinha! Mais de trinta ou quarenta mil annos
são necessarios para que uma montanha se desfaça
e se abata até ao tamanhinho d'um outeiro que um cabrito
galga brincando. E menos de dois mil annos bastaram para que o
Christianismo baixasse dos grandes padres das Sete Egrejas da Asia
até ao divertido padre Salgueiro, que não
é de sete Egrejas, nem mesmo
[227]
d'uma, mas sómente,
e muito devotamente, da Secretaria dos Negocios Ecclesiasticos. Este
baque provaria a fragilidade do Divino―se não fosse que
realmente o Divino abrange as religiões e as montanhas, a
Asia, o padre Salgueiro, os cabritinhos folgando, tudo o que se desfaz
e tudo o que se refaz, e até este seu afilhado, que
é todavia
humanissimo.―
Fradique.
XV
a bento de s.
Paris, outubro.
Meu caro Bento.―A tua
idéa de fundar um jornal é damninha e execravel.
Lançando, e em formato rico, com telegrammas e chronicas,
uma outra «d'essas folhas impressas que apparecem todas as
manhãs», como diz tão assustada e
pudicamente o Arcebispo de Paris, tu vaes concorrer para que no teu
tempo e na tua terra se aligeirem mais os Juizos ligeiros, se exacerbe
mais a Vaidade, e se endureça mais a Intolerancia. Juizos
ligeiros, Vaidade, Intolerancia―eis tres negros peccados sociaes que,
moralmente, matam uma Sociedade! E tu alegremente te preparas para os
atiçar. Inconsciente como uma peste, espalhas sobre as almas
a morte. Já decerto o Diabo está atirando mais
braza para debaixo da caldeira de pez, em
[228]
que, depois do Julgamento,
recozerás e ganirás, meu Bento e meu reprobo!
Não penses que, moralista amargo, exagero, como qualquer S.
João Chrysostomo. Considera antes como foi
incontestavelmente a Imprensa, que, com a sua maneira superficial,
leviana e atabalhoada de todo affirmar, de tudo julgar, mais enraigou
no nosso tempo o funesto habito dos juizos ligeiros. Em todos os
seculos decerto se improvisaram estouvadamente opiniões: o
grego era inconsiderado e garrulo; já Moysés, no
longo Deserto, soffria com o murmurar variavel dos Hebreus; mas nunca,
como no nosso seculo apressado, essa improvisação
impudente se tornou a operação natural do
entendimento. Com excepção de alguns philosophos
escravisados pelo Methodo, e d'alguns devotos roidos pelo Escrupulo,
todos nós hoje nos deshabituamos, ou antes nos
desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar.
É com impressões
fluidas que formamos as nossas massiças
conclusões. Para julgar em Politica o facto mais complexo,
largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina,
n'uma manhã de vento. Para apreciar em Litteratura o livro
mais profundo, atulhado de idéas novas, que o amor de
extensos annos fortemente encadeou―apenas nos basta folhear aqui e
além uma pagina, através do fumo escurecedor do
charuto. Principalmente para condemnar, a nossa ligeireza é
fulminante. Com que soberana facilidade declaramos―«Este
[229]
é uma besta! Aquelle é um
maroto!» Para proclamar―«É um
genio!»
ou «É um santo!» offerecemos uma
resistencia mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa
digestão ou a macia luz d'um céo de maio nos
inclinam á
benevolencia, tambem concedemos bizarramente, e só com
lançar um olhar distrahido sobre o eleito,
a corôa ou a aureola, e ahi empurramos para a popularidade um
maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim
passamos o nosso bemdito dia a estampar rotulos definitivos no dorso
dos homens e das coisas. Não ha acção
individual ou collectiva, personalidade ou obra humana, sobre que
não estejamos promptos a promulgar rotundamente uma
opinião bojuda. E a opinião tem sempre, e apenas,
por base aquelle pequenino lado do facto, do homem, da obra, que
perpassou n'um relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos.
Por um gesto julgamos um caracter: por um caracter avaliamos um povo.
Um inglez, com quem outr'ora jornadeei pela Asia, varão
douto, collaborador de
Revistas, socio de
Academias, considerava os francezes todos, desde os senadores
até aos varredores, como «porcos e
ladrões»... Porquê, meu Bento? Porque em
casa de seu sogro houvera um escudeiro, vagamente oriundo de Dijon, que
não mudava de collarinho e surripiava os charutos. Este
inglez illustra magistralmente a formação
escandalosa das nossas
generalisações.
E quem nos tem enraizado estes habitos de
[230]
desoladora leviandade? O jornal―o
jornal, que offerece cada manhã, desde a chronica
até aos
annuncios, uma massa espumante de juizos ligeiros, improvisados na
vespera, á meia noite, entre o silvar do gaz e o fervilhar
das chalaças, por excellentes rapazes que rompem pela
redacção, agarram uma tira de papel, e, sem tirar
mesmo o chapéo, decidem com dois rabiscos da penna sobre
todas as coisas da Terra e do Céo. Que se trate d'uma
revolução do Estado, da solidez d'um Banco, d'uma
Magica, ou d'um descarrillamento, o rabisco da penna, com um
traço, esparrinha e julga. Nenhum estudo, nenhum documento,
nenhuma certeza. Ainda, este domingo, meu Bento, um alto jornal de
Paris, commentando a situação
economica, e politica de Portugal, affirmava, e com um aprumado saber,
que «em Lisboa os filhos das mais illustres familias da
aristocracia se empregam como
carregadores da alfandega,
e ao
fim de cada mez mandam receber as soldadas
pêlos
seus
lacaios!» Que dizes tu aos herdeiros das casas
historicas de Portugal, carregando pipas de azeite no caes da
alfandega, e conservando criados de farda para lhes ir receber o
salario? Estas pipas, estes fidalgos, estes lacaios dos carregadores,
formam uma deliciosa e chimerica alfandega que é menos das
Mil
e Uma Noites, que das Mil e
Uma Asneiras. Pois assim o ensinou um jornal consideravel, rico, bem
provido de Encyclopedias, de Mappas, de Estatisticas, de Telephones, de
Telegraphos,
[231]
com uma
redacção muito erudita, pinguemente
remunerada, que conhece a Europa, pertence á Academia das
Sciencias Moraes e Sociaes, e legisla no Senado! E tu, Bento, no teu
jornal, fornecido tambem de Encyclopedias e de Telephones, vaes com
penna sacudida lançar sobre a França e sobre a
China, e sobre o desventuroso Universo que se torna assumpto e
propriedade tua, juizos tão solidos e comprovados como os
que aquella bemdita gazeta archivou definitivamente ácerca
da nossa alfandega e da nossa fidalguia...
Este é o primeiro peccado, bem negro. Considera agora outro,
mais negro. Pelo jornal, e pela reportagem que será a sua
funcção e a
sua força, tu desenvolverás, no teu tempo e na
tua terra, todos os males da Vaidade! A reportagem, bem sei,
é uma util abastecedora da Historia. Decerto importou saber
se era adunco ou chato o nariz de Cleopatra, pois que do feitio d'esse
nariz dependeram, durante algum tempo, de Philippes a Actium, os
destinos do Universo. E quantos mais detalhes a esfuracadora
bisbilhotice dos reporters revelar sobre o snr. Renan, e os seus
moveis, e a sua roupa branca, tantos mais elementos positivos
possuirá o seculo XX para reconstruir com
segurança a personalidade do auctor das
Origens
do
Christianismo, e, através d'ella, comprehender a
obra. Mas, como a reportagem hoje se exerce, menos sobre os que influem
nos negocios do Mundo ou
[232]
nas
direcções do Pensamento, do que, como diz a
Biblia, sobre toda a «sorte e condições
de gente van», desde os jockeys até aos
assassinos, a sua indiscriminada publicidade concorre pouco para a
documentação da historia, e muito,
prodigiosamente, escandalosamente, para a
propagação das vaidades!
O jornal é com effeito o folle incansavel que assopra a
vaidade humana, lhe irrita e lhe espalha a chamma. De todos os tempos
é ella, a vaidade do homem! Já sobre ella gemeu o
gemebundo Salomão, e por ella se perdeu Alcibiades, talvez o
maior dos gregos. Incontestavelmente, porém, meu Bento,
nunca a vaidade foi, como no nosso damnado seculo XIX, o motor
offegante do pensamento e da conducta. N'estes estados de
civilisação, ruidosos e ôcos, tudo
deriva da vaidade, tudo tende á
vaidade. E a fórma nova da vaidade para o civilisado
consiste em ter o seu rico nome impresso no jornal, a sua rica pessoa
commentada no jornal!
Vir no jornal! eis hoje a
impaciente
aspiração e a recompensa suprema! Nos regimens
aristocraticos o esforço era obter, senão
já o favor, ao menos o sorriso do Principe. Nas nossas
democracias a ancia da maioria dos mortaes é
alcançar em sete linhas o louvor do jornal. Para se
conquistarem essas sete linhas bemditas, os homens praticam todas as
acções―mesmo as boas. Mesmo as boas, meu Bento!
O «nosso generoso amigo Z...» só manda
os cem mil reis á Creche, para que a gazeta exalte os
[233]
cem mil reis de Z...,
nosso amigo generoso. Nem é mesmo necessario que as sete
linhas contenham muito mel e muito incenso: basta que ponham o nome em
evidencia, bem negro, n'essa tinta cujo brilho é mais
appetecido que o velho nimbo d'ouro do tempo das Santidades. E
não ha classe que não ande devorada por esta fome
morbida do reclamo. Ella é tão roedora nos
sêres de exterioridade e de mundanidade, como n'aquelles que
só pareciam amar na vida, como a sua fórma
melhor, a quietação e o silencio...
Entrámos na quaresma (é entre as cinzas, e com
cinzas, que te estou moralisando). Agora, n'estas semanas de peixe,
surdem os frades dominicanos, do fundo dos seus claustros, a
prégar nos pulpitos de Paris. E porquê esses
sermões sensacionaes, d'uma arte profana e theatral, com
exhibicões de psychologia amorosa, com
affectações de anarchismo
evangelico, e tão creadores de escandalo que Paris corre
mais gulosamente a Notre-Dame em tarde de Dominicano, do que
á Comedia-Franceza em noite de Coquelin? Porque os monges,
filhos de S. Domingos, querem setenta linhas nos jornaes do Boulevard,
e toda a celebridade dos histriões. O Jornal estende sobre o
mundo as suas duas folhas, salpicadas de preto, como aquellas duas azas
com que os iconographistas do seculo XV representavam a Luxuria ou a
Gula: e o Mundo todo se arremessa para o jornal, se quer agachar sob as
duas azas que o levem á gloriola, lhe espalhem o nome
[234]
pelo ar sonoro. E
é por essa gloriola que os homens se perdem, e as mulheres
se aviltam, e os Politicos desmancham a ordem do Estado, e os Artistas
rebolam na extravagancia esthetica, e os Sabios alardeiam theorias
mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os generos, surge a horda
ululante dos charlatães... (Como me vim tornando
altiloquente e roncante!...) Mas é a verdade, meu Bento!
Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados!
(Homenzinhos de letras, poetisas, dentistas, etc.). O proprio mal
appetece sofregamente as sete linhas que o maldizem. Para apparecerem
no jornal, ha assassinos que assassinam. Até o velho
instincto da conservação
cede ao novo instincto da notoriedade: e existe tal maganão,
que ante um funeral convertido em apotheose pela abundancia das
corôas, dos coches e dos prantos oratorios, lambe os
beiços, pensativo, e deseja ser o morto.
N'este verão, uma manhã, muito cedo, entrei n'uma
taberna de Montmartre a comprar phosphoros. Rente ao balcão
de zinco, diante de dois copos de vinho branco, um meliante, que pelas
ventas chatas, o bigode hirsuto e pendente, o barrete de pelle de
lontra, parecia (e era) um Huno, um sobrevivente das hordas
d'Alarico,―gritava triumphalmente para outro vadio imberbe e livido, a
quem arremessára um jornal:
―É verdade, em todas as letras, o meu nome todo! Na segunda
columna, logo em cima, onde
[235]
diz:―
Hontem um infame e
ignobil
bandido... Sou eu! O nome todo!
E espalhou lentamente em redor um olhar que triumphava. Eis-ahi, como
agora se diz tão alambicadamente, um «estado
d'alma»! Tu, Bento, vaes crear d'estes estados.
Depois considera o derradeiro peccado, negrissimo. Tu fundas, com o teu
novo jornal, uma nova escola de Intolerancia. Em torno de ti, do teu
partido, dos teus amigos, ergues um muro de pedra miuda e bem
cimentada: dentro d'esse murosinho, onde plantas a tua bandeirola com o
costumado lemma de
imparcialidade,
desinteresse, etc., só
haverá, segundo Bento e o seu jornal,
intelligencia, dignidade, saber, energia, civismo; para além
d'esse muro, segundo o jornal de Bento, só haverá
necessariamente sandice, vileza, inercia, egoismo, traficancia!
É a disciplina de partido (e para te agradar, entendo
partido, no seu sentido mais amplo, abrangendo a Litteratura, a
Philosophia, etc.) que te impõe fatalmente esta divertida
separação das virtudes e dos vicios. Desde que
penetras na batalha, nunca poderás admittir que a
Razão ou a Justiça ou a Utilidade se encontrem do
lado d'aquelles contra quem descargas pela manhã a tua
metralha silvante de adjectivos e verbos―porque então a
decencia, se não já a
consciencia, te forçariam a saltar o muro e desertar para
esses justos. Tens de sustentar que elles são maleficos,
[236]
desarrazoados,
velhacos, e vastamente merecem o chumbo com que os trespassas. Das
solas dos pés até aos teus raros cabellos, meu
Bento, desde
logo te atolas na Intolerancia! Toda a idéa que se eleve,
para além do muro, a condemnarás como funesta,
sem exame, só porque appareceu dez
braças adiante, do lado dos outros, que são os
Reprobos, e não do lado dos teus, que são os
Eleitos.
Realisam esses outros uma obra? Bento não poupará
prosa nem musculo para que ella pereça: e se por entre as
pedras que lhe atira, casualmente entrevê n'ella certa
belleza ou certa utilidade, mais furiosamente apressa a sua
demolição, porque seria mortificante para os seus
amigos que alguma coisa de util ou de bello nascesse dos seus
inimigos―e vivesse. Nos homens que vagam para além do teu
muro, tu só verás peccadores; e quando entre
elles reconhecesses S. Francisco d'Assis distribuindo aos pobres os
derradeiros ceitis da Porciuncula, taparias a face para que tanta
santidade te não amollecesse, e gritarias mais
sanhudamente:―«Lá anda aquelle malandro a
esbanjar com os vadios o dinheiro que roubou!»
Assim tu serás no teu jornal. E, em torno de ti, os que o
compram e o adoptam lentamente e moralmente se fazem á tua
imagem. Todo o jornal distilla intolerancia, como um alambique distilla
alcool, e cada manhã a multidão se envenena aos
goles com esse veneno capcioso. É pela
acção do jornal que se azedam todos os velhos
conflictos do
[237]
mundo―e que as almas, desevangelisadas, se tornam mais rebeldes
á indulgencia. A sociabilidade incessantemente amacia e
arredonda as divergencias humanas, como um rio arredonda e alisa todos
os seixos que n'elle rolam: e a humanidade, que uma longa cultura e a
velhice tem tornado docemente sociavel, tenderia a uma suprema
pacificação―se cada manhã o jornal
não avivasse os odios de Principios, de Classes, de
Raças, e, com os seus gritos, os acirrasse como se acirram
mastins até que se enfureçam e mordam. O jornal
exerce hoje todas as funcções malignas do
defuncto Satanaz, de quem herdou a ubiquidade; e é
não
só o Pae da Mentira, mas o Pae da Discordia. É
elle que por um lado inflamma as exigencias mais vorazes―e por outro
fornece pedra e cal ás resistencias mais iniquas.
Vê tu quando se alastra uma gréve, ou quando entre
duas nações bruscamente se chocam interesses, ou
quando, na ordem espiritual, dois credos se confrontam em hostilidade:
o instincto primeiro dos homens, que o abuso da
Civilisação material tem amollecido e
desmarcialisado, é murmurar
paz! juizo!
e
estenderem as mãos uns para os outros, n'aquelle gesto
hereditario que funda os pactos. Mas surge logo o jornal, irritado como
a Furia antiga, que os separa, e lhes sopra na alma a intransigencia, e
os empurra á batalha, e enche o ar de tumulto e de
pó.
O jornal matou na terra a paz. E não só
atiça as questões já dormentes como
borralhos de lareira,
[238]
até que d'ellas salte novamente uma chamma furiosa―mas
inventa dissensões novas, como esse anti-semitismo nascente,
que repetirá, antes que o seculo finde, as anachronicas e
brutas
perseguições medievaes. Depois é o
jornal...
Mas escuta! Onze horas! Onze horas ligeiras estão
dançando, no meu velho relogio, o minuete de Gluck. Ora esta
carta já vai, como a de Tiberio, muito tremenda e verbosa,
verbosa
et tremenda epistola; e eu tenho pressa de a findar, para
ir,
ainda antes do almoço, lêr os meus jornaes, com
delicia.―Teu
Fradique.
XVI
a
clara
(Trad.)
Paris, outubro.
Minha muito amada Clara.―Toda em
queixumes, quasi rabugenta, e mentalmente tarjada de luto, me appareceu
hoje a tua carta com os primeiros frios de outubro. E porquê,
minha dôce descontente?
Porque, mais féro de coração que um
Trastamara ou um Borgia, estive cinco dias (cinco curtos dias de
outomno) sem te mandar uma linha, affirmando essa verdade
tão patente e de ti conhecida como o disco do
sol―«que só em ti penso,
[239]
e só em ti
vivo!...» Mas não sabes tu,
oh super-amada, que a tua lembrança-me palpita na alma
tão natural e perennemente como o sangue no
coração? Que outro principio governa e mantem a
minha vida senão o teu amor? Realmente necessitas ainda,
cada manhã, um certificado, em letra bem firme, de que a
minha paixão está viva e
viçosa e te envia os
bons dias? Para
que?
Para socego da tua incerteza? Meu Deus! Não será
antes para regalo do teu orgulho? Sabes que és Deusa, e
reclamas incessantemente o incenso e os canticos do teu devoto. Mas
Santa Clara, tua padroeira, era uma grande santa, de alta linhagem, de
triumphal belleza, amiga de S. Francisco de Assis, confidenta de
Gregorio IX, fundadora de mosteiros, suave fonte de piedade e
milagres―e todavia só é festejada uma vez, cada
anno, a 27 de agosto!
Sabes bem que estou gracejando, Santa Clara da minha fé!
Não! não mandei essa
linha superflua, porque todos os males bruscamente se abateram sobre
mim:―um defluxo burlesco, com melancolia, obtusidade e espirros; um
confuso duello, de que fui o enfastiado padrinho, e em que apenas um
ramo secco d'olaia soffreu, cortado por uma bala; e, emfim, um amigo
que regressou da Abyssinia, cruelmente Abyssinisante, e a quem tive de
escutar com resignado pasmo as caravanas, os perigos, os amores, as
façanhas e os leões!... E ahi está
como a minha pobre Clara, solitaria nas suas florestas, ficou sem essa
folha, cheia das minhas
[240]
letras, e tão
inutil para a segurança do
seu coração como as folhas que a cercam,
já murchas decerto e dançando no vento.
Porque não sei como se comportam os teus bosques;―mas aqui
as folhas do meu pobre jardim amarellaram e rolam na herva humida. Para
me consolar da verdura perdida, accendi o meu lume:―e toda a noite de
hontem mergulhei na muito velha chronica d'um Chronista medieval da
minha terra, que se chama Fernam Lopes. Ahi se conta d'um rei que
recebeu o debil nome de
Formoso, e que, por causa d'um grande amor,
desdenhou princezas de Castella e de Aragão, dissipou
thesouros, affrontou sedições, soffreu a
desaffeição dos povos, perdeu a vassallagem de
castellos e terras, e quasi estragou o reino! Eu já conhecia
a chronica―mas só agora comprehendo o rei. E grandemente o
invejo, minha linda Clara! Quando se ama como elle (ou como eu), deve
ser um contentamento esplendido o ter princezas da christandade, e
thesouros, e um povo, e um reino forte para sacrificar a dois olhos,
finos e languidos, sorrindo pelo que esperam e mais pelo que
promettem... Na verdade só se deve amar quando se
é rei―porque só então se
póde comprovar
a altura do sentimento com a magnificencia do sacrificio. Mas um
méro vassallo como eu (sem hoste ou castello), que possue
elle de rico, ou de nobre, ou de bello para sacrificar? Tempo, fortuna,
vida? Mesquinhos valores. É como offertar na mão
aberta
[241]
um pouco de
pó. E depois a bem amada nem sequer fica na historia.
E por historia―muito approvo, minha estudiosa Clara, que andes lendo a
do divino Budha. Dizes, desconsoladamente, que elle te parece apenas
um
Jesus muito complicado. Mas, meu amor, é
necessario desentulhar esse pobre Budha da densa alluvião de
Lendas e Maravilhas que sobre elle tem acarretado, durante seculos, a
imaginação da Asia. Tal como ella foi,
deprendida da sua mythologia, e na sua nudez historica,―nunca alma
melhor visitou a terra, e nada iguala, como virtude heroica, a
Noite
do
Renunciamento. Jesus foi um proletario, um mendigo sem vinha
ou leira, sem amor nenhum terrestre, que errava pelos campos
da Galiléa, aconselhando aos homens a que abandonassem como
elle os seus lares e bens, descessem á solidão e
á mendicidade,
para penetrarem um dia n'um Reino venturoso, abstracto, que
está nos Céos. Nada sacrificava em si e instigava
os outros ao sacrificio―chamando todas as grandezas ao nivel da sua
humildade. O Budha, pelo contrario, era um Principe, e como elles
costumam ser na Asia, de illimitado poder, de illimitada riqueza:
casára por um immenso amor, e d'ahi lhe viera um filho, em
quem esse amor mais se sublimára:―e este principe, este
esposo, este pae, um dia, por dedicação aos
homens, deixa o seu palacio, o seu reino, a esposada do seu
coração, o filhinho adormecido no
berço de nacar, e, sob a rude estamenha de um mendicante,
vai através do mundo esmolando e prégando a
renuncia aos deleites,
[242]
o aniquilamento de todo o desejo, o illimitado amor pelos
sêres, o incessante aperfeiçoamento na
caridade, o desdem forte do ascetismo que se tortura, a cultura perenne
da misericordia que resgata, e a confiança
na morte...
Incontestavelmente, a meu vêr (tanto quanto estas excelsas
coisas se podem discernir d'uma casa de Paris, no seculo XIX e com
defluxo) a
vida do Budha é mais meritoria. E depois considera a
differença do ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus,
diz:―«Eu sou filho de Deus, e insto com cada um de
vós, homens mortaes, em que pratiqueis o bem durante os
poucos annos que passaes na terra, para que eu depois, em premio, vos
dê a cada um, individualmente, uma existencia superior,
infinita em annos e infinita em delicias, n'um palacio que
está para além das
nuvens e que é de meu Pae!» O Budha, esse, diz
simplesmente:―«Eu sou um pobre frade mendicante, e
peço-vos que sejaes bons darante a vida, porque de
vós, em recompensa, nascerão outros melhores, e
d'esses outros ainda mais perfeitos, e assim, pela pratica crescente da
virtude em cada geração, se
estabelecerá pouco
a pouco na terra a virtude universal!» A justiça
do justo,
portanto, segundo Jesus, só aproveita egoistamente ao justo.
E a justiça do justo, segundo o Budha, aproveita ao
sêr que o substituir na existencia, e depois ao outro, que
d'esse nascer, sempre durante a passagem na terra, para lucro eterno da
terra. Jesus cria uma aristocracia de santos, que arrebata para o
céo onde elle é Rei, e que constituem a
côrte do céo
para deleite
[243]
da sua
divindade;―e não vem d'ella proveito directo para o Mundo,
que continua a soffrer da sua
porção de Mal, sempre indiminuida. O Budha, esse,
cria, pela somma das virtudes individuaes, santamente accumuladas, uma
humanidade que em cada cyclo nasce progressivamente melhor, que por fim
se torna perfeita, e que se estende a toda a terra d'onde o Mal
desapparece, e onde o Budha é sempre, á beira do
caminho rude, o mesmo frade mendicante. Eu, minha flor, sou pelo Budha.
Em todo o caso, esses dois Mestres possuiram, para bem dos homens, a
maior porção de
Divindade que até hoje tem sido dado á alma
humana conter. De resto, tudo isto é muito complicado; e tu
sabiamente procederias em deixar o Budha no seu Budhismo, e, uma vez
que esses teus bosques são tão admiraveis, em te
retemperar na sua força e nos seus aromas salutares. O Budha
pertence á cidade e ao collegio de França: no
campo a verdadeira Sciencia deve cahir das arvores, como nos
tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina mais que todas as
folhas dos livros. Sobretudo do que eu―que aqui estou
pontificando, e
fazendo pedantescamente, ante os teus lindos olhos, tão
finos e meigos, um curso escandaloso de Religiões
Comparadas.
Só me restam tres pollegadas de papel,―e ainda te
não contei, oh doce exilada, as novas de Paris,
acta Urbis. (Bom, agora latim!) São
raras, e
pallidas. Chove: continuamos em Republica; Madame de Jouarre, que
chegou da
Rocha com menos
cabellos brancos, mas mais cruel, convidou alguns desventurados (dos
[244]
quaes eu o maior)
para escutarem tres capitulos d'um novo attentado do barão
de Fernay sobre a
Grecia; os jornaes publicam outro prefacio do snr.
Renan, todo cheio do snr. Renan, e em que elle se mostra, como sempre,
o enternecido e erudito vigario de Nossa Senhora da Razão; e
temos, emfim, um casamento de paixão e luxo, o do nosso
esculptural visconde de Fonblant com mademoiselle Degrave, aquella
nariguda, magrinha e de maus dentes, que herdou, milagrosamente, os
dois milhões do cervejeiro, e que tem tão
lindamente engordado e ri com dentes tão lindos. Eis tudo,
minha adorada... E é tempo que te mande, em
montão, n'esta linha, as saudades, os desejos e as coisas
ardentes e suaves e sem nome de que meu
coração está cheio, sem que se esgote
por mais que plenamente as arremesse aos teus pés adoraveis,
que beijo com submissão e com
fé.―
Fradique.
Notas:
[1] Estas
cartas constituem verdadeiros Ensaios
Historicos,
que, pelas suas proporções, não
poderiam entrar n'esta collecção. Reunidas as
notas e fragmentos dispersos, devem formar um volume a que o seu
compilador dará, penso eu, o titulo de
Versos e Prosas de Fradique Mendes.
[2] Muitas
das cartas de Fradique Mendes, aqui publicadas,
são naturalmente escriptas em francez. Todas essas
vão acompanhadas da indicação
abreviada
trad. (traduzida).
[3] O velho
creado de quarto de Fradique Mendes.